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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 235 p. ISBN 85-7139-392-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. De estações a núcleos urbanos Nilson Ghirardello

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 235 p. ISBN 85-7139-392-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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De estações a núcleos urbanos

Nilson Ghirardello

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3 DE ESTAÇÕES A NÚCLEOS URBANOS

VComo se chama esta estação?Negrinhos vendem balas na plataforma, no meio do povo.Hespanhóes de dentes sujosriem com largas caras ossudas.Uma serraria fanhosa, estridente,dentro de um barracão de folhas de zinco,atrôa os ares de uma musica monotona.De quem será aquella moça morena?

(Ribeiro do Couto, “Noroeste”)

ORIGEM DOS CHÃOS

Grande parte das cidades paulistas fundadas durante o séculoXIX tem os seus chãos originados de patrimônios religiosos, tam-bém denominados capelas.

Um fazendeiro ou grupo deles doava terras rurais à IgrejaCatólica, que passaria a zelar pelo futuro povoado, sob a proteçãoreligiosa de um santo, em geral determinado pelo doador. Esse eraum ato entre vivos, ou de última vontade, estabelecido por contratoou testamento, bastando para tal o simples assento lavrado no livrodo senhor direto (Monteiro, 1963, p.251).1 O doador, bem como

1 O mesmo autor informa que, após a aprovação do Código Civil, passou a serexigida Escritura Pública.

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sua família, gozariam de alguns privilégios, como missas após amorte, sepultamentos especiais etc. (Marx, 1991, p.26 e p.39). Obri-gações essas também indicadas na escritura de doação lavradaem nome do santo ou santa padroeiro, porém assinada pelo bispo(Deffontaines, 1944).

Tal patrimônio a ser administrado pela Igreja seria como umdote, cuja finalidade principal era a ereção da capela (Marx, 1991,p.39) que, instalada em local povoado, agregaria fiéis ao seu redor.2

O interesse dos proprietários rurais na proximidade física dopatrimônio, almejada com a doação, também dizia respeito à uniãodos poderes entre a Igreja e o Estado.

Até a República, era a Igreja que cumpria papéis que, logo após1889, serão de cunho reservado exclusivamente ao Estado, comoemissão de certidões de nascimento, casamento, óbito e, especial-mente, conforme exigia a “Lei de terras” de 1850, registro das pro-priedades rurais.3 Portanto, como braço do Estado, a Igreja Cató-lica significava a presença deste nos lugares mais afastados. Ainda,como braço do Estado é que se encarregaria de formar grande partedos povoados.4 Os próprios termos hierárquicos destes revelamseu forte vínculo eclesiástico, capela num primeiro momento, pa-róquia ou freguesia num estágio superior (Marx, 1991, p.12). Taisdenominações cairão paulatinamente em desuso após a República,substituídas na mesma ordem por bairro ou povoado, vila, a se-guir, e depois cidade, sede de município, e, num último patamar, acomarca, circunscrição judiciária sob a égide de um ou mais juízesde direito.

Até a República, as doações de terras à Igreja, para a formaçãode capelas, serão uma constante no Estado de São Paulo (Monteiro,

2 Conforme nos informa Murillo Marx (1991, p.38-9), as “Constituições Pri-meiras do Arcebispado da Bahia” não permitiam que as capelas estivessem emlocais ermos e despovoados.

3 Artigos 11 e 13 da “Lei de terras”, Lei n. 601 de 18.9.1850. Sobre os demaisregistros, ver Marx (1980, p.92).

4 A maioria das cidades formadas no Estado de São Paulo durante o século XIXteve seus chãos estabelecidos como patrimônios religiosos. Segundo Edgar Car-los Amorim (1986, p.2), atualmente, no Brasil, as enfiteuses estão assim distri-buídas: Igreja Católica 60%, Terras Públicas 30%, Família Real 3%, Particula-res Inominados 7%.

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1963, p.248-9). Mesmo a “Lei de terras”, que na prática institui amercantilização do solo rural, não modificará tal situação. Conti-nuarão os proprietários rurais a doar pequena parcela de suas ter-ras no intuito da formação urbana. Alguns motivos já foram expos-tos para explicar tais ofertas, mas outros havia, menos pios, comoa valorização do restante das terras ao redor, caso o povoado vin-gasse, a presença gregária e próxima de mão-de-obra para uso even-tual nas propriedades agrícolas ou mesmo para outros trabalhosmais especializados, como já apontamos no capítulo anterior.

Repassava o proprietário rural à Igreja o encargo da criaçãodo núcleo urbano, a ser arruado pela Câmara, que detinha sob suajurisdição o território da nova capela. As terras urbanas eramaforadas pelos interessados, os enfiteutas, que não possuíam suapropriedade plena, mas apenas uso e gozo (Amorim, 1986, p.3-4).Anualmente pagavam o foro, cânon ou pensão ao senhorio direto,no caso a Igreja; caso negociassem o imóvel com terceiros, dispo-riam de porcentagem sobre os “direitos inerentes ao domínio”,taxa essa denominada Laudêmio, geralmente de 2,5% sobre o va-lor do negócio.

A rigor, tal transação não se configurava em venda, pois o do-mínio do bem era bipartido entre domínio direto e domínio útil, oprimeiro exclusivamente do senhorio e o segundo do enfiteuta(ibidem, p.3). Mesmo essa transmissão só poderia ser efetivadasob aquiescência do enfiteuta, pois o contrato de aforamento eraperpétuo (ibidem).

Na tentativa de separar as ocupações temporais das espirituais,cuidava da administração dos bens da Igreja um conselho formadopor membros desta e leigos, indicados pelo bispo, chamado Fábri-ca Paroquial ou apenas Fábrica, antiga denominação que remete àedificação, ao fabrico de um templo. O gestor da Fábrica era o fa-briqueiro que respondia formalmente pela Igreja. Este necessaria-mente não precisava ser vigário, mas pelos interesses envolvidosfreqüentemente o era.

À medida que o povoado ia sendo ocupado e, conseqüente-mente, pelos pagamentos de pensões e laudêmios, o dinheiro iasendo acumulado pela Fábrica; o cruzeiro, marco inicial do solosagrado, seria substituído. Principiava-se por uma capela, ainda

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modesta, depois sob a responsabilidade de vigário, capela curada,e, num outro momento, o mesmo espaço poderia ser ocupado poruma matriz (Marx, 1980, p.92-3), já exercendo jurisdição eclesiás-tica sobre outras igrejas. Como último estágio, a difícil, mas sem-pre almejada sede de bispado, comandando toda uma região, repre-sentada fisicamente pela catedral, igreja episcopal da diocese.

Embora a “Lei de terras” altere a situação da posse da terrarural, liberando sua comercialização, desligando-a definitivamen-te das amarras do Estado, de maneira imediata à sua promulgaçãoe regulamentação, seus reflexos tardarão a chegar ao solo urbano.

Contam-se às dezenas as cidades fundadas na província deSão Paulo entre 1850 e 1889,5 sendo, em sua esmagadora maio-ria, patrimônios religiosos. Atestam os próprios nomes dessas fu-turas cidades sempre precedidos por qualificações sacras, vindasdos padroeiros e padroeiras, gradativamente abandonadas em fa-vor da denominação final, quase sempre ligada a fatores geográfi-cos, freqüentemente cursos d’água.6

A República parece-nos representar momento de ruptura im-portante no procedimento de doação de terras à Igreja Católicapara a formação de patrimônios. Aquelas que acontecem após 1889e particularmente após 1891, data da Constituição que separa ospoderes entre Igreja e Estado, se dão por hábito, no início, por le-gítima fé, ou por outro interesse específico qualquer, como vere-mos adiante.

A Constituição de 1891 preserva os direitos adquiridos pelaIgreja nas terras aforadas. Somente o Código Civil de 1916 modi-fica os vínculos da enfiteuse, praticamente extinguindo essa forma

5 Até 1879, a província de São Paulo possuía cem municípios; no final do séculoXIX, 161. Só na última década do século foram criados 41 novos municípios(cf. Monbeig, 1984, p.113).

6 Pierre Deffontaines (1944, p.302) relata sobre a laicização dos nomes das ci-dades atestando que as novas cidades passaram a ostentar o nome de seusfundadores. Creio que podemos completar afirmando que parte das antigascidades também abandonou os nomes sacros. Como exemplo: Patrimônio NossaSenhora do Patrocínio do Jahu, atualmente Jahu, nome do Rio que banha acidade, ou Patrimônio do Sant’Anna do Botucatu, atualmente Botucatu, nomeda Cuesta.

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de gozo imobiliário, porém sem alterar de forma significativa asenfiteuses antigas.7

A própria Igreja, após 1891, embora mantenha, asseguradospor lei, os vínculos originais do aforamento, estabelece em algu-mas cidades, particularmente naquelas de maior crescimento, umaforma híbrida de emprazamento. Passa a cobrar pelo acesso àtitularidade de domínio útil do imóvel valor muito semelhante aoseu preço de mercado. Ou seja, além de o chão emprazado não sertotalmente liberado ao interessado e haver necessidade de contri-buir com taxas anuais de foro e laudêmio, em caso de transmissãoa terceiros é estabelecida importância bastante alta para sua “ocupa-ção inicial”, a chamada “jóia”.

Acreditamos que tal procedimento estivesse vinculado aos ren-dimentos pouco significativos das pensões anuais, determinadasobrigatoriamente pelo contrato de aforamento como de “valor certoe invariável”,8 independentemente da inflação. A “jóia”, práticanova, vinha, como uma espécie de compensação, trazer os valoresdos terrenos a patamares semelhantes aos do mercado livre. Por-tanto, a “jóia” era tanto mais expressiva, e mesmo existente, quan-to maior fosse a procura por datas urbanas.

Esse procedimento “híbrido”, contrário na raiz à própria en-fiteuse, foi habitual em várias cidades e também aconteceu emBauru, a “boca-de-sertão” da Noroeste, e, a nosso ver, somado aoutros problemas, se transforma num exemplo bastante negativo,ao menos o suficiente para não ser repetido na formação da gran-de maioria dos povoados junto à ferrovia.

A vinda de três estradas de ferro para Bauru – Sorocabana,Noroeste e Paulista, entre os anos de 1905 e 1910 –, ao mesmotempo que acelera o crescimento da cidade, valoriza de maneirabastante rápida as datas urbanas, todas sob aforamento da Fábricada Matriz do Divino Espírito Santo. Tal controle sobre o solo criará

7 O Código Civil estabelece o resgate das enfiteuses, porém não para aquelasinstituídas antes dele, conforme o entendimento de muitos juristas (ver Mon-teiro, 1963, p.259).

8 O Código Civil, em seu artigo 678, também assim estabelece, mantendo ovelho costume (Oliveira, 1996, p.126).

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graves tensões locais a ponto de a Igreja passar a ser vista não maiscomo entidade evangelizadora, e sim como empreendedora imo-biliária. Tais questões são abertamente discutidas pelos jornais daépoca:

Bauru infelizmente possue um patrimônio, e sobre este patri-mônio o Sr. Bispo volveu toda a sua attenção; a ponto de quererextrahir d’elle uma fortuna para seu óbulo, ou para óbulo dos ausen-tes. Com este patrimônio fez-se S. Excia. negociante de terrenos: aprincípio as datas custavam 5$000 cada uma; depois 25$000; maistarde 50$000; passando um certo tempo 100$000 e hoje com a che-gada da Companhia Paulista o valor de uma data de terreno é200$000. (O Bauru, 11.9.1910)

De maneira irregular, portanto, era cobrado do enfiteuta umvalor semelhante ao da compra do imóvel, e, em valorização constan-te, mesmo que este não pudesse dispor de sua propriedade plena.

Outra questão que provocava muitos atritos com a gestora dopatrimônio era o laudêmio sobre a transmissão de direitos do bem,fixado em 2,5% da transação. Sérias discussões surgiram a respei-to dos valores, que deveriam incidir apenas sobre o terreno semconsiderar suas benfeitorias. Porém, por diversas vezes, a Fábricaexigiu o pagamento de porcentagem por toda a transação, ou seja,o terreno mais as obras sobre ele.

Mesmo após o Código Civil de 1916, tal prática prevaleceu emdiversos patrimônios, segundo ilustre jurista:

Uma outra injustiça que se vem cometendo em nome do insti-tuto da enfiteuse não deixa de ser a cobrança de laudêmio sobre ovalor real do imóvel na época da transação, sem a exclusão dasbenfeitorias feitas tão somente pelo enfiteuta, com o seu suor, traba-lho e sacrifícios diversos. (Amorim, 1986, p.6)

Na mesma passagem citada se encontrava outra permanentequestão de atrito: o enfiteuta buscava pagar ao senhor porcenta-gem de laudêmio referente ao valor do imóvel “na época da tran-sação”, ou seja, quando este fora emprazado. Numa cidade comoBauru, que via o preço da terra urbana subir de maneira tão rápi-da, o senhorio, por intermédio da Fábrica, jamais aceitou as impor-

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tâncias originais da época de contrato, resultando daí freqüentesconflitos e demandas judiciais.

A Fábrica esteve permanentemente atenta às negociações ir-regulares e cuidava de preservar seus direitos, mesmo que paratanto fosse obrigada a ameaçar publicamente os titulares do domí-nio útil:

EditalFabrica da Matriz do Divino Espírito SantoAviso aos Srs. Foreiros que tendo a fabrica dessa matriz consti-

tuído advogado para proceder a cobrança de jóias, laudêmios e forosatrazados dos terrenos aforados e dos que occupados indebitamentefica concedido o prazo maximo até 31 do próximo mez de outubropara os interessados liquidarem seus débitos.

Findo esse prazo, será fornecida ao advogado a relação dos Srs.Foreiros relapsos para os fins de direito.

Outrossim tendo sciencia de que diversos dos Srs. Foreiros temfeito transferencia de seus direitos sobre o domínio útil das datasaforadas, sem obedecer as prescripções dos respectivos títulos deaforamento, declaro que perante a fabrica não tem o menor valorsemelhantes transferências, protestando a mesma valer seus direitosem tempo oportuno.

O FabriqueiroManoel Antonio Gandra. (O Tempo, n.676, 30.9.1917)

A Fábrica legalmente poderia cobrar o devido, pois a lei eraclara: o não-pagamento das pensões resultaria em comisso, podendoo senhor reaver o domínio útil da área. Isso também se dava emrelação ao laudêmio, “dívida líquida, certa e exigível” (Amorim,1986, p.6), da qual tentavam escapar os enfiteutas, firmando ape-nas contratos particulares de compra e venda sem estabelecer regis-tro definitivo em cartório.

A brusca valorização do patrimônio da cidade de Bauru impe-diu sua ocupação por aqueles que não dispusessem de um bomdinheiro. Como reflexo imediato, surgiram bairros operários9 além

9 O primeiro bairro em Bauru, fora das divisas do Patrimônio, foi a Vila Falcão,logo depois precedido pela Vila Antarctica. Ambos receberam trabalhadorespobres. A Vila Falcão, pela proximidade, recebeu funcionários das oficinas daCEFNOB e a Vila Antarctica, operários da empresa de mesmo nome (ver Ghi-rardello, 1992, p.118-9).

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das linhas ferroviárias, loteados por antigos proprietários rurais. Taisterrenos, além de serem de valor sensivelmente menor por sualocalização periférica, não possuíam nenhum vínculo enfitêutico.

Embora as relações entre enfiteuticário e enfiteuta individualnão fossem as melhores, a situação pior se dava entre o poder públi-co, representado pela Câmara, e a Fábrica, que respondia pela Igre-ja. Se antes da República, com os interesses da Câmara e da Fábri-ca sendo, em tese, os mesmos em relação ao solo urbano, já haviaproblemas entre essas duas esferas de poder, após essa data os in-teresses se tornam freqüentemente divergentes. Passaram a ser co-locadas questões como: a quem pertenciam as ruas das cidadescujo patrimônio era religioso? As praças? E os edifícios públicosassentados em terrenos foreiros?

Essa relação parece ter sido bastante conturbada e motivo deproblemas em várias cidades, mesmo antes da República, a julgar-mos pela resposta do conselheiro provincial Saldanha Marinho aocônego Thomaz Affonseca e Silva, no ano de 1885, em que ficaexposto o difícil convívio entre Câmaras e Fábricas:

Aos fabriqueiros compete aforar ou conceder datas de terrenospertencentes ao patrimonio das egrejas, assim como dar applicaçãoao producto das concessões feitas; e, si ha contestação entre asCamaras Municipaes e as Egrejas Matrizes, como tem havido empleitos julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado sobre o dominioe posse desses terrenos, devem os interessados recorrer ao poderjudiciário.10

Mesmo antes de 1889, portanto, eram comuns, conforme oconselheiro, as demandas entre Câmaras e Fábricas.

As edilidades consideravam que a Igreja, por intermédio dasFábricas, enriquecia-se à custa do solo urbano, e também, suspei-tavam muitos, o próprio fabriqueiro.

Tais desconfianças pareciam ter algum fundo de verdade, poisnas “Instrucções Provisórias Sobre as Fábricas”, baixadas pela Diocesede São Paulo em 25 de janeiro de 1893, tais conselhos eram clas-

10 Parecer do conselheiro Saldanha Marinho endereçado ao cônego Tomaz Affon-seca e Silva, datado de 31 de outubro de 1885 (apud Alves, 1897, p.571).

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sificados em 1ª e 2ª categorias: “São Fábricas de 1ª cathegoriaaquellas cujas rendas não excederem á somma de cincoenta milréis; são de 2ª as que excederem de cincoenta mil réis mensais”.11

As categorias estariam vinculadas às gratificações dos fa-briqueiros, 10% sobre as de 1ª categoria e 5% sobre as de 2ª cate-goria.12 Conseqüentemente, seus vencimentos, que eram retiradosdos rendimentos anuais das Fábricas, estavam diretamente relacio-nados às várias transações feitas com as terras urbanas. Interessavaao fabriqueiro o maior número de operações imobiliárias possível,bem como a valorização do solo urbano.

Deixara a Fábrica, no final do século XIX, de ser uma simplesgestora dos bens patrimoniais da Igreja em prol da edificação deum templo, aquisição de suas alfaias e demais exigências do culto.Tornara-se um agente de cunho imobiliário, particularmente nascidades em desenvolvimento, com sobras expressivas de caixa paraoutro tipo de investimento, muito mais ligado às coisas terrenas, oque se pode depreender de um dos deveres do fabriqueiro, o denúmero 16: “Converter em acções garantidas de estradas de ferroou prédios urbanos as sobras semestraes ou annuaes, confórme fôrdeterminado na prestação de contas”.13

Pierre Deffontaines (1944) relata que era bom negócio “sercura fundador de cidades”, por causa dos valores transacionados,particularmente quando alguma delas progredia. Afirma que ha-via vigários que se dedicavam a essa atividade, daí resultando mui-tas vezes trapaças. Seriam esses os chamados “contos do vigário”?

certos padres italianos eram mesmo especializados na criação dospatrimônios. Muitas vêzes êles não residiam, mas vinham sómenteàs festas, podiam assim servir vários patrimônios. Às vêzes o proprie-tário se entendia com o vigário para tirar melhor proveito do negó-cio; houve mesmo às vêzes falsos padres. (p.302)

As rendas das Fábricas, que passaram a contar com o reforçosignificativo das “jóias”, atraíam a cobiça das edilidades que, em

11 Instrucções Provisórias Sobre Fábricas. Artigo 2º (apud Alves, 1897, p.565).12 Instrucções Provisórias Sobre Fábricas. Artigo 9º (apud Alves, 1897, p.567).13 Instrucções Provisórias Sobre Fábricas. Inciso 16, Artigo 3º (apud Alves, 1897,

p.567).

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muitos casos, contrariando flagrantemente os direitos mais elemen-tares dessas entidades, tentavam tomar a si a administração dasáreas foreiras (Alves, 1897, p.570-1). Muitas o faziam à força, porconta própria, iniciando longa batalha judicial sempre vencida pelaIgreja.14 Outras Câmaras, mais previdentes, atentas à lei, consulta-vam o governo estadual:

Respondendo á vossa consulta feita em officio de 21 de abrilpróximo passado, declaro-vos que sendo o domínio e posse dos ter-renos do patrimônio de Nossa Senhora das Dores da Irmandade domesmo título, erecta na egreja matriz, á respectiva mesa pertence aadministração delles; mas, si esse concelho contesta o domínio ou aposse, é preciso recorrer ao poder judiciário. (Alves, 1897, p.571)

O Estado prudentemente sugere à edilidade o ingresso na jus-tiça, não para pleitear a administração da área foreira de fatal in-sucesso, mas, se fosse o caso, contestar sua posse pela Igreja. AlgumasCâmaras assim procederão, sob alegações várias, entre elas: que odoador da área o fizera sobre terras que não lhe pertenciam, queeram terras griladas, que os documentos de doação não tinhamvalidade etc. Tais processos geralmente serão arquivados por faltade elementos ou serão facilmente vencidos pelas Fábricas.15

As edilidades, ainda, sentiam-se prejudicadas por serem obri-gadas a prestar os costumeiros serviços no solo urbano, beneficiandoparticularmente a senhoria dona do domínio direto dos terrenos.

A fim de elaborar um Código de Posturas, o presidente e osmembros da intendência do “Espírito Santo de Batataes” fazemalguns questionamentos ao governo do Estado, resumindo as preo-

14 A freqüência com que as Câmaras Municipais tentaram desprezar os domíniosperpétuos da Igreja parece ter sido grande, conforme se constata em Alves(1897, p.570-1).

15 Como exemplo, a Câmara Municipal de Bauru tenta comprovar, inutilmente,que a área do Patrimônio da Cidade não era a estabelecida originalmente, massim que deveria situar-se na outra margem do Rio Bauru (ver Autos de Embar-go de Obra Nova..., 1913). Enfiteutas individualmente, ou em grupo, tambémtentaram demandar contra a Fábrica. Num desses processos, era alegado queas escrituras que originaram a área foreira eram produto de grilo (ver Razõesapresentadas pelo advogado Dr. Carlos Quartim de Moraes..., 1920).

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cupações das Câmaras Municipais que tinham suas terras aforadaspela Igreja:

1º Si essa intendencia podia conceder datas dos terrenos daegreja, pagando os impetrantes o imposto á fabrica;

2º Si, não tendo ella direito a essa concessão, é obrigada a man-dar seus empregados: arruador, fiscal e secretário procederem, na-queles terrenos, ao respectivo alinhamento, nivelamento, etc.; assimcomo a mandar passar as cartas de data;

3º Si ella não póde tributar a edificação naquelles terrenos.16

A Câmara de Batatais parecia ter ciência da resposta à primei-ra indagação, a julgar pelo teor da segunda, sendo nítida nesta acontrariedade com que deveria estar prestando tais serviços e oquanto achava injusto fazê-los. Porém, a resposta, assinada porPrudente de Moraes Barros, vem fulminante:

Quanto ao primeiro ponto ... não póde essa intendencia conce-der datas dos terrenos do patrimonio de egrejas, visto ser isto daattribuição dos respectivos fabriqueiros.

Quanto ao segundo que, não podendo a intendencia concederdatas dos referidos terrenos, claro está que não compete tambempassar as respectivas cartas; mas que o arruador, o fiscal e o secreta-rio da municipalidade devem dar o alinhamento, nivelamento, etc.,como si se tratasse de outra propriedade particular.

Quanto ao terceiro, finalmente, que podem aquelles terrenosser sujeitos aos impostos municipaes que pagam outros quaesquer.17

O governo estadual informa a possibilidade de cobrança deimpostos sobre as construções, o chamado Imposto Predial,18 queincidia sobre a edificação e não sobre o terreno. Logo, quem paga-ria tal contribuição seria aquele a deter o domínio útil, quando

16 Ofício de Severino Gemerino Carneiro, presidente da Comissão para Organi-zação do Código de Posturas de Espírito Santo de Batataes, do dia 12 de maiode 1890 (apud Alves, 1897, p.571).

17 Resposta do Palácio do Governo do Estado de São Paulo, assinada por Pruden-te de Moraes Barros, datada de 17 de julho de 1890, ao Ofício de SeverinoGemerino Carneiro (apud Alves, 1897, p.571).

18 O Imposto Predial é antecessor do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU),este sim, que também taxa os terrenos urbanos.

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tivesse feito benfeitoria no terreno aforado, e não o senhor dodomínio direto. Ressalte-se que esse era um imposto significativo,em geral o segundo em grau de importância, vindo atrás apenas doImposto Sobre Indústrias e Profissões, que, conforme lei estadual,fora repassado aos municípios.19

À tão combalida autonomia municipal durante a RepúblicaVelha somava-se, portanto, em muitos casos, a dificuldade ou im-possibilidade de administrar o próprio solo urbano livremente, poisaté as ditas áreas públicas tinham propriedade incerta nas cidadessob aforamento.

Se, por um lado, a prosaica aprovação de um Código de Pos-turas20 ou mesmo desapropriações precisava ser decidida pelo go-verno do Estado,21 bloqueando-se iniciativas locais e permitindo aintermediação danosa dos coronéis, por outro, mesmo questõessimples, afetas diretamente aos chãos citadinos, dependiam deentidade independente e possuidora de uma série de privilégiosimemoriais.

Exemplificaremos com a cidade de Bauru mais um desses reite-rados choques de interesses, entre Câmara e Fábrica, pelo elevadograu de influência exercida por esta na formação das futuras cida-des da Zona Noroeste, tributárias desse município.

19 O Imposto sobre Indústrias e Profissões já existia antes da República. A CartaMagna de 1891 simplesmente transfere sua competência do poder central paraos Estados da Federação. São Paulo o repassa para os municípios. Sobre oassunto, ver Moraes (1964, p.24-6).

20 Conforme a Constituição de 1824, até mesmo os Códigos de Posturas deveriamser aprovados pelas Assembléias. Segundo Dante Martorano: “Ainda que aoPresidente coubessem funções executivas, as Câmaras seriam consideradasCorporações meramente administrativas. Nem a votação de seus próprios im-postos coube ao município. Das Câmaras ainda foram retiradas as funções aelas conferidas pelas ordenações Filipinas” (apud Martorano, 1985, p.65).

21 Conforme um ilustre jurista: “Para a liberdade de que elas põem ao alcance dopovo, são as instituições municipais o mesmo que para a ciência as escolasprimárias. Desapropriação de terra para rua, estrada ou logradouro público?Ao Presidente da Província compete declarar ... quer a Câmara Municipal cons-truir um cemitério? Ao Presidente da Província compete aprovar o plano, semo que não pode a Câmara construí-lo ... não podem as Câmaras nomear umguarda de cemitério sem sujeitar essa nomeação à aprovação do Presidente daProvíncia” (apud Bastos, 1937, p.149).

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No mês de julho de 1913, o prefeito, coronel Manoel Bento daCruz, manda derrubar a antiga capela a fim de construir um jar-dim público em toda a área da praça, onde se dispunha o pequenotemplo desde 1898 (Silva, 1957, p.57).

Em 13 de agosto de 1913, o bispado abre processo contra aprefeitura exigindo interdição das obras de ajardinamento da futurapraça municipal.22 O pretexto religioso, provocado pela destrui-ção da capela, viria a calhar perfeitamente para a Igreja lutar pordireitos que considerava seus.

A Igreja se apóia na destruição do templo como forma de justi-ficar as medidas jurídicas tomadas contra a Câmara. Há vários anoso bispado reclamava da posse indevida pela municipalidade, de terrasque julgava suas, bem como, terrenos, praças e ruas, mas jamais agirajudicialmente por elas. Agora havia uma forte bandeira para restituir ochão que julgava ter sido usurpado. (Ghirardello, 1994, p.80)

A situação para o poder público municipal era peculiar, em-bora não exclusiva de Bauru; ele, na realidade, tinha pouca autono-mia sobre o solo urbano, pois mesmo as áreas ditas públicas, comoruas e praças, tinham sua propriedade questionada. A inexistênciado rossio, como nas antigas cidades brasileiras, contribuía paradeixar sem nenhum chão o patrimônio municipal.23

Em casos como esse, a desapropriação ou a compra diretaseria o único caminho pelo qual o poder municipal poderia obteráreas públicas. Mesmo a desapropriação de áreas foreiras podiatrazer problemas legais ou políticos, a julgar por demanda com talpretensão anulada pelo governo do Estado:

Lei nº 948 – 04 de Setembro de 1905Declara sem effeito a Lei de 1º de Fevereiro do corrente anno

pela qual a Câmara Municipal de Bôa Vista das Pedras decretou adesapropriação do patrimônio da Parochia do Espírito Santo dessacidade. (Colleção das Leis..., 1906, p.69)

22 Ver Autos de Embargo de Obra Nova, Fábrica da Matriz do Divino EspíritoSanto de Bauru versus Câmara Municipal de Bauru, 1913.

23 Murillo Marx (1980, p.71) fala do desaparecimento dos rossios nas cidadesbrasileiras a partir dos meados do século XIX.

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A outra possibilidade, a de compra amigável, foi o caminhoseguido por muitas cidades como Lençóis Paulista, finalizando osamiudados desentendimentos entre a Fábrica e a municipalidade.Pois também ali “As discórdias entre a Fábrica e a Prefeitura haviamchegado a um ponto tal, que ninguém sabia quem era a proprietá-ria do patrimônio da vila” (Chitto, 1980, p.68).

No ano de 1902, a prefeitura de Lençóis Paulista compra opatrimônio da Fábrica pela quantia de “dez contos de réis pagá-veis em 5 letras de dois contos de réis, com acréscimo de juros àtaxa de cinco por cento anualmente...”.24

Alguns Estados brasileiros, por terem passado ou mesmo an-tevendo problemas dessa natureza, elaboram em suas Cartas leisespecíficas sobre a constituição do solo municipal, como a de n.522,datada de 30 de junho de 1909, no Piauí, que exige, entre outrascondições: “Haver terras não inferiores a três mil metros quadradospara logradouro commum dos munícipes, e onde o Conselho nãotiver posse alguma, poderá comprar a sua” (Itagyba, 1929, p.378).

A lei mineira de 14 de setembro de 1891 reclama aos futurosmunicípios, em seu artigo 3º, “patrimônio composto de terrenonecessário para logradouro público...” (ibidem, p.377).

A Consolidação das Leis Municipais do Paraná, também pre-ocupada com a questão, determinava as novas cidades terem “pa-trimônios proprios e por elles exclusivamente geridos”.

A duplicidade de poderes sobre o solo urbano parece ser o alvoprincipal dessa lei, de acordo com sua própria justificativa: “por-que os municípios legislam seus governos e obrigam, dentro dosseus territórios, ás pessoas que nelles se acham, sem dependenciade sancção de algum outro poder” (ibidem, p.378).

Esses exemplos mostram preocupação, por parte de algunsEstados, na criação de um patrimônio público ou logradouro pú-blico, por menor que fosse, como condição básica para a constitui-ção de uma cidade.

Diferentemente desses Estados que se preocuparam com aquestão, São Paulo não exigia terras públicas para a futura cidade.

24 Escritura de compra e venda que faz a Câmara Municipal de Lençóis doPatrimônio da Cidade à Fábrica no valor de 10.000$000 (apud Chitto, 1972,p.71).

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As obrigações, com a ressalva que deveriam ser ouvidas as Câma-ras de onde se desmembrariam, resumidamente, eram as seguintes:

1) População municipal não inferior a 10 mil habitantes, sedecom pelo menos 100 prédios bons e população mínima de 1.000habitantes.

2) Edifícios para funcionar a administração municipal, duas es-colas e cadeia pública.

3) Sede com condições de salubridade e saneamento.4) Prova de conseguir impostos municipais de pelo menos 20

contos de réis anuais.5) Representação dos habitantes. 25

Na lei do início do século XX, portanto, não havia necessidadede áreas públicas para o início da vida municipal, no máximo edifí-cios para a administração, o que não significava necessariamente depropriedade da cidade, podendo ser cedidos ou alugados.26

O fim do processo movido pela Fábrica contra a Câmara Mu-nicipal de Bauru se dá pelo acordo entre as partes, ratificado pelaLei n.85, de 12.8.1914 (Autos de embargo...). A Câmara Munici-pal, em vista da iminente sucumbência, prefere pagar à Igreja vul-tosa quantia de 15 contos de réis, porém garantir ao patrimôniopúblico as ruas, praças e terrenos por ela já ocupados, como cons-ta no acordo, transformado em lei, entre as partes:

Art. 1º – Fica o Sr. Prefeito autorizado a pagar à Fábrica Paro-quial a importância de quinze contos de réis (15:000$000) comoindemnisação do edifício da extinta Egreja Paroquial e terreno porella ocupado e bem assim as custas da acção que a mesma fábricamove à municipalidade.

Art. 2º – A despesa correrá pela verba especial de indemnisaçãoque será isenta no orçamento de 1915, podendo para esse fim o Sr.Prefeito praticar as operações de crédito necessárias.

Art. 3º – A Fábrica Parochial desistirá da acção que atualmentemove contra a municipalidade e de todo e qualquer direito e

25 Decreto n.1.454, de 5.4.1907, que regulamenta a Lei n.1.038, de 10.12.1906(apud Colleção das Leis..., 1908, p.57-9).

26 Murillo Marx (1980, p.75-6) nos informa de que antes, como ainda hoje,era comum o nomadismo de repartições, sem sedes próprias, vivendo comoinquilinos.

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pretenção, presente ou futura, não só em relação ao prédio demoli-do e respectivo terreno, bem como sobre os terrenos do patrimônio,ocupados pelas ruas, praças e largos constantes na planta cadastralda cidade, que será authenticada pela Prefeitura e Fábrica e os terre-nos ocupados pelo Paço Municipal e caixa d’água, de acordo com osfechos divisórios dos mesmos, os quaes passarão para o PatrimônioMunicipal de pleno direito e sem qualquer outra indemnisação, alémdaquellla especificada no Artigo 1º.

Art. 4º – A Câmara reconhecerá como de propriedade da Fá-brica os demais terrenos do Patrimônio, salvo direito de terceiros.(Marx, 1980)

A Câmara de Bauru, tendo à testa Manoel Bento da Cruz,capitula incondicionalmente, pagando os valores exigidos pela Igre-ja havia muitos anos sem sucesso,27 e, suprema humilhação, obri-gava-se a reconhecer os direitos, a rigor inquestionáveis, da Fábri-ca nos demais terrenos urbanos.

Se o exemplo de Bauru, “boca-de-sertão” e base para a forma-ção da maioria das cidades da Zona Noroeste, foi traumático, noque tange à relação com o solo urbano, o mesmo se deu com oprimeiro povoado a atingir foro de cidade: a Estação de Penápolis,quilômetro 220 da CEFNOB. Entre todos aqueles por nós estuda-dos, esse será o único núcleo cujo patrimônio foi entregue à Igreja,mais precisamente a uma ordem religiosa: os Missionários Capu-chinhos do Estado de São Paulo.

Quando, por volta de 1905, Bento da Cruz chega à região daatual cidade de Penápolis e inicia seus negócios com terras, encon-tra, como vimos, um forte “empecilho” às suas vendas: os cain-gangues. Estes, na tentativa de lutar por seu território, viviam emchoque com o branco, que iniciava os trabalhos de construção daferrovia e começava ocupação mais sistemática da Zona Noroeste.Bento da Cruz considerava que a maneira mais rápida de afastaros gentios, fazendo-os abandonar as terras reclamadas, seria catequi-zando-os. O correspondente do jornal O Estado de S. Paulo nafutura cidade de Penápolis relata em artigo sobre a fundação do

27 A Igreja, desde o final da primeira década do século XX, exige do Poder Públi-co 15 contos de réis como indenização pelas ruas e praças da cidade. A Câmarachega a oferecer, sem sucesso, 12 contos (ver Ghirardello, 1994, p.77).

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povoado o interesse de Bento da Cruz na catequese, bem comoseus contatos para levar para essa estação os missionários:

Em palestra com o Dr. Castro Rodrigues, Juiz de Rio Preto,deplorava-se a triste condição dos índios coroados e as difficuldadesque surgiram para conseguir-se o povoamento da margem esquerdado Tieté, sendo então aventada a ideia de, em ponto adequado, seobter o estabelecimento de missionários afim de tentar a catechesedos selvagens, e mesmo formar um núcleo agrícola, destinado a ser“chave” do sertão inculto e facilitar a sua penetração. (O Estado deS. Paulo, 27.10.1909 – apud Martins, 1968, p.206-7)

Antes mesmo da instalação da Estação de Penápolis, acontecidaem 1º.10.1908, Bento da Cruz entra em negociações para que oscapuchinhos para aí se dirijam:

Já em 1906 o Sr. Manoel Bento da Cruz, o qual vindo de SãoJosé do Rio Preto adquiriu terras nas proximidades de Maria Chica,convidava os religiosos capuchinhos de São Paulo, para que viessemfundar uma Residência nesse sertão, prometendo que seria doado àOrdem um pequeno patrimônio onde se desejava surgisse uma vilaou mesmo uma cidade. (Cavedine, 1992, p.23)

Sabia Bento da Cruz que essa ordem religiosa tivera atuaçãodestacada na catequese indígena. Afinal, desde 1843, os capuchinhoshaviam sido incumbidos pelo governo imperial a “assumirem apacificação e assentamento de grupos tribais por todo o Brasil”(Dean, 1997, p.171-2). Estes chegaram a formar várias aldeias atéo final do século XIX, onde “Tantas almas foram conquistadas paraa religião, tantos homens para a civilização e tantas mãos para otrabalho...” (ibidem, p.172).

Seria extremamente oportuna, para o maior negociante deterras da região, a transformação de inconvenientes guerreiros,que lutavam por seu território, em dóceis trabalhadores rurais àprocura de trabalho em suas próprias terras espoliadas. A catequesepassava necessariamente pela destruição das noções de nomadismocaracterístico nesses povos, transformando-os em gregários, fixa-dos a uma reserva ou aldeia de pequenas dimensões.

Bento da Cruz convence, em 1906, Eduardo José de Castilho esua mulher, clientes seus, a doarem cem alqueires de terras à Ordemdos Missionários Capuchinhos do Estado de São Paulo,

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sendo cinqüenta alqueires destinados a fundação de uma povoação ecinqüenta alqueires para ser instituído em convento com escola deensino primário gratuito, devendo o rendimento dos terrenos desti-nados à povoação, ser pela dita Ordem dos Capuchinhos, aplicadosem obras de caridade... (Barros, 1992, p.27)

Deve-se observar que em nenhum momento a escritura falade aforamento, pois as terras são doadas à ordem religiosa paraserem vendidas livremente.

Os capuchinhos só assumem o patrimônio dois anos depois,em 25 de outubro de 1908, quando as datas começam a ser aliena-das em solo já arruado (ibidem, p.76). Os padres se mostrarambons negociantes, escrituravam e facilitavam a compra dos terre-nos, “davam recibos e anotavam em livro particular; suas vendas,regra geral, a prazo” (p.112).

Embora as transações com os imóveis da nova povoação corres-sem bem, três ruas foram rapidamente negociadas (p.76). Catequesejamais ocorrera e, pior ainda, os capuchinhos unem-se a inimigospolíticos de Bento da Cruz, provavelmente em resposta às suas pres-sões para que se iniciassem os serviços com os indígenas.

Como revide, numa clara aventura jurídica, Bento da Cruztenta revogar, em seu nome, a doação do patrimônio aos capuchi-nhos, doação esta feita por clientes seus, portanto sem nenhumapossibilidade de sucesso.

Tal documento, emitido em 20 de abril de 1910, leva a origi-nal e reveladora denominação de “Escritura de Revogação de Do-ação por Ingratidão”.28

Afinal, Bento da Cruz, que tanto fizera para trazer os padres aPenápolis, destinados aos serviços de catequese, sentia-se enganado,vendo-os empenhados em outras atividades, como a negociaçãodas terras urbanas, sem nenhuma intenção de trato com os índios.

Também em 1910 é formado o SPI, inicialmente ostentando olongo nome de “Serviço de Proteção aos Índios e Localização dosTrabalhadores Nacionais”, que, pelos conflitos entre brancos e gen-

28 Transcrição do Livro de Notas número um, do Cartório de Registro de Paz dePenápolis, cujo Termo de Abertura é datado de 20 de abril de 1910, tendo comolocal a cidade de São José do Rio Preto, p.23 a 24 (apud Barros, 1992, p.103-4).

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tios, inicia sua atuação na Zona Noroeste de São Paulo logo noinício de 1911 (Lima, 1978, p.184-6). Portanto, a participação daentidade religiosa, deveria julgar Bento da Cruz, poderia ser definiti-vamente descartada.

Como se avalia pelo exemplo das duas cidades mais impor-tantes da Zona Noroeste do Estado até meados dos anos 1920, emBauru e Penápolis,29 num contexto regional predominou a acirra-da disputa entre o poder público e o eclesiástico pelo controle dosolo urbano.

É fundamental observarmos que tais cidades, particularmenteBauru, foram de insofismável influência em toda linha, além desedes da circunscrição administrativa geradora de grande parte dosnovos núcleos urbanos da Noroeste. Da mesma forma, Penápolis,como a segunda cidade, também foi responsável, num momentoposterior, pela criação de outros municípios. Ainda, ambas foramredutos do principal dirigente político da Noroeste, Manoel Ben-to da Cruz, que, como vimos, estava intimamente ligado à forma-ção de novos núcleos na zona. O mesmo coronel, que, num primeiromomento, em 1910, entrou em choque frontal com os capuchinhos,tentando inutilmente revogar a escritura de doação da área urbanade Penápolis “por ingratidão”, alguns anos depois, em 1913, nacategoria de prefeito, desafia a ação impetrada pela Igreja na cidadede Bauru e responde a ela, ao mesmo tempo que comandava oprocesso de formação de povoados junto à ferrovia. Toda essa si-tuação de contendas freqüentes entre poder público e Igreja seriadurante anos vivenciada no dia-a-dia pelos moradores dessas cida-des, motivo de reiteradas discussões pelos órgãos de imprensa.Ainda, os interessados no aforamento sentirão “no bolso” o valorda “jóia” e os já enfiteutas, o modesto, mas exasperante, dispêndioanual do foro, bem como possíveis laudêmios.

A hábil manipulação política de questões tão presentes no co-tidiano das pessoas gerou na região indisfarçável posição anti-clerical, pelo menos quanto à gestão do solo urbano, que se refle-tiu claramente na formação dos demais núcleos, como veremos a

29 Na década de 1920, outros municípios da zona começam a despontar economica-mente, em razão da intensa produção do café, entre eles, Lins e Cafelândia.

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seguir. Com isso não queremos afirmar que apenas o anticlerica-lismo explique a origem laica dos povoados que foram criadosposteriormente às duas cidades, mas ele não pode, de maneira algu-ma, ser deixado de lado se quisermos compreender como surgi-ram os “chãos” das demais estações.

De maneira geral, a população da região sentia que a Igreja,pelas ações da Fábrica, havia se transformado em agente de espe-culação imobiliária, onipresente em todo solo urbano. Isso ficapatente no processo de doação do proprietário rural Gasparino deQuadros para formação de núcleo urbano junto à Estação deJacutinga, futura cidade de Avaí, localizada no quilômetro 48 daCompanhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.

Gasparino doa à Fábrica da Igreja do Patrimônio de São Se-bastião de Jacutinga, em 18 de junho de 1906, cinco alqueires deterras localizadas na margem esquerda do Rio Batalha “no lugarda Estrada de Ferro Noroeste do Brasil”, ou seja, junto à estação,

para que a donatária possa delles rezar e gozar como seus que ficamsendo de ora em diante, com a condição de ficar um qual, digo umquarteirão no largo da matriz para os doadores e de prestar ofabriqueiro contas anualmente, dos aforamentos que fizer, sendo oproducto desses aforamentos aplicados exclusivamente em benefícioda igreja.30

Tal doação não diferia das dezenas de outras feitas por fazen-deiros à Igreja Católica durante o século XIX. Doava-se a terra comcertas condições, no caso a reserva de uma quadra junto à matriz,provavelmente, no futuro, o local mais valorizado, indicando-se oaforamento como meio de transmissão das datas.

Os diversos confrontos entre a Igreja e a Câmara e o fato de aprimeira ter se tornado agente de especulação imobiliária na cida-de de Bauru, à qual Jacutinga era tributária, levaram Gasparino deQuadros, em 17 de dezembro de 1906, a retificar sua doação ini-cial, transferindo-a para a edilidade de Bauru,

30 Escritura de Doação, sendo doador Gasparino de Quadros e donatária Fábricada Igreja do Patrimônio de São Sebastião de Jacutinga. 1º Tabelião de Agudos,18.6.1906.

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ficando deste modo o patrimônio, que é constituido sob a invocaçãode São Sebastião sob a livre e geral administração da municipalidadede Bauru a qual ficará apenas com a obrigação de entregar ao repre-sentante do poder ecclesiastico cincoenta por cento da renda dopatrimônio pela transferência das datas...31

A Igreja, portanto, e por conseqüência a Fábrica, era destituídado poder sobre o solo urbano do novel povoado. Passava a ser aCâmara Municipal de Bauru, instituição laica, a donatária das ter-ras. Esta deveria gerir o novo espaço urbano. A Igreja receberiaparte do dinheiro arrecadado com a venda do patrimônio, masdeixaria de administrá-lo. A Câmara, por desconfiança do doadorquanto à gestão da Fábrica, seria a intermediária entre ele e o po-der eclesiástico. Tal suspeita era levada a extremo, a ponto de serdeixado expresso na escritura, para onde os recursos destinados àIgreja deveriam ser empregados:

Disseram ainda os doadores que as quantias que forem entre-gues ao representante ecclesiastico deverão ser applicadas naconstrucção da matriz local e na constituição do seu patrimônioecumenico.32

Procurava-se enquadrar o dinheiro resultante da oferta às ne-cessidades puramente de culto, para que não houvesse desvio definalidade pelos Gestores da Igreja.

O que parecia preocupar mais o doador, em sua surpreenden-te retificação de escritura, no entanto, era o instituto da enfiteuse,banido por completo na nova doação. As amarras do aforamentosão dissolvidas integralmente em busca de relações simples de com-pra e venda. Deixavam-se para trás antigos laços pré-capitalistasque ligavam a terra de maneira indissolúvel a um senhor.

O doador chegava ao requinte de estipular as dimensões dasdatas e seus valores como forma de não haver dúvidas sobre asnovas relações pretendidas:

31 Escritura de Doação e Rectificação, sendo doador Gasparino de Quadros edonatária Câmara Municipal de Bauru. 1º Tabelião de Agudos, 17.12.1906.

32 Ibidem.

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cada data de esquina será transferida a trinta e cinco mil réis, e ascentraes a trinta mil réis, e nenhuma outra quantia sera cobrada aqualquer título dos emphitheutas, nem a título de fôro nem a títulode emphiteuses, salvo os impostos municipaes que recahierem sobreterrenos urbanos.33

Percebe-se que o sistema de doação para enfiteuse era tão arrai-gado, até então, que mesmo o doador deixando expresso por di-versas vezes que a doação não era para fins de aforamento, e quenada além do valor de venda deveria ser cobrado dos futuros ad-quirentes, trata-os sintomaticamente de “emphitheutas”, quandoo termo correto seria simplesmente “compradores”. O mesmo sedá em relação à designação “patrimônio”, que permanece na reti-ficação da escritura, bem como sua invocação: São Sebastião.

Vê-se por esse exemplo como as relações de posse da terraurbana estavam mudando rapidamente durante a Velha Repúbli-ca, mas também o quanto eram fortes a tradição e os antigos laçosentre o espaço citadino e o poder eclesiástico.

Consideramos que como passagem para o loteamento priva-do propriamente dito, onde os terrenos são negociados livrementepelo proprietário ou grupo de proprietários das terras, acontece-ram, na Zona Noroeste, as doações às Câmaras Municipais quedeveriam vender o solo urbano sem aforamento destinando, emalguns casos, parte da renda para a Igreja, o que demonstradialeticamente apego às tradições seculares, mas, ao mesmo tem-po, desconfiança quanto à gestão do “dote” pela Fábrica e, princi-palmente, o anacronismo das relações de aforamento.

A enfiteuse por particulares, ou seja, o patrimônio laico, nãoexistiu na Zona Noroeste. Embora em diversos documentos apa-reça a palavra “patrimônio”, esta se refere a povoado ou vila e nãonecessariamente aos contratos de emprazamento. Por um bom tem-po,34 pelo costume, o termo patrimônio será sinônimo de povoado.

33 Ibidem.34 Parece-nos, pelos documentos e jornais analisados, que o termo Patrimônio

perdurou até o final dos anos 1920, utilizado para cidades que nada mais eramque loteamentos. Nas propagandas de lançamento da cidade de Marília, em1927, ainda a denominação estava presente (ver Diário da Noroeste, 13.8.1927).

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Na região Noroeste, outras duas “estações”, além de Jacutinga(Avaí), tiveram seus solos entregues à Câmara Municipal de Bauru:Albuquerque Lins (Lins) e Miguel Calmon (Avanhandava).

Albuquerque Lins (Lins), situada no quilômetro 151 da Compa-nhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, teve seu chão doado em1913 pelo coronel Joaquim de Toledo Piza. A rigor, esse não era oprimeiro núcleo urbano dessa estação. Manoel Francisco Ribeiro,considerado o mais antigo posseiro das terras de Lins (Magalhães,1954, p.61-2), já havia loteado a área frontal da Estação Ferroviá-ria, por volta de 1909, vendendo terrenos aos interessados. Po-rém, seus direitos sobre as terras foram contestados na Justiça pelopoderoso coronel Joaquim de Toledo Piza, político proeminente edono de diversas fazendas na região Noroeste. Rapidamente estese torna o proprietário legal da imensa gleba antes ocupada porManoel Francisco Ribeiro (ibidem, p.63).

O loteamento urbano de Manoel Francisco Ribeiro, executa-do às pressas, fora uma forma de ganho rápido, pois este, realista,considerava-se na iminência de perder suas terras aos Toledo Piza,à época, uma das famílias mais influentes do Estado de São Paulo.

A incômoda perspectiva de mais dia menos dias vir a ser demitido daposse de tudo, a qual, presumivelmente adquirira por via de papéisestampilhados e por preço razoável ... forçava-o a procurar um meiopara se indenizar dos danos que lhe iria desencadear a espada daJustiça. (ibidem, p.62)

Nesse caso, mais uma vez se revelava a disputa de posses so-bre terras devolutas como um jogo de forças, em que um dos conten-dores, diante de documentos duvidosos e da expressividade políti-ca de seu oponente, já sabia de antemão o resultado final.

Em 20 de julho de 1913, o coronel Joaquim de Toledo Piza esua mulher outorgam parte da, agora deles, Fazenda Dourados àCâmara Municipal de Bauru, sendo esta no ato representada peloprefeito Manoel Bento da Cruz.35 A doação estava localizada jun-to à Estação de Albuquerque Lins.

35 Escritura de Doação de uma gleba junto à Estação de Albuquerque Lins. Doa-dor: coronel Joaquim de Toledo Piza e Almeida e sua mulher. Donatária: Câ-mara Municipal de Bauru. Armando Azevedo, 2º Tabelião, Livro de Notasn.12, fls.96V – Comarca de Bauru, 20.7.1913.

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ficando a donatária obrigada a mandar proceder à sua custa a medi-ção e demarcação da área doada, arruamento e planta; que a donatáriadeverá vender os lotes em que dividir a povoação pela forma quejulgar mais conveniente e, do produto total das vendas, entregarámetade ao representante legal da Irmandade ou Associação Religio-sa por ventura já existente no lugar ou que se organizar, produtoesse que será destinado à construção de uma igreja...36

Em Miguel Calmon (Avanhandava), quilômetro 202 da Com-panhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, repetiu-se o procedi-mento de doação nos mesmos termos, embora pelas mãos de ou-tro outorgante, coronel Flavio Martins Ferreira (Enciclopédia dosmunicípios brasileiros, 1957, p.97).

A Câmara Municipal de Bauru cumpre rapidamente as exigên-cias dos doadores, executando a medição, a demarcação, o arrua-mento e a planta, além de estabelecer os valores de venda das datas.Tal procedimento, como vimos no capítulo anterior, se deu paraos dois casos por meio das Leis n.23 e n.24, datadas de 3 de de-zembro de 1913, quando fica o prefeito Manoel Bento da Cruz“aoctorizado a vender” os terrenos pertencentes à Câmara.

Art. 2 – os preços a vigorar são os seguintes; data de centro eesquina nos quarteirões centraes – RS 40$ e 50$, em outros quartei-rões – RS 30 $.

Os pagamentos serão feitos à bocca do cofre e independentes(de) quasquer despesas as quaes correrão por conta dos adquirentes.37

Repete-se nesses casos a completa liberação do solo, e a Câ-mara transforma-se na intermediária do processo. O instituto doaforamento é deixado de lado, trocado pela venda direta, sendoesta mesmo a palavra que passa a designar o procedimento nosdocumentos legais: venda. Ressalte-se que com pagamento “à boccado cofre”, a Igreja receberia parte do produto da venda, mas nãoadministraria o processo. Terá o destino do dinheiro textualmentevinculado à ereção da Igreja, contribuindo agora de maneira ex-clusivamente doutrinária para o crescimento dos povoados.

36 Ibidem.37 Ata da 8ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Bauru realizada em 3 de

dezembro de 1913 (apud A Gazeta de Bauru, 1º.2.1914).

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Presidente Alves, Cafelândia, Promissão, Glicério, Birigüi e Ara-çatuba, portanto a maior parte das cidades estudadas, têm seu solourbano vendido diretamente pelos proprietários das terras. Talprocedimento tornar-se-ia predominante durante a abertura de no-vos núcleos urbanos, particularmente após os anos 1920, quandosão formadas várias cidades no norte do Paraná e mesmo em SãoPaulo junto à chamada Alta Paulista38 e Alta Sorocabana.

Cafelândia (Estação de Presidente Penna), no quilômetro 125da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ilustra de ma-neira exemplar o novo método de loteamento urbano. Os irmãosZucchi, proprietários da firma J. Zucchi & Irmãos, donos de ter-ras rurais na região, doam à CEFNOB área para implantação daestação.39 Desse modo, a pequena instalação ferroviária fica incrus-tada numa propriedade privada.

Nos limites da gleba, inicia-se uma incipiente formação urba-na de maneira desorganizada, sofrendo com a distância do princi-pal meio de acesso (Ercilla & Pinheiro, 1928, p.311). Posterior-mente, vendo o afluxo de moradores na vila, bem como o rápidoparcelamento rural destinado a imigrantes, particularmente japo-neses (ibidem, p.313), a firma J. Zucchi & Irmãos manda lotearsua gleba junto à estação.

De facto, o Sr. José Zucchi, com raro tino começou ha poucotempo, em Penna, na sua grande propriedade, por conta própria esem nenhuma ajuda, a construcção de uma nova cidade. Dividiu asterras em datas e facilitou a sua acquisição. (ibidem, p.312)

À cabeça do negócio estava J. Zucchi, que não poupa esforçospara valorizar a “sua” cidade e chama engenheiros de São Paulopara edificarem palacetes e bangalôs (p.312), como atestado deflorescimento urbano, a fim de incentivar e comprovar a viabilidadede investimentos no solo citadino.

O loteamento de Cafelândia configurava-se como um excelentenegócio para os empreendedores, possuía três sólidas garantias de

38 Entre elas, as cidades de Marília, Pompéia, Cabrália, Gália, Duartina etc.39 Escritura de Doação na Estação de Presidente Penna. Doadores: J. Zucchi &

Irmãos. Donatário: NOB 2º Tabelionato de Bauru, 27.2.1922.

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desenvolvimento: a estação que afiançava acessibilidade, uma árearural em franco processo de ocupação40 e um pequeno povoamentoanexo que crescia rapidamente. Por isso, os proprietários do lotea-mento o bancavam “por conta própria”, “sem nenhuma ajuda”,como constatavam admirados os autores da passagem citada.

Promissão (Estação de Hector Legru), no quilômetro 178 daCompanhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, é aberta em ter-ras pertencentes ao agrimensor Adolfo Hecht, companheiro deManoel Bento da Cruz e autor de suas várias divisões rurais. É omesmo Bento da Cruz que, como procurador, vende as terras desua cliente, Ludovina Pereira Rocha, a Adolfo Hecht em 20 demaio de 1909.41

Hecht abre a vila numa pequena fração de suas terras junto àestação, porém esta demora para ser ocupada (Martins, 1968,p.184). Em 14 de fevereiro de 1918, toda a gleba é vendida a RenéLaurent, incluindo as áreas da vila não negociadas: “153 alqueiresde terras na Fazenda Itacolomy, antiga Patos, e mais o resto dopatrimônio de Hector Legru”.42

Em meados de 1918, René Laurent transfere a parte urbana desuas terras a Amadeu Soliani, que resolve impulsionar o crescimentodo povoado, divulgando-o pelo jornal de Penápolis.

O Sr. Amadeu Soliani, proprietário de superiores terras nestavila, mandou cortar em datas a parte que está encravada na área dopatrimônio, e está vendendo a preços muito convidativos. Com oprogresso sempre crescente de Hector Legru as datas do Sr. AmadeuSoliani oferecem excelente empate de capital. (O Penapolense,8.6.1919 – apud Reyes, s. d., p.29)

Soliani apresenta suas terras como uma nova mercadoria, re-cém-lançada, embora tivesse sido aberta anos atrás por AdolphoHecht e pouco desenvolvimento tivera. Contudo, no final da segun-

40 Em Cafelândia, a entrada de imigrantes foi bastante expressiva, particular-mente japoneses. Em 1915 é formada a Colônia Hirano, considerada o pri-meiro Núcleo de Colonização Nipônico fundado no Brasil.

41 Escritura de Venda de Terras a Adolpho Hecht. Cartório do 1º Officio, 1ºTabelião de Notas com annexos do Civil e Commercio, de Orphãos e Ausentesda Provedoria e do Crime da Comarca de Rio Pardo, 20.3.1909.

42 Escritura de Venda de Terras..., op. cit.

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da década do século XX, a entrada de novas levas de imigrantesvindos das zonas Mogiana e Paulista e japoneses ingressados direta-mente de seu país natal estabelecem-se em grande número nas cir-cunvizinhanças (Reyes, s d., p.30). Tais circunstâncias davam maiorgarantia aos investimentos na vila de Promissão, tornando-a, tal-vez agora, “excelente empate de capital”.

Birigüi (Estação de Birigüi), quilômetro 262 da CompanhiaEstrada de Ferro Noroeste do Brasil, é formada em terras de Nicolauda Silva Nunes. O arruamento é iniciado em 1913 e finalizado em10.3.1914.43 Como sede da “The San Paulo Land, Lumber & Colo-nization Company”, o núcleo urbano centralizou todas as ativida-des de compra e venda de terras da firma. A vinculação entre estae o povoado é clara.

A Companhia é criada em outubro de 1912 (Martins, 1968,p.139), e a vila começa a ser arruada no ano seguinte. Como jávimos, no próprio estatuto da empresa constavam incentivospecuniários para a construção da estação, funcionando provisoria-mente em vagões, posto policial, escolas e outros edifícios “neces-sários ao núcleo de Birigüi” (ibidem, p.141). Tais construções esta-vam diretamente relacionadas à organização legal do futuromunicípio conforme exigência da Lei Estadual.

Na carta enviada em 20 de outubro de 1913 pelo prefeito deBauru Manoel Bento da Cruz que apresentava a Nicolau da SilvaNunes o engenheiro Theodoro Graser, indicado para executar oarruamento da futura cidade, são reafirmadas tais recomendações:“Devem ficar reservadas 2 datas para o posto policial, 2 para esco-las e terreno necessário ao cemitério” (Cunha, 1997, p.130).

Almejava-se a rápida constituição do Distrito de Paz, passonecessário para atingir-se o status de cidade. Nicolau da Silva Nunesdoará todas as datas indispensáveis para a implantação dos edifí-cios básicos da vila, bem como outros tantos na futura cidade(ibidem, p.120-2).

A ocupação rural, patrocinada pela firma de Manoel Bento daCruz, trazia rápidos reflexos no solo urbano, conforme se depreende

43 Birigüi, 80 anos. 28 painéis sobre a história da cidade de Birigüi, Museu deRua. Prefeitura de Birigüi, Divisão Municipal de Cultura, painel de número 7.

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da representação redigida pelos moradores de Birigüi à Assem-bléia Legislativa em 2 de junho de 1914, solicitando a criação doDistrito de Paz:

A povoação de Birigüi já conta atualmente duzentas e tantascasas, a maior parte de tijolos e telhas, podendo avaliar-se, por isso,a população urbana em perto de mil almas, já contando com váriascasas comerciais, farmácia, médico, etc, e tudo isso com tendência arápido aumento, pois que ainda ha vinte meses atrás só existiamumas 30 ou 40 casas, quase todas de pau-a-pique. (Ramos & Martins,1961, p.73)

Não se omite, na representação, o motivo de tão rápido de-senvolvimento urbano, atribuído ao loteamento rural do “The SanPaulo Land, Lumber & Colonization Company”.

E como a povoação de Birigüi é sede de um grande serviço decolonização a que em grande escala procede a “Companhia de Ter-ras e Madeiras de São Paulo”, proprietária de cêrca de 50.000 hecta-res de terras desde seus arredores nos quais já existem cêrca de 200lotes discriminados e ocupados por famílias de colonos, apesar deserem decorridos apenas 16 meses do início da colonização intensi-va... (ibidem, p.73-4)

Em 10 de novembro de 1914, a povoação tornava-se Distritode Paz de Penápolis (ibidem, p.79-80).

Enquanto existiu a “The San Paulo Land, Lumber & Coloniza-tion Company”, seus destinos e os da cidade correram paralelos.Robert Willian Clark, diretor-técnico da Companhia, teve relevanteparticipação política na localidade (ibidem, p.63), atuando conjun-tamente com Bento da Cruz em Bauru e James Mellor em Penápolis.

A Estação de Araçatuba, quilômetro 281 da Companhia Estra-da de Ferro Noroeste do Brasil, situava-se às margens de um dosmaiores litígios da Zona Noroeste, o das terras do Aguapeí. A áreadesse imóvel era imensa, seus limites abrangiam, grosso modo, umaregião com divisas que se iniciavam no Rio Paraná, em direção aoespigão do Rio Tietê, até o desaparecido Salto Carlos Botelho, daírumando ao espigão do Rio do Peixe, fechando-se novamente noRio Paraná (Pinheiro & Bodstein, 1997, p.192).

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Mais uma vez, Manoel Bento da Cruz teve participação no li-tígio defendendo interesses de clientes na ação de “Communi Divi-dundo”, ingressado no 1º Ofício da Comarca de Bauru no ano de1917 (Martins, 1968, p.148). Tal embate jurídico arrastou-se pormais de trinta anos, tendo Araçatuba como palco das violentasmanifestações dos grupos em concurso (Ercilla & Pinheiro, 1928,p.520). Mas antes disso, nos primeiros anos do século XX, ManoelBento da Cruz já lançava seus olhos para a extensa área devolutaque, pelos vastos campos planos, se prestava magnificamente àcriação de gado.44

A instalação da estação se dá em 2 de dezembro de 1908; logoapós a CEFNOB edifica um hotel junto a ela (Barbosa, 1970, p.35)em razão da necessidade de pernoite em Araçatuba e da inexistênciade outro local para esse fim.

Em 1911, Augusto Eliseo de Castro Fonseca subestabelece pro-curação a Manoel Bento da Cruz para vender glebas de sua proprie-dade resultantes da divisão judicial da Fazenda Baguassu (Pinhei-ro & Bodstein, 1997, p.65). Cruz, ao mesmo tempo, convence seucliente a formar juntamente com ele o núcleo urbano de Araçatubanas terras junto à estação (ibidem, p.65). Este sabia perfeitamen-te o quanto um povoado poderia contribuir para a venda de imó-veis rurais.

Em 5 de julho do mesmo ano, Bento da Cruz, como vereadorde Bauru, consegue da Câmara autorização para estudo de “umapovoação em Arassatuba”.45 As despesas com o engenheiro seriamcusteadas pela mesma edilidade.

Em fevereiro de 1912, o jornal O Tempo de Bauru publicauma nota indicando que o engenheiro francês F. Chartier, funcio-nário da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, executaraa planta do povoado:

AraçatubaO Sr. Dr. F. Chartier, teve a gentileza de nos mostrar a planta do

Patrimonio de Araçatuba executada por S.s. por ordem do Sr. Dr.

44 Manoel Bento da Cruz forma empresa para abrir uma “estrada boiadeira” li-gando Araçatuba, Três Lagoas, Porto Independência, a fim de trazer gado doMato Grosso para a região de Araçatuba (cf. Martins, 1968, p.145).

45 Atas da Câmara Municipal de Bauru. Bauru, 5.7.1911.

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Elysio de Castro, proprietário de grande extensão de terrenos naquellaregião do nosso município.

É um trabalho meticuloso em que o auctor revela grandecompetencia no assumpto, tendo em conta a topographia do terrenoe o declive natural das águas.

Araçatuba que possue terras de excellente qualidade, sera embréve um importante centro de actividade agricula e commercial,possuindo uma povoação bem installada, com as suas ruas, avenidase praças proficientemente demarcadas. (O Tempo, n.166, 11.2.1912)

A notícia pecava por ignorar o verdadeiro contratante do en-genheiro Chartier, a Câmara de Bauru, e não o proprietário dasterras. É nesse ano também que Augusto Eliseo de Castro Fonsecainstitui um procurador para administrar e vender as datas urbanas(Pinheiro & Bodstein, 1997, p.96).

Em razão da distância da cidade, do excesso de oferta de ter-ras rurais à disposição em estações mais próximas a Bauru e dolitígio envolvendo o imóvel da Aguapei, Araçatuba demorará parater seu núcleo negociado. Essa morosidade obriga a Câmara dePenápolis a mandar remarcar o traçado urbano em 1914, porAdolpho Hecht, como vimos no capítulo anterior. Somente a partirde 1916 novas famílias se instalam na futura cidade, comprandodatas e ocupando parcialmente a área arruada (Juncal, 1974, p.28).

Embora Araçatuba não fosse “ponta de linha”, pois a ferroviaprolongava-se em direção ao Mato Grosso, efetivamente ocuparátal posição, por ser, durante muitos anos, o último povoado deSão Paulo, na direção Noroeste. No Estado de Mato Grosso, aúnica cidade expressiva, junto aos trilhos da CEFNOB, seria Cam-po Grande, a mais de seiscentos quilômetros adiante.46

Assim foram, então, formados os povoados da Noroeste sobevidente sentimento anticlerical no que tange à constituição doschãos urbanos. Os exemplos de Bauru e Penápolis, respectivamen-te, a primeira e segunda cidades da zona, certamente contribuírampara que as novas povoações tivessem seu solo oferecido sem nenhu-ma amarra, totalmente liberado para compra e venda, por mais

46 Somente nos anos 1920 a “Estação” de Três Lagoas, situada logo após a divisaentre São Paulo e Mato Grosso, começa a ter alguma importância urbana.

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que a enfiteuse fosse um sistema anacrônico e estivesse, portanto,com seus dias contados.

Se nas cidades mais antigas a laicização do espaço urbano é“lenta, mas progressiva” como nos expôs Murillo Marx (1989,p.59) em relação à capital do Estado, os povoados da Zona Noro-este nascerão laicos, serão fruto imediato de sua época.

Importante ainda compreender que intermediando todo pro-cesso de formação dos novos núcleos estava Manoel Bento da Cruz,pivô das disputas com a Igreja em Bauru e Penápolis. Sua influên-cia como político mais poderoso da zona, na maneira com que osnovos chãos seriam oferecidos, não pode ser desprezada.

Como vimos, Bento da Cruz esteve intimamente ligado à trans-formação de quase todas as estações em povoados, de forma dire-ta ou indireta. Afinal, a comercialização dos parcelamentos agrícolasde sua empresa dependia, em boa dose, das diversas ocupações ur-banas que garantiriam aos pequenos compradores “apoio logístico”.

Dessa forma, reproduzia-se no solo urbano a mesma opera-ção de compra e venda, com domínio pleno, já há muito comumno solo rural. Podemos dizer que os procedimentos em relação àsubdivisão da terra também passam a assemelhar-se variando ape-nas na escala, conforme veremos adiante.

A comercialização das terras urbanas torna-se estratégia devenda para os parcelamentos agrícolas.

Pierre Monbeig (1984, p.235-6) é claro sobre a importânciada povoação, nas zonas novas, para a venda dos lotes rurais, mos-trando que habitualmente esta antecede o parcelamento das glebas,particularmente no norte do Paraná, no final dos anos 1920. Nes-se aspecto consideramos, até por sua ocupação anterior, que a ZonaNoroeste a precede na utilização de tal método. O mesmo autordestaca a função comercial e de serviços desses pequenos núcleoscomo sustentação para a ocupação da terra rural, e ainda o relevodo povoado como nó para o início dos caminhos ou estradas vicinaisem direção a sítios e chácaras em formação (ibidem, p.234-5).

Nos povoados da Zona Noroeste, a Companhia Estrada deFerro Noroeste do Brasil faria as vezes da via mais importante,arterial, de escoamento para a futura produção em direção ao por-to, capital ou Mato Grosso. A ferrovia era ainda um outro fator

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particular da zona e que propiciava seu desenvolvimento. As vilasnão brotavam do nada, o transporte ferroviário garantiria acessoao novo núcleo, viabilizando sua ocupação inicial. A estrada deferro constituía um poderoso chamariz para a população urbana(Deffontaines, 1944, p.304). Ao contrário dos patrimônios gera-dos no fim do século XIX, baseados apenas na lavoura cafeeira, e àespera constante e angustiante de uma estrada de ferro como for-ma de desenvolvê-los, os povoados da Zona Noroeste formam-sejunto a ela visando à viabilização do parcelamento rural e da con-seqüente produção agrícola ainda a se plantar.

A partir das estações, nos núcleos nascentes, seriam abertasestradas em direção aos loteamentos agrícolas. Tais estradas eramfundamentais para a sobrevivência dos parcelamentos, bem comodos próprios compradores, pois garantiam a passagem da colheitae as visitas constantes aos vilarejos. Essas vicinais eram mantidaspelo poder público dessas cidades nascentes e ponto de honra en-tre as tarefas dos prefeitos ou subprefeitos.47 As estradas repre-sentavam ainda mais uma forma de subsídio público aos lotea-mentos rurais.

A vital importância dos povoados para os parcelamentos ru-rais ainda explica as “doações” de terras à Câmara Municipal deBauru e não sua comercialização direita pelos interessados. Ade-mais, tais proprietários detinham terras ao redor dos núcleos, po-dendo futuramente vendê-las como áreas urbanas, anexando àparcela inicial novos bairros. Nesse processo, possuiriam plenocontrole sobre a expansão da futura cidade que estaria cercadapor glebas daquele responsável pelo primeiro chão urbano.48

Deve ser ressaltada também a potencial presença política dodoador, caso o exercício efetivo dessa atividade fosse um de seusanseios ou mesmo, não menos importante para a vaidade pessoal,os títulos de fundador, benfeitor etc. Porém, tais ofertas serão mi-

47 Basta ler as páginas que tratam diretamente das cidades, no livro Zona Noroes-te – 1928, para perceber que um dos índices de progresso de cada uma delasera a quilometragem de estradas abertas e conservadas pela municipalidade.Tal procedimento foi claramente um subsídio para os loteamentos rurais (verErcilla & Pinheiro, 1928, p.145-521).

48 Como exemplo, citamos os povoados de Avaí e Cafelândia, entre outros.

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noria, talvez ainda reflexo de um tempo passado em franco desa-parecimento. Rapidamente os virtuais doadores perceberão queem zona de franca expansão demográfica, como a Noroeste, osnúcleos urbanos teriam rápida ocupação e, portanto, seria desvan-tajoso e desnecessário qualquer tipo de intermediário para promo-ver o parcelamento, passariam a fazê-lo diretamente. Principal-mente se as câmaras municipais das cidades constituídas bancassemos custos de feitura de planta, limpeza da gleba, demarcação dequadras, ruas e lotes e não se antepusessem, num outro momento,ao seu desmembramento, como por diversas vezes aconteceu.

Por último, mas não menos importante, a formação de núcleosurbanos passou a ser uma etapa necessária e vantajosa em busca daexploração de serviços públicos urbanos. Os nascentes povoadosprecisarão de toda infra-estrutura pública: água, esgoto, telefone,calçamento, energia elétrica, fonte inesgotável de lucros para asempresas formadas habitualmente pelos homens mais ricos do lu-gar, com participação ou intermediação dos coronéis.49

OS AGRIMENSORES-ARRUADORES

Durante todo o século XIX, o processo de constituição de umpovoado tinha o seguinte curso: a partir da doação do Chão paraa Igreja, providenciava-se por conta da Câmara responsável pelotermo o arruamento do novo Patrimônio. O executor do serviço,o arruador, era indicado pela edilidade e devia, a fim de efetivá-lo,guiar-se por suas posturas. Esse profissional era, regra geral, agri-mensor em razão da rara atuação de engenheiros, tanto no país

49 Grandes fazendeiros, a partir dos meados da segunda década do século XX,com sobras de capitais advindos da comercialização de terras e da recém-iniciadaprodução de café, fundam companhias responsáveis por serviços urbanos. Duasserão muito conhecidas na região: a Companhia Força e Luz, adquirida nofinal de 1921 pela Companhia Paulista de Força e Luz, e a Companhia Sanea-mento da Noroeste, responsável pelo fornecimento de água e esgoto em Pira-juí, Lins, Penápolis, Birigüi e Cafelândia. Ambas tinham como acionários pro-prietários e fazendeiros da Zona Noroeste (ver Ercilla & Pinheiro, 1928,p.142-4 e 303).

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como um todo como particularmente no interior de São Paulo, atéo início do século XX.50

Na sessão de 28 de janeiro de 1887, da Câmara de Lençóis, sãoindicados, por exemplo, três arruadores: um para a própria vila,outro para a Freguesia do Espírito Santo de Fortaleza e um tercei-ro “para a povoação em começo denominada São Sebastião daAlegria ... que deverão servir de conformidade com o Código dePosturas deste município hoje em vigor...”.51 O último arruador,que prestou serviços na nova povoação, deve ter trabalhado a con-tento, utilizando maneira adequada às Posturas de Lençóis, poisSão Sebastião da Alegria, atual cidade de Pederneiras, segue deacordo com os ditames desta Câmara “ruas a esquadro”.52 Aliás,grande parte das cidades dos planaltos ocidentais paulistas, forma-das a partir dos meados do século XIX, obedece ao desenho emxadrez, tendo em posição elevada e quase sempre central a capela,depois matriz, junto ao largo (Marx, 1980, p.36 e 92). Tal espaçoestará constituído, habitualmente, no divisor de águas dopatrimônio desses núcleos, invocados em nome de um santo.

As ruas serão retas e terão cerca de 60 palmos53 de largura, eas quadras, 40 braças x 40 braças.54 Esses vários parâmetros dimen-sionais antigos, baseados no corpo humano, serão substituídosgradativamente pelo Sistema Métrico Francês, adotado pelo Brasilpela Lei n.1.157, de 26 de junho de 1862. Tal padrão, implantadopela Revolução Francesa em 1795, rapidamente se espalha pelomundo (Benévolo, 1976, p.37). Afinal, o capitalismo em expan-

50 As escolas de Engenharia Civil só começam a ser organizadas, no Brasil, apartir de 1880. Antes havia apenas a atuação de poucos engenheiros militares,cuja ação se restringia às capitais, o mesmo se dando com os engenheiros for-mados no exterior (ver Motoyama, 1994). Sobre o assunto, ver ainda ReisFilho (1989, Introdução).

51 Atas da Câmara Municipal de Lençóis. Lençóis Paulista, 28.1.1887.52 “Ruas a Esquadro” ou “Tirada a Esquadro” são termos que se repetem nos

Códigos de Posturas. Observa-se que mesmo no Código de Posturas da cidademais antiga da região, Botucatu, datado de 1867, o termo já está presente (verPosturas Municipais de Botucatu – 1867, apud Antonini, 1985, p.162).

53 Palmo = 0,22 cm.54 Braça = 2,20 m.

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são necessitava de regras gerais e precisas, um sistema unificado55

de medidas fazia parte dessas exigências:

A adoção de um sistema unificado facilita a difusão dos conhe-cimentos, as trocas comerciais, e fornece à técnica das construçõesum instrumento geral, cuja precisão pode ser levada até onde forpreciso, segundo as exigências cada vez mais rigorosas dos novosprocedimentos. (Benévolo, 1976, p.37)

Na província de São Paulo, o uso efetivo do Sistema MétricoFrancês é cobrado sistematicamente pelos poderes superiores, comose comprova pelo documento enviado à Câmara de Taubaté, etranscrito em sua Ata:

1ª Secção. Palácio do Governo de São Paulo 8 de Fevereiro de1867.

Para que possam ter andamento os trabalhos de relação de pe-sos e medidas do sistema atual do Império nos que lhes correspondeno Sistema Métrico Francês e vice-versa cumpre que Vs. Ms. meremetam com a maior brevidade cópias autênticas dos autos veri-ficadores das medidas criadas nesse município como exige o avisocircular de 18 do mês findo expedido pelo govêrno do Ministério daAgricultura, Comércio e Obras Públicas. (Guisard Filho, 1944, p.260)

Reclamava o governo provincial o cumprimento da lei emvigor, avisando os municípios por circulares e posteriormente exi-gindo as “cópias autênticas dos autos verificadores”. Considera-mos que a cobrança era feita diretamente às Câmaras Municipais,56

como vimos no caso de Taubaté, e também durante a aprovação dosCódigos de Posturas locais pela Assembléia Provincial.57 Tanto éassim que, por volta de 1870, o sistema métrico se generaliza no

55 O metro é o comprimento a zero grau do padrão internacional de platinaguardado no Pavilhão de Breteuil, localizado em Sévres, França.

56 Também encontramos referências a exigências semelhantes nas Atas da Câma-ra Municipal de Lençóis.

57 A lei de 1º de outubro de 1828, que trata das Câmaras Municipais no períodoimperial, em seu artigo 72, estabelece que os Códigos de Posturas, emboraelaborados pelos municípios, deveriam ser aprovados pelos conselhos geraisque poderiam alterá-los ou revogá-los, como reza a própria lei (ver Barreto,1971, v.1, p.65).

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uso cotidiano e, particularmente, nos documentos oficiais, substi-tuindo definitivamente as medidas antigas ligadas às dimensõeshumanas: palmos, braças, pés etc.

As medidas tradicionais “são relegadas em troca de gabaritogenérico e abstrato. A racionalidade como critério único represen-tava ainda o triunfo do homem sobre a natureza” (Ghirardello, 1997).

Se, portanto, ainda restavam na cidade reticulada do séculoXIX alguns laços que a aproximavam da cidade colonial, irregulare organizada conforme o sítio natural,58 entre eles o módulo demedida, no último quartel dos novecentos, tais ligações deixarãode existir. Será favorecida a plena abstração do procedimento dearruamento, ao mesmo tempo que será reforçado o sentido deracionalidade geométrica.

A necessidade, porém, de precisão, o desenho rigoroso e re-gular serão clamados antes mesmo que na paisagem urbana, nadivisão de propriedades rurais, pois a terra rural, após a lei de1850, demandará demarcação por seus proprietários a fim de le-galização e registro. Nela havia a forçosa atuação dos agrimenso-res, profissionais especializados na mensuração e marcação de ter-ras. Ainda a liberação mercantil dessas glebas estimulava que seuslimites fossem claros e seu desenho mais geométrico.

O próprio governo determinava tal geometrização, na lei de1850, a fim de vender terras devolutas em hasta pública, obrigan-do-se preliminarmente a medir, dividir, demarcar e descrever essasterras, e, é claro, o desenho simplificado facilitaria os procedimen-tos. Assim rezava o parágrafo 1º, do artigo 14º da “Lei de terras”:

A medição e divisão serão feitas, quando o permitirem as cir-cunstâncias locais, por linhas que corram de norte a sul, conforme overdadeiro meridiano, e por outras que a cortem em ângulo reto, demaneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado,demarcados convenientemente.59

58 Para tanto, ver Reis Filho (1968, p.130), como também Marx (1980, p.24).59 “Lei de terras”, Lei n.601, de 18.9.1850, parágrafo 1º, artigo 14º. Vários juristas

apontam esse parágrafo como inspirado nas “Leis de terras” dos EUA (LandOrdinance – 1785 ). Um deles, porém, sustenta que seu uso, de forma literal, foimenos comum no Brasil pelo costume de cortar terras tomando-se por base osistema de águas vertentes, no que concordamos (ver Lima, 1990, p.67-9).

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A maior sofisticação do processo de divisão, ordenado pelalei, leva o governo a exigir melhor preparo dos agrimensores. Seantes da “Lei de terras” de 1850, os práticos, também chamados“gamelas”, tiveram atuação constante, logo após, o Estado tentaaperfeiçoar o profissional agrimensor a fim de determinar suaspróprias áreas devolutas. O Decreto Imperial n.3.198, de 16 dedezembro de 1863, vai cuidar da questão, aprovando as instruçõespara nomeação de agrimensores para demarcação de terrasdevolutas pertencentes ao Estado, bem como estabelecendo umasérie de conhecimentos básicos para obter a carta de profissional.São eles: Matemáticas Elementares, Metrologia, Topografia, No-ções de Astronomia, Desenho Linear, Prática do Uso de Instru-mentos e Trabalhos de Campo (Rios Filho, 1942, p.170-3).

Um pouco mais de um ano após a adoção do Sistema Métricofrancês pelo Brasil, o governo imperial exigia do profissional agri-mensor o conhecimento do novo sistema de medidas. Muito em-bora a disciplina “Metrologia” pudesse ser considerada o estudodos pesos e sistemas de medidas de todos os povos, antigos e mo-dernos, é de supor, até pelo nome da matéria, que a ênfase fossedada ao novo sistema recém-adotado pelo governo. Pode-se ob-servar ainda a solicitação de conhecimentos de Topografia e Dese-nho Linear, que remetem ao emprego da geometria descritiva criadapor Gaspar Monge e que consistem na representação gráfica defiguras espaciais num só plano.60 Portanto, caberia ao agrimensortransferir a tridimensionalidade do terreno às duas dimensões dopapel. Se tal procedimento era adequado e suficiente em relaçãoàs divisões de propriedades rurais, em se tratando de arruamentosurbanos, seu emprego exclusivo demonstrar-se-ia redutor e esteri-lizante, como veremos.

Serão os agrimensores os responsáveis pela divisão da maioriadas terras rurais dos planaltos ocidentais paulistas, tentando orde-nar fisicamente a barafunda de contratos de compra e registros provi-

60 Gaspar Monge (1746-1818) define, no final do século XVIII, as regras da geo-metria descritiva, abrindo campo para a representação de projeções cotadas.

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sórios de posse, cujos limites muitas vezes traziam referências impre-cisas, inexistentes ou mutáveis.61 Com a regulamentação da pro-fissão pelo governo, o Império dava mostras de quanto era impor-tante tal atividade e também indicava o grau de responsabilidadeque pesava sobre as costas do agrimensor. Se antes da “Lei de ter-ras” erros podiam ser tolerados, agora não mais:

Exercida a agrimensura por indivíduos sem as precisas habilita-ções, donde provieram males e prejuízos para os particulares e parao erário público, viu-se o Governo do Império na contingência deestabelecer normas que fixassem as condições de nomeação de agri-mensores de terras públicas, bem como determinassem quais os co-nhecimentos especiais exigíveis para a obtenção da carta de agri-mensor. (Rios Filho, 1942, p.172)

Com a participação do profissional agrimensor, as terras ru-rais, sobretudo as privadas, pois o governo pouco fez na práticapelas suas, passaram a ter contornos mais precisos, aproximando-sede formas geométricas, a fim de facilitar sua transmissão por ven-da ou herança. Aprimora-se, portanto, o procedimento de divisãoe demarcação fundiária. Afinal, sua transcrição fiel nos documen-tos de registro exigia contornos mais exatos de maneira a afastardúvidas sobre divisas.

Ao mesmo tempo que esse desenho simplificado, sem curvasou muitos ângulos, diminuía o trabalho do agrimensor, facilitava aatuação de outros profissionais que lidavam com a compra e ven-da da terra, como corretores, advogados, notários etc.62

Tais métodos utilizados nas divisões fundiárias, a partir deentão, são transmitidos aos arruamentos dos novos povoados. Afi-nal, a área de um núcleo urbano nada mais era que a fração deuma propriedade rural maior, doada por um fazendeiro para aconstituição de Patrimônio.

61 Não era incomum os registros tomarem como limites cercas, árvores, moradiasde determinadas pessoas, roçadas etc.

62 Lewis Munford (1982, p.436-7) chama atenção para essa questão, também emrelação à propriedade urbana na cidade do século XIX, pois esta, tendo formaregular, simplificaria o trabalho do construtor e do advogado.

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O espaço natural do futuro povoado, assim como o do sítio oufazenda, deveria possibilitar usufruto: estar em local salubre, daracesso à água e possuir caminho de chegada transitável. Garanti-das essas condições mínimas, o Patrimônio podia ser arruado e oera às expensas da Câmara Municipal, dona do território, por pro-fissional de sua confiança. A gleba a ser transformada em solo urba-no geralmente tinha, ao menos, como um de seus limites o cursod’água, os demais se confrontavam com uma ou mais propriedadesrurais, linhas retas, portanto, conforme a nova sistemática de de-marcação.

A partir do conhecimento do sítio geográfico e submetendo-se ao Código de Posturas da Câmara tributária, que trazia necessa-riamente referência à direitura das ruas,63 o agrimensor, agoraarruador, esquadrejava o traçado urbano tomando por base umdos limites rurais retilíneos, preferivelmente aquele que acompa-nhasse os pontos cardeais.64

A retícula era lançada preliminarmente no papel, sob configura-ção ideal, e depois transposta para o terreno com as alterações quese fizessem necessárias.

Esse procedimento, em que o traçado urbano precede à ocupa-ção, é no Brasil, embora não exclusivo, típico do século XIX. Até

63 Embora seja questão que necessite de estudo aprofundado, consideramos queo Estado, no momento da aprovação dos Códigos de Posturas, atuou sobreeles no que tange a aspectos de maior relevância. Entre os quais, esquadreja-mento, alinhamento, direitura e dimensões de vias, permitindo, por outro lado,a esses mesmos municípios “folclorismos locais” em questões irrelevantes, atécomo válvula de escape política a sua perda de autonomia ante as esferas supe-riores de poder. Deve-se observar que todos os Códigos abrem tratando doarruamento, exigência da Lei de 1º.10.1828, e que muitos deles repetem ter-mos e dimensões. Não acreditamos que seja pura coincidência. Outro aspectodiz respeito ao hábito das Câmaras novas “inspirarem-se” nos Códigos dasmais antigas, criando-se um corpo doutrinário para algumas questões de maiorenvergadura.

64 São muitas as cidades que obedecem aos pontos cardeais: São Carlos, Botuca-tu, Araraquara, Agudos, Bauru etc. Algumas províncias, aliás, criarão leis especí-ficas a respeito: “Art. 2º – Nos logares onde se não tiver principiado a edificar, adirecção das ruas se approximará o mais que fôr possível aos rumos cadeaes,sem prejuizo dos mais longos desenvolvimentos rectilíneos”. Artigo 2º da LeiProvincial (Rio de Janeiro) n.75, de 24.12.1836 (apud Soares, 1885, p.165).

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então era mais comum a cidade ir sendo desenhada conforme adistribuição das datas pela Câmara ou Igreja.65 Mesmo as datasvariavam quanto à sua testada entre 2 e 4 braças (Reis Filho, 1968,p.149), dependendo do porte da futura construção, bem como dasposses de seu ocupante (ver desenho a seguir).

65 Sobre a questão, Murillo Marx (1991, p.77 e 80) afirma ter dúvidas, não sa-bendo ao certo o que veio antes, um possível arruamento prévio ou a conces-são de datas.

FIGURA 32

FIGURA 33

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FIGURA 35

FIGURA 34

FIGURAS 32, 33, 34, 35 – O patrimônio de uma capela como base da urbaniza-ção no Brasil. Desenhos de Murillo Marx (1991, p.42-3, 78-9).

A manutenção de um traçado preliminar e seu respectivo ali-nhamento também seriam difíceis em razão de as marcações seremfeitas precariamente à base de corda e estaca (Reis Filho, 1978, p.24).A rigor, serão as edificações que darão o definitivo alinhamentodas vias. Somente durante o século XIX surgirão ou serão aper-

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feiçoados equipamentos de precisão66 que facilitarão o traçadopreliminar agora fixado por piquetes.

Demarcadas as vias, automaticamente eram determinadas asquadras, que mediam 88 m x 88 m. Estas eram subdivididas poroito datas, fronteando duas de suas faces, portanto quatro dataspor face, com medidas de 22 m x 44 m. Houve, ainda, quadrasmedindo 80 m x 80 m, divididas em datas de 20 m x 40 m.67 Taisdimensões provinham das antigas medidas transpostas para o sis-tema métrico, ou seja, uma quadra perfazia 40 braças x 40 braças,e os lotes 10 braças x 20 braças.

Em virtude de os Patrimônios serem consagrados a um santoe pertencerem à Igreja Católica, na posição mais alta, era deixadaao menos uma quadra reservada para o largo, local para ser elevadauma cruz e depois a capela.

O processo de demarcação, portanto, era simples e seguro,demandando pouco tempo de serviço do agrimensor-arruador e suaturma de trabalhadores.

A eficiência e o sucesso de todo procedimento podem ser ates-tados pela manutenção de tais parâmetros durante o século XX.As quadras sofrerão pouca modificação, em suas dimensões, du-rante esse século.68 Os lotes, sim, nos novos loteamentos, passarãoa ter faces para as quatro vias, ao redor da quadra, para atender aosinteresses genéricos da especulação imobiliária.69 Os terrenos tam-bém estarão disponíveis, ao menos em três dimensões modulares11 m x 22 m, 11 m x 33 m e 11 m x 44 m. Mesmo as amplas datas

66 Como vimos, entre as exigências para a formação do agrimensor estava a prá-tica de uso de instrumentos cada vez mais sofisticados. Citamos as Bússolas deGurley e de Bezard, Trânsito ou Teodolito, e, no início do século XX, o Taqueô-metro.

67 No caso de São Carlos, por exemplo.68 Nestor Goulart fala do arcaísmo dos novos bairros, abertos durante o século

XX, com esquemas semelhantes ao da centúria anterior (ver Reis Filho, 1978,p.16).

69 Esse sistema mais genérico e rentável possível passa a ser o preferido no séculoXX para algumas novas cidades e para a expansão dos loteamentos urbanos.Observa-se que já no plano para Belo Horizonte, de Aarão Reis, as quadras aoredor do parque, mais valiosas e centrais, possuem lotes para as quatro faces(ver Salgueiro, 1996, p.3 e 7).

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abertas nas cidades do século XIX e início do XX não tardarão aser subdivididas para maior aproveitamento, sendo raras atualmenteas remanescentes com a área primitiva.70

Também as vias dos meados dos novecentos até seu final am-pliam-se. Nas cidades mais antigas desse período, encontramos alargura de sessenta palmos, aproximadamente 13,20 m.71 Tal di-mensão parece vir das cidades coloniais, particularmente daquelasde maior importância. Nestor Goulart Reis Filho (1968, p.143-4)cita indicações da Câmara de Salvador, no século XVII, para aber-tura de vias de sessenta palmos, porém, como mostra o autor, va-riavam de largura em seu percurso e eram exceção.

No final do século XIX, sob os parâmetros do sistema métri-co, as larguras saltam para mais de dezessete metros. Surge ainda aavenida com pelo menos vinte metros de largura. Tais ampliaçõestêm a ver com os novos conceitos de salubridade, presentes a par-tir dos meados do século XIX, e a circulação de veículos a traçãoanimal, muito mais intensa nessas cidades. Outro ponto é a cons-trução de passeios, inexistentes até então (ibidem, p.146), e agoranecessários para separar o tráfego de pedestres e veículos.

Por último, gostaríamos de considerar que as dimensões dasquadras 40 braças x 40 braças ou 88 metros x 88 metros somadasàs antigas larguras das ruas, sessenta palmos ou 13,20 metros aoredor de toda quadra e considerando-as em seu eixo, perfaziam101,20 m x 101,20 m. Essa área de 10.241,44 m² equivalia a apro-ximadamente um hectare, medida essencialmente rural utilizadano dia-a-dia do agrimensor.72 Saberia de antemão esse profissio-nal, quando incumbido de arruamento, que se dispusesse de árealivre e regular de trinta hectares, teria por volta de trinta quadrasdisponíveis já se considerando suas vias, bem como um total de

70 Ver estudo comparativo dos desmembramentos de uma típica quadra urbanado século XIX, durante sua abertura, no ano 1888, em 1924, 1960 e 1991(apud Ghirardello, 1992, p.78-9).

71 Como exemplo, ver Código de Posturas Municipais de Botucatu, datado de1867 (apud Antonini, 1985, p.162). Ver ainda Ata da Câmara de São Paulo,datada de 30.12.1850 (apud Silva, 1984, p.147).

72 O alqueire, medida agrária atualmente mais comum, só será utilizado amiúdea partir das primeiras décadas do século XX.

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240 datas. De uma maneira muito rápida e simples, era possívelestimar o número de datas a serem extraídas de determinada gleba,antes mesmo de lançá-las no papel. Tal procedimento preliminarserá mais útil ainda quando a terra urbana se transformar definiti-vamente em mercadoria e as cidades em loteamentos, como vere-mos adiante.

FIGURA 36

FIGURA 37

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FIGURA 38

FIGURAS 36, 37, 38, 39 – Uma quadra na cidade de Bauru e as sucessivas trans-formações de sua divisão original, feita ainda no século XIX (Ghirardello,1992, p.78-9).

FIGURA 39

CARACTERÍSTICAS GERAIS DE IMPLANTAÇÃO

Como vimos no Capítulo 1 deste livro, os trilhos da CEFNOBprocuraram, como medida da economia, os terrenos mais favorá-veis para sua implantação e desenvolvimento, mesmo tendo comoprejuízo um traçado mais longo e sinuoso. Ao aproximar-se do

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local indicado para a implantação da estação e em razão das carac-terísticas dos serviços nesta, procurava-se assentar o feixe de tri-lhos, linha tronco e desvios, em terrenos planos que permitissemuma longa linha reta. A direitura era importante para melhor ob-servação, por parte do agente da estação, do movimento geral daesplanada. Era também necessário que os guarda-chaves, que fica-vam postados no início e fim do feixe de desvios, controlando osaparelhos de mudança de via, tivessem completa visão em direçãoà estação, bem como entre si. Áreas assim, planas e que possibilita-vam longo desenvolvimento retilíneo dos trilhos, eram freqüen-temente encontradas junto aos cursos d’água, e foram elas as esco-lhidas para essas relevantes instalações.

A CEFNOB, ao criar extensas esplanadas para implantação dospátios e estações, determinou áreas de formato retangular, ondeduas das faces eram bem maiores que as outras. Nelas, a disposi-ção topográfica da linha será sempre à meia-encosta de um cursod’água, paralelamente, como forma de aproveitar o terreno natu-ral. Como essas pequenas e precárias estações, durante o períodoestudado, dispunham no máximo da linha tronco e feixe de duaslinhas desvio, os cortes e aterros transversais a elas também forampouco significativos. Portanto, de forma geral, nas estações estu-dadas teremos, partindo-se da cota mais baixa: curso d’água e oconjunto da esplanada formado por pátio, estação e “praça”. Estaúltima área, também pertencente à ferrovia e situada frontalmenteà estação, constituía-se de amplo espaço livre para possibilitar,mesmo que futuramente, carga e descarga, ponto de parada deveículos, bebedouro para animais etc.

Ao iniciar o arruamento desses povoados, foi tomada por base,em todos os casos, a longa reta originada pela linha da ferrovia, oumesmo os limites de divisa da esplanada. Tais demarcações eramfísicas, pois fechadas por cerca, como forma de impedir a entradade animais, que poderiam provocar acidentes quando junto aostrilhos.

Em meio à mata, portanto, os melhores parâmetros que oarruador teve, para iniciar o traçado urbano da futura povoação,foram os limites dados pela área pertencente à CEFNOB ou os pró-prios trilhos, na maioria dos casos retas paralelas.

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Verifica-se que a ferrovia, além de possibilitar vida econômicaao futuro povoado, garantindo acessibilidade e escoamento da fu-tura produção, gerou o próprio desenho urbano. Outra condiçãofavorável para a formação do núcleo foi a proximidade da água,que corria junto às instalações da ferrovia e acabava por servir afutura povoação. Como vimos, a CEFNOB, por meio das bombas avapor, os chamados “burrinhos”, elevava água dos córregos paracaixas d’água dispostas próximo às chaves e estações. A partir daí,esse líquido era distribuído às locomotivas e para as instalações daferrovia, nas esplanadas. Nos primeiros anos desses novos povoa-dos, a CEFNOB contribuiu para o fornecimento de água, junto àestação, para a pequena população local, que não dispunha desseserviço público.73

As dimensões das áreas das esplanadas variavam muito, bemcomo a distância entre a linha tronco e o curso d’água. Tais diferen-ças gerarão esplanadas menos profundas, sessenta metros, Estaçãode Penápolis e mais profundas, 480 metros, Estação de MiguelCalmon (atual cidade de Avanhandava). Naquelas menos profun-das e, ao mesmo tempo, mais distantes dos córregos, houve possi-bilidade de ocupação urbana entre a esplanada e o curso d’água.Nesse caso, encontram-se as estações de Jacutinga (Avaí), PresidenteAlves, Penápolis, Hector Legru (Promissão), Birigüi e Araçatuba.Nelas foram dispostas, progressivamente, por níveis seqüenciais, apartir do curso d’água, uma fração menor do arruamento,74 a es-planada e parte principal do arruamento. Tal situação física seráresponsável por um setor urbano comprimido entre a água e a es-planada. Essa área, na maioria dos casos, foi ocupada de maneiraprovisória, anteriormente ao arruamento. Parece ter servido como

73 Em várias estações houve a distribuição gratuita de água para a população. Omesmo aconteceu em Bauru, até poucos anos atrás. Em Araçatuba, a doadorada área da esplanada coloca como uma das condições para a doação o ofereci-mento do precioso líquido: “A Estrada de Ferro Noroeste, donatária, concede-rá uma torneira de meia pollegada, de água, que ficará aberta durante umahora por dia, até que a cidade tenha serviço de abastecimento d’água” (apudEscritura de Doação. Doador: D. Helena Keller, Donatária: NOB 2º Tabellio-nato de Araçatuba. Araçatuba, 1.12.1932).

74 Essa fração, em alguns casos, como em Araçatuba, será arruada posteriormente.

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“área de espera”, até que o traçado urbano fosse executado. Apartir da efetivação deste, tal setor, pela situação topográfica desfa-vorável, úmido e sujeito a freqüentes inundações, abrigará serviçospesados como serrarias, despolpadores, beneficiadoras ou mesmobairros boêmios ou operários.75 Serão os bairros “além dos trilhos”,dispondo de terrenos menos salubres, porém mais baratos.

Nas estações de Presidente Pena (Cafelândia), Albuquerque Lins(Lins), Miguel Calmon (Avanhandava) e General Glicério (Glicério),a CEFNOB implantou sua esplanada em toda área entre o cursod’água e a estação, não deixando espaço para nenhum tipo deocupação urbana. Nesses casos, a partir do curso d’água, foramdispostos progressivamente a esplanada e o arruamento. O quenão significou que, muito depois, com a expansão das cidades, asáreas além dos cursos d’água, em sua outra encosta, não fossemloteadas. Serão, mas, como frisamos, num período bem posterior.Na época estudada, o arruamento se dará apenas fronteando aesplanada e particularmente a estação.

Esteja, portanto, o complexo ferroviário “envolto” pelo tra-çado inicial ou apenas tendo-o em uma de suas faces, a verdade éque a ferrovia forma o povoado, dando não só suas diretrizes eco-nômicas, mas também, e particularmente, as físicas.

Diferentemente da cidade colonial e mesmo da cidade cafeeirado século XIX, nascidas em solo sacro, ao redor de uma capela, ascidades ferroviárias da Zona Noroeste surgirão sobre solos laicose ao redor da estação, ou fronteiriças a ela.

As cidades formadas no século XIX, particularmente aspaulistas, se caracterizavam por serem constituídas a partir depatrimônio religioso administrado pela Fábrica Paroquial. Comoesse solo, a rigor, pertencia à Igreja, a melhor situação topográficaera destinada à edificação religiosa e seu largo. As ConstituiçõesPrimeiras do Arcebispado da Bahia também assim o exigiam (Marx,1989, p.39-40).76 A capela era disposta em local alto, livre de

75 Em muitas dessas cidades haverá uma mistura dessas diversas ocupações.76 Até o final do século XIX, as recomendações contidas nas “Constituições pri-

meiras do Arcebispado da Bahia”, publicadas em 1719, vigoravam; como exem-plo citamos a licença da Câmara Episcopal da Imperial Cidade de São Paulo,

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umidade e com espaço ao redor para atividades religiosas ao arlivre. Tal situação física era geralmente o divisor de águas da áreado patrimônio. A partir desse largo, junto à capela, a cidade cres-cia num desenho que poderíamos chamar radiocêntrico. Até por-que a Fábrica detinha o controle sobre as datas e as aforava confor-me sua ocupação, em geral do centro para as bordas (Marx, 1991,p.12-3 e 40-1). No caso das cidades da Noroeste, a povoação seoriginará a partir da estação. Ela presidirá o espaço urbano, estan-do ao centro deste ou mesmo num de seus limites, mas, repetimos,sempre presidindo-o. Desnecessário dizer que será a estação, pormuitos anos, o principal edifício desses pequenos lugarejos e quemesmo diante da sua rusticidade terá, podemos afirmar, a mesmaimportância que tiveram as capelas nas antigas cidades. As dife-renças em relação à típica cidade cafeeira do século XIX não pa-ram por aí. Aquela nasce do alto para baixo, a partir do edifícioreligioso. As povoações da Noroeste nascem em pontos baixos,próximas aos cursos d’água e destes para cima.

O largo, junto à capela das cidades do século XIX, será substi-tuído pela área descampada fronteiriça à estação, a “Praça da Esta-ção” ou “Largo da Estação”.

Esta cidade, ainda, diferentemente daquela, terá ocupação deseus lotes de forma linear, paralelamente aos trilhos e daí para asvias subseqüentes, sempre paralelamente, em direção aos limitesda cidade.

Como a função ferroviária predominava, a área frontal à esta-ção e a “Avenida” ou “Rua da Estação” serão os principais espaçosurbanos do povoado. O amplo descampado em frente à estação, ou“Praça” da Estação, exercerá a função das praças municipais, nes-se primeiro momento, para aqueles povoados que não dispuses-

datada de 15.3.1888, para erguer a capela dedicada ao Divino Espírito Santono então bairro de Bauru, com as seguintes exigências: “contanto que seja emlugar alto livre de umidade e desviado quanto possível de lugares imundos e decasas particulares, tendo âmbito ao redor para andarem procissões, e sendo olocal para tal fundação designado pelo revmo. pároco respectivo...” (apud Bas-tos, 1994, p.75).

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sem desse espaço.77 Em outros, como veremos, a “Praça da Esta-ção” atrairá a proximidade ou mesmo a contigüidade da praçapública, fazendo-as praticamente uma só em relação a seu uso.Num diverso, no próprio largo da estação é disposto o coreto,elemento típico e fundamental das praças municipais, comprovan-do que as atividades públicas ali se faziam.

A capela, depois igreja matriz, também terá seu lugar nessasfuturas cidades, porém em área doada por algum fiel. Essa capelaserá construída a posteriori unicamente com o auxílio da comuni-dade e não mais por intermédio da Fábrica Paroquial. Com certe-za ocupará local nobre e central, podendo ser até junto de algumafutura praça municipal, porém o espaço urbano dessas cidades fer-roviárias não terá sido estabelecido a partir dela. O edifício religiosonão determinará mais o arruamento. Podemos dizer que a capela,futura igreja, situar-se-á em bom local, mas num terreno possível,pois doado em solo laico, e não mais numa área específica: o pon-to mais alto, o divisor de águas.78 E mesmo que a religião católicaainda fosse importante, outras aparecerão a disputar os fiéis. EmBirigüi, o primeiro ato religioso foi oficiado por evangélicos (Ra-mos & Martins, 1961, p.204). Em Araçatuba, pastores metodistasjá tinham atuação destacada em 1916 (Pinheiro & Bodstein, 1997,p.145). Portanto, é lógico que os templos dessas religiões tambémocupassem posição espacialmente relevante. A respeito, nos diz oarguto jornalista Brenno Ferraz, que percorre a Zona Noroestenos anos 1920:

Em todo o estado, em todo o Brasil mesmo, a liberdade de reli-gião é uma bella realidade. Em todo caso, a preeminência do catho-licismo salta à vista, na evidência das coisas: as suas egrejas têm, emtoda parte, a situação privilegiada da praça principal. As velhas tor-res dominam, do centro, as cidades.

77 Deffontaines (1944, p.148) também nos chama a atenção para a atração exer-cida pela estação na formação urbana dessas novas cidades ferroviárias, mos-trando, particularmente, a importância da rua frontal aos trilhos.

78 A Pastoral Coletiva dos Bispos do sul do país, realizada em 1910, abre a possi-bilidade de dispor os templos em terrenos que a autoridade eclesiástica julgarconveniente, e não mais sobre locais específicos (ver Marx, 1989, p.40).

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FIGURA 42 – Perspectiva esquemática de uma formação urbana junto aos trilhosda CEFNOB (Desenho: André Stevaux).

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Na Noroeste é differente: Egreja e Templo se hombreiam, emigualdade de posições. A’s vezes, mesmo, a importância da casa evan-gélica sobrepuja em apparencia a outra: enquanto esta, na modéstiados seus muros, semelha uma simples capella, antiga e tosca, ostentaaquella, encimada de uma cruz, a sua torrezinha, as suas columnatas,a sua escadaria, toda uma architectura, enfim, em que se não pódedeixar de ver a contaminação que vae soffrendo a crença nova aocontato com a antiga. (Ferraz, 1924, p.115-6)

FIGURA 43 – Em primeiro plano, Praça James Mellor em Birigüi tendo ao fun-do, à esquerda, o Templo Metodista e, à direita, a Igreja Católica. Foto de1928 (Ramos & Martins, 1961, p.53).

A observação do viajante é importante, por perceber que nascidades da Noroeste nem sempre o melhor edifício religioso era oda Igreja Católica, como nas antigas cidades, e que este não maisnecessariamente ocupava “a situação privilegiada da praça princi-

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pal”. Estranha ainda o jornalista o fato de as torres não domina-rem “do centro” as cidades. Porém, não deduziu Brenno Ferraz que,nessas novas urbes, os chãos eram laicos, e o povoado “brotara” daestação e não de capela situada no alto, e ademais, que o catolicis-mo passara a ser uma das religiões colocadas à disposição do su-posto fiel.

OS TRAÇADOS E AS ESPLANADAS

Com a criação das grandes fazendas de café nos arredores deBauru, “boca-de-sertão” da Zona Noroeste de São Paulo, no finaldo século XIX, tende a aumentar a quantidade de agrimensores naregião, mas estes ainda serão, à época, pequeno número. Somentecom a implantação da CEFNOB acorrerão em relativa quantidadetais profissionais. Sua atuação será fundamental para a demarca-ção de terras devolutas, por particulares, com o fim de apossamento,durante a construção da ferrovia. Será comum a oferta, pelos jor-nais, de trabalho desses profissionais que não se fixavam na re-gião, vivendo nela apenas durante a prestação dos serviços, quepor sua vez demandavam viagens e longa permanência em meio àmata. Muitos, aliás, eram pagos com terras rapidamente passadasadiante. A seguir, reproduzimos um desses anúncios:

OTTO KELNERAgrimensor HabilitadoEncarrega-se de demarcações e medições de terras, pelo pro-

cesso amigável ou judicial.Vinte annos de pratica; serviço com grande presteza... (O Bauru,

2.7.1908)79

A demarcação das terras não era feita para plantio imediato, esim com a finalidade de retalhação e venda. Interessava aos “pro-prietários” das imensas glebas reparti-las e negociá-las rapidamen-te como forma de perpetuar sua posse, transformando a situaçãode fato em direito. Assim ocorreu com as terras da “The San Paulo

79 Percebe-se que, em geral, esses profissionais não se radicavam nas cidades porcausa do endereço para contato, geralmente hotéis.

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Land, Lumber & Colonization Company”, a maior loteadora ru-ral de toda a Zona Noroeste.

A rapidez do processo exigia formas simples que significavamcálculos menos complexos. Além disso, uma forma mais regulardava maior segurança e certeza ao comprador das reais dimensõestransacionadas. A preocupação era legítima, em se tratando de áreascom notórios problemas de divisas entre propriedades. O períodode maior atuação dos agrimensores, na Zona Noroeste, será durantea construção da ferrovia quando a região é aberta, até o início dosanos 1920. Nessa época, retalharão imensas glebas rurais a fim detransformá-las em pequenas fazendas, sítios e chácaras. Para efeti-var tais parcelamentos, como já vimos, tomarão por base os espigõesdesdobrando as terras em largas faixas retangulares da cumeeiraaté os cursos d’água. Pierre Monbeig (1984, p.215-22) nos mostravários desses loteamentos rurais, observando as semelhanças nométodo de divisão.

FIGURA 44 – Agrimensores em ação nos arredores de Birigüi. Foto sem data(Ercilla & Pinheiro, 1928, p.137).

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Almejava o loteador, bem como o arruador, fornecer ao ad-quirente terras altas, junto aos espigões, boas para o plantio decafé, pois imunes às geadas, ao mesmo tempo que dariam acesso àágua. Tais condições eram fundamentais para conseguir bom pre-ço pelos lotes. Nos espigões, ainda, eram habitualmente abertasestradas rurais de acesso ao loteamento (ibidem, p.230), as quaisse dirigiam às povoações. O mesmo autor nos mostra a semelhan-ça entre o processo de divisão de glebas rurais transformadas emsítios e chácaras, a divisão dos municípios e, acrescentamos nós, adeterminação da área de um núcleo urbano (p.215).

No Brasil, esse processo de parcelamento privado se deu demaneira livre, sem normatização governamental, ao contrário dosEstados Unidos, onde, em 1785, foi aprovada a “Land Ordinance”destinada à ocupação do Oeste americano. Essa lei, criada porThomas Jefferson, estabeleceu um ordenamento territorial modu-lar capaz de efetuar divisões de Estados, terrenos agrícolas, cida-des e até mesmo lotes urbanos (Benévolo, 1983, p.494). Embora a“Lei de terras” de 1850 determinasse lotes quadrados, de quinhen-tas braças de lado, para a divisão das terras pertencentes ao Esta-do, as quais seriam levadas para venda em hasta pública, sabemosque poucas foram cortadas pelo governo. Contudo, acreditamosque tal determinação, além de influenciar na exigência de me-lhor preparo para os agrimensores, colaborou para a geometrizaçãodas propriedades privadas, em que pese a preferência por formasretangulares e alongadas. Em nosso país, a similitude dos procedi-mentos, nas diversas escalas, parece ter se dado em razão da ma-neira de se retalhar a terra rural, que norteou o parcelamento ur-bano das novas cidades. Ambos, além de serem executados pelomesmo profissional, o agrimensor, visavam à divisão de gleba emlotes. Estes variavam na dimensão, é certo, mas o procedimentoera o mesmo.

O processo, nos dois casos, iniciava-se pela queimada, costu-me ancestral, que “limparia” a terra para a futura lavoura, evitandoque o comprador tivesse que fazê-lo, ao mesmo tempo que dariaa ele noção mais exata da dimensão do lote, pois, quando pequeno,ele estaria visualmente perceptível.

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FIGURA 45 – A fragmentação progressiva dos municípios de Araçatuba e MonteAprazível (1935-1945) (Monbeig, 1984, p.128).

FIGURA 46 – Divisão de lotes rurais da Fazenda Tietê em Pereira Barreto(Monbeig, 1984, p.220).

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Se na divisão de grandes fazendas, para a venda, a queimadanem sempre era executada de imediato, havendo apenas junto aosseus limites a abertura de picadas, no parcelamento de chácaras esítios a queimada era inevitável e desejada. O mesmo procedimen-to se dava em relação à abertura de povoado, que até como contra-ponto à vida rural e pelo suposto perigo representado pela mata eseus habitantes exigia destruição completa da floresta.

João-do-Mato, o agrimensor que atuava na Alta Sorocabana,já citado neste trabalho, narra sobre a abertura da cidade de Presi-dente Bernardes feita por ele:

Estava eu fazendo a locação da planta da cidade de Bernardes,então ainda Guarucaia, por entre as coiavaras encarvoadas da quei-mada recente da derrubada da mata virgem. Dest’arte todas as tar-des eu estava encarvoado da cabeça aos pés. (Cunha, 1980, p.44)

Após a destruição da mata, era iniciada a demarcação das ruase quadras, utilizando-se para tanto o teodolito e posterior marcaçãopor piquetes, conforme planta previamente determinada. Na ZonaNoroeste, porém, as esplanadas deram a base para o arruamento

FIGURA 47 – Divisão de propriedades próximas a Promissão (Hector Legru).Foto sem data (Centro de Memória Regional RFFSA/UNESP. Bauru, SP).

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dos povoados; a longa linha reta foi o traço inicial para o desenhodas cidades. É a partir dela que nascerá o núcleo urbano.

A procura constante, na imensa maioria das cidades brasilei-ras, dos locais altos, ventilados e secos será substituída pela implan-tação em locais baixos, pela precedência da ferrovia que se fixapróxima aos cursos d’água. Outra característica comum às cidadesdo século XIX, um traçado obedecendo aos pontos cardeais serádeixado de lado em prol da posição previamente definida pelaesplanada da ferrovia, de onde partirão todas as vias, paralela eortogonalmente.

O fato de as áreas não serem mais patrimônios religiosos facili-tava o trabalho do agrimensor, que nem precisaria mais se preo-cupar com a determinação do largo no local mais alto. Uma eventualpraça poderia surgir, mas em qualquer lugar, independentementeda sua posição altimétrica no loteamento.

A base legal para o arruamento dos povoados da Noroeste foio Código de Posturas de Bauru, cidade que chegou a ter comotributária essa imensa região. Os Códigos de Posturas utilizadosdatam de 1906 e 1913, dependendo da época de abertura dessasfuturas cidades. O primeiro foi aprovado no ano em que começoua funcionar a CEFNOB, quando a cidade sofre grande fluxo migrató-rio e as construções expandem-se rapidamente. O segundo foi sancio-nado na administração de Manoel Bento da Cruz, sendo mais minu-cioso e detalhista que o precedente em relação às questões edilícias.Quanto às indicações urbanísticas, eram semelhantes, recomenda-vam vias retas “sempre que o permitir a Topographia...”,80 ruascom largura de 17,60 m, avenidas com largura de vinte metros equadras de 88 m x 88 m.81 Embutidos nessas exigências estavammétodos empíricos utilizados nas inúmeras cidades abertas duran-te o final do século XIX pelos arruadores-agrimensores.

As povoações arruadas sob o comando da Câmara Municipalde Bauru obedecerão, na prática, ao disposto pela Lei Municipal,com maior ou menor exatidão. Afinal, se o controle da Câmara

80 Código de Posturas de Bauru, ano de 1906. Bauru, 1906. Núcleo de PesquisasHistóricas da Universidade do Sagrado Coração. Manuscrito.

81 Código de Posturas de Bauru, ano de 1913. Bauru, 1913. Núcleo de PesquisasHistóricas da Universidade do Sagrado Coração. Manuscrito.

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sobre o desenho a ser aprovado pelos vereadores era simples, suaaplicação no sítio demandava, inúmeras vezes, adaptações que fi-cariam por conta exclusiva do agrimensor-arruador. Contudo, otraçado reticulado e as quadras regulares, mesmo que em algunscasos não totalmente homogêneas, foi a regra.

Todas as futuras cidades da Zona Noroeste terão por base aquadrícula, ou variações a partir desta. Nesse aspecto, pouco terãode original em relação a tantas outras cidades criadas durante oséculo XIX nos Planaltos Ocidentais Paulistas. Porém, sua implan-tação no sítio, bem como os parâmetros pelos quais se inicia oprocesso de divisão da terra urbana, em muito diferirá das anterio-res. Tais parâmetros agora se basearão no solo laico, transformadoem mercadoria de troca e na presença antecedente da ferrovia aoarruamento.

Tais cidades em tabuleiro, criadas para serem vendidas, serãobasicamente loteamentos urbanos, ou, nas palavras de Lewis Munford(1982, p.461), “uma aventura comercial privada”. Estão longe deser exclusividade brasileira, aparecem sobretudo a partir do come-ço do século XIX em países onde o capitalismo estava presente(ibidem, p.460). Naqueles mais antigos, do velho mundo, centroshistóricos são ampliados dentro desse padrão para atender ao flu-xo populacional constante; nos mais novos, cidades são criadasobedecendo à retícula (ibidem, p.457).

No Brasil, em que pese a quadrícula rigorosa estar presentedesde o início do século XIX, consideramos que a liberação defini-tiva da terra urbana, como mercadoria, se deu apenas após a Re-pública, com a separação dos poderes entre Estado e Igreja Católi-ca. É nesse momento que ela se aproximará de maneira precisa desuas congêneres nas diversas partes do mundo capitalista e, agora,não mais apenas quanto à forma, mas também quanto à livrecomercialização dos chãos.

Tal equivalência nos permite reproduzir e validar para essascidades brasileiras a seguinte passagem de Lewis Munford (1982,p.457):

Tais planos não serviam para nada que não fosse uma prontadivisão da terra, uma pronta conversão das fazendas em terrenos deespeculação e uma rápida venda. A própria ausência de adaptaçõesmais específicas à paisagem ou ao propósito humano apenas aumen-

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tou, pela sua própria indefinição e falta de desenho, sua utilidadegeral para troca. As terras urbanas também tornavam-se agora sim-ples mercadoria, como o trabalho: seu valor no mercado era a ex-pressão de seu único valor.

Camillo Sitte, um dos primeiros e mais ferozes críticos do traçadoem xadrez, com evidente desprezo, assim se refere à “Land Ordi-nance” dos Estados Unidos, base para a formação urbana no Oesteamericano:

Para a América, para a Austrália e para os outros países de civi-lização recente este sistema pode ser conveniente também para aconstrução de cidades. Quando os homens se preocupam apenas empropagar a espécie, viver apenas para ganhar dinheiro e só ganhardinheiro para viver é-lhes indiferente ser empacotados em suas casascomo sardinhas em lata.82

Para alguém com propostas tão antagônicas à retícula é com-preensível o horror perante a falta de referências históricas às ca-racterísticas topográficas e à desconsideração pelas relações huma-nas desses espaços urbanos. Porém, nos países novos e capitalistas,a cidade reticulada ou a “especulação fundiária sem desenho urba-no” (Lamas, 1993, p.208) predominou, em que pesem suas parti-cularidades de implantação, destinação83 e diferenças de escala.

A seguir, faremos alguns comentários a respeito do traçado decada uma das formações urbanas da Zona Noroeste, a fim de com-provar as particulares na aplicação da quadrícula, sobretudo suarelação imediata com os trilhos.

Em razão da semelhança de traçados, evitaremos repetir de-terminadas observações, procurando levantar questões específicasde cada um deles ou que possibilitem comparações entre os diver-sos arruamentos.

82 Camillo Sitte, L’Arte Di Construire Le Cittá, p.124-5 (apud Benévolo, 1976,p.222).

83 Nos Estados Unidos foram fundadas cidades de padrão reticulado para aten-der a determinados fins. É o caso de Gary, no Estado de Indiana, criada para asnecessidades de uma indústria (cf. Galantay, 1977, p.157).

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A Estação de Presidente Alves, quilômetro 71 da CEFNOB, foilocada na cota 557,20 m de altitude em relação ao nível do mar, ea aproximadamente trezentos metros de distância do Córrego Pre-sidente Alves, numa meia-encosta. Sua inauguração se deu em 27de outubro de 1906.84 A esplanada possui a dimensão aproximadade 90 m de largura x 250 m de comprimento.

A área da ferrovia claramente deu a base para o traçado dapovoação, efetivada no ano de 1907, que, pela simplicidade, é niti-damente trabalho de agrimensor. Seu arruamento constitui-se basi-camente de traçado em xadrez sem preocupação com a homo-geneidade na dimensão de todas as quadras, embora a maioriadelas perfaça a dimensão de 88 m x 88 m. Como a esplanadaocupa a posição Noroeste/Sudeste, parte das ruas obedecem a essa

84 A estação inaugurada nessa data era bastante precária. Tanto foi assim que aprópria CEFNOB ergue outra, inaugurada em 26.10.1916.

FIGURA 48 – Exemplo de loteamento urbano fora do Brasil: New Babylon, ci-dade americana fundada na segunda metade do século XIX junto ao RioMissouri (Benévolo, 1983, p.502).

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indicação; enquanto as demais, ortogonais às primeiras, encon-tram-se na direção Nordeste/Sudoeste.

A relativa distância entre a esplanada e o córrego permitiu aocupação dessa área, fazendo que as instalações da ferrovia ficas-sem situadas ao centro do loteamento e a estação com sua fachadavoltada para sua fração mais elevada.

FIGURA 49 – Esplanada de Presidente Alves. Levantamento inicial de 1936 (Se-tor de Patrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

Parece ainda não ter havido preocupação em alinhar os doissetores da povoação. A esplanada representaria uma barreira tãosignificativa, pensaria o arruador, que sua continuidade seria des-necessária.

Essa é uma daquelas localidades cindidas pelos trilhos, onde aocupação da “área de baixo” é sensivelmente diferente da “área decima”. Acreditamos que a descontinuidade do traçado se deva àprevisão da bipartição social do solo urbano. Nela os mais aqui-nhoados se posicionariam no setor topograficamente privilegiado,e os outros, naquele baixo, úmido e sujeito a enchentes periódicas.

Por causa da pequena dimensão do pátio da ferrovia, mais de50% da área da esplanada ficam fronteiriças à estação. Não se

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pode subestimar a importância desse amplo espaço para o modes-to povoado, um dos menores e menos pujantes da zona. O relevoda “Praça da Estação” deve ter sido tamanho que conseguiu atrairpara si a praça municipal, disposta em frente à área da esplanada.

A Estação de Presidente Pena, local da cidade de Cafelândia,quilômetro 125 da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Bra-sil, teve seu solo arruado a mando dos irmãos Zucchi na áreafronteiriça à esplanada da ferrovia. Esta ocupava85 uma área alon-gada, com comprimento de mais de setecentos metros e larguravariável entre 128 metros e sessenta metros; seus limites pelo fun-do se faziam, em boa parte, através do Córrego Santa Isabel.

85 A ferrovia atualmente passa nos arredores da cidade. A configuração da antigaárea da esplanada já não existe mais.

FIGURA 50 – Planta de Presidente Alves.

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A longa linha reta, representada pela ferrovia, deu orientaçãoao traçado da cidade que se constitui de extenso tabuleiro de xa-drez. A quadrícula partiu da meia-encosta onde estava situada aestação à cota 416 m acima do nível do mar, tendo avenidas comvinte metros de largura dispostas paralelamente à esplanada e ruasperpendiculares a esta com larguras de 17,60 m ou mais.

O desenho é nitidamente um loteamento com 75 quadras eaproximadamente 450 lotes disponíveis para a venda. As quadras,em sua imensa maioria, perfazem 88 m x 88 m, divididas em oitolotes fronteando as avenidas.

A influência da esplanada ferroviária no traçado foi tão forteque acabou por desprezar a posição do antigo povoado existenteàs margens da gleba, à esquerda do loteamento, logo após o CórregoSaltinho. Isso é comprovado pela ligação entre a nova área arruadae a antiga, estabelecida de maneira improvisada, cruzando duasquadras do loteamento dos irmãos Zucchi, num arranjo arbitrárioe claramente malsucedido. Deve-se notar ainda que o padrãodimensional das quadras foi utilizado de forma tão rígida, princi-piando-se da esplanada, que ao final da gleba, em direção Sul, asquadras (de número 66 a 75) ficaram reduzidas a quase nada. Omesmo ocorreu em relação às divisas junto ao Córrego Saltinho eigualmente onde a ferrovia principiava uma curva (em direção aBauru) quando nas “sobras” de gleba foram estabelecidas quadrasde formato triangular.

FIGURA 51 – Esplanada de Cafelândia (Presidente Pena). Levantamento inicialde 1936 (Setor de Patrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

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Camillo Sitte (1992, p.67-8) já havia percebido a freqüênciade tais “problemas” em traçados desse tipo, observando que emmuitos deles, provavelmente pela forma insólita dos possíveis lo-tes, a quadra acabava sendo reservada para praça:

É natural que a construção urbana moderna não tenha tido muitasorte com suas irregularidades. Em um planejamento urbano quesegue o modelo de um tabuleiro de xadrez, as irregularidadesprovocadas pela régua são, quase sempre, as praças triangulares, can-tos funestos na regularidade geral do traçado.

No caso de Cafelândia, “os cantos funestos” nem para praçasserviram; talvez pela sua localização pouco centralizada, esconsadiríamos, foram loteados.

FIGURA 52 – Estação de Cafelândia (Presidente Pena). À sua frente, a grandeavenida e a Praça Afonso Pena. Foto do final dos anos 1920 (Ercilla & Pi-nheiro, 1928, p.93).

Tal situação e as anteriormente citadas em Cafelândia nos le-vam a supor que o arruador iniciou o desenho da cidade a partirdos limites formados entre o prolongamento da rua 12 e a esplanadada ferrovia. Dessas divisas, acreditamos, aplicou o rígido tabuleiro,sacrificando as quadras nas linhas de demarcação opostas. Por outrolado, essa estratégia asseguraria a continuidade futura da retícula,onde não houvesse barreiras intransponíveis.

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Também nesse povoado, a principal praça, que significativa-mente leva o primeiro nome da Estação, Afonso Pena, situava-seem frente à esplanada. Outras áreas serão reservadas para fins pú-blicos e mesmo religioso,86 mas será a Praça Afonso Pena a primei-ra a receber tratamento paisagístico, transformando-se no “cartãode visitas” de Cafelândia.

A Estação de Albuquerque Lins, quilômetro 151 da CEFNOB,inaugurada em 1908, deu origem à cidade de Lins. Sua esplanadaera uma das mais longas da Companhia, excedia meio quilômetrode extensão e 120 m de largura máxima. A esplanada tambémnesse caso foi estabelecida paralela à meia-encosta de um córregodenominado do Carvalho e a Estação implantada na cota 396,40 macima do nível do mar.

O primeiro arruamento, como vimos, se deu paralelo e fron-talmente à esplanada da CEFNOB, executado de modo rudimentar“a olho e sem auxílio de agrimensor...” (Magalhães, 1954, p.61), amando do posseiro Manoel Francisco Ribeiro, numa área de apro-ximadamente dez alqueires. As ruas possuem largura desigual e asquadras, formas inexatas. Não há reserva de área para praça ouqualquer outra atividade pública ou mesmo religiosa. O traçadoparece se conformar à existência da esplanada87 e a um caminhoprovavelmente preexistente, em direção à zona rural e posterior-mente ao povoado de Guaimbe. A ausência de agrimensor e a pressana retalhação e venda do loteamento, em razão da prenunciadaperda de posse da terra, resultaram no traçado mais irregular entreos povoados estudados.

O segundo arruamento, sobre a área doada pelo coronel Joa-quim de Toledo Piza e executado a mando da Câmara de Bauru,está situado além do Córrego Campestre, que acaba por separar osdois loteamentos. Este último se configura, em contraste, de modoregular com quadras de 88 m x 88 m. Seu arruador claramente

86 Os irmãos Zucchi lutarão e conseguirão, durante a década de 1920, atrair asede do bispado para a cidade, oferecendo para isso algumas quadras no solourbano.

87 Todo complexo ferroviário foi retirado do centro da cidade. A configuraçãoda antiga área da esplanada já não existe mais.

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tomou por base o primeiro traçado de Manoel Francisco Ribeiroprolongando-o, mesmo que virtualmente, pois o Córrego Campes-tre os separa. Portanto, pode-se dizer que, embora o loteamentoposterior não confronte a esplanada, em virtude de haver um ou-tro no local, este lhe dá as diretrizes gerais, ensejando a continuidadede algumas de suas vias. Embora não haja diferenciação substancialna largura das vias do novo loteamento, elas serão classificadas comoruas e avenidas. Constituir-se-ão avenidas aquelas paralelas à espla-nada e ruas, suas ortogonais. É ainda prevista uma praça públicaque, a nosso ver, pela distância da estação até este novo loteamentoe pela inexistência de outro parâmetro melhor, acaba sendo localizadano centro do arruamento, aos moldes das cidades do século XIX.

FIGURA 53 – Planta original do “Patrimônio” de Pena (Cafelândia) (PrefeituraMunicipal de Cafelândia).

FIGURA 54 – Esplanada de Lins. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

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Os loteamentos que originaram a cidade de Lins são mostrasclaras de quanto o tabuleiro de xadrez se mostrava inadequado seaplicado a qualquer superfície. As encostas dos córregos Carvalhoe Campestre, pela sua declividade acentuada, não se prestariampara esse tipo de traçado mais adequado aos solos planos. Taisarruamentos sofrerão freqüentes danos em época de chuvas torren-ciais, particularmente as vias de sentido longitudinal às encostas.

É por essa razão que o segundo arruamento, mais alto um pou-co, mais plano em sua cumeeira, se adensou rapidamente com fi-nalidade residencial. O comércio e serviços por sua vez foram atraí-dos pela Estação Ferroviária88 localizada em zona mais baixa juntoao primeiro loteamento, porém mais próxima do movimento depessoas e mercadorias.

O arquiteto Luiz Saia, no Plano Diretor para Lins, da décadade 1950, observa surpreso que, embora a maioria das cidades pro-cure as áreas altas para seu desenvolvimento, em Lins,

este costume foi peculiarizado pelo fato da Beira-Rio coincidir coma linha férrea, presença que deve ser considerada contrária à tendên-cia citada, e que se revelou incapaz de modificá-la, senão apenasretarda-la...89

A análise é perfeita, mas, a nosso ver, não é válida só para Lins,e pode ser generalizada para todas as cidades deste estudo situadasjunto às estações da CEFNOB.

A Estação de Hector Legru, quilômetro 178 da CEFNOB, fu-tura cidade de Promissão, pela declividade pouco acentuada dosítio, foi implantada a mais de seiscentos metros do Córrego Pati-nhos.90 O terreno pouco acidentado, a nosso ver, fez que a espla-nada se “despregasse” do curso d’água, embora ainda estivesse si-tuada em sua encosta.91

88 Plano Diretor de Lins. Elaborado pelo arquiteto e urbanista Luis Saia. Prefei-tura de Lins, 1953, p.11.

89 Ibidem, p.12.90 Todo o complexo ferroviário foi retirado do centro da cidade. A configuração

da antiga área da esplanada já não existe mais.91 O desenvolvimento dos trilhos nos arredores do povoado acompanhava o

Córrego dos Patos e depois o Córrego Patinhos, sempre à meia-encosta.

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A relativa distância do córrego ensejou que, diferentementedos outros povoados da ferrovia, a estação ficasse voltada frontal-mente para o curso d’água. Nesse espaço, entre a estação e o Córre-go Patinhos, foi lançado o arruamento da futura cidade de Promis-são. Mais uma vez o traçado procurou adequar-se paralelamente àesplanada, um retângulo de 370 m x 85 m.

Adolpho Hecht, o agrimensor que arruou o povoado, tomoupor base a área frontal da esplanada da ferrovia para traçar a futu-ra cidade, mesmo tendo ciência de que essa área era a mais baixa(Reyes, s. d., p.30) e menos adequada. O fato confirma a impor-tância da fachada principal da estação na definição da posição dotraçado, principalmente sabendo-se que Hecht era proprietário detoda a gleba envoltória da esplanada, podendo optar, se assim qui-sesse, pela situação mais alta e salubre.92

O pequeno arruamento dispunha de quadras medindo 88 m x88 m, avenidas paralelas aos trilhos e ruas perpendiculares a estes.Embora as ruas e avenidas, também aqui, não apresentassem dife-rença substancial de largura, junta e paralela à esplanada foi dispostauma ampla avenida. Esta fez as vezes de “apresentação” da cidade.Afinal, devemos considerar que o principal acesso a esses povoadosse dava pela ferrovia, e visto pelo trem o casario da avenida para-lela à esplanada, a primeira via a ser ocupada espelharia o próprionúcleo urbano, sua pujança e importância. Atuaria como um cená-rio a retratar, junto à longa esplanada, o grau de desenvolvimentoda localidade. Este ainda pode ser um dos motivos por que asvárias praças são dispostas junto à via frontal à esplanada. O povoa-do poderia ser avaliado quase por completo sem saltar do trem.Não são poucos os relatos de viajantes que descrevem e estimamessas “estações” por um relance de olhos, a partir dos vagões para-dos nos pátios ou mesmo em passagem.

Também no arruamento de Promissão não será reservada qua-dra para praça pública. Consideramos que atividades característi-cas desse espaço se davam na avenida fronteiriça à estação, fatoeste reforçado pela existência de um coreto junto à área perten-

92 O segundo parcelamento urbano, feito anos depois, ocupou as terras altassituadas atrás da estação, atualmente o centro de Promissão.

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FIGURA 56 – Esplanada de Promissão. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

FIGURA 55 – Planta de Lins (Reconstituição a partir de plantas antigas fornecidaspela prefeitura).

cente à ferrovia, ao lado da estação, como pode ser observado nomapa da esplanada de Promissão.

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Nesse caso, além de atrair para si a vida urbana local, a ferro-via reservou, em sua propriedade, espaço específico para essas ativi-dades, fazendo as vezes da praça municipal, nesse primeiro mo-mento inexistente no traçado do povoado.

A Estação de Miguel Calmon, situada no quilômetro 202 daCEFNOB, inaugurada em 1908, originou a cidade de Avanhadava.

A esplanada da ferrovia, que tinha93 por volta de 410 m delargura, ia do Córrego do Alambari até mais ou menos 480 m aci-ma, tendo sua estação disposta na cota 416 m sobre o nível do mar.

93 Todo o complexo ferroviário foi retirado do centro da cidade. A configuraçãoda antiga área da esplanada já não existe mais.

94 A gleba onde se situa o centro da cidade foi doada para a Câmara Municipal deBauru pelo coronel Flávio Martins Ferreira, com o nome de Patrimônio deCampo Verde.

FIGURA 57 – Avenida frontal à estação em Promissão (Hector Legru). À esquer-da, o casario e, à direita, o coreto e a estação. Foto do final dos anos 1920(Centro de Memória Regional RFFSA/UNESP. Bauru, SP).

Como Miguel Calmon era sede da 2ª residência da CEFNOB,portanto responsável pela operacionalização e manutenção de ex-tenso trecho da ferrovia, possuía dentro da esplanada bom núme-ro de edifícios para administração, oficinas e moradias para abri-gar funcionários, entre os quais os engenheiros. O complexoferroviário incentivou o arruamento do povoado também patroci-nado pela Câmara de Bauru.94

O arruador, a partir da esplanada da ferrovia, estabeleceu otabuleiro de xadrez dentro das dimensões preconizadas pelo Có-

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digo de Posturas de Bauru. Foi determinada uma praça pública jun-to à esplanada, comprovando mais uma vez a importância da fer-rovia na atração do espaço público nessas cidades.

FIGURA 58 – Planta de Promissão (Hector Legru) (Reconstituição a partir deplantas antigas fornecidas pela prefeitura).

FIGURA 59 – Esplanada de Avanhandava. Levantamento inicial de 1936 (Setorde Patrimônio da RFFSA/UNESP. Bauru, SP).

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O engenheiro da CEFNOB Sylvio Saint-Martin assim descreveo povoado, na segunda década do século XX:

A estrada construiu ali um bom hôtel para passageiros, umaofficina para o material, um grande hospital, casas de residência etc.,na povoação já existem diversos hotéis, machina para beneficiar ar-roz, negócios, etc.; esta futurosa villa é predestinada a bastante pro-gresso pela sua posição salubérrima no meio de muitos campos fér-teis... (Ayala, 1914, p.74)

Nesse caso particular, portanto, além de motivar a formaçãourbana, pela construção da estação, a CEFNOB desenvolveu o po-voado nascente por dotá-lo de infra-estrutura suplementar neces-sária às atividades da 2ª residência da Companhia aí instalada.

FIGURA 60 – Planta de Avanhandava (Miguel Calmon) (Reconstituição a partirde plantas antigas fornecidas pela prefeitura).

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Outra questão que salientamos, a partir da descrição do enge-nheiro Saint-Martin, é a capacidade da ferrovia em atrair, e não sóem Avanhandava, uma série de empresas de beneficiamento agrí-cola que se instalou nas proximidades da esplanada, pela facilida-de de acesso da produção pelos trilhos. Tal aspecto reforçou a pre-sença da função ferroviária nessas cidades nascentes, acentuandoas imediações da estação como o centro da vida urbana nos aspec-tos físicos, sociais e econômicos.

FIGURA 61 – Esplanada de Penápolis. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

A Estação de Penápolis, quilômetro 220 da CEFNOB, tornou-se o primeiro povoado a ganhar foro de cidade junto à linha daferrovia. Da mesma forma que os outros núcleos que a sucederam,tem seu traçado estabelecido a partir da esplanada que possui95

largura aproximada de 300 m por 60 m de profundidade, e im-plantada paralelamente ao Córrego Maria Chica. Entre a esplanadae o curso d’água há distância de mais ou menos 120 metros, áreaocupada por três grandes quadras alinhadas paralelamente aos tri-lhos. Esse foi o primeiro lugar a ser habitado no povoado, antesmesmo do arruamento de Penápolis. De acordo com Fausto Ribei-ro de Barros (1992, p.76), Manoel Bento da Cruz permitiu que o

95 A esplanada ainda se situa no local original.

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setor localizado abaixo da estação, situada na cota 390 m acimado nível do mar, fosse utilizado enquanto os capuchinhos não che-gassem para tomar posse de sua gleba. Julgamos que essa área fun-cionou como lugar de espera até que o solo urbano fosse ocupadoe arruado por seus legítimos donos. Mesmo Bento da Cruz aí cons-truiu sua casa, em uma ampla área (Martins, 1968, p.59).

O arruamento só foi ser executado após a vinda dos capuchi-nhos. Seu autores foram os agrimensores Christiano Olsen e Adol-pho Hecht, que o elaboraram no ano de 1909. Os dois agrimenso-res, acostumados com a subdivisão das terras rurais, utilizaram osmesmos métodos no povoado. Para facilitar o trabalho, dividiramas tarefas: Olsen marcava as transversais e Hecht, as longitudinaisem relação à esplanada, e as estacas eram fixadas por uma terceirapessoa.96 Tal sistema comprova o quanto o traçado em xadrez erapreferido pelos agrimensores-arruadores pela praticidade de loca-ção e quase impossibilidade de erro na marcação.

Verifica-se, ainda, como no caso de Cafelândia, a aplicaçãocega e sistemática da quadrícula a partir da esplanada, até os limi-tes da gleba, interrompendo sua demarcação conforme as divisas,resultando aí frações de quadras.

Consideramos também que Olsen e Hecht, ao traçarem o po-voado, partiram não só da esplanada, mas, particularmente, daestação, que serve de ponto de fuga a uma das ruas. Tal procedi-mento, acreditamos, foi usual também em outros povoados da ZonaNoroeste. Tais intenções mostrar-se-iam, porém, infrutíferas emrazão da demolição das primeiras estações de madeira, contempo-râneas aos traçados, substituídas por outras de alvenaria97 em lo-cal próximo.

Em Penápolis, as quadras, em sua maioria, obedeceram às di-mensões de 88 m x 88 m, tendo sido deixadas seis delas anexadas,sem ruas a cortá-las, para a construção do convento e capela doscapuchinhos (Martins, 1968, p.59).

96 Conforme Orentino Martins (1968, p.56), quem colaborou na marcação dasestacas foi o filho de Manoel Bento da Cruz.

97 Evitava-se a demolição imediata da estação mais antiga para que os serviços daEstrada de Ferro não fossem afetados. Só depois da construção da nova esta-ção, geralmente ao lado ou próxima, é que a mais velha era desmontada.

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As vias foram classificadas em ruas e avenidas, as primeiras per-pendiculares aos trilhos e as últimas paralelas. Devemos atentarpara que os arruadores, nesse e em outros povoados, optaram porlocar as avenidas paralelamente à esplanada pela importância dessasinstalações, mas também, assim como havia se dado com a implan-tação das esplanadas, para poderem situá-las a favor da topografia.As ruas, ao contrário, cruzariam longitudinalmente as curvas denível possuindo rampas mais acentuadas. Essa hierarquia, entreavenidas e ruas, era claramente mais favorável às primeiras em ra-zão não só da melhor posição topográfica e largura mais generosa,mas, sobretudo, em decorrência de os terrenos frontearem basica-mente a elas, e terem suas divisas laterais paralelas às ruas.

FIGURA 62 – “Planta da Villa de Pennápolis”. Desenho original sem data (Mu-seu Histórico e Pedagógico Fernão Dias Paes. Penápolis, SP).

O mapa de Penápolis que traz o registro cadastral é claro quan-to à importância da ferrovia no espaço urbano. Inicialmente sãoocupadas as avenidas que divisavam a esplanada, e não é difícilimaginar o relevo da ampla avenida que corria paralela à fachadada estação, a “Avenida da Estação”, na vida local. Também nesse

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caso, os arruadores e, é claro, os loteadores não se preocuparamcom a criação de praças públicas, as atividades destinadas a essesespaços ocorreriam na Avenida da Estação. Era ali que funciona-vam hotéis, bares, lojas, a primeira Câmara Municipal, e residiamos moradores mais influentes (ibidem, p.59-60). Era onde a vidada comunidade se processava, orquestrada, em grande parte, pe-los horários das composições, pelo apito do trem.

A Estação de General Glicério, quilômetro 240 da CEFNOB,foi inaugurada no ano de 1908. Estava situada98 numa esplanadacom profundidade média de 160 metros e largura aproximada detrezentos metros. Seu limite pelo fundo confrontava-se com o Cór-rego Água Limpa ou Córrego da Estação.

FIGURA 63 – Esplanada de Glicério. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

O arruamento, executado por volta de 1913,99 foi tambémdemarcado paralelamente à esplanada da CEFNOB. A peculiarida-

98 Todo o complexo ferroviário foi transferido do local original. A configuraçãoda antiga área da esplanada já não existe mais.

99 Prefeitura de Glicério. Histórico do município de Glicério. Glicério, s. d.

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de desse traçado está em que as divisas da esplanada, por algumarazão que desconhecemos, não são paralelas aos trilhos. Portanto,o arruador iniciou o traçado urbano tomando por base a linha retada cerca que limitava a área da Companhia e não os trilhos. Apartir daí, estabeleceram-se ruas e quadras nas dimensões padrão.Tal procedimento altera-se apenas em relação às grandes quadrasque se confrontam com a linha do trem (e não com a esplanada),onde o arruador, em vez de fracioná-las, optou por ampliá-las atéos limites da via permanente. Repete-se aqui o mesmo problemaencontrado em perímetros de gleba nos loteamentos de Cafelândiae Penápolis, porém, nesse caso, optou-se por outra solução: o acrés-cimo de área na quadra à sua retalhação em outras menores.

FIGURA 64 – Vista de Glicério (General Glicério). Em primeiro plano, a ferro-via, em direção ao alto, a cidade. Foto do final da década de 1920 (Prefeiturade Glicério).

Por último, deixamos aqueles povoados que não tiveram seusarruamentos determinados por agrimensores e sim por profissio-nais tecnicamente mais preparados: os engenheiros. Veremos queexistiram diferenças no desenho dessas futuras cidades. Embora aquadrícula tenha permanecido como base do traçado, passou ahaver maior preocupação com questões de ordem estética, de com-posição e mesmo sanitária. Esta última presente na ênfase dada emrelação à orientação cardeal, ou mesmo na determinação prelimi-nar de área para cemitério. É visível, ainda, a necessidade de sairdo lugar-comum, representado pelo traçado em xadrez absoluto ehomogêneo de tantas e tantas cidades do interior de São Paulo eda própria Zona Noroeste. Porém, não devemos nos iludir com a

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forma mais elaborada: continuarão sendo unicamente loteamen-tos urbanos com finalidade de negócios imobiliários.

As plantas desses povoados, mesmo que executadas por técni-cos de maior envergadura, devem ainda ser consideradas arruamen-tos, não se trata de projetos urbanísticos. Nestes últimos são leva-das em conta questões como uso do solo, gabaritos dos edifícios,infra-estrutura pública, setores culturais e de lazer, edifícios da ad-ministração pública etc.100

Nenhuma planta de cidade passa de uma pretensão no papel,até que tenha sido estabelecida, como condição mínima, uma cober-tura máxima de terra, uma densidade máxima de ocupação, em rela-ção às funções projetadas e aos padrões de vida, e uma altura e volu-me máximos de construção em relação à necessidade de espaço abertoe movimento público; tudo isso encaixado dentro de uma seqüên-cia, medida temporalmente, de renovação e substituições. (Munford,1982, p.459)

Os núcleos urbanos da Zona Noroeste têm seus traçados cria-dos de forma basicamente bidimensional, eixos de vias que se cru-zam. A tridimensionalidade é deixada de lado em prol da preocupa-ção básica de estabelecer uma determinada porção de lotes paravenda. Esse tratamento aproxima tais traçados de divisões ruraisonde a tridimensionalidade evidentemente era desnecessária, por-tanto desprezada.

Lewis Munford, de quem retiramos a citação anterior, se refe-re a esses empreendimentos como “planta baixa especulativa” ousistema de “grade especulativa” (ibidem, p.456-60), observando queneles nenhum setor foi considerado para funções específicas:

a única função considerada foi a intensificação progressiva de uso,tendo em vista atender às necessidades dos negócios em expansão eaos crescentes valores dos terrenos. (ibidem, p.459)

Outro aspecto que salta à vista e coloca esses traçados distantesdos planos urbanos é seu caráter infinito. Afinal, os projetos urba-

100 O planejamento da nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, é um exem-plo para nós bastante próximo, bem como de período precedente às cidadesda Noroeste (ver Salgueiro, 1996, p.7).

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nísticos estabelecem claramente limites de crescimento por meiodo próprio desenho urbano e pela determinação preliminar donúmero de habitantes. Casos existiram em que os planos, paraconterem a população e criarem áreas progressivamente menosdensas, graduaram os contornos urbanos com a especificação desetores suburbanos e rurais, reforçados pela demarcação física pormeio de avenidas perimetrais que funcionaram como um cinturãocontra o crescimento.101

No caso dos povoados da Zona Noroeste, incluindo aquelesprojetados por engenheiros, os limites de expansão não eram defi-nidos, mesmo que o traçado tivesse forma regular e se encerrasse emlinhas contínuas. A previsão de população era outra questão despre-zada, embora o número de lotes fosse cuidadosamente quantificado.

O traçado funcionaria, a nosso ver, como um embrião quenão só poderia, como deveria, ser ampliado. A rigor, esses traça-dos parecem ter sido executados para a expansão, e a quadrículaaplicada de forma regular se prestava facilmente a tal finalidade.102

Esse mesmo raciocínio conduz ao fato de que as glebas ao redordos povoados pertenciam, regra geral, ao seu doador ou loteador,interessado direto na expansão continuada e ilimitada, mediante aconversão de áreas rurais em urbanas.

Os três povoados junto às estações da CEFNOB, arruados porengenheiros, são, pela ordem de quilometragem, Jacutinga (Avaí),Birigüi e Araçatuba.

A Estação de Jacutinga, quilômetro 48 da CEFNOB, futuracidade de Avaí, teve sua planta executada em fevereiro de 1907pelo engenheiro Tomaz Viteri (Enciclopédia dos municípios brasi-leiros, 1957, p.95). O traçado ocupando área de 31,15 hectarestem a forma de um retângulo, medindo 530 m x 620 m de lado.

O autor em sua planta enumerou as quadras, 31 ao todo, in-cluindo esplanada, cemitério103 e praça. Esse procedimento con-

101 Novamente reportamo-nos ao caso de Belo Horizonte, que prevê em seuprojeto, elaborado por Aarão Reis, uma avenida perimetral nomeada 17 deDezembro, com 17 quilômetros de extensão, que separa a zona urbana dasuburbana (ver Magalhães, 1989, p.144-5).

102 Embora, por questões geográficas ou interesses imobiliários envolvidos, nemsempre o prolongamento contínuo tenha sido possível.

103 Esse é o único povoado da zona onde constava, em sua planta inicial, espaçopara cemitério. Nos demais, os cemitérios ficavam fora do arruamento.

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firma nossa afirmação anterior, provando que tais glebas eramcortadas para fins de arruamento urbano, prevendo-se um hectarepor quadra, mais as vias ao redor, considerando-as em seu eixo.No caso, sobre área de 31,15 hectares, foram demarcadas 31 qua-dras. Portanto, o arruador poderia estimar o número de lotes an-tes mesmo de executar qualquer serviço só pela dimensão da gleba.

As quadras, em sua maioria, obedecem à dimensão padrão de88 m x 88 m e as vias, largura de aproximadamente 17,60 m, amesma da testada dos lotes.104

FIGURA 65 – Planta de Glicério (General Glicério) (Reconstituição a partir deplantas antigas fornecidas pela prefeitura).

104 Nesse caso, o traçado parece ter sido executado de maneira mais simplesainda, em razão das mesmas dimensões de testada de lote e largura de vias.

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O arruamento estava envolto em terras do doador, três quar-tos de seus limites divisavam com a propriedade do major Gas-parino de Quadros, tornando futuras expansões urbanas dependen-tes do outorgante.

O autor da concepção urbana, também aqui, se baseou naesplanada preexistente para determinar o desenho da futura cida-de. A área pertencente à ferrovia situava-se105 à meia-encosta emedia 193 m x 88 m, distando mais de duzentos metros do córrego.Como a estação, localizada na cota 460 metros acima do nível domar, estava voltada para o curso d’água e guardava em relação aeste boa distância, Viteri propôs a ocupação da área entre a espla-nada e o ribeirão.

A composição geral do traçado era dominada por dois espa-ços livres, um maior onde se encontravam a esplanada e o respec-tivo “Largo da Estação”, base para o desenho, e um menor ao alto,no eixo da estação e criado a partir desta, denominado Praça SãoSebastião. Houve clara preocupação para que tais áreas prevale-cessem no traçado do povoado, mesmo que para tanto fosse neces-sário criar “meias quadras”, como aquelas ao redor da Praça SãoSebastião. Toda composição restante formada, em sua maioria, por

FIGURA 66 – Esplanada de Avaí. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

105 O complexo ferroviário foi transferido da área original para os arredores dacidade. A configuração da antiga esplanada já não existe mais.

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quadras com dez lotes de 17,60 m x 44 m obedece à centralizaçãoe hierarquia desses dois espaços.

A nosso ver, repetiu-se graficamente certa ambigüidade pre-sente no conturbado processo de doação da gleba à Igreja e depoissua retificação, passando-o à Câmara Municipal de Bauru. Embo-ra a Praça São Sebastião, destinada à implantação do Edifício Reli-gioso, esteja situada em local alto, central e privilegiado, o típicolargo das antigas cidades, o Largo da Estação, é mais amplo e com-pete de maneira cristalina pela preponderância no espaço urbano.Acreditamos que nesse modesto traçado esboça-se a luta surda,típica do período, entre a dominância espacial da Igreja, em des-censo no contexto urbano, e as novas instituições laicas em francaascensão. É interessante ainda que seja constatado que a quadraescolhida para si, pelo doador da gleba, a de número 16, situe-seestrategicamente entre as duas áreas.

Viteri deu tanta ênfase à disposição desses dois espaços livres,bem como a uma simetria rígida e espelhada entre eles e o restantedo arruamento, que prejudicou a integridade de parte das qua-dras. Com efeito, pelo desenvolvimento em “S” da ferrovia, algu-mas quadras foram drasticamente cortadas pelos trilhos, mas oprojeto tratou-as como se estes não existissem. Estamos diante,portanto, de um traçado “ideal” que sobrevalorizou alguns ele-mentos norteadores do desenho, como a esplanada da estação e apraça da futura matriz, e desconsiderou elementos fundamentais,pois claramente presentes, como a via permanente da ferrovia, ocurso d’água e mesmo a topografia, que, caso atendidos, rompe-riam a simetria e o equilíbrio pretendidos.

A Estação de Birigüi, quilômetro 262 da CEFNOB, futura cidadede Birigüi, teve seu plano de arruamento iniciado no ano de 1913e finalizado em 10 de março de 1914.106 Seu autor é o engenheiroTheodoro Augusto Graser, indicado pelo prefeito de Bauru ManoelBento da Cruz.

106 Birigüi, 80 anos. 28 painéis sobre a história da cidade de Birigüi, Museu deRua. Prefeitura de Birigüi, Divisão Municipal de Cultura, painel de número 7.

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FIGURA 67 – “Patrimônio de São Sebastião do Jacutinga”. Planta Original (Se-tor de Patrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

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Também em Birigüi, assim como em General Glicério, o tra-çado tomou por base os limites da esplanada da ferrovia, e nãoseus trilhos. A localização dessa área se dava às margens de umcurso d’água, estando sua estação locada à cota 383,19 m acimado nível do mar. Entre a esplanada e o córrego foi estabelecidauma rua, posteriormente denominada “Dos Fundadores”, ondeforam construídas as primeiras moradias do lugar, antes mesmodo arruamento (Cunha, 1997, p.82-3). Da mesma forma que emPenápolis, essa área parece ter-se configurado como um local pro-visório de espera até a determinação do traçado.

Graser partiu da esplanada da ferrovia, bem como do desen-volvimento em curva dos trilhos, no sentido Bauru, para elaboraro traçado, claramente dividido em duas partes. Na primeira delas,tomando como centro da composição a esplanada, estabeleceu al-gumas vias paralelas a ela, contendo quadras regulares, arremata-das por outras de desenho triangular, entre elas uma praça. A nos-so ver, essa foi uma estratégia de desenho para valorizar a funçãoferroviária, base da vida local, criando uma “entrada” para o povoa-do, mesmo que para tanto tivesse que abrir mão da integridade dealgumas quadras. Esse conjunto é interrompido próximo aos limiteslaterais da esplanada quando dá lugar a vias que partem do vérticeinferior das quadras da primeira composição, na direção Norte/

FIGURA 68 – Esplanada de Birigüi. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA, Bauru, SP).

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Sul. A partir daí, num outro arranjo, o traçado desenvolve-se para-lelo aos trilhos originando quadras de desenho retangular.

Notam-se aí questões importantes no arruamento das cidadesdo período, como a procura pelo acompanhamento dos pontoscardeais, conseguido na segunda parte do traçado, por meio umoutro preestabelecido. Afinal, considerava-se tal orientação, con-forme antigos cânones, a posição mais salubre e indicada para ainsolação urbana.107

Outro ponto que se coloca diz respeito à dependência absolu-ta desses profissionais dos instrumentos de desenho: régua “T”,esquadros e compasso, para a elaboração dos traçados urbanos.Muitas vezes o instrumental parece determinar os ângulos e dispo-sições de desenho por seu uso ser mais simples e prático. É o queocorre com a segunda etapa do traçado de Birigüi, disposta exata-mente a 45º da retícula frontal à estação.

O técnico também freqüentemente parece subordinado ao sis-tema de representação que lhe induz determinadas escolhas. So-bre o uso cego da geometria no projeto arquitetônico ou urbano,um “câncer secular”, nos diz Bruno Zevi (1978):

El arquitecto se encuentra tan condicionado por una geometríaartificiosa e inhumana que la siente “natural” y “espontánea”; noconoce otra lengua. Es un cáncer ancestral, reforzado con los mismosinstrumentos de dibujo: regla T, escuadra, compases, tecnígrafo. Sirvenpara trazar líneas paralelas, paredes paralelas, habitaciones parale-las, calles paralelas, parcelas paralelas y, posteriormente, se formaránortogonalmente más paredes paralelas, techos paralelos a los suelos,más calles paralelas, demarcaciones ortogonales. Un universoperfectamente encasillado dentro de rectángulos y prismas, controlablea tiro de fusil o de metralleta. (p.32-3)

107 A orientação pelos pontos cardeais tem origem, no mundo ocidental, na Grécia,sendo utilizado também pelos romanos. Nas Américas, seu emprego sistemá-tico se deu pelos espanhóis pelas Leis das índias, codificada em 1473 porFelipe II e largamente empregada na formação das cidades hispano-america-nas. Transcrevemos a seguir um trecho que aborda a questão: “As quatro ruasprincipais levam para fora da praça, cada uma a partir do ponto médio decada lado, e duas de cada um dos ângulos. Os quatro ângulos devem estarvoltados para os quatro pontos cardeais, porque assim as ruas que saem dapraça não estarão expostas diretamente aos quatro ventos principais” (apudBenévolo, 1983, p.487).

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O traçado de uma cidade cada vez mais se aproxima de umexercício mecânico de desenho geométrico, a fim de determinarruas e quadras, sendo as últimas também subdivididas geometrica-mente, para a formação dos lotes destinados à venda.

Em Birigüi, ainda se constata, num episódio, a importância daferrovia para esses nascentes núcleos urbanos. Isso se dá quando seresolve construir a estação definitiva, pois o povoado, que primiti-vamente era “chave”, só dispunha de dois vagões fazendo as vezesde estação. Como os técnicos da CEFNOB achavam que a esplanadaera pequena e insegura por causa de sua proximidade da curva,pensavam em construir outra, distante um quilômetro do povoa-do. Porém, como toda vila tinha sido constituída em razão dos“vagões-estação”, tendo o comércio e serviços dispostos ao redor,os políticos locais agiram para efetivar a nova instalação no localoriginal. Finalmente, por inúmeras pressões, a companhia cede eedifica uma nova estação, inaugurada em 12.4.1917,108 no localpretendido pela população.

FIGURA 69 – Vista de Birigüi e sua encosta, em foto produzida pela Companhia“The San Paulo, Land, Lumber & Colonization Company”. Foto de 1914(Ramos & Martins, 1961, p.77).

108 Birigüi, 80 anos. 28 painéis sobre a história da cidade de Birigüi, Museu deRua. Prefeitura de Birigüi, Divisão Municipal de Cultura, painel de número 8.

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A Estação de Araçatuba, quilômetro 281 da CEFNOB, inaugu-rada em 2.12.1908, encontrava-se109 locada à cota 386,20 m acimado nível do mar, próxima ao Córrego Machadinho, porém numadistância tal que permitiu ocupação posterior entre a esplanada eo curso d’água.110 Era instalação de importância, por ser a última

FIGURA 70 – Planta de Birigüi (Reconstituição a partir de plantas antigasfornecidas pela prefeitura).

109 A ferrovia atualmente passa nos arredores da cidade. A configuração da anti-ga área da esplanada já não existe mais, muito embora a estação ainda resista.

110 Nesse local foi criado o Bairro São Joaquim, no ano de 1917 (cf. Juncal,1974, p.31).

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com possibilidade de habitação, pois as demais em direção à divisacom o Mato Grosso, margeando o Tietê, situavam-se em área pa-lustre e a Companhia tinha dificuldades em conseguir até mesmofuncionários dispostos a viverem ali.

Em Araçatuba, também é construído um hotel (Juncal, 1974,p.15) pela CEFNOB, pela necessidade de pernoite, a fim de darprosseguimento de viagem, e também um triângulo de reversãoque possibilitava o retorno das composições para Bauru.111

Talvez, por ser ponto nevrálgico da ferrovia, é destacado paraexecução de seu traçado urbano, pela edilidade de Bauru e talvezsob a influência da Companhia, o engenheiro francês François Char-tier, funcionário da CEFNOB.112

Quase nada pudemos descobrir sobre Chartier, apenas quetrabalhou para a empresa durante a construção da linha, comooutros tantos engenheiros franceses.

Chartier elabora para Araçatuba, na área frontal à esplanada,traçado com influência da tradição francesa, onde, dominando acomposição, encontra-se um ponto focal, no caso uma praça pú-blica, com oito vias raiadas em sua direção. Essa tipologia de tra-çado, cara aos engenheiros-urbanistas do século XIX, longe de sernova, esteve presente anteriormente nos Jardins de Versailhes, noPlan des Artistes para Paris (1793-1797) e especialmente no proje-to de reforma de Haussmann para a capital francesa. A particulari-dade em Araçatuba estava no fato de a praça não ser circular, comogrande parte de suas congêneres européias, mas sim retangular.

Chartier, em seu traçado, tenta adequar à estação preestabele-cida uma praça que dialogasse com esta e a retícula. Mesmo comum desenho relativamente irregular e geometricamente imperfei-to,113 consideramos que Chartier conseguiu seu intento, fazendo

111 Deve-se ter em conta que o trecho mais importante da CEFNOB ia de Baurua Araçatuba, mesmo alguns anos após ter sido inaugurada a ferrovia integral-mente em seus mais de 1.200 quilômetros.

112 François Chartier ainda será o responsável pelo projeto do hotel da CEFNOBem Araçatuba

113 Como já foi visto, o traçado planejado por Chartier foi realinhado por AdolphoHecht em 1914 e, por não haver a planta original, é difícil sabermos se houveinterferência do agrimensor no desenho inicial.

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FIGURA 71 – Place de L’Etoile. Síntese das praças rotatórias francesas (Benévo-lo, 1983, p.600).

que a estação fosse vista num eixo de perspectiva, de forma esconsa,por uma das ruas que desembocam na praça. Ao mesmo tempoque essa via permitia a visualização da estação a partir do futurojardim público, ensejava, em sentido contrário, a “descoberta” desseespaço aos que chegavam.

Aqui também, como o engenheiro Graser em Birigüi, o autorutiliza-se de um artifício, no caso a praça raiada, para desenvolvera partir daí um traçado reticulado que atendesse fielmente aos pon-tos cardeais. Na vizinha povoação, todo o setor frontal à estaçãopresta-se a essa finalidade. Em Araçatuba, a praça parece fazer asvezes de dispositivo de rotação para trazer o arruamento, paralelo

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FIGURA 72 – Esplanada de Araçatuba. Levantamento inicial de 1936 (Setor dePatrimônio da RFFSA. Bauru, SP).

à esplanada, a posição considerada mais salubre, ou seja, direçãoNorte/Sul, Leste/Oeste.

Supomos que o autor não almejava a repetição do motivo urba-nístico em outros pontos do arruamento, mas apenas junto à esta-ção, como forma de marcar o centro urbano. Sua intenção pareceindicar que, a partir daí, deveria desenvolver simplesmente o traça-do em xadrez, sem necessariamente justapô-lo a vias diagonais,como nos planos de Washington, La Plata ou Belo Horizonte, em-bora não se possa descartar a influência de nenhum deles no traça-do de Araçatuba.

Na Zona Noroeste de São Paulo, portanto, prevaleceu o traça-do em xadrez, em que pesem algumas poucas tentativas de inova-ção formal. Serão, em sua maioria, cidades de desenho monótonoe uniforme, sem nenhuma surpresa ou realce especial. A exceçãoficava por conta da ferrovia, da esplanada e da estação, nesse primei-ro momento, o centro da vida local e, como vimos, elemento es-truturador e particular na gênese desses jovens povoados.

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FIGURA 73 – Planta de Araçatuba (Reconstituição a partir de plantas antigasfornecidas pela prefeitura).