Coleção TEOLOGIA E LIBERTAÇÃO · N/5 - Sacramentos, Práxis eFesta - Francisco Taborda N/6 -...

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Coleção TEOLOGIA E LIBERTAÇÃO Tomos publicados: I/3 - A Memória do Povo Cristão - Eduardo Hoornaert I/5 - Opção Pelos Pobres - Clodovis Boff e Jorge Pixley lI/2 - O Deus dos cristãos - Ronaldo Muiíoz lI/3 - Jesus, o libertador - Jon Sobrino lI/ 4 - O Espírito Santo e a libertação - José Comblin lI/5 - A Trindade e a Sociedade - Leonardo Boff IlI/l - Antropologia Cristã - José Comblin IlI/2 - Criação e História - Pedro Trigo IlI/5 - Teologia Moral: Impasses e Alternativas - Antônio Moser e Bemardino Leers IlI/8 - Ética Comunitária - Enrique Dussel IlI/I0 - Escatologia Cristã - J.B. Líbânío e Maria Clara Bingemer N /3 - Os Ministérios na Igreja dos Pobres - Alberto Parra N /5 - Sacramentos, Práxis e Festa - Francisco Taborda N /6 - Sacramentos de Iniciação - Victor Codina e Diego Irarrázaval N /9 - Vida Religiosa: História e Teologia - Victor Codina e Noé Zevallos N /11 - Ensino Social da Igreja - R. Antoncich e J.M. Munarriz N /13 - Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres - Ivone Gebara e Maria Clara L. Bingemer N/H - Ecumenismo e libertação - Júlio de Santa Ana V/3 - Direitos Humanos, Direitos dos Pobres - José Aldunate (Coord.), Leonardo Boff, Joaquín Undurraga, Adolfo Pérez Esquivei, Márcia Miranda, Guido Zuleta e Carlos Ossio V/4 - Teologia da Terra - Marcelo de Barros Souza e José L. Caravias V/5 - A Idolatria do Mercado - Hugo Assmann e Franz J. Hinkelammert VlI/l - O Rosto Índio de Deus - Manoel M. MarzaJ, J. Ricardo Robles, Eugenio Maurer, Xavier Albó e Bartomeu Melià VlI/3 - Catolicismo Popular - José Luís González, Carlos Rodriguez Brandão, Diego IrarrázavaJ VlI/5 - O Maravilhoso: Pastoral e Teologia - José Sometti JON SOBRINO Tomam JESUS, O LIBERTADOR I.A história de Jesus de Nasaré Série II O DEUS QUE LIBERTA SEU POVO Tradução Jaime A. Clasen 2ª Edição + 'vOZES Petrópolis 1996

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Coleção TEOLOGIA E LIBERTAÇÃO

Tomos já publicados:

I/3 - A Memória do Povo Cristão - Eduardo HoornaertI/5 - Opção Pelos Pobres - Clodovis Boff e Jorge PixleylI/2 - O Deus dos cristãos - Ronaldo MuiíozlI/3 - Jesus, o libertador - Jon SobrinolI/ 4 - O Espírito Santo e a libertação - José ComblinlI/5 - A Trindade e a Sociedade - Leonardo BoffIlI/l - Antropologia Cristã - José ComblinIlI/2 - Criação e História - Pedro TrigoIlI/5 - Teologia Moral: Impasses e Alternativas - Antônio Moser e Bemardino

LeersIlI/8 - Ética Comunitária - Enrique DusselIlI/I0 - Escatologia Cristã - J.B. Líbânío e Maria Clara BingemerN/3 - Os Ministérios na Igreja dos Pobres - Alberto ParraN/5 - Sacramentos, Práxis e Festa - Francisco TabordaN/6 - Sacramentos de Iniciação - Victor Codina e Diego IrarrázavalN/9 - Vida Religiosa: História e Teologia - Victor Codina e Noé ZevallosN/11 - Ensino Social da Igreja - R. Antoncich e J.M. MunarrizN/13 - Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres - Ivone Gebara e Maria Clara

L. BingemerN/H - Ecumenismo e libertação - Júlio de Santa AnaV/3 - Direitos Humanos, Direitos dos Pobres - José Aldunate (Coord.),

Leonardo Boff, Joaquín Undurraga, Adolfo Pérez Esquivei, MárciaMiranda, Guido Zuleta e Carlos Ossio

V/4 - Teologia da Terra - Marcelo de Barros Souza e José L. CaraviasV/5 - A Idolatria do Mercado - Hugo Assmann e Franz J. HinkelammertVlI/l - O Rosto Índio de Deus - Manoel M. MarzaJ, J. Ricardo Robles, Eugenio

Maurer, Xavier Albó e Bartomeu MeliàVlI/3 - Catolicismo Popular - José Luís González, Carlos Rodriguez Brandão,

Diego IrarrázavaJVlI/5 - O Maravilhoso: Pastoral e Teologia - José Sometti

JON SOBRINO

Tomam

JESUS, OLIBERTADOR

I. A história de Jesus de Nasaré

Série IIO DEUS QUE LIBERTA SEU POVO

TraduçãoJaime A. Clasen

2ª Edição

+'vOZES

Petrópolis1996

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a vida pessoal adquirirá sentido ou sem-sentido. Desse ponto devista a maior urgência para a fé não é a desmitificaçãÓ de Cristo,como nas teologias progressistas, mas a despadficação de Cristo:que não nos deixe em paz perante a miséria da realidade; e,naturalmente, sua desidoZatrização: que em seu nome a realidadenão possa ser oprimida.

Nisto consiste a diferença de voltar a Jesus na Europa e naAmérica Latina, e J.I. González Faus o formulou desta maneira:"Na Europa o Jesus histórico é objeto de investigação, ao passoque na América Latina é critério de seguimento. Na Europa oestudo do Jesus histórico pretende estabelecer as possibilidadese racionalidade do fato de crer ou não crer. Na América Latina aapelação ao Jesus histórico pretende levar ao dilema de conver-ter-se ou não"." ,

O que foi dito até agora é uma generalização do que podemoschamar de teologia européia progressista em tomo do Vaticano11.Nela, contudo, há também, e cada vez mais, expressões novasdo que significa voltar ao Jesus histórico e para que voltar. J.Moltmann e J.B. Metz insistem conhecidamente num Jesus aquem antes de tudo se deve seguir numa práxis. E. Schillebeeckxconfessa que é :weciso incorporar na cristologia a intuiçãolatino-americana. J.I. González Faus, na última reelaboraçãode sua cristologia, afirma, por um lado, que não basta "seguir oCristo de quem a história diz que viveu na Palestina e morreucrucificado", mas acentua, por outro lado, que sem isso a purafé no ressuscitado "por carecer de um critério de verificação,ameaça transformar-se numa 'idolatria camuflada com palavrascristãs'" .37

4.2. Significado de "o histórico de Jesus" nacristologia latino-americana

A finalidade de voltar a Jesus na cristologia latino-americanajá foi esclarecida. Vejamos agora o que entendemos sistema-

35. J.1. González Faus, Hacer teología y hacerse teología. In: Vários, Vidayreflexi6n. Aportes de Ia teologia de Ia liberaci6n ai pensamiento teolôgico actuaLLima, 1983, p. 79.

36. Befreiungstheologien zwischen Medellín und Puebla. Orientierung, 43(1979): 6-10,17-21.

37. La Hwnanidad nueva, p. 15.

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ticamente, em nossa cristologia, por "Jesus histórico" e em queconsiste sua virtualidade positiva para ser seu ponto de partida.

4.2.1. O mais "histórico" de Jesus: a prática com esptrito

Por "Jesus histórico" entendemos a vida de Jesus de Nazaré, '1 ~suas palavras e atos, sua atividade e sua práxis, suas atitudes e ) v'seu espírito, seu destino de cruz (e de ressurreição). Em outras I 1palavras, e dito sistematicamente, a história ~e Jesus. \ I

Essa história é feita de muitos elementos e por isso é precisose perguntar qual deles é o "mais histórico", o que introduzmelhor na totalidade de Jesus e organiza melhor os diversoselementos dessa totalidade. É isso que vamos tentar fazer a seguirde forma sistemática, insistindo que é uma reconstrução meto-dológico-teórica e que na fé real existencial a reconstrução é feitade maneira pessoal e por isso indeduzível e não programável deantemão.

a) Nossa tese é que o mais histórico do Jesus histórico é sua I \prática e o espírito com que a executou. Por prática entendemos t t.

o conjunto de atividades de Jesus para agir sobre a realidadesocial e transformá-Ia na direção precisa do reino de Deus.Histórico é, então e em primeiro lugar, o que desencadeiahístõría." E essa prática de Jesus, que em seus dias desencadeou}história, é o que chegou até nossos dias como história desenca-deada para ser prosseguida.

O histórico de Jesus não significa, então, dum ponto de vistaformal, aquilo que é simplesmente datável no espaço e no tempo,mas o que nos é transmitido como encargo para continuar a sertransmitido. Isto supõe considerar os textos do NT em geral e dosevangelhos em particular como relatos publicados para manterviva ao longo da história uma realidade desencadeada por Jesus.A essa realidade pertence, depois da ressurreição, a transmissãoda fé em Cristo, mas a partir da intenção do próprio Jesuspertence-lhe mais originalmente a transmissão de sua prática":nas palavras do próprio Jesus, o seguimento, considerado antes

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38. Assim afirma J. Moltmann ao analisar em que sentido é histórica aressurreição de Jesus: Teología de Ia Esperanza. Salamanca, 1968, p. 237.

39. Neste sentido são muito importantes os modernos estudos sobre a socio-logia do "movimento de Jesus". O que Jesus desencadeou diretamente é um"movimento" para fazer presente sua causa. Ver R. Aguirre, Dei movimiento deJesús a Ia lglesia cristiana. Bilbao, 1987.

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de tudo como prosseguimento de sua prática. E desta formatambém a comunidade de horizontes exigida pela hermenêuticaé conseguida no prosseguimento da prática de Jesus, necessária,embora não totalmente suficiente, para compreender o Jesushistórico que a desencadeia.

b) Isto de modo algum anula o mencionado interesse dascristologias progressistas de buscar o sentido da própria vida noJesus histórico. Prática e sentido são duas realidades humanasprimigênias que não podem ser ignoradas, sem destruir o huma-no, nem opostas, pois estão em nível distinto. A pergunta pelosentido é, portanto, primigênia, concomitante a qualquer reali-zação e destino do humano. Por isso, se faz presente tanto naprática do próprio Jesus como na de seus seguidores.

O que queremos acentuar é que a pergunta pelo sentidotambém se faz presente dentro de uma prática e, além disso, emnossa opinião, é dentro dela que se faz presente com maior forçado que em outros lugares. De fato, as perguntas pelo sentido nãodesaparecem mas se tomam mais agudas numa prática como ade Jesus: se a esperança é mais sábia do que a resignação, se oamor humaniza mais do que o egoísmo, dar a própria vida doque guardá-Ia para si, se a utopia verdadeiramente atrai e gerarealidades positivas ou é, definitivamente, escapismo, se o mis-tério de Deus é o último bem-aventurado ou o absurdo.

Na prática pode aparecer inclusive a realidade mais especifi-camente cristã para formular o sentido da vida: a graça. Apráticapode estar acompanhada da hybris humana e assim degenerarem prometeísmo, mas pode ser também o lugar da experiênciamáxima de graça: de nos ter sido dado mãos ''novas'' para fazero bem.

Começar metodologicamente com a prática de Jesus nãosignifica, portanto, ignorar ou depreciar a inevitável proble-mática do sentido com que as cristologias progressistas abordamJesus. Cremos antes que ocorre o contrário: a prática prosseguidade Jesus é o que desencadeia a pergunta pelo sentido e o que apartir de Jesus dá, ou pode dar, resposta.

c) Dizíamos que o mais histórico de Jesus é sua prática, eacrescentamos o espírito com que a realizou e com o qual aimbuiu: honradez para com a realidade, parcialidade para como pequeno, misericórdia fundante, fidelidade ao mistério deDeus ... Esse espírito é, por um lado, o modo de ser de Jesus, o

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que lhe foi dado de antemão, se se preferir, mas está tambémintrinsecamente relacionado com sua prática.

Por um lado, esse espírito tomou-se concreto e por isso realatravés de uma prática, pois dentro dela, e não em sua purainterioridade, Jesus foi questionado e potenciado. Por outro lado,esse espírito não foi só acompanhante necessário de sua prática,mas também a modelou, deu-lhe uma direção e inclusive apotenciou em sua eficácia histórica.

Cremos que acrescentar o espírito de Jesus a sua prática é [Iuma relativa novidade que foi exigida pela experiência latino-americana pois, longe de se oporem as duas coisas, podemcomplementar-se muito positivamente, e sua complementação \ajuda a não cair no puro espiritualismo, por um lado, ou no puroativismo, por outro."

d) Determinar o mais histórico de Jesus como sendo a suaprática com espírito é no fundo uma opção, embora haja concep-ções filosóficas que possam apoiá-Ia. A verificação dessa opçãoconsiste, em última instância, em ver se, ao realizá-Ia, introduzmelhor na realidade total de Jesus. Mas, embora opção, é tam-bém verossímil a partir da América Latina.

Sem cair em ingenuidades, é certo o que L. Boff afirma: aAmérica Latina oferece um "isomorfismo estrutural de situaçõesentre o tempo de Jesus e o nosso: opressão e dependênciaobjetivas, vividas subjetivamente como contrárias ao desígnio deDeus",41 e por isso o Jesus histórico é o ponto de partida maisrazoável. Mas entre as razões que dá para isso - que é o que nosinteressa acentuar agora - uma é capital. "O Jesus históricodestaca o principal da fé cristológica: o seguimento de sua vidae de sua causa. Neste seguimento de Jesus aparece a verdade deJesus, uma verdade em primeiro lugar na medida em que capa-cita a transformar este mundo pecador em reino de Deus".42

40. Iluminou-me muito, pessoalmente, a formulação de I. Ellacuría "pobrescom espírito" para relacionar a realidade material com a realidade do espírito.Insistiu, para definir teologicamente o pobre, na materialidade dos pobres e naprática contra a pobreza, mas acrescentou a necessidade de se fazer tudo isso "comespírito".

41. Op. cit., p.25. Este isomorfismo não deve ser entendido a partir de seusdetalhes nem nas explicações comparadas da realidade social, como às vezesalguns pedem, mas em sua globalidade. Cremos que basta apontar - pelo menospara compreender a atuação de Jesus - para a situação de opressão em que estáem jogo a vida e a morte das maiorias.

42. Ibid., p. 25-26.

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Cremos, portanto, que é possível e mais adequado começarmetodologicamente com "a prática com espírito" de Jesus, nãoem sentido redutivo para permanecer nela, mas por seu potencialmistagógico de introduzir melhor na totalidade de Jesus do quequalquer outra de suas realidades.

4.2.2. Da prática de Jesus à "pessoa" de Jesus

A esta maneira de propor se poderia objetar que por trás daprática de Jesus desaparece sua ''pessoa'', de modo que se estariareproduzindo, em outro nível, um grave erro: assim como sereduziu Cristo a uma idéia - contra a qual lutou com razão acristologia personalista -, agora seria reduzido a um símbolopráxico. A objeção é séria, mas não faz justiça à realidade.

a) Antes de tudo, na realidade da fé vivida, a maioria doscristãos latino-americanos que prosseguem a prática de Jesus -embora sempre haja exceções - não abandonam sua fé na pessoade Jesus, mas freqüentemente acontece exatamente o contrário:prosseguir a prática de Jesus é o que os faz aprofundar sua fé emJesus e, em casos de crise de fé, é inclusive o que pode reconcí-líá-los com Jesus. Mas isso ocorre, também, na teoria cristológica.

Um modo de responder à objeção é lembrar que a prática deque se fala não é uma prática indiferenciada, mas que temdeterminados conteúdos, uma direção e um espírito que são

...~itos por princípio porque são os de Jesus. A teologia latino-americana insiste, por um lado, que se trata de pro-seguímentode Jesus, não de imitação, e que, por isso, são absolutamentenecessárias as mediações, e J.1. Segundo repete que o que nosoferece a revelação é "aprender a aprender". No entanto, oremontar-se à prática de Jesus é feito sob o pressuposto de quenessa prática há algo essencial de norma normans, non normata(norma normante não normada por nenhuma outra coisa). Queisso é essencial, é o que é preciso analisar, mas o pressuposto éclaro: é preciso remontar à prática de Jesus eporque é a de Jesus.

Que a prática tenha como conteúdo fundamental a libertaçãoI dos oprimidos, que sua modalidade consista no abaixamento até

eles, na solidariedade para com eles e em carregar o pecado queos destrói; que sua direção seja o reino de Deus, imbuído este doespírito das bem-aventuranças, é algo que - em princípio, de umaforma ou de outra - pode estar presente em outros modos atuaisde propor o que deve ser a prática libertadora, embora não

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necessariamente. Mas se forem aceitos porque assim foi a prática}de Jesus, então se recupera, de direito, a "pessoa" de Jesus.

Neste sentido a cristologia latino-americana não se detém naprática de Jesus, como sugeriram algumas leituras materialistasdas narrações evangélicas.P mas avança em direção a sua pessoa.Ou, parafraseando a famosa sentença de W. Marxen - die SacheJesu geht weiter (a coisa ou causa de Jesus segue adiante) - acristologia latino-americana pretende que realmente a causa deJesus siga adiante, mas está igualmente interessada no "Jesus"cuja causa é preciso prosseguir. E isso, tanto porque está interes-sada no Jesus total, como porque, inclusive para que a "causa"de Jesus siga adiante, é muito importante recuperar a ''pessoa''de Jesus.

b) Esclarecido isto, pensamos que a prática de Jesus é o quemelhor permite compreender e organizar a totalidade de seuselementos: os fatos de sua vida, sua doutrina, suas atitudesinternas, seu destino e, o mais importante, sua pessoa. Anali-saremos isso depois detalhadamente, mas o vejamos sucintamen-te.

Não há dúvida que através de sua prática se conhece melhoro que Jesus entendia por reino de Deus e por anti-reíno, que suaprática explica melhor do que qualquer outra coisa seu destinohistórico de cruz, e inclusive o que ajuda a compreender seudestino transcendente - uma vez aceito na fé -, sua ressurreiçãocomo justiça de Deus para com ele. É também sua prática quefaz conjecturar a interioridade de sua pessoa, sua esperança, suafé, sua relação com Deus. Não se afirma com isto que da análisede sua prática possa ser deduzido mecanicamente qual foi aexperiência pessoal que Jesus tinha de Deus e, em alguns casos,- por exemplo, a novidade de chamar Deus de "Pai" - se nãohouvesse alguns dados independentes dificilmente poderiam serdeduzidos de sua prática. Mas os dados existentes são iluminadose potenciados a partir de sua prática, e esta os toma coerentes.Numa palavra, cremos que se chega melhor ao interior de Jesus(a historicidade de sua subjetividade) a partir do externo de suaprática (seu fazer história) do que ao contrário.

43. F. Belo, Leaura materialista del Evangelio de Marcos. Estella, 1975; M.Clevenot, Lectura materialista de Ia Biblia. Salamanca, 1978, p. 109-212. O que acristologia latino-americana aprecia nestes estudos é que apresentam a vida deJesus como relato de uma prática, mas, para além deles, esta cristologia insiste emnão pôr entre parêntesis o Jesus "praticante", que poderia desaparecer por trásde sua prática.

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Para esclarecer este ponto talvez valha a pena fazer a contra-prova. As cristologias que começam metodologicamente com a"pessoa" de Jesus, suas atitudes internas, sua relação com o Pai,recuperam com maior dificuldade e menor radicalidade dadoscentrais das narrativas evangélicas: o reino de Deus, a parciali-dade para com os pobres, a prática profética e conflitiva, oseguimento, a cruz como destino histórico ... Ao contrário, as quecomeçam com a prática do reino de Deus e a tomam centralvalorizam todos estes fatos, não descuidam - ou não têm por quedescuidar - da realidade pessoal de Jesus e potenciam esta apartir daquela. Dizendo numa palavra, costuma ser mais fácil nascristologias levar a sério o "Pai" como correlato pessoal últimode Jesus, se levaram a sério o "Deus do reino", do que aocontrário.

4.2.3. Do Jesus histárico ao Cristo total

Através da apresentação do Jesus histórico e do mais históricode Jesus, a cristologia latino-americana busca o acesso pessoal aJesus. Faz isso não apresentando em primeiro lugar conheci-mentos sobre ele para que o homem decida o que fazer e comose relacionar com esse Jesus assim conhecido, mas apresentandosua prática para re-criá-Ia e assim chegar até Jesus.

Ter acesso a Jesus supõe sempre algum tipo de descon-tinuidade, mas o pressuposto de propor o problema em si é queesse acesso só é possível em último termo também a partir dealguma forma de continuidade entre Jesus e os que o conhecem;e essa continuidade deverá ser enfocada a partir do lugar damáxima densidade da realidade, que no nosso modo de ver é aprática com espírito. Segundo isto, aproximar-se de Jesus não équestão em primeiro lugar de saber sobre ele, e desenvolver paraisso uma hermenêutica que vença a distância entre Jesus e nóse possibilite o saber sobre Jesus. Trata-se, em último termo, deafinidade e conaturalidade, começando com aquilo que é maisreal em Jesus.

Esse modo de se aproximar do Jesus histórico é, também, omodo logicamente mais adequado de ter acesso ao Cristo da fé.No mero fato de reproduzir com ultimidade a prática de Jesus esua própria historicidade, por ser de Jesus - e muito mais se aprópria vida está empenhada nisso -, está sendo aceita umanormatividade última em Jesus e nisso ele está sendo declaradocomo algo realmente último; já está sendo declarado, mesmo que

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implicitamente, como o Cristo, embora depois esta confissãodeva ser explicitada.

Há certamente uma descontinuidade em declará-lo o Cristo,um salto da fé que não pode ser obrigado mecanicamente pornada, nem sequer pela continuidade que o seguimento expressa.Mas esta continuidade é necessária para que a descontinuidadeda fé seja cristã e não arbitrária, para que se saiba em que Cristose está crendo ou deixando de crer. E que na fé se confessa oCristo como o Senhor ressuscitado e o Filho por antonomásia(descontinuidade), mas é essencial para a fé confessá-lo tambémcomo o primogênito da ressurreição entre muitos irmãos e comoo irmão maior (continuidade).

O seguimento da prática de Jesus com seu espírito é, portan-to, exigência ética do próprio Jesus histórico, mas é tambémprincípio epistemológico. Se antes dizíamos que o conhecimentode uma realidade-limite precisa de conhecimentos de realidadesobjetivas prévias, dizemos agora que a realização pessoal da fénessa realidade-limite necessita de alguma prévia afinidade ex-perimental subjetiva. No caso da fé em Cristo, a necessáriarealidade objetiva prévia é a realidade do Jesus histórico e aexperiência subjetiva prévia é seu seguimento.

Para dizer numa formulação negativa, fora do seguimentonão se tem a afinidade suficiente com o objeto de fé para saberde que se está falando ao confessá-lo como o Cristo. E emformulação positiva, a partir da afinidade do seguimento podeter sentido proclamã-Io como o Cristo, como a revelação doverdadeiramente divino e do verdadeiramente humano. Na lin-guagem do NT, o desígnio de Deus é que cheguemos a ser "filhosno Filho", mas se seu desígnio é esse, é porque é possível, e, se épossível, então no tomar-se filhos se está em afinidade com oFilho e se pode conhecê-lo.

4.2.4. o seguimento como mistagogia

Resumindo o que foi dito nesta seção, partindo do Jesushistórico e do mais histórico de Jesus, a cristologia latino-ameri-cana pretende ser cristologia estrita. A nível de método - emborana fé real dos crentes e do teólogo esteja dado desde o princípioalgum tipo de totalidade de fé em Cristo - considera que ocaminho lógico da cristologia não é outro senão o cronológico.E este aparece da seguinte forma no NT: 1) a missão de Jesus aserviço do reino, quer dizer, sua prática e a exigência de realizá-

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Ia; 2) a pergunta pela pessoa de Jesus; 3) a confissão de suarealidade irrepetível e salvffica, a fé em Cristo.

Vinte séculos depois, por assim dizer, nos foi comunicada atotalidade do processo acabado da cristologia. Por isso, o pontode partida real é sempre, de alguma forma, a fé total em Cristo,mas o ponto de partida metodol6gico continua sendo o Jesushistórico. Ele é - objetivamente - a melhor mistagogia para oCristo da fé, e a afinidade que se obtém na prática do seguimentoé - subjetivamente - a melhor mistagogia para se aproximar deJesus e, assim, do Cristo.

5. AVOLTAA JESUS NO NOVO TESTAMENTO

A cristologia latino-americana volta a Jesus de Nazaré e seuseguimento, e isso ocorreu periodicamente sempre que a fé cristãpassou por sérias crises de identidade. Francisco de Assis, reno-vador radical, não teve nenhuma intenção de originalidade, mastentou somente voltar a "seguir a doutrina e as pegadas deCristo". L. Boff o chama ''Repetitor Chrístí"." Inácío de Loyola,na segunda semana de seus exercícios espirituais, pede somente"conhecimento interno do Senhor para mais amá-lo e segui-lo".D. Bonhoeffer lembra programaticamente que "segue-me" é aprimeira e a última palavra a Pedr04S

• Em linguagem existencialse fala aqui de seguimento de Jesus, mas essa é a forma maisradical de voltar a Jesus." O que queremos acentuar é que essavolta a Jesus, e por esta razão, já começou no NT.

5.1. Os escritos do NT(exceto os evangelhos)

Os escritos do NT oferecem uma variedade de cristologias,mas antes de tudo "são obras mistagógicas que pretendem incidirdireta e profundamente na fé e na vida dos destinatários". 47 Por

44. Op. cit., p. 539s.45. EIprecio dela grada. Salamanca, 1968, p. 20-21.46. Como sempre, a espiritualidade precedeu a teologia, também na atuali-

dade. Assim, é notável que as obras coletivas provenientes da Alemanha, depoisdo Vaticano II, Mysterium Salutis, Sacramentum Mund~ Conceitos Fundamentaisde Teologia, por outro lado muito meritórias, não levem a sério o seguimento deJesus em suas cristologias.

47. J.O. Tufií, Jesús de Nazaret, critério de identidad cristiana en el NuevoTestamento. Todos ImO, 82 (1985): 12. Nossas reflexões se baseiam no que o autordiz programaticamente neste artigo e nos outros dedicados ao mesmo tema naCarta aos Hebreus, e nos escritos de João e de Paulo.

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isso, mesmo depois de já existir a fé em Cristo e cristologias maisou menos elaboradas, as comunidades cristãs voltam a Jesus. Osevangelhos fazem isso, mas "também é importante e foi menossublinhado b esp~o que outros documentos neotestamentáriosdedicam a J~sus". E este fato deve ser grandemente valorizadoem si rnesrho, pois mostra que a recuperação de Jesus nãodepende desta ou daquela vontade mas parece ser uma necessi-dade objetiva da vida cristã desde o princípio. Vejamos.

A Carta aos Hebreus" insiste que Jesus já está glorificado, éo Cristo. Contudo, menciona repetidamente "Jesus" - dez vezese sempre relacionado com o sofrimento, o sangue, a cruz e amorte - sendo que o nome "Jesus" não é intercambiável com"Cristo". Dá importantes dados descritivos deste Jesus. Saiu datribo de Judá (7,14), iniciou a pregação da salvação (2,3), teveouvintes que transmitiram sua pregação (2,3), foi fiel e obedientea Deus (3,2; 10,5-9), aprendeu a obedecer através do sofrimento(2,10; 5,8), teve opositores (12,3), foi tentado sem cair no pecado(2,18; 4,15), orou suplicando a Deus com lágrimas e grandesclamores (5,7-10), morreu na cruz (12,2) fora da cidade (12,12),subiu e foi elevado à direita de Deus (8,1; 13,20; 10,12) e existea convicção de que voltará (9,28; cf. 10,25). Além disso, a Cartaapresenta Jesus não só como humano, mas também como irmão,em tudo semelhante aos irmãos (2,17) menos no pecado (4,15).E resume sua verdadeira humanidade em sua misericórdia paracom os fracos e sua fidelidade a Deus (2,17).

Há aqui, portanto, uma recuperação de Jesus. O autor "o põediante do olhar atônito do leitor com traços realistas e, até certoponto, escandalosos"." E o importante é saber por quê. Jesus éimportante porque sua solidariedade para com os irmãos é quegarante a salvação no presente, apesar de a comunidade suspirarpor uma salvação que tinha origem de cima, uma salvação"angélíca?". É importante, também, porque seu sacerdócio - noqual o próprio Jesus é a vítima - é o único eficaz, diante de uma

48. Ibid., p. 13.49. J.O. Tuiií, "Jesús" en Ia Carta aios Hebreos. RLT, 9 (1986): 283-302.50. J.O. Tuiií, Jesús de Nazaret ..., p. 16s.51. Segundo A.Vanhoye (LeChrist est notre prêtre, Paris, 1969), um eco disto

poderia ser encontrado em Cl2,18: "Que ninguém vos prive d'Ele preferindo asmortificações e o culto dos anjos", culto que consistiria na observação de festas,luas novas ou sábados (Cl2,16) e em observâncias rituais de comidas e bebidas(CI2, 18), que devia ser atraente por ser "uma sedutora mistura de falso misticismoe formalismo religioso", ibid., p. 19.

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