Clóvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas...

download Clóvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebeliões Da Senzala e Brancos e Negros Em São Paulo

of 50

Transcript of Clóvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas...

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    1/50

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO - ESCOLA DE FILOSOFIA,LETRAS E CIENCIAS HUMANAS

    DIEGO RICARDO PACHECO

    Clvis Moura e Florestan Fernandes: O protesto escravo na derrocada dosistema escravista nas obrasRebelies da senzalaeBrancos e negros em

    So Paulo

    Guarulhos2015

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    2/50

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO - ESCOLA DE FILOSOFIA,

    LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DIEGO RICARDO PACHECO

    Clvis Moura e Florestan Fernandes: O protesto escravo na derrocada dosistema escravista nas obrasRebelies da senzalaeBrancos e negros em

    So Paulo

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado Universidade Federal de So Paulo comorequisito parcial para obteno do grau emBacharel e Licenciado em Cincias Sociais.

    Orientador: Prof. Dr. Diego Ambrosini

    Guarulhos2015

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    3/50

    PACHECO, Diego Ricardo.Clvis Moura e Florestan Fernandes: O protesto escravo na derrocada dosistema escravista nas obrasRebelies da senzalaeBrancos e negros emSo Paulo / Diego Ricardo PachecoGuarulhos, 2015.

    42 f.

    Trabalho de Concluso de Curso (Graduao em Cincias Sociais) Universidade Federal de So Paulo, Escola de Filosofia, Letras eCincias Humanas, 2015.

    I. Orientador. Prof. Dr. Diego Ambrosini

    1. Escravido 2. Trabalho Livre 3. Protesto escravo

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    4/50

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO - ESCOLA DE FILOSOFIA,LETRAS E CIENCIAS HUMANAS

    DIEGO RICARDO PACHECO

    Clvis Moura e Florestan Fernandes: O protesto escravo na derrocada dosistema escravista nas obrasRebelies da senzalaeBrancos e negros em

    So Paulo

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado Universidade Federal de So Paulo comorequisito parcial para obteno do grau em

    Bacharel e Licenciado em Cincias Sociais

    Aprovado em:

    Prof. Dr. Diego AmbrosiniUniversidade Federal de So Paulo

    Prof. Dr. Lindomar AlbuquerqueUniversidade Federal de So Paulo

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    5/50

    Agradecimentos

    Cada uma dessas pessoas foi mais que fundamental, guardadas suas devidas

    particularidades, para que eu chegasse at este momento de concluso de uma etapaimportante em meu caminho. Como no disponho de espao para contextualizar a

    importncia de cada pessoa neste momento, vo seguidos os nomes, um a um, de

    amigos e pessoas que mesmo sem perceber foram imprescindveis para a realizao

    deste trabalho. Para vocs, meu muito obrigado.

    Mariane Mammana, Henrique Fernandes, Rapha Bento, Eudsmar, Jhonatas

    (Jhow), Willian, Andr Matos, Flvio Cerqueira, Leonardo Bruno da Silva, Bruno

    Assis, Eddie Motta, Dhiego Carreira, Tain Freitas, Leiriane dos Santos, Magaly

    Mammana, Bruno Mikito, Glaydson, Leandro Lima, Evandro, Luco, Bruna Menezes,

    Gielison, Rafa Teodoro, David da Silva, Lucio Lemos, Adriano Nascimento, Flvio

    Lula, Juli Ribeiro, Chico Werton, Ozzy Santos, Norma Barros, Caio Fernando, Leandro

    Nascimento, Diogo (Fenmeno), Fernando Cerqueira, Michel, Dani Regina, Eto dos

    Santos, Smia, Marcio Farias, Thas Medeiros, Andrs Sanches, Orlando Jay, Bruno

    Padalko, Guilherme Stonner, Eduardo Dodz, Scrates, Aninha, Rbia, Silvo, Cau,

    Carolina Couto, Emerson, Jefferson`s, Guilherme Leste, Aline Fernanda, Marcio e Cris,

    Thatiane, Gabi Mojito, Amanda Signori, Kayene, Dani, Assis, Tiago Marley, Rodrigo

    Nascimento, Ariane Pires, Pri Herrera, Eliete Violla, Wembley, Guin Silva, Douglas

    Macedo, Marco Sincero, Felipe Feitosa, Prof. Dr. Diego Ambrosini, Prof. Dr.

    Lindomar Albuquerque, Prof. Dr. Paulo Peres, Prof. Dr. Antnio Srgio, Prof. Dra.

    Marcia Consolim, Prof. Dr. Rufino, Prof. Dr. Marcos Cezar.

    Em especial, dedico para minha me, Maria de Lourdes da Silva. E dedicotambm ao meu pai, Ricardo Pacheco.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    6/50

    Deus fez os ces da rua pra morder vocs,

    Que sob a luz da lua, os tratam como gente - Claro! - aos pontaps(Belchior)

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    7/50

    Resumo

    O pensamento dos socilogos Clvis Moura (1925-2003) e Florestan Fernandes

    (1920-1995) contribuiu de maneira critica para o debate a respeito do negro naformao social brasileira. Suas obras influenciaram os debates dentro e fora da

    academia na segunda metade do sculo XX no Brasil, fazendo com que esses autores,

    com maior ou menor intensidade, sejam dois divisores de guas para a compreenso dos

    dilemas raciais brasileiros. A partir do estudo comparativo, cabe ao presente trabalho

    investigar qual a importncia atribuda pelos autores ao politica dos escravos no

    desgaste e consequente desmoronamento do sistema escravista no Brasil.

    Palavras-chave:Escravido. Trabalho Livre. Protesto escravo.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    8/50

    ndice

    INTRODUO___________________________________________________________________1

    TEMA__________________________________________________________________________6METODOLOGIA_________________________________________________________________9

    CAPITULO I____________________________________________________________________12

    I.I SCULO XIX: DERROCADA DO SISTEMA ESCRAVISTA NO BRASIL__________________12

    CAPITULO II___________________________________________________________________22

    I.I CLVIS MOURA ENCONTRA FLORESTAN FERNANDES: INTERPRETAES DOPROTESTO ESCRAVO EM FINS DO SCULOXIX____________________________________________________________________________22

    CONSIDERAES FINAIS________________________________________________________39

    BIBLIOGRAFIA_________________________________________________________________41

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    9/50

    1

    Introduo

    Pensar o Brasil pensar o negro1brasileiro. Ou seja, pensar um Brasil negro.

    Todos aqueles que se voltaram histria brasileira com a finalidade de contribuir para odebate de sua formao e desenvolvimento, tiveram que necessariamente atentar-se s

    contribuies dadas pelo povo negro em solo nacional2. Porm, observamos que nem

    sempre esse resgate histrico foi feito com o intuito de consagrar ao negro

    contribuio relevante na formao brasileira. Quando muito, sua contribuio resulta

    em esforos cultura (msica, dana, comida etc.), fazendo com que o problema da

    integrao do negro ao regime de trabalho escravo no Brasil seja visto como um

    problema de aculturao3. Destarte, a dinmica das condies do negro sendo posto em

    relao direta com o modo de produo escravista substituda pela sua

    inadaptabilidade vindo da frica e sendo inserido nos padres organizacionais

    europeus, manifestando-se em choques culturais. Ou seja, um problema de no

    adaptao do negro africano cultura do colonizador europeu. Isso observvel na

    1Tanto Clvis Moura, quanto Florestan Fernandes no divergiram na caracterizao do que entenderampor ser o negrono Brasil, que de uma forma mais geral, seria aquele estrangeiro (africano) ou nacionale os seus descendentes. No seu Dicionrio da Escravido Negra no Brasil,Clvis Moura nos diz, Noincio da colonizao, o termo negro no servia para designar africanos, conforme documentao da

    poca, mas para denominar o indgena. Muitos historiadores confundiram o significado do vocbulo naforma como era aplicado, tomando o termo como designativo de africano. Pelo menos em So Paulo, nosprimeiros anos de colonizao, para designar um negro usava-se o termo tapanhumo ou pea-de-guin.Quando queriam designar o negro para diferenci-lo do ndio, chamavam-no, tambm, de gentio daGuin e aos ndios, gentios da terra. Os jesutas ao se referirem populao da Colnia, sempre

    usavam o termo negro como sinnimo de ndio. Padre Manoel da Nobrega, em carta datada de 1549,pouco depois, portanto, da chegada dos primeiros grupos africanos no Brasil, j escrevia: e uns casamcom algumas mulheres, se acham outros com as mesmas negras e outros pedem tempo para vender asnegras. O mesmo autor afirma depois: e desta maneira que fazem pares com os negros para lhe

    trazerem a vender o que tem e por engano enchem os navios deles e fogem com eles; e alguns dizem queo podem fazer por os negros j terem feito mal aos cristos. Nos inventrios e testamentos do primeiro

    sculo da colonizao, faz-se invariavelmente, a distino entre o negro e o ndio, designando-se a suaorigem, isto , se da terra ou da Guin (africano). (MOURA, 2013, p, 288). Para Florestan Fernandes,

    tambm fica claro nesta passagem que veremos que o negro, para o autor, aquele africano trazido paraexercer o trabalho compulsrio (tornando-se escravo) no Brasil. Nas palavras de Florestan, A histria donegro em So Paulo se confunde, durante um largo perodo de tempo, com a prpria histria da economia

    paulista. Os africanos, transplantados como escravos para a Amrica, viram a sua vida e o seu destinoassociar-se a um terrvel sistema de explorao do homem pelo homem, em que no contavam senocomo e enquanto instrumentos de trabalho e capital. Em So Paulo, essa regra no sofreu exceo.(FERNANDES, 2008, p, 27).

    2 Dentre diversos autores, podemos citar, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Carneiro, Abdias doNascimento, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Luiz Luna, e os autores aqui estudados, Clvis Moura eFlorestan Fernandes.

    3Mudanas sociais que se ocasionam quando so colocados em relaes grupos culturalmente distintos,

    resultando em elementos culturais caractersticos de ambos os grupos. Neste caso particular queestudamos, o aculturado seria aquele negro escravo que j teria assimilado a lngua, os hbitos e oscostumes dos senhores, e comportava-se como adaptado ao sistema social vigente, a escravido.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    10/50

    2

    predominncia das interpretaes que proliferaram na primeira metade do sculo XX

    que contemplavam o arcabouo apenas do sincretismo das religies, da lngua e at dos

    quilombos (vistos apenas como movimento de retorno organizao social africana).

    Esse pensamento se desdobrar e ser o suporte de uma das mais eficazes ideologias das

    relaes raciais no Brasil: a democracia racial.

    A expresso democracia racial, embora tenha sido vulgarmente assimilada

    figura do antroplogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) no encontrada em

    sua obra. Na verdade, ela s vem aparecer tardiamente na literatura sobre as relaes

    raciais no Brasil, mais especificamente na dcada de 19504. Nesse autor, encontraremos

    uma referncia similar, quando de um ciclo de palestras em que participa em Indiana,

    Estados Unidos.

    ... o seu sistema excessivamente paternalista e mesmo

    autocrtico de educar os ndios desenvolveu-se s vezes em oposio

    s primeiras tendncias esboadas no Brasil no sentido de uma

    democracia tnica e social(FREYRE apud GUIMARES, 2001, p,

    148).

    Mas a ideia de uma democracia tnica no Brasil, em que a cor no seria umempecilho ao acesso s oportunidades e riquezas produzidas, j povoava o imaginrio

    dos pases europeus e americanos a muito tempo antes dessas ideias ganharem espao

    no debate acadmico e poltico nacional. Podemos perceber isso em uma interveno

    feita pelo abolicionista Frederic Douglas em uma palestra em 1858, como apresenta o

    professor Antnio Srgio Alfredo Guimares:

    Mesmo um pas catlico como o Brasil um pas que ns, em

    nosso orgulho, estigmatizamos como semibrbaro no trata

    as suas pessoas de cor, livres ou escravas, do modo injusto,

    brbaro e escandaloso como ns tratamos. [...] A Amrica

    democrtica e protestante faria bem em aprender a lio de

    justia e liberdade vinda do Brasil catlico e desptico.

    (GUIMARES, 2001, p, 149).

    4Ver, por exemplo, o livro do antroplogo norte-americano Charles Wagley, Race and class in ruralBrazilde 1952.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    11/50

    3

    De fato, esse debate ganhar maior repercusso no Brasil com o surgimento e

    vulgarizao da ideia de cultura, que contrapondo-se s concepes de raa, nega o

    carcter irreversvel da inferioridade moral e psicolgica do negro, como essa ltima

    apregoava. Ainda distante de representar uma melhoria na situao do negro no Brasil,

    ser uma maneira eficiente de incorporar essa parcela da populao ao plano econmico

    e principalmente ideolgico brasileiro.

    Aps o ano de 1945 e com o fim da ditadura varguista, abre-se o perodo

    democrtico no Brasil. o momento em que teremos o avano do debate politico sobre

    os rumos da democracia no pas, seja ela econmica, social, politica e tambm racial

    (essa ltima na ordem do dia das pautas dos movimentos negros da poca). No

    podemos perder de vista que a ideia de uma democracia racialno pas vai tambm de

    encontro a demonstrar o avesso dos conflitos raciais que se reproduziam nos Estados

    Unidos. Somente com o projeto da UNESCO sobre as relaes raciais no Brasil que

    durou entre 1952/55 (e que buscava encontrar em solo nacional os elementos de uma

    convivncia tnica no conflituosa) que o debate sobre a existncia de uma democracia

    racial no pas ganha maior visibilidade. O socilogo Clvis Moura (1925-2003) refere-

    se a esse debate da seguinte maneira:

    Esses estudiosos, verdadeiros qumicos antropolgicos,

    sociolgicos e historiadores analisavam os movimentos sociais

    dos escravos negros como se eles no estivessem engastados em

    um modo de produo, mas se limitassem soma ou subtrao

    de traos culturais africanos e ocidentais, para ver-se se esses

    movimentos antiaculturativos eram uma rejeio completa aos

    padres culturais ocidentais ou podiam ser compreendidos

    atravs dos conceitos de sincretismo, aculturao ou

    assimilao (MOURA, 1988, p, 10).

    Esse esforo voltado para a participao do negro na formao social brasileira

    enquanto contribuinte da cultura nacional nos revela importante passo dado na quebra

    dos paradigmas de um debate que tinha por principio elidir qualquer que seja a

    contribuio do negro na formao nacional. Lembremos que o projeto politico

    brasileiro do fim do sculo XIX, o branqueamento, tinha por pressuposto o

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    12/50

    4

    desaparecimento gradativo do negro no seio da sociedade brasileira atravs da

    miscigenao.

    A tese do branqueamento baseava-se na presuno da

    superioridade branca, s vezes, pelo uso dos eufemismos

    raas mais adiantadas e menos adiantadas e pelo fato

    de ficar em aberto a questo de ser a inferioridade inata.

    suposio inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro a

    populao negra diminua progressivamente em relao

    branca por motivos que incluam a suposta taxa de

    natalidade mais baixa, a maior incidncia de doenas, e a

    desorganizao social. Segundo a miscigenao

    produzia naturalmente uma populao mais clara, em

    parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros

    do que elas. (A imigrao branca reforaria a resultante

    predominncia branca.) (SKIDMORE, 1976, p, 81).

    Por outro lado, essa interpretao da integrao do negro sendo feita, como j

    foi dito, predominantemente pela via cultural, sem uma verdadeira integrao

    econmica, social e politica, deita um vu sobre as contradies fundamentais do

    sistema escravista (as relaes antagnicas entre a fora de trabalho escrava ante os

    detentores dos meios de produo colonial), culminando em um entendimento do papel

    do negro na formao nacional em que seus esforos so voltados, por todo o perodo

    colonial e persistindo no ps - abolio, aos elementos de sincretismo5na formao da

    cultura brasileira. Esta passagem bastante elucidativa da antroploga Lilian Schwarcz

    (1957-) no deixar dvidas sobre o ponto abordado:

    O cadinho das raasaparecia como uma verso atualizada do

    mito das trs raas, mais evidente aqui do que em qualquer

    outro lugar. Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro,

    traz na alma quando no na alma e no corpo, a sombra, ou pelo

    menos a pinta, do indgena e ou do negro, afirmava Freyre,

    5Sincretismo a fuso de diferentes elementos culturais que acaba por resultar em um fenmeno diversode ambos. Nesse caso, o sincretismo vem ressaltar a ideia da miscigenao na formao do Brasil.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    13/50

    5

    fazendo da mestiagem uma questo de ordem geral. Freyre

    mantinha intocados em sua obra, porm, os conceitos de

    superioridade e de inferioridade, assim como no deixava de

    descrever e por vezes glamourizar a violncia e o sadismo

    presentes durante o perodo escravista. Senhores severos mas

    paternais, ao lado de escravos fiis, pareciam simbolizar uma

    espcie de boa escravido, que mais servia para se contrapor

    realidade norte-americana. (SCHWARCZ, 2010, p, 12).

    O grande problema evidenciado nessa interpretao, a nosso ver, o de que o

    negro incorporado como agente da formao nacional como sujeito pr -politico, no

    sentido em que toda a complexidade de sua dinmica enquanto sujeito que faz a histriaa partir de sua insero nos modos de produo colonial, sua organizao para lidar com

    a violncia inerente ao sistema de produo vigente, suas tticas de resistncias diversas

    e outras variadas formas de construo de um novo meio politico e social em que

    pudesse gozar de melhor situao frente sua condio de escravo, abandonada. Isto ,

    as formas as quais disps para a construo de um novo projeto politico e social, sua

    contribuio na derrocada do sistema escravista para a passagem ao capitalismo (mesmo

    que essa transio possa no o ter beneficiado de fato) e consequente desenvolvimento

    nacional, haja vista a condio extrema de degradao do trabalho no qual encontrava-

    se, no levado a status de elemento dinmico quando retornamos, pela via dos autores

    culturalistas (em seu sentido pejorativo) histria brasileira.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    14/50

    6

    Tema

    Portanto, pretendemos analisar a partir de debate bibliogrfico as obras

    Rebelies da SenzalaeBrancos e negros em So Paulo, respectivamente dos socilogosClvis Moura e Florestan Fernandes/Roger Bastide. Nosso objetivo ser buscar qual a

    compreenso que esses autores possuem, e at que ponto consideram a participao do

    negro em sua ao politica individual ou coletiva, importante derrocada do sistema

    escravista no Brasil. Seriam as revoltas e rebelies escravas aes politicas

    fundamentais para a dissoluo do trabalho escravo? Essa a questo fundamental a

    qual permear nosso trabalho. Desta forma, acreditamos contribuir de alguma maneira

    para o debate sobre a participao do negro na formao nacional, tendo em vista, acontribuio proporcionada pelos autores.

    Outras questes que inevitavelmente surgiro ao longo do trabalho e que por

    hora nos inquietam, so: as diversas formas de resistncia negra no perodo escravocrata

    no Brasil podem ser consideradas protestos contra o regime escravista do ponto de vista

    estrutural? Ou suas manifestaes seriam contra as condies locais da situao de

    escravizado? Qual a inteno dos autores ao tomarem a perspectiva do negro para

    empenharem-se na investigao sociolgica da formao politico - social no Brasil?

    Qual a metodologia utilizada pelos autores para a compreenso da dinmica social

    brasileira? Quais so os pontos de convergncia e divergncia entre os autores na ideia

    da contribuio do negro na degradao do sistema escravista? Essas so algumas das

    questes as quais buscaremos responder (sem, contudo, esgot-las).

    Algo que deve ser situado desde j que a adoo da perspectiva racial para a

    compreenso das relaes sociais no Brasil um eixo fundamental que perpassar a

    grande parte da produo intelectual desses autores6. Sendo assim, estaremos nos

    debruando sobre o debate maior ao qual Clvis Moura e Florestan Fernandes7 esto

    inseridos, o papel do negro na formao do Brasil. Seguem algumas consideraes.

    6Para citarmos algumas obras: Rebelies da senzala (1959), O preconceito de cor na literatura de cordel(1976), O negro, de bom escravo a mau cidado? (1977), Os quilombos e a rebelio negra (1983), deClvis Moura. Brancos e negros em so Paulo, com Roger Bastide (1955), A integrao do negro nasociedade de classes (1964), O negro no mundo dos brancos (1972), O significado do protesto negro(1988), de Florestan Fernandes.

    7

    Neste trabalho, sero estudados mais detidamente os captulos escritos por Florestan Fernandes (os trsprimeiros), por se debruarem sobre a problemtica central deste trabalho, que ser a perspectiva do negrosendo adotada a partir da anlise de sua condio enquanto trabalhador, ou seja, enquanto escravo.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    15/50

    7

    Aquele que possuir a mnima familiaridade com a histria brasileira saber que

    um intenso debate que perdurou em solo nacional, dados os anseios com o

    desenvolvimento brasileiro, foi o da formao de uma identidade nacional. Grande parte

    da intelligentsia brasileira, observando os rumos que tomava o desenvolvimento

    nacional, voltaram-se para esse debate buscando, entre outros pontos como os

    direcionamentos para a politica e a economia, um lugar para situar o negro na histria

    brasileira. Pois, por essa via, procuravam tambm uma identidade para construo da

    ideia de um Brasil nao.

    luz do que pudemos desvendar, a respeito da

    situao do negro e do mulato em So Paulo, parece bvio

    que se deve pensar numa mudana radical de tal

    orientao e de modo a se levar em conta, tambm,

    contingentes populacionais localizados nas grandes

    cidades. No estabelecimento de uma politica de integrao

    racial assim orientada, os diversos seguimentos da

    populao de cor merecem ateno especial e decidida

    prioridade. [...] Porque no se pode continuar a manter,

    sem grave injustia, o negro margem do

    desenvolvimento de uma civilizao que ele ajudou a

    levantar. (FERNANDES, 1978, p, 575, grifo nosso).

    Percebemos que uma das fortes preocupaes de Florestan Fernandes est

    relacionada ao bloqueio integraodo negro no regime de trabalho livre de forma

    preponderante.Na sua passagem de escravo cidado.

    Como iremos demonstrar ao longo do trabalho, Clvis Moura coincide suainterpretao dos acontecimentos a essa viso da marginalizaodo elemento negro,

    ex-escravo, chamando a ateno desde o inicio para o fato de que o projeto de

    modernizao do Brasil no tinha intenes de incluso ao regime de trabalho livre, esse

    agente histrico. Ao contrrio, os mecanismos de barragem a essa incluso foram por

    sua vez aperfeioados em vista de sua eficcia.

    (...) Desde o inicio da formao da nao brasileiraessa contradio permanente, visvel e se agua

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    16/50

    8

    progressivamente. Por isso fizemos a independncia

    conservando a escravido e fizemos a abolio

    conservando o latifndio. Nessas duas fases de mudana,

    no se desarticulou aquilo que era fundamental.

    Conservou-se aquelas estruturas arcaicas que impediam

    um avano institucional maior. (...) Por isso temos ainda

    atrasos seculares relevantes que continuam influindo em

    grandes camadas de nossa populao (MOURA, 1988, p,

    24 e 25).

    Assim, os elementos do que podemos chamar de modernizao conservadora8

    sero fundamentais para se compreender todo um sistema que mesmo desenvolvendo

    suas foras produtivas, manteve intactas as estruturas fundamentais de blindagem

    insero e desenvolvimento do negro no seio da sociedade brasileira.

    8Modernizao conservadora um conceito elaborado pelo socilogo norte americano Barrington MooreJr no livro As origens sociais da ditadura e da democracia (1966), que busca explicar o processo de

    modernizao industrial sendo feito atravs de pacto com os setores da economia rural. No Brasil, issosignificar a modernizao capitalista sendo feita mantendo privilgios s antigas classes detentoras domonoplio da produo escravista.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    17/50

    9

    Metodologia

    Para aproximarmo-nos da compreenso da realidade brasileira principalmente no

    perodo que privilegiaremos tratar aqui, a saber, o perodo final de desagregao doregime escravocrata, sero necessrias algumas breves consideraes.

    A historiografia da primeira metade do sculo XX no Brasil ir contribuir para

    um debate muito importante no que diz respeito s teorias que se voltaram para a

    interpretao do pas. Nesse caso, a existncia ou no de um regime feudal no Brasil. A

    interpretao de um feudalismo brasileiro possua aproximao com a metodologia a

    qual o PCB (Partido Comunista Brasileiro) encarava o desenvolvimento do processo

    histrico das foras produtivas no pas. A partir de uma interpretao do legado da

    teoria de Marx feita pela III Internacional Comunista, o PCB (e grande parte da

    historiografia da poca) teria aplicado para a investigao da formao brasileira, o

    mtodo materialista histrico (que considera a fora motriz da histria a luta de classes)

    de forma mecanicista, em que o desenvolvimento supremo das foras produtivas (o

    capitalismo) traria consigo os elementos fundamentais sua prpria superao, a saber,

    o elemento revolucionrio em potencial: o proletariado industrial9. De acordo com essa

    formulao, o Brasil teria que necessariamente superar suas relaes feudais e

    semifeudais para alcanar o desenvolvimento pleno do capitalismo, para assim, ser

    superado dando lugar ao socialismo e consequentemente, ao comunismo.

    O impasse da caracterizao da existncia de um modelo feudal no Brasil faz

    com que o trabalho escravo seja tomado como elemento secundrio frente aos grandes

    latifndios. Assim, caia-se no problema de que o quadro geral explicava o negro em

    condies de trabalho escravo, e no o contrrio. A posio do negro enquanto escravo,

    enquanto fora de trabalho compulsrio e as formas as quais ele dinamizava o restante

    das relaes sociais, no eram colocadas como elemento fundamental para a

    compreenso do perodo do regime escravocrista e nem de sua condio frente ao

    advento do trabalho livre. Nesse caso, a aristocracia, a famlia, o patriarcado e a figura

    do campons foram os elementos privilegiados para caracterizao de uma sociedade

    feudal no Brasil10.

    9Para uma exposio do tema: MENDES. Claudinei Magno Magres, A questo do feudalismo no Brasil:um debate politico, 2013, CEMOrOC-Feusp.

    10A esse respeito, consultar de Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, as respectivas obras: Casa Grande esenzala(1933) eInstituies Politicas no Brasil (1949).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    18/50

    10

    Neste pequeno espao introdutrio, no iremos nos aprofundar sobre a dimenso

    desse debate. Porm, dele iremos extrair o elemento que consideramos dos mais

    importantes para a realizao do nosso trabalho, a saber, o mtodoutilizado para anlise

    da interpretao do protesto escravo brasileiro.

    O historiador paulista Caio Prado Junior (1907-1990) ops-se a essa

    interpretao da histografia brasileira da primeira metade do sculo XX, em que

    predominava o etapismo como processo do desenvolvimento nacional, em prol de uma

    analise dialtica, no esquemtica que caracterizava como j participante do processo

    de formao capitalista, o Brasil colonial11. Caio Prado, descobriu que uma das

    caractersticas fundamentais do modelo de capitalismo que estava sendo gerado no

    Brasil era de tipo onde a modernizao se desenvolvia ao mesmo tempo em que se

    reproduziam estruturas pr-capitalistas, caractersticas do processo de acumulao

    primitiva. Dito isto, faz-se aqui a importncia de ressaltar que tanto Clovis Moura como

    Florestan Fernandes sofrem influncia do historiador paulista sobre a caracterstica do

    modelo de capitalismo desenvolvido no Brasil, um capitalismo que tem por condio

    vital a funcionalidade entre o pr-capitalista e o moderno. Essa constatao muito

    importante para que os autores identifiquem o que consideram as barragens utilizadas

    pela elite nacional para que os negros no desfrutassem de mobilidade social no perodo

    de transio do trabalho escravo para a solidificao do trabalho livre.

    Ambos os autores, para a compreenso do papel do negro na formao

    brasileira, no apenas utilizaram dos referenciais tericos j consolidados pelas cincias

    sociais, como tambm, num ato de autenticidade, deram sua prpria contribuio nas

    formas de investigao metodolgica para a interpretao do Brasil. Portanto, dada a

    complexidade dos autores e a forma dinmica com que abordaram a problemtica do

    negro brasileiro, compreendemos que se faz necessrio o estudo das obrasRebelies da

    Senzala (1988), de Clvis Moura, e Brancos e negros em So Paulo (1955), deFlorestan Fernandes em parceria com Roger Bastide. A partir do mtodo expositivo,

    utilizando-nos do recurso bibliogrfico, pretenderemos desenvolver uma anlise entre

    esses dois autores identificando qual lugar ocupavam suas obras em meio as correntes

    tericas elaboradas na poca para investigar o assunto. A que grupo ou sujeito elas

    11Para maior aprofundamento do problema, recomendamos: JUNIOR. Caio Prado, Formao do Brasil

    Contemporneo, 2000, Ed. Publifolha; SCHWARTZ. Gilson, Caio Prado Junior, um mestre na dialticado tempo brasileiro (Guia de leitura), 2000, Ed. Publifolha.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    19/50

    11

    estariam sendo direcionadas (visto que estava em aberto um forte debate sobre as

    condies de uma democracia racial no Brasil.) e o mais importante (de acordo com

    nossa proposta), quais foram as formas, dada sua condio objetiva de sujeito

    escravizado, que o negro encontrou (intencionalmente ou no) para cravar seu lugar na

    derrocada do sistema escravista brasileiro.

    Faz-se necessrio para pouparmo-nos de qualquer m interpretao, o

    esclarecimento de que esse trabalho visa o debate bibliogrfico dos referidos autores

    partindo do pressuposto do negro (enquanto escravo) em sua ao politica como

    contribuio na dissoluo do sistema de trabalho escravo no Brasil. Portanto, nos

    eximimos aqui (sem, contudo, negar-lhe a importncia) de qualquer debate que eleve o

    paradigma nacional ao plano da cultura, como mencionado criticamente no inicio

    deste trabalho.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    20/50

    12

    CAPITULO I

    I.I SCULO XIX: DERROCADA DO SISTEMA ESCRAVISTA NO BRASIL

    Nosso ponto de partida para o desenvolvimento do presente trabalho d-se no

    momento quepodemos chamar de crise do imprio, que confunde-se diretamente com

    a expanso do mercado capitalista europeu. Esse momento corresponde mais ou menos

    ao inicio da segunda metade do sculo XIX, em que o Brasil sofrer profundas

    mudanas na dinmica do sistema escravista.

    O sculo XIX no Brasil iria elevar ao extremo as contradies resultadas dos

    anos precedentes de fardo histrico colonial, condio necessria formao nacional

    brasileira. Seria o perodo em que se desenvolveriam relaes fundamentais para aestruturao do que viria a ser a sociedade do trabalho livre e suas condies

    emergentes de desenvolvimento que perpassariam a histria do sculo XX inteiro.

    Sabemos que o Brasil nesse perodo era um pas recm independente que j articulava

    internamente as ideias liberais, porm dentro de uma diviso internacional do trabalho

    especifica que o confrontava (e, como veremos, ao mesmo tempo o dinamizava) com o

    impasse do trabalho escravo; era o pas que experimentava atravs das propagandas,

    dos discursos e da literatura o iderio de construo de uma nao que, paralelamente,tinha por base a contraditria negao de uma enorme camada fundante de sua

    populao como povo, a saber, a populao escrava. Era o pas que alava o indgena

    como smbolo nacional, dotado das melhores e mais nobres qualidades de heri, ao

    mesmo tempo em que encontrava nas relaes concretas sua condio reduzida a fora

    de trabalho compulsria que vai desde os princpios da colonizao lusitana at ser

    ainda mais superexplorada no perodo de dinamizao da produo de caf. Esses so

    alguns dos aspectos que formam os grandes dilemas os quais se defrontar o Brasil apartir do sculo XIX, e que caracterizar seu modelo liberal.

    Com a expanso do capital europeu (mais especificamente o britnico) em solo

    brasileiro, acabamos por sofrer alteraes no que diz respeito relao da terra com seu

    trabalho produtivo. Com o implemento de vias de transporte, comunicao e o

    crescimento da rea urbana, desperta-se um grande fluxo de migrao interna para essas

    reas, fazendo com que a produo no campo se eleve para cada vez mais atender essa

    nova demanda das cidades, do mercado industrial e comercial externo e a nascente

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    21/50

    13

    industrializao interna12. Nesse intuito de suprir as exigncias cada vez mais agudas do

    mercado internacional, implementada em 1850 a lei de terras no Brasil, em que a terra

    passa de patrimnio da coroa, para patrimnio da nao; passa de uma relao social de

    prestigio e status diante da coroa, para relao de compra e venda na figura do Estado.

    De acordo com a Lei de Terras de 1850, a nica maneira de se

    adquirir terra era comprando-a do governo, o qual atuaria como

    mediador entre o domnio pblico e o provvel proprietrio. A

    relao pessoal que anteriormente existia entre o rei e o

    pretendente transformou-se numa relao impessoal entre o

    Estado e o pretendente. Em vez de ser uma ddiva pessoal

    concedida pelo rei segundo as qualidades pessoais do indivduo,

    a terra podia ser obtida por qualquer pessoa com capital

    suficiente. Quando a terra era uma doao real, o rei tinha o

    direito de impor certas condies, regulamentando seu uso e sua

    ocupao e limitando o tamanho do lote e o nmero de doaes

    recebidas por pessoa. Quando a terra tornou-se uma mercadoria

    adquirida por indivduos, as decises concernentes sua

    utilizao passaram a ser tomadas por esses mesmos indivduos.

    (VIOTTI, 1998, p, 174).

    12Nos pases europeus que protagonizaram a formao de seus Estados nacionais, certamente o fizerampara a elevao e fortalecimento da burguesia em ascenso que j encontrava no seio da sociedade largodomnio sobre as relaes sociais que estavam internamente em movimento. Porm, a esfera politicaainda estava sob o domnio dos velhos reis, nobres, bares feudais e sacerdotes. Como sabemos, com orenascimento do comrcio no sculo XV que iremos presenciar a crise desse antigo modo de produo

    para expanso dos mercados e generalizao das novas relaes capitalistas que despontavam. Aescravido moderna, umbilicalmente ligada ao dinamismo capitalista, fruto disso. No Brasil, porm, odilema do Estado, que vem amparado pela modernizao das relaes sociais que cada vez mais passam ase manifestar ao longo do sculo XIX, assume vis curioso. Por mais paradoxal que parea, a formaodo Estado no Brasil surge para atender a urgncia da pauta escravista, no em sua dissoluo rumo aocaminho liberal, mas sim a pontuar as demandas da elite nacional em superexplorar a mo de obraescrava. Pois, no ps independncia, esse rompimento com a metrpole significar a alavanca interna, adinamizao do trabalho escravo, em que o escoamento dos bens produzidos no iriam voltar-se mais emabundncia para a ex-metrpole, o que se tornaria a pedra de toque acumulao de capital para ofortalecimento e fortalecimento da elite local. Colocado o problema dessa forma, podemos dizer que aescravido no Brasil assume dois papis no tempo: do sculo XVI s ultimas dcadas do sculo XVIII,ela se desenvolve mediante explorao e acumulao primitiva voltada metrpole; das primeirasdcadas do sculo XIX, principalmente com a independncia e a formao do Estado nacional, at sua

    derrocada (oficial) em 1888, a escravido dinamizada para atender as demandas de acumulao internae fornecimento de produtos de exigncia do mercado externo (cristalizado, no Brasil, na produoprincipalmentedo caf).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    22/50

    14

    No perodo inicial da colonizao, a terra era de total domnio da coroa, fazendo

    com que aquele que almejasse possuir um lote de terra para o fomento da produo,

    devesse gozar de algum prestigio pessoal ou status social para que lhe fosse concedido o

    privilegio de posse da terra. Mesmo com leis de regulamentao (como de limite de seu

    uso para produo, ou do prprio tamanho de seu lote) o arbtrio final era da coroa. A

    partir do sculo XIX, com as transformaes do capitalismo europeu, seu impacto

    decisivo no Brasil para que a lei de terras passe para propriedade de domnio da nao,

    em que no mais o prestigio ou status social coroa seriam o suficiente para sua

    aquisio, mas sim aquele que portasse o capital suficiente para adquiri-la.

    As consequncias dessa lei de terras para o escravo eram previsveis, podendo-se

    dizer que a partir dessa lei passamos a assistir ao principio do processo de

    marginalizao em que se encontrar o negro no momento posterior a abolio. Como a

    terra passaria de posse da coroa para patrimnio nacional, as relaes no eram mais

    travadas atravs da coroa com o pretendente a sua aquisio, mas sim do Estado com o

    individuo portador de capital suficiente para sua compra. No caso do escravo, mesmo

    aquele sado dessa condio de trabalho atravs da compra de sua alforria, no

    conseguia angariar capital suficiente para a compra da terra em proveito de seu sustento,

    e como a coroa a partir desse momento faz a transio da terra como seu patrimnio (e,

    portanto passvel de concesso) para patrimnio da nao (alterando a concesso para a

    relao de compra e venda diante do Estado), a coroa logo exime-se de quaisquer

    obrigaes compensatrias ao ex-escravo por seus servios prestados nao.

    Florestan Fernandes, comentando criticamente esse contexto, dir:

    Apesar dos ideais humanitrios que inspiravam as aes dos

    agitadores abolicionistas, a lei que promulgou a abolio do cativeiro

    consagrou uma autentica expoliao dos escravos pelos senhores. Aosescravos foi concedida uma liberdade terica, sem qualquer garantia

    de segurana econmica ou de assistncia compulsria; aos senhores e

    ao estado no foi atribuda nenhuma obrigao com referncia s

    pessoas dos libertos, abandonados prpria sorte da em diante. Em

    suma, prevaleceram politicamente os interesses sociais dos

    proprietrios dos escravos, medida que aqueles interesses no

    colidiam com o fim explicito da lei abolicionista. (FLORESTAN,

    2008, p, 65).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    23/50

    15

    Esse um dos principais dilemas em que se encontrar imerso o negro, ex-

    escravo, no perodo subsequente a abolio. Perodo no qual no poder recorrer por

    indenizao ou qualquer outro meio legal ao Estado pelo perodo de trabalho

    executado durante a escravido. Desse modo, o cunho liberal que acabou sendo

    incorporado para a aquisio de terras no Brasil, ao privar o ex-escravo de aquisio por

    doao a um lote de terra, o Estado acaba por estimular o imigrante a transformar-se,

    em solo brasileiro em um pequeno proprietrio rural.

    Como Clvis Moura nos mostrar, com uma interpretao que se aproxima

    bastante da mencionada por Florestan Fernandes, essa medida desembocava em um

    claro projeto politico: ao dificultar o acesso a terra para o trabalhador ex-escravo, a elite

    pretendia uma modernizao nacional incorporando em seu projeto o trabalhador livre

    europeu, na razo inversa em que descartava o trabalhador negro.

    A lei da terra tinha, no fundo, contedo politico. Ela deu um

    cunho liberal aquisio de terras no Brasil, mas visava a, de

    um lado, impossibilitar uma lei abolicionista radical que

    inclusse doao pelo Estado de parcelas de gleba aos libertos e,

    de outro, estimular o imigrante que via, a partir da, a

    possibilidade de transformar-se em pequeno proprietrio, aqui

    chegando. (...) O que se desejava, em ultima instancia, era,

    atravs dessa estratgia de modernizao, conservar-se a grande

    propriedade, mas com o trabalhador livre importado,

    descartando-se, assim, definitivamente, a integrao do

    trabalhador nacional, especialmente do ex-escravo negro, aps a

    abolio. (MOURA, 2014, p, 110, 111).

    O negro importante enquanto elemento necessrio produo e reproduo do

    modelo de sociedade escravista no Brasil. Porm, tambm o seu algoz, o inimigo

    interno forjado na cabea da elite brasileira, capaz de se rebelar e insurgir contra seus

    senhores a qualquer momento. O medo das elites nacionais de que o Brasil pudesse ser

    palco de revoltas influenciadas pelas correntes movimentaes na Europa e na

    experincia revolucionria de So Domingos (Haiti), no deve ser perdido de vista. O

    Estado nacional, que tem que lhe dar com esses impasses do trabalho escravo no Brasilfrente sua modernizao, ao forjar-se em meio as disputas internas (o setor liberal na

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    24/50

    16

    Assembleia Legislativa buscando limitar o poder do imperador) e externas da poca

    (implantar o liberalismo mantendo os privilgios patronais numa sociedade em que

    prevalecem relaes escravistas) ir necessariamente, para solidificar-se, encabear a

    forma como se dar essa desagregao em privilgios para os antigos donos de terras. E

    para manter a estabilidade no contexto, a vigilncia do Estado com sua mo de obra era

    constante, ainda mais se lembrarmos que nesse perodo, passada a primeira metade do

    sculo XIX, as revoltas escravas ganham maior coro em consonncia ao esfacelamento

    da escravido.

    Atemorizados pelos espectros da Revoluo Francesa e da

    revolta de escravos no Haiti, desconfiavam tanto do absolutismo

    monrquico quanto dos levantes populares revolucionrios e

    estavam decididos a restringir o poder do imperador e a manter

    o povo sob controle. Para levar a cabo seu projeto encontraram

    sua principal fonte de inspirao no liberalismo europeu.

    (VIOTTI, 1998, p, 138).

    O iminente processo de modernizao no Brasil que visava a passagem do

    trabalho escravo para o trabalho livre, j esboava seus percalos no pas por intermdio

    da lei de terras. Fica claro que, como ressaltado por Moura, a terra passando a integrar

    uma lgica liberal, ela estar participando profundamente de uma transformao da

    fora de trabalho. Com a lei de proibio do trfico negreiro de 185013, comea uma

    srie de movimentaes internas que visavam atender a demanda de mo de obra

    escrava nas regies em que despontava a produo de caf (Minas, So Paulo, Rio de

    Janeiro). Com a explorao e constante declnio da mo de obra escrava ocorrida por

    fugas a quilombos (cada vez mais constantes nos anos que precederam a abolio),suicdios, revoltas individuais e coletivas etc., adquiri-la passa a ser cada vez mais

    difcil e caro dada a fiscalizao em relao ao trfico e os prejuzos deixados por esses

    levantes escravos. Nesse contexto, o trabalhador livre surge como uma sada a essa

    crise a qual o sistema escravista encontrava-se. O imigrante europeu trabalhando na

    13Mais conhecida como lei Eusbio de Queirs, datada de 4 de setembro de 1850, ela foi resultado dapresso externa britnica. Essa lei, que colocava um fim definitivo ao trfico de africanos para seremescravos no Brasil. Internamente, sua consolidao ocasionou uma verdadeira corrida do trfico de

    escravos no pas, dado os enormes custos a que passou a ser a compra de um escravo e o cada vez maiscrescente lucro dos traficantes. Nesse contexto, podemos dizer que se inicia a crise do Imprio rumo

    transio para a Repblica.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    25/50

    17

    terra do fazendeiro, se instalaria no territrio e quando possusse seu prprio capital

    tornar-se-ia um pequeno proprietrio de terras substituindo cada vez mais, nessa lgica

    de dinamizao do capital, o trabalho escravo pelo trabalho livre.

    Apesar de estas primeiras tentativas particulares com a parceria terem

    sido bastante traumticas para os fazendeiros que se arriscavam nesta

    empresadada a resistncia imprevista dos imigrantes as condies

    de trabalho, elas suscitaram um tema que doravante ocuparia cada

    vez mais espao nas propostas tendentes a instituio de um mercado

    de trabalho livre. o tema do imigrante ideal e o tipo de condies

    que lhe deviam ser oferecidas a fim de que ele se fixasse no pais e

    cumprisse com a sua suposta misso de introdutor e agente deprogresso e civilizao. (AZEVEDO, 2004, p, 52).

    Porm, a soluo no se aplicou to perfeitamente, at porque houveram

    inmeras dificuldades ao processo de imigrao no Brasil, sendo uma delas, como

    mencionado, a resistncia a aceitar as condies de trabalho no campo brasileiro por

    parte dos imigrantes. Outra condio fundamental para a compreenso desse empecilho

    entrada (e permanncia) da mo de obra imigrante foram as propagandas endereadas

    contra a emigrao para o Brasil, feitas por alguns pases europeus.

    Essa preveno subsistia na dcada de 1870. Os governos da

    Frana e da Itlia tomavam providencias com o objetivo de

    alertar suas populaes para que no emigrassem para o Brasil.

    Em circular, datada de 31de agosto de 1875, o conde de Meaux,

    em nome do governo francs proibia terminantemente a

    emigrao para o Brasil, e o governo italiano, em setembro,

    ordenava aos prefeitos que advertissem aos italianos que ao

    emigrarem para o Brasil, se exporiam misria. (VIOTTI, 1997,

    p, 166).

    Essa maneira encontrada por pases como a Frana e a Itlia para no terem seu

    contingente populacional e de fora de trabalho emigrado para um continente em que

    concorreriam possibilidade de tornarem-se com o tempo pequenos produtores, uma

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    26/50

    18

    das aes que contribuem na dinamizao do trabalho escravo nesse perodo ps 1850.

    Com essa ttica de inibio da emigrao para o Brasil, h o esforo dos proprietrios

    de caf (amparados no Estado) e do capital estrangeiro britnico em dinamizar a mo de

    obra escrava para manuteno e incentivo desse setor produtivo.

    Quando passa a exercer o controle comercial sem contudo se valer das

    tradicionais politicas colonialistas, a comercializao britnica com o pas se d pelo

    consumo da produo de matria prima e produtos alimentcios. Sendo assim,

    alimentando seu desenvolvimento interno com a produo escravista, a Inglaterra,

    concomitantemente desenvolve e moderniza postos estratgicos ao escoamento dessa

    produo.

    Na medida em que o escravismo se decompunha as naes

    dominadoras do mercado mundial passaram a aplicar capitais no

    Brasil, naqueles setores estrategicamente relevantes como

    portos, estradas-de-ferro, comunicao, bancos e outras formas

    de investimento (MOURA, 1988, p, 26).

    Certamente, esse investimento de capital cumpre o papel de acelerar as

    condies locais para o implemento do trabalho livre no Brasil. Porm, esse mesmo

    investimento dinamiza e impulsiona as condies de trabalho escravo, influindo

    diretamente em sua produo visando o atendimento das exigncias dos mercados

    europeus. preciso ter em vista que o desenvolvimento industrial europeu gera uma

    constante expanso urbana e populacional, fazendo com que no apenas as exigncias

    de matria prima para produo industrial txtil estejam na ordem do dia, mas tambm

    os produtos para o consumo da classe trabalhadora em constante crescimento

    juntamente com o capital britnico. Essa dinmica ao mesmo tempo o jubilo e o fastiodo proprietrio de caf naquele momento, pois, ao mesmo tempo em que esse aumento

    de demanda aumenta o lucro obtido com sua produo, ela tambm demanda a mo de

    obra escrava que nesse contexto encontrava-se cada vez mais escassa e superexplorada,

    o que diminua o perodo de utilidadedessa fora de trabalho.

    Dessa forma, medidas como a restrio ao trfico de escravos encetada pela

    Inglaterra, que se cristaliza na lei Eusbio de Queirs, ganha outro contorno: no

    apenas uma medida de impulsionamento do capitalismo no Brasil para criao de ummercado para escoamento das mercadorias inglesas, mas tambm uma forma de baratear

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    27/50

    19

    a produo de mercadorias no pas escravista para atender suas prprias exigncias

    industriais. Isso far com que a demanda do produto do caf desagregue a produo das

    antigas zonas faustosas de trabalho localizadas no norte e nordeste e movimente essa

    mo de obra para intensificao produtiva encontrada no sudeste. Sendo assim, no

    possvel adotar o ponto de vista linear de que essas modernizaes eram as premissas

    histricas do capital produtivo, antes devem ser pensadas como condio de

    sobrevivncia desse capital externo produtivo.

    Ser dentro desse contexto que as ideias imigrantistas tomaro maior flego. Em

    nenhum momento o destino do escravo negro foi inserido na ordem do dia de forma to

    urgente quanto nesse momento de transio do sistema escravista ao capitalismo

    dependente.

    Como j mencionamos, as primeiras experincias com os imigrantes no foram

    positivas ao fazendeiro pela sua insubmisso frente as condies degradantes de

    trabalho encontradas no Brasil. Soma-se a isso, como tambm j vimos, a propaganda

    anti emigrantista levada a cabo pelos pases europeus de onde saiam os braos que

    abasteciam os postos de trabalho no Brasil da segunda metade do sculo XIX.

    O trabalhador imigrante, bem mais que protagonizar a substituio gradativa do

    escravo pelo trabalhador livre, dentro do contexto ideolgico produzido nesse perodo

    de transio, vem principalmente (no pensamento das elites brasileiras) abrir caminho

    civilizao e o progresso, identificando assim, como motivo do atraso a esse

    processo civilizatrio, o negro escravo.

    (...) Um exemplo tpico desta postura numa poca em que ela

    ainda tomava forma. Em seus textos [Tavares Bastos] h uma

    ligao explicita e at mesmo orgnica entre branco e trabalho

    livre e, portanto, liberdade/progresso/civilizao, o que por suavez implica pequena propriedade/cultura intensiva e

    diversificada/desenvolvimento. J o negro definia-se pela falta

    disso tudo, ou pela negao do que bom, do que ideal. O

    negro era o real a corrigir, pois denotava a prpria escravido e,

    por conseguinte, trabalho compulsrio/atraso/barbrie e

    imoralidade, o que implicava grande propriedade/monocultura

    extensiva e rotineira/estagnao. (AZEVEDO, 2004, p, 55).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    28/50

    20

    Essas ideias no eram novas, e estavam longe de constiturem-se em uma

    aproximao com as condies reais da sociedade. Dentro desse processo transitrio,

    elas passam de certo modo a expressar a imagem que essa elite tardia, ou seja, esse

    setor dos proprietrios de fazendas dessas regies de maior importncia na dinamizao

    da economia do caf tinha do Brasil em relao aos pases capitalistas europeus e de si

    prpria: uma nao fadada desde o nascimento degradao, pois trazia em sua

    formao histrica as marcas da colonizao portuguesa escravista. Levando em conta

    essa observao, o arcabouo ideolgico que ampara essas ideias a respeito do escravo

    negro est nas razes do que vem a ser o prprio debate sobre uma construo nacional.

    Nesse caso, o problema encontrado por essa elite politico - econmica e cultural

    era o de que predominava no seio de sua populao o escravo negro, logo, contrastando

    com o referencial cultural civilizatrio que buscavam. Particularmente ao caso

    brasileiro, isso fez com que a tentativa da construo de uma ideia de nao se

    desdobrasse em outros discursos ao longo do sculo XIX, repercutindo na aceitao das

    prprias teorias raciais no pas. Em um primeiro momento, a identidade brasileira

    erguida sobre as bases de uma contraposio antiga metrpole, um antilusitanismo14

    justificando a independncia; em um segundo momento, temos uma civilizao

    europeia no novo mundo, buscando seu fundamento na combinao de elementos

    europeus e brasileiros, tendo que para isso, negar uma enorme parcela de sua populao

    como constituinte do povo brasileiro, pois nesse momento o escravo era considerado o

    inimigo interno que deveria ser superado rumo ao processo civilizatrio.

    Em Cartas do Solitrio (1861) estes prejuzos so

    demonstrados a partir da tese da inferioridade racial dos

    africanos, j atestada, cientificamente. Para este autor

    [Tavares Bastos], a cincia j no deixava dvidas de que

    14 H nas entranhas desse rduo processo de constituio nacional brasileira o embate entre

    portugueses e brasileiros. Dentro das tipologias construdas nesse discurso, estes se caracterizariam

    por todos aqueles nascidos ou no no pas, mas que exigiam insero nas instituies nacionais. Em

    geral, esse grupo estava restrito a elite e aos homens livres brancos que se identificavam com a causa da

    independncia e se opunham aos portugueses,que, por sua vez, seriam todos os nascidos ou no em

    Portugal, que se ligavam aos interesses de manuteno das relaes com a antiga metrpole. Essa postura

    adotada pelo Estado nacional ir encontrar no seio das classes populares seus desdobramentos mais

    violentos.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    29/50

    21

    entre o branco e o negro, ou entre esses dois extremos ,

    havia de fato um abismo que separa o homem do bruto.

    Portanto o regime de trabalho escravista padecia de

    problemas inerentes prpria raa de escravos originrios

    da frica. (...) Deste modo o leitor levado a pensar que a

    origem dos males do pas localizava-se no prprio negro,

    na sua inferioridade racial. Alm de mau trabalhador, a

    sua simples presena havia impedido o aparecimento das

    indstrias no Brasil durante todos os sculos de

    colonizao. Ate mesmo a monocultura devia-se a ele, as

    culturas extensivas e rotineiras centradas em apenas um

    produto, deixando grandes reas virgens incultas. Tambm

    podia-se acus-lo de responsvel pelas comunicaes

    deficientes. (AZEVEDO, 2004, p, 54).

    Toda essa movimentao em que afloram os diversos dilemas enfrentados em

    solo brasileiro encontrar sua soluo no trabalhador imigrante europeu. A poltica de

    imigrao passa a ser a tnica diretiva para a sada da crise em que encontrava-se o

    sistema escravista e consequentemente os setores produtivos preponderantes do pas15.

    Nesse momento, a elite brasileira no possua a menor duvida sobre a superioridade

    do trabalho livre em relao ao trabalho escravo (e as teorias raciais se desenvolveram

    enfatizando isso), fazendo do imigrante o elo necessrio para o to almejado

    desenvolvimento capitalista interno.

    15Algo bastante ilustrativo dessa situao foi o projeto apresentado pelo deputado paulista e imigrantista

    Martinho Prado Junior (1843-1906) que autorizava o governo a pagar 400 contos anuais destinados spassagens dos imigrantes. Tambm propiciava o alojamento desses trabalhadores caso viessem destinadosa instalarem-se com a famlia no trabalho da lavoura.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    30/50

    22

    CAPITULO II

    I.I CLVIS MOURA ENCONTRA FLORESTAN FERNANDES: INTERPRETAES DO

    PROTESTO ESCRAVO EM FINS DO SCULO XIX

    A queda do sistema escravista se desdobrar em inmeras barreiras

    integrao do negro no surgimento do capitalismo no Brasil. Pois como sabemos,

    ideologias e inmeras instituies surgiro para que seja dificultada qualquer forma de

    ascenso social ao povo recm sado do sistema de trabalho escravo. Porm, esse no

    ser o objeto de nosso estudo neste trabalho. Por hora, nos cabe avaliar qual a

    importncia que a ao politica dos escravos teve na dissoluo do sistema escravista

    nas ltimas dcadas do sculo XIX.As similaridades nas obras de Florestan Fernandes e Clvis Moura so to

    interessantes quanto suas divergncias. Ambos retornam em suas anlises ao momento

    em que vigorava o sistema escravista no Brasil com o intuito de no somente interpretar

    as causas onerosas as quais levaram o negro ao seu destino fatdico (a falta de politicas

    reparatrias no momento ps escravido), mas tambm, o que desejavam era buscar

    uma interpretao de um Brasil que fugisse das raias culturalistas que encontrava seu

    fundamento nos interpretes do Brasil da gerao anterior. Para compreenso dessedebate que ir se instaurar no perodo em que nossos autores se debruam sobre os

    estudos do negro no Brasil, preciso conhecer a insero das correntes tericas que os

    permitiram fundamentar as estruturas que abarcavam seu arcabouo critico. Uma delas

    seria o marxismo.

    A insero do pensamento marxista no Brasil se d por volta da dcada de 1920.

    Em 1923, Octvio Brando (1896-1980) integrante e intelectual do recm fundado

    Partido Comunista Brasileiro (PCB), de 1922, traduz do idioma francs oManisfesto do

    Partido Comunista (1848), dos filsofos Karl Marx (1818-1893) e Fredrich Engels

    (1820-1895). Porm, essa importante publicao no alcana uma difuso eficiente, pois

    alm das prprias limitaes dos intelectuais na compreenso do pensamento dos

    autores, o material com que entravam em contato para os estudos marxistas era muito

    precrio. Essa condio de precariedade em que encontrava-se o pensamento marxista

    nessa primeira metade da dcada de 1920, tende ao agravamento tanto de sua

    interpretao quanto de sua aplicao para a realidade brasileira. Influenciados pela

    interpretao dos escritos de Marx e Engels difundida pela II Internacional Comunista

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    31/50

    23

    (que naquele momento se constitua como a maior organizao dos partidos polticos

    socialistas europeus na divulgao do pensamento marxista e da revoluo), podemos

    constatar elementos de influncia da teoriapositivista16em suas leituras e interpretaes

    feitas do legado dos filsofos alemes.

    Alm das deficincias da literatura marxista que se difundia em nosso

    pas, devemos levar em conta a situao do principal agente da difuso

    das concepes marxistas o Partido Comunista Brasileiro que se

    achava s voltas com uma grave crise interna e submetido presso de

    poderosas injunes internacionais. (...) O estalinismo, de resto, se

    combinava facilmente com os hbitos intelectuais da formao

    cultural de tipo positivista, comum a muitos intelectuais brasileiros einfluentes no meio dos militantes do PCB. (KONDER, 2009, p, 207).

    Essas interpretaes equvocas das obras de Marx e Engels, na qual o PCB

    passou a se apoiar, fez com que a histria brasileira fosse interpretada pelo partido a luz

    do etapismo, de sistemas esquemticos importados de fora para anlise da realidade

    social brasileira.Nessa concepo, predominava a ideia de que o Brasil ainda no se

    constitua completamente uma realidade capitalista em seu vigor pleno, devido ao fato

    da predominncia da economia rural sobre a industrial. Nesse caso, seria preciso ser

    feita a revoluo burguesa no Brasil para que fosse completamente superada essa etapa

    da realidade brasileira em direo ao momento da tomada comunista pelos

    trabalhadores operrios. Dessa maneira ignorava-se como se davam os fatos para pensa-

    los normativamente. Era um esquema de desenvolvimento da histria europeia que

    deveria ser importado e enquadrado no complexo desenvolvimento histrico brasileiro.

    Ser o historiador paulista e integrante do partido comunista, Caio Prado Junior (1907-

    1990) que ir se contrapor a essa anlise histrica do partido de forma mais abrangente,

    observando que a historia da formao brasileira s pode ser entendida se pensada no

    como uma sucesso de etapas como o desenvolvimento dos pases europeus, mas

    sublinhando que a histria nacional se faz de forma particular (escravido moderna)

    16Teoria desenvolvida pelo filsofo Francs Auguste Comte (1798-1857), tendo por principio a extenso

    dos mtodos cientficos elaborados pelas cincias naturais ao estudo da sociedade. Assim, buscava afundao de uma sociologia cientifica. Comte entendia a histria do pensamento como sendo dividida

    em trs fases distintas: teolgico (todas as coisas so explicas pela vontade divina), metafisico (o

    pensamento abstrato do mundo o que explica a conexo entre todas as coisas, como uma espcie deocultismo) e positivo (todos os fenmenos podem ser explicados por experimentos demonstrveis,cientficos)

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    32/50

    24

    porm universal (desdobramento do capitalismo europeu), pois o modo de

    desenvolvimento da produo material no pas, se faz em relao (e determinao)

    direta do modo de desenvolvimento produtivo capitalista dos pases europeus. No

    apenas os dinamizando com a produo de alimentos e matria prima, mas sendo

    tambm influenciado e dinamizado pelo seu modo de produo. Por isso no haveria

    um passado feudal no Brasil, mas uma etapa escravista particular da expanso do capital

    na amrica.

    Nossos dois autores a serem estudados, com suas devidas particularidades,

    sofrero influencia dessa interpretao da realidade brasileira de Caio Prado Junior.

    Clvis Moura17em Rebelies da Senzala, tendo lanada sua 1 edio em 1959,

    ir participar do debate sobre a atuao do negro no regime escravista, contrrio ao vis

    dominante que o cenrio da poca apresentava. Nesse caso, temos que lembrar que o

    autor que em maior proporo dinamizava o debate acerca do perodo escravista era o

    antroplogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987). Para Clvis Moura, o tipo de

    interpretao da sociedade brasileira feita do perodo escravista que predominava nos

    crculos acadmicos at aquele momento, alm de colocarem o negro como um

    personagem passivo frente aos grandes dilemas da histria da escravido no Brasil,

    faziam por sobressaltar em suas obras perspectivas analticas em que

    (...) etnologizava-se a historia social e com isto os

    contedos das relaes de produo fundamentais ficava

    para segundo plano. Em decorrncia dessa ideologia

    17Como nos apresenta a sociloga Erika Mesquita em seu artigo homenagem intitulado simplesmentecomo Clvis Moura (1925-2003): Clvis Steiger de Assis Moura nasceu em 1925, em Amarante, Piau,numa famlia de classe mdia-baixa (...) Na Bahia, Clvis Moura entrou para a Faculdade de Direito, em1944, curso que no concluiu. Naquele mesmo ano ingressou na carreira jornalstica, trabalhando no

    jornal O Momento, dirio do Partido Comunista do Brasil.1 Foi seu primeiro contato com o PCB, econtribuiu para aprofundar-se na teoria marxista e nas discusses envolvendo o movimento comunistainternacional. Em 1945 tornou-se militante partidrio, aos 20 anos. Em 1947 elegeu-se deputado estadual

    pelo partido, mas teve sua candidatura cassada pelo Tribunal Eleitoral, quando foi cancelado o registro dopartido no governo de Eurico Gaspar Dutra (1945-1950).

    Por conta desse revs poltico, Moura se transferiu para So Paulo em 1949, onde integraria aFrente Cultural do PCB, organismo que reunia Caio Prado Jnior, Villanova Artigas, Artur Neves, dentreoutros intelectuais. Alm de militar no PCB, Moura atuaria profissionalmente como jornalista,trabalhando para Samuel Wainer e posteriormente para Assis Chateaubriand nos Dirios Associados.Concomitante a sua atividade profissional, pesquisava histria, em particular sobre a rebeldia negra notempo da escravido, tendo como objetivo demonstrar o importante e ativo papel do negro na formaoda nao, no s do ponto de vista cultural, muito abordado naquele momento, mas e principalmente

    social, se desdobrando para os planos poltico e econmico. Em 1959 publicou seu primeiro e

    marcante livro, Rebelies da Senzala, uma interpretao marxista da escravido no pas pelo vis daresistncia escrava.(MESQUITA, 2004, p, 339).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    33/50

    25

    estamos s vsperas do centenrio de abolio e quase

    nada se fez de substantivo para saber-se quais das foras

    que deram dinmica passagem do trabalho escravo para

    o trabalho livre, a forma como esse processo se verificou;

    os mecanismos que detiveram sua radicalizao...

    (MOURA, 1988, p, 16).

    Para o autor, seria importante no perder de vista que o problema do negro era

    ao mesmo tempo o problema do escravo, ou seja, nesse processo histrico no qual foi a

    escravido, a condio do negro e todas as formas encontradas por ele de sobrevivncia

    e dinamizao dentro do sistema deveriam ser interpretadas a partir do ponto de vista do

    trabalho, ou seja, a partir do processo no qual o homem se relaciona dentro de

    condies objetivas de transformao concreta da natureza, e ao modifica - la para

    atender as suas necessidades ou necessidades alheias, acaba por ser transformado

    tambm por essa mesma natureza do trabalho. Em outras palavras, dentro dessas

    condies concretas de ser negro, acaba por tornar-se escravo.

    Clvis Moura em momento nenhum nega a importncia da manifestao

    cultural18do negro como forma de resistncia ao sistema escravista, ele apenas procura

    ressaltar que as relaes concretas da dimenso do trabalho escravo (o alicerce principal

    de sustentao do sistema escravista) so onde as contradies fundamentais desse

    modo de produo se cristalizam, pois como observa o autor,

    (...) Do ponto de vista sociolgico, [o sistema escravista]

    cindiu a sociedade colonial em duas classes fundamentais

    e antagnicas: uma constituda pelos senhores de escravos,

    ligados economicamente em face do monoplio comercial metrpole, outra constituda pela massa escrava,

    inteiramente despojada de bens materiais, que formava a

    maioria da populao do Brasil colnia e era quem

    18Para Clvis Moura, os conceitos de aculturao, acomodao, sincretismo etc., acabavam por encobrir

    as verdadeiras relaes contraditrias que ocorriam na escravido brasileira. Para o autor, a violncia eraum dos elementos constitutivos fundamentais para a disciplina do trabalho, e consequentemente

    manuteno do status quo do modelo escravista. Logo, para ele, aqueles conceitos fartamente utilizadospelos autores que se voltaram com o vis culturalista para a histria do negro no Brasil, acabaram portransformar relaes que de um lado se amparavam na violncia para transformar o negro em escravo.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    34/50

    26

    produzia toda a riqueza social que circulava nos seus

    poros. (MOURA, 1988, p,47)

    importante ressaltar que Clvis Moura no negar em momento algum a

    dinmica das manifestaes culturais como elementos fundamentais para a

    compreenso do que foram as relaes escravistas no Brasil, sejam elas a dana, a

    religio ou os cantos entoados pelos escravos nas senzalas. Para nosso autor,

    diferentemente dos intelectuais contra os quais volta sua crtica, essas relaes no se

    estabeleceriam de forma horizontal. Pelo contrrio, para existirem tiveram que irromper

    em um contexto de luta e antagonismo entre senhores e escravos, como nos mostra o

    socilogo Fabio Nogueira de Oliveira,

    Clvis Moura faz uma crtica aos conceitos antropolgicos com

    racionalizaes dos aparatos colonialistas e neocolonialistas,

    voltados dominao das populaes primitivas. Dessa

    maneira, ope-se a uma interpretao culturalista da dinmica da

    cultura negra e afro-brasileiraque os conceitos de sincretismo,

    assimilao, acomodao e aculturao procuram explicar de

    forma insuficiente, pois partem de uma horizontalidade de

    posies entre os grupos sociais que trocam e intercambiam

    traos de suas respectivas culturas e abstraem, dessa maneira, a

    posio desigual dessas culturas dentro do modo de produo

    escravista e capitalista. (...) Assim, ao considerar a cultura

    branca e negra como integradas dinmica das relaes de

    poder e de produo na sociedade escravista, que opunham

    brancos e negros como classes antagnicas e, por outro lado, aoatribuir funes especficas a estas, Clvis Moura politiza a

    cultura: os sistemas simblicos e culturais em suas diversas

    manifestaes religio, culinria, vestimentas, lnguas e

    tcnica de trabalho esto marcados por luta, oposio e

    contradio. (OLIVEIRA, 2011, p, 56).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    35/50

    27

    Adotando o mtodo de analise marxista19 para a compreenso da realidade a

    qual se pretendeu debruar, o autor ir caracterizar a sociedade brasileira do perodo

    colonial como caracterizada e dinamizada pela oposio tcita entre as classes sociais,

    estando de um lado o negro objetivado nas relaes de trabalho escravista, despojado de

    bens materiais, apenas portando a sua fora de trabalho; de outro, os senhores de

    escravos, donos do monoplio comercial e dos meios para a produo das riquezas da

    sociedade escravista. Ele entendia os escravos como classe trabalhadora, a classe

    fundamental de sustentao da produo da riqueza no sistema escravista. Porm, como

    mais tarde ele observar, essa mesma classe trabalhadora, na passagem do trabalho

    escravo para o livre, se v alijada dos postos de produo capitalista por um projeto

    abolicionista articulado pela elite nacional para promover apenas seus interesses, para

    isso, desenvolvendo uma srie de politicas e ideologias para sustent-lo numa condio

    desvantajosa frente os brancos nacionais e imigrantes no mercado de trabalho.

    J do outro lado, para entendermos a preocupao de Florestan Fernandes com o

    dilema do negro no Brasil, preciso mencionar que o autor pensa o capitalismo

    brasileiro e seu desenvolvimento a partir da herana deixada pela escravido. Isso ser

    fundamental para ele buscar compreender qual o papel do elemento negro nessa

    dinmica de abertura ao capitalismo dependente no pas (que denomina como sociedade

    de classes) e de qual forma ele entra nessa nova organizao social do trabalho livre.

    Nesse caso, fundamental entender o contexto que proporcionou a Florestan Fernandes

    desenvolver a pesquisa sobre relaes raciais no Brasil.

    Na dcada de 1950, Florestan Fernandes20 convidado pelo socilogo francs

    Roger Bastide (1898-1974) para desenvolverem uma pesquisa acerca das relaes

    raciais em So Paulo. Essa pesquisa (parte de um projeto da UNESCO de combate ao

    racismo) integraria seu relatrio internacional sobre os resultados das relaes raciais no

    pas (pois o projeto abarcaria, alm de So Paulo, estados como Bahia e Rio de Janeiro),visto como um caldeiro das culturas, onde as raas teriam se assimilado ao ponto

    de erigirem uma convivncia democrtica no pas. A ideia central seria demonstrar

    19 o mtodo de interpretao histrica que atribui aos elementos de produo e reproduo da sociedade(como os modos de produo, as relaes e tcnicas de trabalho e produo sendo determinantes edeterminadas pelos homens), cindindo-a em classes sociais antagnicas, influncia fundamental nodesenvolvimento histrico da humanidade.

    20 considerado o maior socilogo brasileiro do sculo XX, sendo tambm considerado o fundador da

    sociologia crtica, que buscava na contribuio dos trs clssicos da sociologia europeia, como EmileDurkheim (1858-1917), Karl Marx (1818-1883), e Max Weber (1864-1920) os elementos metodolgicospara interpretao da realidade politica e social brasileira.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    36/50

    28

    como o Brasil conseguiu avanar nas relaes sociais sem contudo desembocar em

    tenses raciais. Esse projeto fazia parte de uma campanha internacional da UNESCO

    contra o racismo, tendo em vista a sombra do recente holocausto nazista (a agenda de

    combate ao racismo da UNESCO de 1949) e a ampla presena do colonialismo. Nesse

    contexto, o Brasil visto como um contraponto s experincias raciais nos Estados

    Unidos e frica do Sul.

    Tendo sido sua pesquisa direcionada s relaes raciais em So Paulo, Florestan

    Fernandes apresenta um grande resultado para a compreenso do preconceito de cor

    quando retira o debate de onde estava imerso no culturalismo influenciado por autores

    como Arthur Ramos e Gilberto Freyre, para pensa-lo a partir do negro inserido dentro

    da estrutura de organizao social tanto do trabalho escravo, quanto de sua passagem ao

    trabalho livre. Nessa pesquisa que resultou no livro Brancos e negros em So Paulo, de

    1955, concebido para integrar o projeto da UNESCO, Florestan Fernandes fica

    responsvel por investigar a posio do negro na histria econmica de So Paulo.

    Nesse trabalho, o autor apontar que com o declnio da produo aurfera em fins do

    sculo XVIII, a produo agrcola de So Paulo passar a ser dinamizada

    economicamente, o que favorecer a passagem da agricultura de subsistncia para a de

    grande lavoura. Porm, a partir da proibio do trfico, a mo de obra escrava torna-se

    insuficiente para suprir a demanda decorrente da expanso da produo do caf,

    levando, consequentemente, a que os fazendeiros paulistas invistam na importao de

    mo de obra livre europeia.

    Dentro desse quadro ele observar o modelo oneroso de abolio da mo de obra

    escrava que recaiu sobre o negro no Brasil, privado de qualquer medida compensatria

    pelos anos de escravido. Ele percebe que o prprio modelo competitivo nascente com o

    trabalho livre mostrava-se desigual e desvantajoso ao negro, pois alm de no possuir as

    habilidades mdias nova organizao do trabalho que se apresentava, a marca dopreconceito de cor era um elemento a se considerar, o que colocava em vantagem o

    trabalhador branco, especialmente o europeu. O panorama apontado que faz parte dos

    resultados das pesquisas desenvolvidas por Florestan Fernandes na dcada de 1950,

    ganham aqui seus contornos mais importantes: no apenas seus resultados frustram os

    objetivos da UNESCO em evidenciar elementos da chamada democracia racial no

    Brasil, mas servem de base ao aprofundamento de suas investigaes quanto as

    categorias de raa e classe dinamizando as relaes sociais internas.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    37/50

    29

    Nesse livro, principalmente em seus trs primeiros captulos, sua preocupao

    estar voltada aos elementos que permanecem como resqucio da sociedade estamental

    e se dinamizam com o trabalho livre na sociedade de classes, criando condies

    extremamente desvantajosas ao ex - cativo, ou na forma que chamou de integrao do

    negro sociedade de classes. Sua preocupao est centrada no que chamou de

    passagem do negro de escravo ao cidado. Com essa perspectiva em vista, preciso

    pensar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil criando condies desiguais de

    dinamizao no seio da produo e impossibilitando qualquer perspectiva de aspirao

    democrtica. A contribuio do negro na formao nacional deve ser pensada, portanto,

    a partir das relaes sociais que ele trava em paralelo aos mecanismos de blindagem que

    impedem sua participao efetiva no trabalho livre dentro da sociedade de classes.

    Sendo assim, Florestan Fernandes tambm acaba por contribuir ao debate sobre o negro

    e a dinmica econmica nacional deslocando a perspectiva para o da organizao social.

    Como nos mostra a sociloga Daniele Motta,

    Florestan desloca o debate sobre o negro do campo da cultura para

    o campo da organizao social. Essa no uma questo pouco

    importante, pois a discusso sobre o negro fundamental para

    pensarmos a formao e a emergncia do povo brasileiro na histriado pas (...). O problema racial colocado sob a perspectiva da

    formao da sociedade capitalista envolve a problemtica da questo

    nacional, pois para Florestan a questo racial tem uma importncia

    relevante na anlise da sociedade como um todo. Por isso, ainda que

    perceba as especificidades da questo racial, no a trata de forma

    autnoma, essa uma questo metodolgica crucial para o

    entendimento da sociologia de Florestan. (MOTTA, 2012,p, 17).

    Para Florestan Fernandes, a histria do negro em So Paulo confunde-se com a

    do prprio desenvolvimento da economia da cidade, onde o escravo dinamizou a

    organizao social sendo inserido como instrumento de trabalho e capital. Dessa forma,

    interessa ao autor a posio do negro em relao ao trabalho, ou seja, o negro enquanto

    inserido nas relaes materiais de reproduo social. enquanto sua posio de

    trabalhador escravo que o negro contribui na dinmica econmica brasileira. Quanto a

    isso, o autor nos diz:

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    38/50

    30

    (...) Todos reconhecem que o progresso de So Paulo

    um produto da expanso agrcola do sculo XIX, e que ela

    mesma seria inconcebvel sem o negro escravo. No

    entanto, supe-se que isso verdadeiro no sentido mais

    simples: de que ao negro coubera a parte do agente

    passivo, do rude e mudo instrumento de trabalho,

    inexpressivo como fator histrico. Raciocinando-se desta

    maneira, perde-se de vista que a escravido, como

    instituio social, se articula dinamicamente com o

    sistema econmico de que fazia parte; se era por ele

    determinada, agia sobre ele por sua vez, e o de terminava.

    (FERNANDES, 2008, p, 118).

    Percebemos nessa passagem que Florestan Fernandes parte, assim como Clvis

    Moura para explicar a dinmica do sistema escravista, da organizao social do trabalho

    escravo. Da mesma maneira que Clvis Moura, ele se posiciona contrrio a toda uma

    corrente de pensamento que ao voltar sua anlise para a histria da nossa formao

    social, no adotavam a perspectiva do trabalhopara seus estudos. Dessa forma, o que

    teramos ao fim seria uma imagem do Brasil em quea figura do senhor de engenho

    (paternalista) e o escravo ganhariam maior coro por esconder as contradies

    fundamentais dessa sociedade.

    Embora parta da perspectiva de que o negro dinamiza a economia estritamente a

    partir do seu trabalho, as contradies fundamentais que partem dessa esfera no

    colocam as manifestaes de rebeldia do escravo em choque direto com as estruturas

    escravistas, no sentido de desmorona-las (como defende Clvis Moura), mas essa

    contradio da esfera do trabalho contribui na percepo do lugar de cada elementosocial dentro da composio assimtrica adotada naquele modelo de sociedade

    escravista.

    (...) Todas as ocupaes de alguma representao social

    permaneciam como privilgios das pessoas livres e

    brancas, pois s excepcionalmente graas a certos

    mecanismos de atribuio de status, que os homens de

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    39/50

    31

    cor livres (pardos ou negros) conseguiam acesso a tais

    ocupaes. (FERNANDES, 2008, p, 112).

    Como podemos perceber, Florestan Fernandes no compreende a sociedade

    cindida em duas classes sociais antagnicas partindo da perspectiva da luta de classes

    no formato explorado por Clvis Moura. Para o autor, as relaes de classes na

    sociedade estamental, como chamou, criavam condies de privilgio de um lado e

    imobilidade de outro que tinham por fundamento a ideia de raa, em que os negros, pelo

    estigma do preconceito de cor, ocupavam postos considerados de maior precariedade no

    seio da sociedade, enquanto brancos e livres possuam maior vantagem dentro das

    condies de trabalho.

    Para compreender a dinmica e desenvolvimento da economia paulista

    integrando-a o negro submetido a mode obra escrava, Florestan Fernandes no ir se

    prender a qualquer formalismo metodolgico. Ser com o materialismo histrico, por

    exemplo, que nosso autor buscar compreender as tendncias de desenvolvimento das

    estruturas sociais no perodo escravista, e tambm, como essas mesmas estruturas,

    estando submetidas a processos de mudana, ao determinarem seu agente a uma dada

    condio material e histrica, ela ao mesmo tempo determinada e dependente da

    dinamizao desses mesmos agentes para sua transformao. Mas ser tambm com o

    socilogo Emile Durkheim que nosso autor encontrar melhores ferramentas para o

    estudo dos processos sociais do sistema escravista, mais especificamente, a condio de

    marginal em relao ao nascente mercado de explorao do trabalho livre.

    Ainda que no seja universalmente aceito por todos os socilogos, o

    mtodo que oferece maiores garantias de exatido sociologia

    emprica aquele que considera os fenmenos particularesinvestigados em seu modo de integrao ao contexto social. Durkheim

    formulou muito bem o principio implcito nessa maneira de encarar os

    fatos sociais ao escrever que a origem de todo processo social de

    alguma importncia deve ser procurada na constituio do meio social

    interno. (FERNANDES, 2008, p, 268).

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    40/50

    32

    Por sua vez, Clvis Moura adotando o materialismo histrico21para se lanar

    interpretao do Brasil, denomina esse perodo em duas etapas para melhor

    compreenso: escravismo pleno e escravismo tardio. Para o autor, o escravismo pleno se

    caracterizaria pelo perodo em que o sistema escravista estava em seu apogeu. Seria o

    perodo em que o trfico negreiro rendia vantajosos lucros e era um dos setores

    fundamentais da reproduo do escravismo. Por fim, o auge de acumulao primitiva de

    capital por parte da elite lusitana, e o perodo de dinamizao de todos os setores da

    esfera escravista. importante frisar que sendo em Clvis Moura a resistncia um

    elemento fundamental na relao senhorescravo, essa fase ser caracterizada tambm,

    por outro lado, na observao de que nesse momento o nico sujeito que fazia parte da

    luta anti-escravista era o prprio escravo, no contando com ajuda de nenhum setor

    politico da sociedade para transformao das condies objetivas de sua existncia.

    Neste perodo da histria, eram localizadas nas regies norte e nordeste as reas de

    maior produo econmica em solo brasileiro.

    Na outra ponta, o autor apresenta o conceito de escravismo tardio, perodo

    marcadamente abolicionista, em que outros setores da sociedade eram favorveis ao fim

    da escravido, e seus resquciosentravam em relao com setores modernizados da

    economia brasileira (energia eltrica, estradas de ferro, industrias etc). Nesse perodo

    temos tambm a proibio do trfico negreiro, que acaba desembocando numa grande

    dinmica interna de reabastecimento dos polos principais de produo (dessa vez

    situados na regio sul e sudeste) com mo de obra escrava vinda das antigas regies de

    poderio econmico do pas, a saber, norte e nordeste.

    Ele entende por isso um momento de declnio do escravismo em que as relaes

    de um capitalismo dependente comeavam a ser introduzidas com maior velocidade no

    seio da sociedade brasileira, num processo em que j comeava a se evidenciar as

    demandas de substituio da mo de obra escrava para a mo de obra livre. nesseperodo tambm, segundo o autor, que surgiro os abolicionistas, evidenciando que a

    partir desse momento a luta negra passa a ser tambm uma luta de brancos.

    Com o crescimento da produo do caf em So Paulo, acaba-se criando a

    demanda de mo de obra. E o ciclo que se inicia de deslocamento da mo de obra

    21A tese central que caracteriza o materialismo histrico a de que as diferentes formas de produo dosperodos histricos tendem a surgir ou desaparecer conforme expandam ou declinem a capacidadeprodutiva da sociedade. Em outras palavras, a teoria cientifica que busca na histria a fora motriz que

    impulsiona os diferentes eventos que tendem a determinar seu desenvolvimento econmico especifico,suas relaes sociais, sua diviso da sociedade em classes sociais e as transformaes que esses eventosocasionam nos modos de produo.

  • 7/25/2019 Clvis Moura e Florestan Fernandes - O Protesto Escravo Na Derrocada Do Sistema Escravista Nas Obras Rebelie

    41/50

    33

    escrava das d