CHAGAS, Mario. Diabruras Do Saci Museu, Memória, Educação e Patrimônio. IPHAN – Musas Revista...

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 Diabruras do Saci: museu memória educação e patrimônio Mário Chagas Resumo Museólogo. doutor em Ciências Sociais pela Univer- sidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ) . Atual- mente. é professor adjunto do mestrado em Memó- ria Social e do Departamento de Processos e Estudos Museológicos da Universidade do Rio de Janeiro  UNI Rio) e coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN . Do coração de um museu que completa seus seten- ta anos de existência. o Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro . autor resgata uma Perna do Moleque Saci  . para falar de i maginário e memória social. Ma i s ainda . trata de uma exist ê ncia que trans- cend e a veracidade documental . e mesmo a mate rial idade pura . apontando para uma relação ine xt rincável entre patrimônio material e espiritual. tal como diferentes aspectos de um mesmo patrimônio cultural. Emoutras palavras . mais do que abordar a musealização da Perna do Saci , o artigo tematiza a musealização da idéia do Sacioo que leva o autor ao encontro de Monteiro Lobato e seu mer- gulho na memória do personagem. bem como à dis- mo inglês heritage education. Traduzido como edu- ca ç ã o patrirnonial , seu transplante ignorou possi- bilidades de diálogo em um primeiro momento ; por outro lado . aponta o artigo que se acenam atual- mente tentativas e reconhec mentos de uma antro- pof a gi a inevitável . i I - , ~. I  \_. l : ,  . ; l J ;  . _ ; . . - ,  ~ - ~ I~l  ~ -..  - - . . L . ;  ,  - t  t ~.  ~ t . . - ~  . ~ -f f -  . -J

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CHAGAS, Mario. Diabruras Do Saci Museu, Memória, Educação e Patrimônio. IPHAN – Musas Revista Brasileira de Museus e Museologia. Brasília IPHAN, n. 1, p. 136-146, 2004.

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  • Diabruras do Saci: museu, memria, educao e patrimnio

    Mrio Chagas

    Resumo

    Muselogo. doutor em Cincias Sociais pela Univer-sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atual-mente. professor adjunto do mestrado em Mem-ria Social e do Departamento de Processos e EstudosMuseolgicos da Universidade do Rio de Janeiro(UNI Rio) e coordenador tcnico do Departamentode Museus e Centros Culturais do IPHAN.

    Do corao de um museu que completa seus seten-ta anos de existncia. o Museu Histrico da Cidadedo Rio de Janeiro. o autor resgata uma" Perna doMoleque Saci". para falar de imaginrio e memriasocial. Mais ainda. trata de uma existncia que trans-cende a veracidade documental. e mesmo amaterial idade pura. apontando para uma relaoinextrincvel entre patrimnio material e espiritual.tal como diferentes aspectos de um mesmopatrimnio cultural. Em outras palavras. mais do queabordar a musealizao da "Perna do Saci", o artigotematiza a musealizao da idia do Sacioo que levao autor ao encontro de Monteiro Lobato e seu mer-gulho na memria do personagem. bem como dis-cusso mais ampla em torno da importao do ter-mo ingls heritage education. Traduzido como "edu-cao patrirnonial", seu transplante ignorou possi-bilidades de dilogo em um primeiro momento; poroutro lado. aponta o artigo que se acenam atual-mente tentativas e reconhecimentos de uma antro-pofagia inevitvel.

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  • I - A perna do Saci

    Cravado no corao do Parque da Cidade,cercado por rvores e por uma comunidadepopular que no pra de se movimentar e cres-cer, o Museu Histrico da Cidade do Rio deJaneiro segue por uma estrada que aparente-mente o afasta da cidade. Mas a cidade teimaem se aproximar dele. Tanto a cidade quantoas rvores do Parque so devoradoras. Alheios mltiplas redes de sentido e ao caos urbano,o Museu da Cidade parece um ente fantsticohabitando a floresta. A cidade de que ele trata quase uma abstrao, quase inexistncia - es no inexistncia completa porque ele tratade afirm-Ia e de dar-lhe um corpo material dememria; a "Cidadede que o Museu trata pare-ce no ter conexo com a cidade praticada ecotidianamente vivida por seus habitantes eusurios. Todavia, para alm desse jogo de afas-tamentos e aproximaes, possvel compre-ender que, assim como a cidade encanta e as-susta, maravilha e assombra, oferece armadi-lhas e abrigos, assim tambm o Museu, sobre-tudo quando ele trata de apresentar uma cida-de que no se pode ver, que no se pode tocar eque tecida com as linhas da memria - agu-lha invisvel-, que atravessa coisas e imagens.

    Como evitar a armadilha do Museu da Ci-dade? Deciso: por hoje e apenas por hojeno quero falar do Museu Histrico da Cida-de do Rio de Janeiro, que em 2004 comple-tou 70 anos de existncia oficial, e nem mes-mo da Cidade do Rio de Janeiro, que em 2005completar 440 anos. Quero falar de algumacoisa que l se encontra oculta, no coraodocumental do Museu, na intimidade de umlugar de memria da cidade; quero falar deuma "Perna do Moleque Saci".

    Segundo alguns depoimentos, cuja veraci-dade no comprovada, existiria ali uma fichacatalogrfica que daria conta do registromuseogrfico de uma "Perna do Saci". Devodizer que, para alguns tcnicos especialistas, oassunto motivo de constrangimento e, paraoutros, motivo de sorriso e blague. Em tornoda "Perna do Saci" havia at recentemente umar mistrio e um certo silncio, o que contri-buiu para ampliar a sua performance de curio-sidade e para robustecer a sua musculaturaaurtica. No tenho interesse, no presentemomento, na comprovao ou na negao daexistncia concreta do registro documental da"Perna do Saci". Deixo esse assunto para in-vestigadores interessados em provas documen-tais positivas. Para os objetivos a que me pro-ponho, a suposio de sua existncia e o fatode um dia algum ter imaginado que o seu re-gistro estaria ali no ncleo documental doMuseu so suficientes. Sntese: meu interesseest concentrado no imaginrio, na memriasocial e no debate que se organiza em torno dodenominado patrimnio cultural (Abreu eChagas, 2003).

    Assim, admitida a suposio anteriormenteindicada, possvel avanar um pouco mais.Algumas questes podem, ento, ser levanta-das: aquela "Perna" seria a "Perna" (ou a repre-sentao da "Perna") que o Saci tem ou a "Per-na" (ou a representao da "Perna") que eleno tem? Caso aquela fosse a "Perna" (ou a re-presentao da "Perna") que o Saci no tem,estaria ali um indcio de que o Saci poderia tertido duas pernas; caso fosse a "Perna" (ou a re-presentao da "Perna") que o Saci tem, esta-ria ali o sinal de sua morte, no papel de mole-que que vive pulando. A musealizao da "Per-

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    na do moleque Saci" prope, portanto, um apa-rente paradoxo: ou o Saci teve duas pernas ouno tem mais nenhuma e, em ambos os casos,o que est em questo a existncia mesma doSacio O assunto, como diriam os humoristas,tem alguma piada e capaz de provocar sorri-sos e at gargalhadas.

    Para alm de uma possvel cena de hu-mor, a perspectiva da musealizao da "Per-na do Saci" faz crescer uma outra questo,qual seja a do corpo material do mito. Omoleque Saci, seja ele entidade malfica ouentidade graciosa e zombeteira, para ter sen-tido e sensibilizar os sentidos humanos, pre-cisa de um corpo material. Seja qual for anatureza da matria, ela um atributo indis-pensvel para a realizao do mito.

    Admitindo a existncia musealizada da "Per-na do Saci'', no seria difcil compreend-Iacomo frao do denominado "patrimnio ma-terial"; considerando a existncia do Saci comoentidade mtica, no seria difcil entend-Iacomo fragmento do denominado "patrimnioimaterial" ou "espiritual".

    Nesse ponto, socorro-me do filsofo Baruchde Espinosa, filho de me portuguesa, para com-preender melhor a relao entre o material e oespiritual. Segundo Espinosa (tica, Proposi-o VII): ''A ordem e a conexo das idias amesma que a ordem e a conexo das coisas".Mais adiante, Espinosa esclarece que

    a substncia pensante e a substncia exten-sa so uma e a mesma substncia, compre-endida ora sob um atributo, ora sob outro.Da mesma maneira, tambm um modo daextenso e a idia desse modo so uma e amesma coisa, mas expressa de duas manei-ras diferentes (1973, p. 147).

    Ancorado na reflexo de Espinosa, sou le-vado compreenso de que a ordem e a cone-xo do patrimnio espiritual so as mesmas quea ordem e a conexo do patrimnio material; eainda que o patrimnio material e o espiritualso diferentes modos e aspectos de uma e mes-ma coisa, qual seja o patrimnio cultural, ain-da que expressas de maneiras diferentes.

    Assim, se no incorro em erro, posso avan-ar que a musealizao da "Perna do Saci" im-plica a musealiza~o da idia do Sacio De qual-quer maneira, para ser musealizada, a entidademtica demanda um corpo (ou pelo menos uma"Perna"); mas a "Perna" no est completa sema referncia entidade rntica. O mito deman-da o corpo e o corpo demanda o mito. O apa-rente paradoxo proposto pela musealizao da"Perna do Moleque Saci" resolve-se quando omito e o corpo se aproximam ou, em outros ter-mos: quando a "Perna" assumida como ummdium ou um ponto por onde passam ou po-dem passar mltiplas conexes de uma rede desentidos ainda mais ampla, ou, de modo aindamais radical, quando a "Perna" compreendi-da no como uma representao, mas como ummodo de ser do patrimnio cultural Sacio

    II - Ainda sobre o Saci

    Quem conta um ponto aumenta um con-to.' O interesse na hiptese da musealizaoda "Perna do Saci" levou-me tambm ao en-contro de Monteiro Lobato, que, em 1917,abriu, a partir do "Estadinho" - designaopopular da edio vespertina do jornal O Esta-do de So Paulo - um inqurito sobre o Saci.'

    A investigao conduzida por Lobato, comapoio da imprensa, implicou um mergulho no

  • llustraao/Marcia Estcllit.a Lins

    Sacy anda no mundopra faz trampolinageE o Si seo imperadPra faz politicage!

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  • imaginrio popular e no campo do que hoje sepoderia denominar memria social. Utilizando-se de tcnicas cientficas de coleta de dados,combinando questionrios e registros de depo-imentos textuais, a pesquisa em torno da me-mria do Saci promoveu uma sondagem deexpressiva amplitude. Por seu intermdio, bus-cava-se constituir retrato multifacetado daque-le personagem hbrido e mutante, procurava-se a identificao de suas caractersticascomportamentais, o seu corpo mtico e suasvariantes, sem a inteno de fix-lo numa ni-ca e rgida moldura.

    O resultado parece ter sido surpreendente.Segundo Carmen Lcia de Azevedo, MrciaCamargos e Vladimir Sacchetta (1998):

    Choveram cartas de Minas Gerais, do Esta-do do Rio e, sobretudo, de regies paulistas.Se o estilo e a abordagem das respostas vari-avam, elas conservavam, em comum, a ori-gem do mito, que emergia de relatos de ex-escravos empregados nas fazendas ou em pe-quenas propriedades agrcolas. Circunscrito zona rural, o moleque, segundo os depoen-tes, gostava de danar e praticar diabruras.

    Como um desdobramento desse movimen-to de pesquisa social, o jornal O Estado de SoPaulo promoveu um concurso do qual partici-param diversos artistas com trabalhos inspira-dos na figura do Saciol

    A investigao de Lobaro, longe de quererse afirmar como cientfica, afirmava-se comoao poltica e pedaggica e ainda abria espa-os para boa dose de humor e arte. O inquritoem torno do moleque Saci abria brechas para amultiplicidade de vozes e evitava a cristaliza-o de uma verdade nica e bem acabada. Asprimeiras linhas do prefcio do livro O Sacy-

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  • Perr: resultado de um inqurito, publicado em1918, so, nesse sentido, bastante explcitas:

    Para ventilar uma creao puramente sub-jetiva como esta do Sacy a forma deinquerito a mais razoavel. Evita que ums sujeito tome conta do assumpto, e im-ponha maadoramente a sua ideia em es-tiradas consideraes eruditas, onde o quemais procura no revelar o Sacy, senopavonear a si proprio com grande riquezade pronomes bem collocados. Assim, eminquerito, todos falam, o estylo varia, opittoresco augmenta, e concorrem sobre-tudo os no profissionais das letras."

    Textos em prosa, depoimentos orais, ver-sos, cantigas, desenhos, aquarelas, medalhes,esculturas, anncios comerciais e outros itensserviam para dar corpo e sentido entidade.O livro publicado por Monteiro Lobato, porseu turno, mais um fragmento desse mesmocorpo mtico; mais um aspecto ou um atri-buto da substncia Saci, considerada aquicomo patrimnio cultural. A iniciativa do au-tor de promover a atualizao e o registro dapotente memria do Saci tem correspondn-cia com o que na atualidade se denomina deRegistro do Patrimnio Imaterial, oficialmen-te institudo por meio do Decreto 3.551, de 4de agosto de 2000.

    importante lembrar que em 1917 o mun-do estava em guerra; o Brasil das belas letrasolhava para a Europa e se expressava em fran-cs, e os modernistas ainda ensaiavam os seusprimeiros passos. A moldura conservadora doquadro cultural da poca reala o carter pio-neiro, social e moderno, alm do ntido acentopoltico, pedaggico e nacionalista, do inqu-rito conduzido por Lobato, que no Intrito dolivro anteriormente referido afirmava:

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  • Comeara maio anno de 1917.A carniariaeuropia, no apogeu, reflectia por c o cla-ro dos incndios, os estouros d'obuzes, aangustia do gaz asphyxiante e a selvageriadosmaismodoscivilisadosdematar emgran-de. Quem se afoutasse a abrir uma folha sor-via sangue dos telegrammas seco-livre.Um engulho. Foiquando surgiuo Sacy,e veiucom suas diabruras allivar-nos do pesadelo.Por varias semanas alvorotaste meio mun-do, oh infernal maroto, e desviaste a nossaatteno para quadro mais ameno que o tru-cidar dos povos. Bendito sejas! Ests perdo-ado de muitas travessuras por haveres inter-rompido, por um momento, em nossa imagi-nao, a hedionda sesso permanente dehorror, aberta pelo sinistro 2 de Agosto de1914, de execrabilissima memoria.

    Volto "Perna do Saci". A hiptese daexistncia de um registro documental sobreessa "Perna" no conjunto das fichascatalogrficas do Museu Histrico da Cida-de do Rio de Janeiro desafia a imaginaomuseal. A "Perna" musealizada parece guar-dar o mesmo carter zombeteiro da entidademtica a que ela se refere. A hiptese da suapresena parece mais uma diabrura e umatraquinagem do moleque Sacio

    Para alm da hiptese do registro documen-tal, admita-se, por um momento, que a "Pernado Saci" tenha sido efetivamente enquadradana categoria de patrimnio culturalmusealizado. Nesse caso, eu gostaria de proporum pequeno problema: o que fazer com a "Per-na do Saci" do ponto de vista da denominadaeducao patrimonial?

    111- O que fazer com a perna do Saci

    No inqurito conduzido por MonteiroLobato foi includo o depoimento da professo-

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    ra sra. Antonia Benta Alves de Lima", com ses-senta anos de idade, registrado em texto escri-to por sua neta. Em seu relato, a professora in-dica que por ocasio da visita do imperadorDom Pedro 11 Cidade de It, um velho cabo-clo sexagenrio, metido a poeta, foi levado presena do soberano. O caboclo recomendouque o imperador tomasse muito cuidado com oSacio Interessado na conversa, o monarca pe-diu que o caboclo fizesse uns versos sobre otema. O caboclo consentiu, puxou um estribi-lho, provocou gargalhadas e mandou de repente(Lobato, 1998, p. 89):

    Sacy anda no mundopra faz trampolinageE o Si seo imperadPra fazpoliticage!

    A velha e experiente professora, como umanarradora benjaminiana (1985, p. 197-221),transmite para a sua neta, como quem quer darconselhos, o mito do Sacio Pela mediao daneta, o relato da av incorporado ao inquri-to de Lobato. O delicioso relato da professoraaposentada e a trova zombeteira' que ela atri-bui ao personagem do velho caboclo de It su-gerem que existe um ampliado campo de possi-bilidades no que se refere operao com a en-tidade mtica do Sacio De outro modo: o Sacitem vrios avatares. Ele zomba, ele dana, elefaz diabruras, ele desorganiza, ele faz"trampolinage" e, em certos casos, compara-sequeles que, ocupando o cargo de mandatriosda nao, fazem "politicage". O relato da pro-fessora aposentada, depois de trinta anos demagistrio, restitui e atualiza a dimenso peda-ggica, crtica e poltica do mito, sem, no en-tanto, abolir suas outras dimenses.

  • Por esse relato, firma-se a compreenso deque existe apossibilidade de uma conversa re-novada entre o patrimnio material e o espiri-tual. Essa compreenso abre caminhos paraprticas educacionais ainda no previstas.

    Voltando, mais uma vez, "Perna" musea-lizada do Saci e enfrentando a questo: O quefazer com esse fragmento do corpo do mito?Em primeiro lugar, eu gostaria de descartar todae qualquer sugesto de descartar esse bem cul-tural musealizado; em segundo lugar, eu gosta-ria de abandonar o caminho fcil que seria ode se enredar na crtica estril da documenta-o museogrfica feita por geraes anteriores;e, finalmente, em terceiro lugar, eu gostaria desugerir que se acolhesse o carter zombeteiroda "Perna do Saci" e que, a partir da, se bus-casse desenvolver experincias museais e edu-cacionais criativas e inovadoras.

    Em outras palavras, a minha sugesto quea "Perna do Saci" - independentemente dacomprovao de sua existncia musealizada -,seja utilizada como recurso educativo, comoobjeto criador e gerador de mltiplas experin-cias. Para isso, seria necessrio reconhecer queesse objeto - frao do corpo mtico - tem opoder de condensar diferentes histrias. Poder-se-ia denominar essas experincias e prticassociais de "educao patrimonial"?

    A complexidade do tema e a paixo queele aciona exigem abordagem cautelosa. Im-porta reconhecer, inicialmente, que nos lti-mos vinte anos consagrou-se no meio muse-olgico brasileiro, atingindo tambm algunsmuseus portugueses (Duarte, 1993), a expres-so: "educao patrimonial". Trata-se, comose sabe, de uma traduo da expresso inglesaheritage education.

    Essa expresso, que, em certo sentido,constitui um campo de trabalho, de reflexo eao e, como tal, pode abrigar tendncias eorientaes educacionais diversas, divergentese at conflitantes, essa expresso - insisto notermo - estabeleceu-se no Brasil com o desejode se constituir em marco zero, em gestoinaugural de uma metodologia, de uma prticae de uma reflexo vinculadas ao campo dopatrimnio cultural. O marco zero adotado foi:em termos temporais, o ano de 1983; em termosespaciais, a Cidade de Petrpolis, em termosinstitucionais, o Museu Imperial (Horta et aI.,1999). Assim, todas as prticas e reflexesanteriores a esse marco zero foram desau-torizadas como prticas constituintes do campoda educao patrimonial.

    Em outras palavras: o esforo de fixao domarco zero da educao patrimonial no Brasil,como uma metodologia de sabor ingls,pretendeu, de modo consciente ouinconsciente, descartar as mltiplasexperincias anteriores que se desenvolveram

    no campo da educao patrirnonial.'O transplante da heritage education para o

    Brasil no levou em conta que a antropofagiano uma exclusividade brasileira. Osbrasileiros no so os nicos antropfagos domundo. A inteligncia, a criatividade, ainventividade, a msica, o esporte, a arte, ou,em duas palavras, a cultura brasileira tambmtem sido anrropofagizada e at canibalizada,ainda que os ritos e gestos sejam diferentes.

    O transplante da heritage education para oBrasil no levou em conta os trabalhos de PauloFreire, alguns deles adotados como base tericada chamada Nova Museologia, desde os anos70 do sculo XX (Freire, 1992). Veja-se a esse

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    respeito os dois volumes da coletnea Vagues

    (Bary e Wasserman, 1992 e 1994), publicados

    na Frana. Veja-se tambm os inmerosdepoimentos de Hugues de Varine sobre a

    importncia do pensamento radical de Paulo

    Freire para a sua formao pessoal (Varine,

    1979). Alguns profissionais de museus

    brasileiros foram sensibilizados para a obra de

    Paulo Freire a partir dos depoimentos de Hugues

    de Varine.

    Ao se fazer herdeira da hciitage cclucation, aeducao patrimonial abriu mo de um dilogopossvel e possivelmente frtil com os

    muselogos, antroplogos, socilogos, psiclo-

    gos, filsofos e educadores brasileiros. Esse for-

    mato de educao patrimonial desconsidera os

    trabalhos de Gustavo Barroso, Mrio deAndrade, Rodrigo Meio Franco de Andrade,

    Ansio Teixeira, Gilberto Frcyre, Darcy Ribei-ro, Nise da Silveira, Roquete Pinto, Paulo Freire

    e, se quisermos ser mais especficos,

    desconsidera os trabalhos de Sigrid Porto, Nairde Carvalho, Gui de Holanda, F. dos Santos

    Trigueiros, Regina Real, Waldisa Russio, Mau-rcio SegaIl, Fernanda Camargo, Liana O' Cam-po, Rui Mouro, Maria Clia Teixeira MouraSantos, Cristina Bruno e tantos outros.

    IV - Para alm da educao parimonial

    Nos ltimos vinte anos, a expresso "edu-cao patrimonial" consagrou-se no Brasil. E

    consagrou-se no como metodologia, mas comocampo de trabalho, de reflexo e ao. A ex-

    presso educao patrimonial foi antro-

    pofagizada. Nesse sentido, as reflexes e prti-

    cas educativas desenvolvidas por Vera Alencar,

    Lygia Segala, Denise Grispun, Magaly Cabral,Esther Valente, Sbclc Cazclli e tantos outros-reflexes e prticas essas que tomam como pon-

    to de partida a relao de indivduos e grupossociais com o patrimnio cultural (material eimatcrial) - fazem parte desse campo amplo.

    Concluso: a idia de um marco zero para aeducao patrimonial j no faz nenhum sen-tido. Insisto em dizer: a educao patrimonial

    foi devorada e agora est sendo regurgitada comnovas significaes.

    O campo da educao patrimonial no

    tranqilo e no pacfico; ao contrrio, terri-trio em litgio, aberto para trnsitos, negocia-es e disputas de sentidos. Orientaes, ten-dncias e metodologias diversas esto em jogonesse territrio. Toda tentativa de reduzir a

  • Marcia Estellita Uns

    educao patrimonial a uma nica metodologiatambm pode ser lida como tentativa de dom-nio hegemnico, controle e eliminao de di-ferenas. Concluso: a denominada educaopatrimonial no por si s emancipadora ourepressora, frtil ou estril, transformadora ouconservadora 7

    Para alm da educao patrimonial, inte-ressa pensar a educao como alguma coisaque no se faz sem se ter em conta um deter-minado patrimnio cultural e determinadosaspectos da memria social; para alm daeducao patrimonial, interessa compreen-der a educao como prtica social aberta

    criao e ao novo, ecloso de valores quepodem nos habilitar para a alegria e a emo-o de lidar com as diferenas.

    O ponto de partida para reflexes e prticasinovadoras no campo da educao e dos mu-seus bem pode ser a "Perna do Saci". A partirdesse fragmento de corpo mtico muito podeser feito, pois o novo no est aprisionado nascoisas ou imagens e no tem domiclio fixo.Todavia o novo pode eclodr e explodir a partirda relao que formos capazes de manter comas coisas ou imagens. Imagens e coisas tam-bm nos olham, nos ensinam, nos condicioname exercem sobre ns o seu poder de afetar eserem afetadas.

    Falei sobre a " Perna do Saci", mas poderiater falado sobre a roupa da Bernncia - entedevorador de homens e mulheres e que reduztudo a uma cpia de si mesmo -, poderia falarsobre a farda de Oeodoro da Fonseca, sobre omanto do Imperador O. Pedro II, sobre as Bo-tas do Gigante do Museu Jlio de Castilhos,sobre o vestido de Maria Bonita, sobre o revl-ver de Caxias e muito mais. Em todos os casos,h um corpo material e um sentido (ou corpo)imaterial que lhe confere sentido e desafia asnossas prticas cotidianas.

    Notas

    1. Disponvel em www/http/contoaberro. org.br >.

    2. Em 1918, Monteiro Lobato publicou o livro O Sacy-Perer: resultado de um inqurito. So Paulo: Seco deObras do Estado de So Paulo.

    3. Reprodues fotogrficas de algumas obras que partici-param desse concurso foram includas no livro Sacy-Perr:resultado de um inqurito.

    4. Cf. Prefcio. Lobato, 1998.

    5. Ser a Dona Benta!

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    6. Uma rpida conferncia da bibliografia apresentada noGuia Bsico de Educao Patrimonial (Horta et al., 1999) suficiente para comprovar que a produo de conheci-mento e prticas anteriores no foram levadas em consi-derao.

    7. Inspiro-me em texto de Myrian Seplveda dos Santos(1993).

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