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  • Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 143

    Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes

    Criminolgicas s Teorias da Pena na Era do Grande Encarceramento1

    Sobre las Posibilidades de una Penologa Crtica: Provocaciones Criminolgicas a

    las Teoras de la Pena en la Era del Gran Encarcelamiento

    On the Possibilities of a Critical Penology: Criminological Provocations of the Punishment Theories in the Age of the Great Incarceration

    Salo de Carvalho

    Professor dos cursos de Graduao e de Ps-Graduao (Mestrado em Direito) do Centro Universitrio

    La Salle (Professor Permanente) e da Universidade Federal de Santa Maria (Professor Colaborador).

    Professor Adjunto do Departamento de Cincias Penais da UFRGS (2010-2011). Professor Titular

    do Departamento de Cincias Criminais e do Programa de Ps-Graduao (Mestrado e Doutorado)

    da PUCRS (1997-2010). Graduado em Direito pela UNISINOS (1993). Mestre em Direito pela

    Universidade Federal de Santa Catarina (1996). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paran

    (2000). Ps-Doutor em Criminologia pela Universidad Pompeu Fabra (Barcelona, ES) (2010). Ps-

    Doutorando em Criminologia, com bolsa de pesquisa aprovada pelo CNPq, na Universit di Bologna

    (Bologna, ITA) (2013-2014). Presidente do Conselho Penitencirio do Rio Grande do Sul (2001-2002).

    E-mail: [email protected]

    Resumo

    A partir da percepo do vertiginoso aumento do nmero de pessoas presas nas ltimas dcadas,

    especialmente no Brasil, a pesquisa procura indagar sobre o papel da teoria do direito penal. O

    artigo parte do pressuposto de que a violncia da prisionalizao produz inevitveis implicaes

    ticas, sociais e polticas na dogmtica penal. Assim, procura indagar as relaes entre as teorias

    de justificao da pena e o fenmeno (emprico) do encarceramento em massa. As questes que

    movem a reflexo so, portanto, a instrumentalidade das teorias da pena na expanso do po-

    testas puniendi e as explicaes que os modelos justificacionistas ofereceriam ao problema da

    hiperpunitividade. A hiptese central do trabalho a de que as tradicionais teorias da pena, em

    razo de sua fundamentao (jurdica) contratual e de sua perspectiva (social) consensualista,

    so incapacitadas de oferecer um modelo efetivamente redutor do punitivismo, situao que

    somente pode ser superada com a adoo de critrios de interpretaes fundados na ideia de

    conflito condies de possibilidade de uma penologia crtica.

    Palavras-Chave: Punio; Teorias da pena; Penologia; Criminologia crtica

  • Carvalho, S.

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    Resumen

    Desde la percepcin del vertiginoso incremento en el nmero de personas presas en las ltimas

    dcadas, especialmente en Brasil, la investigacin busca indagar acerca del papel de la teora

    del derecho penal. El presente artculo parte del supuesto de que la violencia de la prisionaliza-

    cin produce inevitables implicaciones ticas, sociales y polticas en la dogmtica penal. As,

    busca indagar las relaciones entre las teoras de justificacin de la pena y el fenmeno emprico

    del encarcelamiento masivo. Las cuestiones que mueven la reflexin son, por lo tanto, la instru-

    mentalidad de las teoras de la pena en la expansin de la potestas puniendi y las explicaciones

    que los modelos justificacionistas brindaran al problema de la hiperpunitividad. La hiptesis

    central del trabajo consiste en que las tradicionales teoras de la pena, sobre la base de su fun-

    damentacin (jurdica) contractual y su perspectiva (social) consensualista, estn incapacitadas

    para brindar un modelo efectivamente reductor del punitivismo, situacin que slo podr supe-

    rarse con la adopcin de criterios de interpretacin fundados en la idea de conflicto condicio-

    nes de posibilidad de una penologa crtica.

    Palabras clave: Punicin; Teoras de la pena; Penologa; Criminologa crtica

    Abstract:

    Taking into consideration the perception of a great increase in the number of people imprisoned

    in the last decade, the research seeks to question the role of criminal law studies. The article

    makes the assumption that the violence of incarceration produces inevitable ethical, social and

    political implications in criminal sciences. Thus, it seeks to question the relationship between

    the theories of punishment and the (empiric) phenomenon of mass incarceration. Therefore,

    the issues that move this reflection are the instrumentality of the theories of punishment in the

    expansion of potestas puniendi and the explanations that the justify models could offer to the

    problem of hyperpunishment. The core hypothesis of this work is that the traditional theories

    of punishment, due to its contractual (legal) basis and its consensual (social) perspectives, are

    unable to offer a model that reduces punishment effectively, a situation that can be overcome

    with the adoption of interpretation criteria based on the idea of conflict conditions that makes

    possible a critical penology.

    Keywords: Punishment; Theories of punishment; Penology; Critical criminology

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    1. Ferrajoli (1998) esclarece que

    a pergunta por que castigar? pode ser en-

    tendida em dois sentidos diferentes: (a) por

    que existe a pena? ou por que se pune? e

    (b) por que deve existir a pena? ou por que

    se deve punir?

    O primeiro problema (por que existe

    a pena?) seria de ordem cientfica e admi-

    tiria somente respostas de carter emprico

    formuladas mediante assertivas verific-

    veis e refutveis (verdadeiras ou falsas). A

    segunda questo (por que deve existir a

    pena?) revelaria um problema filosfico que

    admitiria apenas respostas de carter tico-

    poltico, formuladas mediante proposies

    normativas, nem verdadeiras nem falsas,

    mas aceitveis como justas ou injustas. Fer-

    rajoli argumenta, pois, que a primeira inda-

    gao estaria sustentada na existncia do

    fenmeno pena (fato punio) e traduziria

    problemas de ordem histrica ou sociol-

    gica (criminolgica, sobretudo). A segunda

    questo revelaria o dever-ser (jurdico) da

    pena, isto , do direito de punir, que reme-

    teria s prescries normativas (Ferrajoli,

    1998:314).

    Neste quadro, as cincias criminais,

    forjadas desde a matriz do positivismo cien-

    tfico, fragmentaram o estudo da pena em

    dois campos distintos: (a) criminologia: re-

    flexo sobre o fenmeno emprico da puni-

    o; (b) direito penal: investigao sobre o

    dever jurdico da pena.

    A impossibilidade de dilogo entre

    os saberes (penal e criminolgico) deriva

    da mxima conhecida como Lei de Hume,

    segundo a qual no possvel alcanar logi-

    camente concluses prescritivas ou morais

    a partir de elementos descritivos ou fticos.

    Esta interdio positivista impediria que

    fossem derivados valores de fatos objetivos,

    determinando que um dever-ser no poderia

    resultar de um ser e vice-versa.

    A transposio da Lei de Hume s

    cincias criminais vedaria, p. ex., que a cr-

    tica criminolgica, baseada em dados da re-

    alidade da punio, invalidasse prescries

    normativas ou justificativas dogmticas da

    pena. Assim, a crtica vlida seria apenas

    aquela que se estabelece em sua prpria

    zona de interveno: crtica dogmtica ao

    direito penal e crtica criminolgica crimi-

    nologia.

    Ao investigador caberia eleger um

    determinado sistema de compreenso (di-

    reito penal ou criminologia) e, a partir dos

    princpios e categorias fundacionais daque-

    le especfico campo, pautar o debate sobre

    a adequao dos fundamentos e a validade

    das hipteses.

    2. A ruptura com a assepsia positi-

    vista em sua inconsequente absteno do

    enfrentamento dos fenmenos da vida

    mormente em um campo de saber marcado

    pela radicalidade das violncias institucio-

    nais ocorre com a emergncia da teoria

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    crtica do direito (penal) e, em especial, da

    criminologia crtica.

    No campo da punio, a criminolo-

    gia crtica evidenciou a profunda discrepn-

    cia entre os discursos oficiais, elaborados

    pelas teorias de justificao (dever-ser), e as

    funes efetivamente exercidas pelas agn-

    cias de punitividade (experincia fenomni-

    ca). A criminologia crtica operou, portanto,

    uma espcie de revogao ou suspenso da

    Lei de Hume, permitindo que o saber emp-

    rico sobre o funcionamento do sistema pe-

    nal servisse como instrumento de descons-

    truo, de modificao e de transposio do

    saber dogmtico. Exatamente nesta linha foi

    desenvolvida a perspectiva da criminologia

    crtica como crtica do direito penal nos pa-

    ses ocidentais de linhagem jurdica romano-

    -germnica2, tradio distinta da crimino-

    logia desenvolvida nos pases da common

    law.

    Nesta perspectiva crtica, sustentam

    Hassemer e Muoz Conde a importncia

    que, para evitar a cegueira frente realida-

    de que muitas vezes tem a regulao jurdi-

    ca, o saber normativo, ou seja, o jurdico,

    deva ir sempre acompanhado, apoiado e

    ilustrado pelo saber emprico, isto , pelo

    conhecimento da realidade (...) (Hassemer

    & Muoz Conde, 2001:05). No entanto no-

    tam os autores que a relao entre o sa-

    ber normativo e o saber emprico, prprio

    de cada uma destas formas de abordar a

    realidade, no , sem embargo, idlica, mas

    conflituosa e tem, todavia, muitos pontos de

    contato, onde s vezes entram em claro en-

    frentamento a soluo que prope uma par-

    te, a normativa, e a que prope a outra, a

    emprica, no sendo raro que, s vezes, esta

    seja uma das causas da disfuno e inefic-

    cia das normas jurdico-penais na soluo

    de determinados conflitos ou que o prprio

    saber emprico carea de influncia na re-

    gulao jurdica de um determinado proble-

    ma (Hassemer & Muoz Conde, 2001:06).

    Vera Batista, apropriando-se das advertn-

    cias de Zaffaroni, sintetiza de forma precisa

    o problema ao direcionar sano penal: a

    pena no pode ser pensada no dever ser,

    mas sim na realidade letal dos nossos sis-

    temas penais concretos (Batista, 2011:91).

    Neste aspecto, o presente trabalho

    assume explicitamente aquilo que Ferrajo-

    li designa como vcio ideolgico. A opo

    pela criminologia crtica implica em aban-

    donar a devoo Lei de Hume em nome da

    preocupao efetiva com a vida das pessoas

    que sofrem nas intermitncias criadas entre

    as grandes narrativas tericas de justificao

    da pena e a experincia real da aflio puni-

    tiva. No por outra razo Zaffaroni postula

    um sistema de compreenso do direito penal

    construdo a partir dos seus dados empricos

    e configurado com a finalidade exclusiva de

    limitao do poder punitivo.3

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    O objetivo do trabalho, portanto, ,

    o de, a partir da experincia da prisionaliza-

    o das ltimas dcadas (a consolidao do

    grande encarceramento), tensionar a relao

    entre as teorias (normativo-filosficas) de

    justificao da pena e o fenmeno (empri-

    co) da punio. Sobretudo porque se parte

    do pressuposto da necessidade do reconhe-

    cimento da responsabilidade dos sistemas

    tericos sobre a realidade na qual operam.

    Assim, as questes que se colocam so jus-

    tificadas pela urgncia de que a teoria (dog-

    mtica) do direito penal assuma um mnimo

    de responsabilidade tica e social, ou seja,

    que no se exima do real, no fique alheia

    aos efeitos genocidas que os seus modelos

    de legitimao produzem.

    Neste confronto entre os discursos

    de justificao e as consequncias da cri-

    minalizao (prisionalizao), possvel

    perceber nitidamente o papel que as teorias

    da pena desempenharam na expanso do

    potestas puniendi. E a indagao latente,

    que percorre o estudo, a relativa s expli-

    caes possveis que as teorias da pena te-

    riam a oferecer em relao ao problema da

    hiperpunitividade e do encarceramento em

    massa.

    3. A proposta de um exerccio teri-

    co sobre a pena a partir dos dados empricos

    de prisionalizao procura inverter a tradi-

    cional pergunta por que punir? e questio-

    nar como a dogmtica justificaria o sistema

    punitivo concreto que legitima. Trata-se,

    inegavelmente, de uma interpelao: se a

    teoria do direito penal, sobretudo nos dois

    ltimos sculos, esforou-se para atribuir

    um sentido positivo pena, parece lcito

    criminologia/penologia indagar como este

    mesmo corpus terico justifica as conse-

    quncias do seu ato de legitimao.

    Importante dizer que no se trata

    apenas de questionar os modelos tericos

    de justificao e verificar a validade de suas

    propostas desde a lente da criminologia, re-

    produzindo a clssica diviso de tarefas na

    qual a dogmtica permanece em uma evi-

    dente zona de conforto. Mas, para alm dos

    papis consolidados, provocar a doutrina

    penal para que justifique ou ao menos expli-

    que, a partir dos seus sofisticados recursos

    tericos, qual o impacto (positivo ou nega-

    tivo) dos seus discursos de justificao no

    fenmeno de hiperencarceramento contem-

    porneo.

    O constante aumento do nmero de

    pessoas presas deve, necessariamente, estar

    na pauta dos modelos dogmticos e crimi-

    nolgicos, mesmo que no tenham como

    objetos diretos de investigao as violncias

    institucionais e as estratgias punitivas de

    controle social. Frente radicalidade desta

    experincia de violncia institucional, qual-

    quer omisso antitica.

    No entanto a cincia ortodoxa do di-

    reito penal, enclausurada nos postulados do

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    positivismo, exime-se da responsabilidade,

    justificando a sua omisso a partir das pres-

    cries sintetizadas na Lei de Hume. A dog-

    mtica penal limita-se, pois, proposio de

    teses normativas de justificao, impedin-

    do, em uma espcie de autismo cientfico,

    que a realidade emprica do sistema sobre o

    qual opera ingresse no seu campo de viso.

    Ocorre que a experincia do encarceramen-

    to em massa transforma este silncio em um

    rudo ensurdecedor.

    Neste cenrio, o problema que este

    estudo procura apresentar pode ser sinteti-

    zado na seguinte questo: o que as teorias

    de justificao da pena (absolutas, relativas

    e polifuncionais) tm a dizer sobre o grande

    encarceramento?

    A indagao procura convocar as

    teorias da pena a uma reflexo tica, sus-

    citando um juzo crtico sobre a sua pr-

    pria funcionalidade (instrumentalidade) e

    sobre o seu comprometimento e respon-

    sabilidade sociais. Para alm do idealismo

    justificacionista, fundamental questionar

    (primeira indagao) como o direito penal

    enfrenta a concretude da prisionalizao,

    visto ser o grande encarceramento uma

    consequncia direta dos discursos funda-

    mentadores da pena. A atuao do sistema

    punitivo , pois, inegavelmente, um pro-

    blema da cincia do direito penal e, des-

    de o ponto de vista da crtica penolgica,

    os resultados concretos produzidos pelas

    agncias de punitividade so (tambm) de

    responsabilidade da dogmtica. Assim se a

    teoria penal cria sofisticados instrumentos

    que habilitam a interveno punitiva, deve

    ser interpelada sobre os efeitos que produz,

    notadamente se postula como vlida sua

    pretenso de universalidade.

    A segunda indagao diz respeito

    s alternativas propostas pelo direito penal

    ao fenmeno do encarceramento massivo,

    tendo em vista que a estratgia de prisio-

    nalizao no vem obtendo os resultados

    esperados de reduo das taxas de crimi-

    nalidade; pelo contrrio, o sistema se re-

    troalimenta e reproduz a violncia (delito

    priso reforo da identidade crimi-

    nosa delito priso). Neste aspecto,

    razovel refletir se a sada para a crise da

    pena seguir apostando no encarceramen-

    to, ou seja, mais justificao e mais prisio-

    nalizao.4

    No atual estgio das cincias crimi-

    nais, sobretudo aps a irreversibilidade da

    desconstruo realizada pela criminologia

    crtica, parece no ser mais possvel um mo-

    delo terico justificar abstratamente a pena

    sem se preocupar com o impacto que esta

    legitimao produz na realidade do sistema

    penal. Do contrrio, ao optar pela manu-

    teno do silncio, a teoria do direito penal

    perde completamente a sua capacidade de

    (auto)crtica e, narcotizada pela vontade de

    pureza, seguir como uma cincia escrava

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    (Bourdieu)5, uma tcnica inocentemente til

    s demandas e s variveis polticas.

    Pavarini preciso ao referir que no

    divrcio entre filosofia e dogmtica penal

    os fins da pena acabaram no fazendo parte

    das preocupaes da cincia propriamente

    penal (Pavarini & Giamberardino, 2012).

    Em consequncia, sustenta o autor que a

    histria dos modelos punitivos no passou

    de uma histria ideal, escrita pela metade,

    em que h uma (...) certa plausibilidade

    argumentativa apenas se pressuposto que o

    penalista dogmtico tenha sempre sido um

    til idiota, ao menos o suficiente para ter

    acreditado, com boa f, que as finalidades

    da pena no fossem apenas retricas do ar-

    btrio, mas princpios de fundao do di-

    reito de punir (Pavarini & Giamberardi-

    no, 2012:30).

    4. Em razo de as indagaes acer-

    ca dos dficits criminolgicos (sociolgicos)

    que caracterizam as teorias da pena serem

    direcionadas aos tericos do justificacionis-

    mo, evidentemente que no cabe crtica

    usurpar o seu direito de resposta. Todavia,

    para alm das possveis tentativas de jus-

    tificar a Lei de Hume na complexidade do

    mundo contemporneo, resta ainda ao crimi-

    nlogo crtico procurar explicaes sobre as

    blindagens histricas que impediram que a

    realidade do sistema punitivo ingressasse no

    debate acerca das justificativas da punio.

    Uma hiptese que parece ser bastan-

    te razovel diz respeito ausncia de um ra-

    dical questionamento sobre os fundamentos

    da punio na consolidao da Modernida-

    de, solo no qual emerge a forma carcerria

    de punio e os seus discursos legitimado-

    res. Parte significativa da responsabilidade

    por esta ausncia decorre de a doutrina do

    direito penal aproximar (e em alguns casos

    simplesmente confundir) dois problemas

    nitidamente distintos: os fundamentos e as

    justificativas da pena.

    As teorias de justificao (teorias da

    pena) operaram historicamente como dis-

    cursos de racionalizao do poder soberano

    de coao direta. Se o Estado detm o mo-

    noplio da coao legtima (Weber), caberia

    teoria do direito penal justificar (raciona-

    lizar) esta violncia programada, atribuindo

    determinados fins sano penal retribui-

    o (pena justa) ou preveno (pena til)

    (Pavarini, 1983).

    No entanto, apesar de distintas em

    termos de projeo das suas finalidades,

    possvel perceber que as tradicionais teorias

    da pena partem de um pressuposto poltico

    comum, que o do consenso acerca da le-

    gitimidade da interveno punitiva estatal.

    Alis, Baratta, ao propor as diretrizes car-

    deais que formam o ncleo do pensamento

    de defesa social ideologia que passou a

    fazer parte da filosofia dominante na cin-

    cia jurdica e das opinies, no s dos re-

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    presentantes do aparato penal-penitenci-

    rio, mas tambm do homem de rua (ou seja,

    every day theories) (Baratta, 1997:42),

    apresenta como postulado primeiro o prin-

    cpio da legitimidade.6 O consenso acerca

    da legitimidade induz uma natural aproxi-

    mao dos fundamentos da punio com as

    finalidades da pena.

    Mir Puig, p. ex., ao discutir as ba-

    ses funcionais do direito penal subjetivo,

    afirma que se est justificado castigar

    ou impor medidas de segurana por-

    que necessrio realizar os objetivos que

    se atribuem pena ou s medidas de se-

    gurana. Isso significa que o fundamento

    do ius puniendi corresponde a sua funo

    (...) (Mir Puig, 2003:98)7 No segundo

    momento, quando analisa os fundamentos

    polticos do ius puniendi, Mir Puig identifi-

    ca de forma precisa o local de encontro no

    qual so rompidas as fronteiras do debate

    entre fundamentos e justificaes: o con-

    tratualismo como a sustentao primeira do

    direito de punir.

    A hiptese contratualista de justifi-

    cao da pena se estabelece como o mito

    fundante do direito penal na Modernidade.

    Logicamente que a teoria do contrato so-

    cial, independente de suas verses (Hobbes,

    Locke ou Rousseau), remeter o debate a

    outras questes essenciais no que tange s

    configuraes do Estado moderno e as suas

    relaes com os indivduos e a sociedade

    civil.

    A justificativa contratualista (me-

    tafsica) da pena, porm, pressupe alguns

    consensos como a existncia de direitos na-

    turais do cidado que so anteriores ao Es-

    tado, direitos que no apenas legitimariam

    o poder poltico mas que limitariam a sua

    interveno. Trata-se, pois, de um limite ex-

    terno que preexiste lei formal, fundado em

    um jusnaturalismo antropolgico.8

    No entanto, aps a consolidao do

    Estado liberal e a formao de um modelo

    poltico-econmico gerido pela classe social

    detentora do capital e dos meios de produ-

    o (burguesia), (...) o foco metodolgico

    para a fundamentao dos institutos jurdi-

    cos deslocou-se da argumentao metafsi-

    ca para a argumentao jurdica. No eram

    mais (ou no tanto) os direitos naturais que

    forneciam o substrato legitimante para, em

    especfico, o direito estatal de punir, mas o

    limites intrnsecos do prprio ordenamento

    jurdico (Schmidt, 2003:88).

    Trata-se, em termos genricos, da

    transmutao do mito fundador da Moder-

    nidade (a hiptese metafsica do contra-

    to social) em um rito garantidor da ordem

    (legalidade formal). Lyra Filho preciso ao

    demonstrar que (...) chegando ao poder,

    a burguesia descartou o seu jusnaturalis-

    mo [antropolgico], passando a defender

    a tese positivista: j tinha conquistado a

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    mquina de fazer leis e por que, ento, ape-

    lar para um Direito Superior [metafsico]?

    Bastava a ordem estabelecida(Lyra Filho,

    1991:42).

    Assim forjada a ideia de a punio

    constituir-se como um direito pblico sub-

    jetivo do Estado que nasce com a prtica do

    delito. Com a violao livre e consciente do

    pacto social, corporificado nas normas de

    condutas positivadas (direito pblico obje-

    tivo), atribudo s instituies do sistema

    punitivo o direito-dever de punir. Os nicos

    limites impostos atividade punitiva so

    aqueles designados pelo prprio Estado.

    Neste cenrio so consolidadas as ideias de

    direito de punir e de pretenso punitiva.

    5. Embora a doutrina penal tenha re-

    alizado importante crtica ao contratualismo

    (perspectiva metafsica) a partir da tese de a

    pena estar amparada em um direito pblico

    subjetivo do Estado, as ideias fundacionais

    representadas nas noes de direito de punir

    e de pretenso punitiva se mantiveram vi-

    gorosas. Inclusive aps o giro copernicano

    imposto, aps a Segunda Guerra, pela teoria

    dos direitos fundamentais e pelo novo cons-

    titucionalismo, cujo efeito foi o da substan-

    cializao da teoria da validade das normas

    jurdicas a construo de uma cadeia de

    princpios potencialmente limitadores da

    punibilidade provocou significativos refle-

    xos na relao entre autoridade e indivduo,

    apesar de terem sido restritos os efeitos nas

    teorias de fundamentao da pena.9

    Alis, possvel ser ainda mais in-

    cisivo e sustentar que mesmo com a muta-

    o do modelo de Estado liberal em Estado

    social e sua posterior crise primeiro, com

    o estabelecimento de novas economias de

    interveno punitiva (correcionalismo);

    segundo, com as teorias funcionalistas e

    os modelos de penologia fundamentalista

    (Pavarini, 2009) , o pressuposto de ordem

    (mito) que tem orientado as teorias justifi-

    cacionistas da pena segue sendo a hiptese

    contratualista.

    importante perceber, para que

    se possa efetivamente avanar e superar a

    crise, que as tradicionais teorias da pena

    absolutas (teorias de retribuio ou teo-

    rias da pena justa) ou relativas (teorias de

    preveno ou teorias da pena til) foram

    edificadas sobre o mesmo fundamento

    contratual. Sem perceber que os discursos

    oficiais de justificao esto consolidados

    em um modelo consensual de sociedade

    que encontra na teoria do pacto social a

    sua manifestao primeira (sua emergn-

    cia ou sua inveno), o debate que envol-

    ve as prticas punitivas e os seus discursos

    legitimadores permanecer estagnado. No

    mximo ser reduzido revitalizao dos

    seus tipos ideais histricos, como ocorre

    atualmente com os distintos vieses do ne-

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 5 2

    orretributivismo e do neoprevencionismo

    (Carvalho, 2013a).

    Neste quadro, possvel afirmar

    que o fundamento contratualista definir a

    identidade do direito penal na Modernida-

    de, moldando, conforme a expectativa tem-

    poral, as teorias de justificao. Significa,

    em outras palavras, que a mesma hiptese

    contratual configurou os diversos modelos

    punitivos oficiais, liberais (primeira mo-

    dernidade penal), correcionalistas (segunda

    modernidade penal) e funcionalistas (mo-

    dernidade tardia ou ps-modernidade).

    No por outra razo Foucault des-

    carta assinalar qualquer tipo de ruptura

    entre os projetos punitivos liberal e corre-

    cionalista. Percebe, na transposio da pri-

    meira para a segunda Modernidades apenas

    um continuum, pois identifica, com preci-

    so, uma matriz comum no processo de for-

    mao epistemolgico-jurdico direcio-

    nada a colocar a tecnologia do poder no

    princpio tanto da humanizao da penali-

    dade [Escola Clssica] quanto do conheci-

    mento do homem [Escola Positiva] (Fou-

    cault, 1991:26). A matriz: a teoria geral do

    contrato.

    A hiptese que orienta a investiga-

    o, portanto, a de que as novas economia

    e tecnologia do poder de punir que emer-

    gem na Modernidade e deflagram as gran-

    des reformas penais nos sculos XVIII, XX

    e incio do XXI, esto assentadas em um

    pressuposto de consenso segundo o qual a

    sociedade, compreendida como um orga-

    nismo homogneo derivado da integrao

    dos seus membros, compartilha determina-

    dos valores e interesses fundamentais que

    representam as condies essenciais a sua

    manuteno. Assim, nas lies de Baratta,

    os interesses protegidos pelo direito penal

    so interesses comuns a todos os cidados

    (princpio do interesse social); o delito

    um dano para a sociedade e o delinquente

    um elemento negativo e disfuncional para o

    sistema social (princpio do bem e do mal);

    em outras palavras, o delito expresso

    de uma atitude interior reprovvel, porque

    contrria aos valores e s normas (princ-

    pio da culpabilidade) e a criminalidade o

    comportamento de uma minoria desviante

    (princpio da igualdade) (Baratta, 1997:42).

    A violao da lei penal, desde os

    pressupostos das teorias do consenso, impli-

    caria, inclusive, na adeso do prprio infra-

    tor pena, conforme conclui Foucault: su-

    pe-se que o cidado tenha aceito de uma

    vez por todas, com as leis da sociedade,

    tambm aquela que poder puni-lo. O cri-

    minoso aparece ento como um ser juridi-

    camente paradoxal. Ele rompeu o pacto, ,

    portanto, inimigo da sociedade inteira, mas

    participa da punio que se exerce sobre

    ele. O menor crime ataca toda a sociedade;

    e toda a sociedade inclusive o criminoso

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 153

    est presente na menor punio (Foucault,

    1991:82).

    Assim, a ideia de direito de punir

    (ius puniendi) a consequncia lgica de

    um modelo que opera desde uma perspec-

    tiva consensualista de sociedade, na qual

    determinados valores morais seriam natu-

    ralmente aceitos pelo corpo social; as nor-

    mas representariam legitimamente estes in-

    teresses; o desvio seria a expresso de uma

    conduta anmala, episdica e disfuncional

    que romperia com a ordem e o equilbrio

    (estado normal da sociedade); e as sanes

    reestabeleceriam o consenso e a harmonia

    como justa retribuio, coao psicolgica,

    reconverso do delinquente, preservao da

    confiana e da fidelidade na ordem jurdica,

    reforo das expectativas normativas frustra-

    das pelo comportamento criminoso, dentre

    outras finalidades.

    Segundo Pavarini, a hiptese con-

    sensual representa a sociedade como rela-

    tivamente estvel e bem integrada e cujo

    funcionamento se funda no consenso da

    maioria em relao a certos valores gerais.

    No que diz respeito s relaes entre in-

    divduo e autoridade, lei e sociedade, Pa-

    varini enfatiza que os princpios de fundo

    deste modelo podem ser sintetizados em

    trs perspectivas: (a) a lei reflete a vonta-

    de coletiva: se os membros da sociedade se

    encontram de acordo sobre as definies de

    bem e mal, a lei no seria mais do que a

    forma escrita deste acordo; (b) a lei igual

    para todos: se as formas legais refletem a

    vontade coletiva, a lei no favorece e no

    representa nenhum interesse particular; (c)

    a violao da lei penal ato de uma mi-

    noria: se a maioria est de acordo com as

    definies de bem e de mal, de justo e de

    injusto, o pequeno grupo que pratica deli-

    to deve possuir algum elemento em comum

    que o diferencia da maioria que respeita a

    lei (Pavarini, 1988:95).

    No que diz respeito ao contedo do

    direito de punir, todos os modelos tericos

    de justificao da pena, desenvolvidos a

    partir da Ilustrao, operam a partir desta

    mesma fundao (teoria do contrato), cujo

    pressuposto um modelo de sociedade con-

    sensual. E apenas neste contexto ser lcito

    ou possvel referir um direito de punir (jus

    puniendi) do Estado.

    6. Se na primeira modernidade so

    os tericos do contrato que forjam as pers-

    pectivas jurdicas consensuais, no campo

    sociolgico sua consolidao acontece a

    partir das perspectivas funcionalistas na tra-

    dio que se desdobra com Durkheim, Mer-

    ton e Parsons.

    Contrapem-se, porm, s teorias

    do consenso as teorias do conflito e o inte-

    racionismo simblico. Alis, importante

    registrar que estas trs distintas tradies

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 5 4

    sociolgicas iro impactar diretamente a

    construo das principais vertentes tericas

    na criminologia no sculo passado (teorias

    liberais-funcionalistas, teoria do etiqueta-

    mento e criminologia crtica).

    Ao rejeitar a hiptese de que a so-

    ciedade representa uma totalidade orgnica,

    harmnica e consensual, na qual os desvios

    so fatos ocasionais que permitem, atravs

    das sanes, a recomposio da ordem vio-

    lada e o reforo dos valores compartilha-

    dos, as teorias do conflito enfatizam temas

    relativos a desigualdades sociais, polticas

    e econmicas e a questes concernentes

    disputa pelo poder e institucionalizao da

    autoridade.

    Os comportamentos disfuncionais

    (crimes, desvios), portanto, no seriam pro-

    blemas isolados, situaes episdicas pro-

    vocadas por uma minoria de sujeitos ou de

    grupos sociais que no de adequam s re-

    gras e aos valores universalmente aceitos.

    Os conflitos emergem como disputas de

    classes pelo poder poltico e econmico na

    constituio e na manuteno das socieda-

    des industriais (capitalistas). Nos termos de

    Sabadell, (...) as teorias do conflito partem

    da existncia de grupos sociais desiguais

    com interesses divergentes e consideram

    o controle social institucionalizado como

    meio de garantia das relaes de poder.

    Tais relaes so sempre assimtricas. Em

    outras palavras, constata-se um desequi-

    lbrio permanente entre os grupos sociais,

    inexistindo o igual tratamento e a recipro-

    cidade nas relaes sociais (Sabadell,

    2010:160).

    No clssico aforismo de Marx e En-

    gels, na abertura do Manifesto do Parti-

    do Comunista, o conflito entre as classes

    constitui-se como o fato propulsor da mu-

    dana e do desenvolvimento histrico a

    histria de toda a sociedade at agora exis-

    tente a histria de luta de classes. (Marx

    & Engels, 1975:59). Os valores sociais for-

    malizados nas leis no seriam, pois, a ra-

    tificao natural de um pacto ao qual todo

    corpo social adere voluntariamente, mas a

    consolidao dos valores da classe que con-

    quistou o poder e que, atravs dos mecanis-

    mos burocrticos do Estado, procura nele se

    eternizar.10

    No campo da criminologia, no que

    tange s questes relativas ao crime, cri-

    minalidade e ao controle social, a crtica

    que emerge com as teorias do controle

    conjuntamente com as teorias do etiqueta-

    mento fundadas no interacionismo simb-

    lico permite perceber a reduo que as

    teorias funcionalistas realizam ao interpre-

    tar as questes criminal e penal. Nos mo-

    delos consensuais, o delito (a criminali-

    dade) ser percebido como um ato isolado

    de uma minoria disfuncional, explicado a

    partir de um processo causal (etiolgico)

    que o vincula aos problemas de socializa-

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 155

    o (broken homes theories, p. ex.), s con-

    dies de vida em determinadas reas (hi-

    pteses ecolgicas, p. ex.), aos elos que se

    estabelecem com outras pessoas ou grupos

    desviantes (teorias da associao diferen-

    cial e das subculturas criminais, p. ex.) ou

    s tenses, frustraes ou traumas que so

    gerados na estrutura social (hipteses an-

    micas, p. ex.). Em sentido oposto, os teri-

    cos do conflito destacaro os processos de

    criminalizao, ou seja, enfatizaro as rela-

    es de poder que permitem que determi-

    nadas condutas sejam consideradas delito,

    as questes relativas ao controle social que

    facilitam que determinadas classes sejam

    imunizadas da incidncia repressiva das

    agncias punitivas e as condies scio-po-

    lticas e econmicas que tornam certas pes-

    soas ou grupos sociais vulnerveis vio-

    lncia do sistema penal. Ademais, a crtica

    s teorias do consenso permite perceber a

    natureza esttica do funcionalismo na in-

    terpretao dos fenmenos desviantes, em

    decorrncia de congelar como imagem ou

    tipo ideal do delito uma determinada esp-

    cie de crime, mais especificamente os cri-

    mes contra o patrimnio privado praticados

    pelo lumpemproletariado, a partir da uni-

    versalizao de valores de uma respectiva

    classe social.11

    A partir do legado das teorias do eti-

    quetamento e do conflito, a criminologia

    crtica direcionar seu foco para as formas

    estruturais e institucionais de (re)produo

    da violncia (Carvalho, 2013), tensionando

    a desigual relao entre autoridade e indi-

    vduo. O giro paradigmtico proporcionado

    pela crtica no pensamento criminolgico

    do sculo passado permite renunciar cate-

    goricamente o fundamento consensual da

    punio e, consequentemente abdicar da

    percepo da sano penal como um direi-

    to exercido pelo Estado na representao da

    sociedade lesada (direito de punir), enfati-

    zando a pena como um ato de poder exer-

    cido pelas agncias do sistema penal (poder

    punitivo).

    7. Mudar o fundamento da punio,

    assumindo a pena como uma manifestao

    concreta do poder punitivo no marco de

    sociedades conflitivas e heterogneas, traz

    significativas implicaes tericas peno-

    logia. Em primeiro plano, significa rejeitar

    todos os modelos tradicionais de justifica-

    o teorias absolutas (retributivas), relati-

    vas (preventivas) e eclticas; em segundo,

    implica em reconhecer que os novos mo-

    delos de justificao teoria do justo mere-

    cimento, teoria do clculo racional, teorias

    funcionalistas sistmicas, teorias neocorre-

    cionalistas e, inclusive, a teoria garantista

    (utilitarismo reformado) (Carvalho, 2013)

    representam apenas a revitalizao das

    grandes narrativas penolgicas da Moder-

    nidade, em sua integralidade fundadas nos

    modelos consensuais. Exatamente por isso,

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 5 6

    a dogmtica penal pouco avana no sentido

    de uma ruptura radical com os sentidos da

    punio na contemporaneidade. Ruptura ne-

    cessria em razo do dano genocida produ-

    zido pelo punitivismo nas ltimas dcadas.

    A condio de possibilidade de

    uma penologia crtica pressupe, portan-

    to, abdicar das tradicionais teorias da pena

    e, seguindo a perspectiva da criminologia

    crtica12, integrar os legados das teorias do

    etiquetamento e das teorias do conflito para

    consolidar um corpo terico capacitado para

    (a) compreender e denunciar o fenmeno da

    punio desde as perspectivas da violncia

    institucional (atuao das agncias do siste-

    ma penal) e da violncia estrutural (simbio-

    se entre estrutura poltica e controle social)

    (pauta negativa) e (b) promover aes con-

    cretas para a reduo dos danos causados

    pelo punitivismo e para a superao da lgi-

    ca carcerria (pauta positiva).

    Neste sentido, duas construes te-

    ricas superam os fundamentos consensuais

    da pena e projetam perspectivas penolgi-

    cas crticas: (a) a teoria da retribuio equi-

    valente; e (b) a teoria agnstica da pena.

    7.1. A teoria da retribuio equiva-

    lente, desenvolvida a partir de uma crti-

    ca materialista/dialtica da pena criminal,

    procura revelar a natureza real ou latente

    da retribuio nas sociedades capitalistas.

    Centrada em premissas distintas do mode-

    lo clssico de retribuio pois, nesta pers-

    pectiva, (...) no constitui fenmeno de

    sobrevivncia histrica de vingana retalia-

    tria, nem resqucio metafsico de expiao

    ou compensao da culpabilidade (San-

    tos, 2005:19) , procura demonstrar como

    a pena criminal, sobretudo a partir dos pro-

    cessos de industrializao, tem correspondi-

    do aos fundamentos materiais e ideolgicos

    dos sistemas econmicos fundados na rela-

    o capital/trabalho assalariado. A respos-

    ta punitiva do Estado, portanto, representa

    uma equivalncia jurdica derivada das rela-

    es de produo existentes nas sociedades

    capitalistas contemporneas.

    O modelo de retribuio equivalen-

    te, proposto por Pasukanis (Teoria Geral do

    Direito e Marxismo, 1926), e desenvolvido

    posteriormente por Rusche e Kirchheimer

    (Pena e Estrutura Social, 1939), demonstra

    que a pena desempenha uma funo central

    na manuteno dos sistemas de explorao

    e de excluso social. Conforme Juarez Ci-

    rino dos Santos, se a estrutura material das

    relaes econmicas no capitalismo base-

    ada no princpio da retribuio equivalente

    em todos os nveis da vida (trabalho-sal-

    rio, mercadoria-preo, p. ex.), no mbito

    da responsabilidade penal, a retribuio

    equivalente instituda sob forma da pena

    privativa de liberdade, como valor de troca

    do crime medido pelo tempo de liberdade

    suprimida (Santos, 2005:21). Na constru-

    o de Pasukanis, a privao de liberdade

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 157

    com uma durao determinada atravs da

    sentena do tribunal a forma especfica

    pela qual o Direito Penal moderno, ou seja,

    burgus-capitalista, concretiza o princpio

    da reparao equivalente (...). Para que a

    ideia da possibilidade de reparar o delito

    atravs de uma multa pela liberdade tenha

    podido nascer, foi necessrio que todas as

    formas concretas da riqueza social tivessem

    sido reduzidas mais abstrata e mais sim-

    ples das formas, ao trabalho humano medi-

    do pelo tempo (Pasukanis, 1988:130).13

    A perspectiva da retribuio equi-

    valente permite compreender a instrumen-

    talidade da pena nas conflitivas sociedades

    capitalistas industriais, sobretudo o papel

    latente da priso na regulao do mercado

    de trabalho atravs do controle do exceden-

    te da fora de trabalho (Rusche e Kirchhei-

    mer) e na disciplinarizao da mo de obra

    com a criao de um exrcito industrial de

    reserva formado por corpos dceis (Fou-

    cault). A concepo materialista/dialtica

    possibilita, inclusive, atualizar os signifi-

    cados da punio nos sistemas capitalistas

    neoliberais, nos quais o encarceramento

    massivo adquire uma funo especfica de

    controle das massas dissidentes e/ou exce-

    dentes atravs da segregao, da neutraliza-

    o e da excluso.

    Mas para alm destas funes espe-

    cficas desempenhadas nas verses do ca-

    pitalismo industrial e neoliberal, interes-

    sante perceber como as questes criminal e

    penal so atualmente ressignificadas neste

    desdobramento cultural do sistema econ-

    mico, que a sociedade de consumo. A l-

    gica do consumo excessivo de bens, aliada

    intensa explorao da violncia pela grande

    mdia (agncias de notcia e indstria do en-

    tretenimento), criou uma cultura de puniti-

    vidade na qual o crime, a pena e a priso

    foram transformados em produtos. O crime,

    a pena e a priso no sero apenas produtos

    (consequncias) de uma cultura que goza

    com a punio; mas representaro, em si

    mesmos, produtos (commodities) para con-

    sumo, mercadorias comercializadas como

    bens.14

    7.2. A teoria agnstica (ou nega-

    tiva) da pena nega qualquer espcie de

    justificao jurdica da sano, conce-

    bendo a punio como uma manifestao

    concreta do poder poltico. A metfora da

    pena como guerra, no preciso resgate de

    Tobias Barreto realizado por Zaffaroni

    (1993; 1997), cria uma imagem da sano

    penal totalmente distinta daquela perspec-

    tiva idlica na qual os cidados deliberam

    livremente sobre a necessidade de punir

    para manter ntegro o pacto social. O fun-

    damento da teoria agnstica, portanto,

    identificado com o mais radical dos con-

    flitos, ou seja, com uma situao de guerra

    na qual todos os direitos so suspensos e a

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 5 8

    violncia adquire uma intensidade incon-

    trolvel.

    Ao deslocar o fundamento da pena

    do jurdico (direito de punir) para o poltico

    (poder de punir), o modelo agnstico evi-

    dencia a funo primeira da punio, que

    o exerccio do controle social, presentifi-

    cando o Estado atravs da concretizao do

    poder em formas programadas de violncia.

    Trata-se, pois, de um fenmeno incancel-

    vel que, nas sociedades atuais, passa a ser

    relegitimado cotidianamente pelas aes

    poltico-criminais populistas, situao que

    aponta para uma densificao dos nveis de

    encarceramento.

    Assim, como consequncia do re-

    conhecimento do fundamento poltico da

    pena, da sua funo instrumental de contro-

    le e da impossibilidade de o fenmeno puni-

    tivo ser cancelado, a teoria negativa percebe

    a sano criminal (...) como um fenmeno

    da realidade que necessita ser contido (te-

    leologia redutora) em razo de sua pulso

    violenta (tendncia ao excesso) (Carvalho,

    2013a:149).

    A partir da demonstrao emprica

    da seletividade do sistema penal e da vulne-

    rabilidade de determinadas pessoas e grupos

    criminalizao, esta constante tenso entre

    Estado de polcia (poder de coao direta)

    e Estado de direito (limitao do poder) in-

    duz que sejam projetadas aes positivas no

    sentido de reduo da potentia punitiva (po-

    testas puniendi).

    8. A dogmtica jurdica, conforme

    foi possvel perceber nos discursos funda-

    mentadores e justificadores da pena, atuou,

    ininterruptamente, como um discurso de ra-

    cionalizao do poder de punir. Exatamente

    por esse motivo, mesmo as teorias da pe-

    nas que se autoproclamam liberais ou ga-

    rantistas pouco conseguiram em termos de

    efetividade na contrao do arquiplago pu-

    nitivo. A armadilha da fundamentao con-

    sensualista impede superar a ideia da pena

    como um direito (natural) do Estado contra

    o infrator que, no limite, transformado em

    um pria ou um inimigo a ser eliminado

    com o objetivo de garantir a paz e a se-

    gurana.

    Ao final, a questo que surge da

    discusso sobre a capacidade crtica da

    dogmtica jurdica em transpor este modelo

    e construir novos referenciais para uma atu-

    ao tica voltada para a reduo das vio-

    lncias (pblicas e privadas).

    Juarez Cirino dos Santos, frente

    realidade letal do sistema punitivo, indaga:

    por que fazer dogmtica penal? Ensina

    que o tipo de ao depender, inexoravel-

    mente, do critrio que informa o trabalho

    do ator jurdico: fazer dogmtica penal

    como critrio de racionalidade do sistema

    punitivo significa assumir o ponto de vista

    do poder repressivo do Estado no processo

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 159

    de criminalizao e de marginalizao do

    mercado de trabalho e da pobreza social,

    em geral; ao contrrio, fazer dogmtica

    penal como sistema de garantias em face

    do poder punitivo do Estado, no sentido de

    conjunto de conceitos capazes de excluir ou

    reduzir o poder de interveno do Estado

    na esfera da liberdade individual e, por-

    tanto, capazes de impedir ou de amenizar

    o sofrimento humano produzido pelas de-

    sigualdades e pela seletividade do sistema

    penal constitui tarefa cientfica de gran-

    de significado democrtico nas sociedades

    contemporneas (Santos, 2005:38).

    Frente dura realidade do controle

    social punitivo contemporneo e s conse-

    quentes dificuldades em propor reais alter-

    nativas s sanes penais alternativas que

    no sejam incorporadas pela lgica prisio-

    nal e imediatamente transformadas em adi-

    tivos , a perspectiva redutora parece ser

    uma estratgia vivel para evitar o imobi-

    lismo e salvar o mximo de vidas possveis

    dentre aquelas sequestradas pela mquina

    carcerria.

    Notas

    1 O artigo apresenta os resultados parciais

    da pesquisa de Ps-Doutorado realizado na

    Scuola di Giurisprudenza, Universit degli

    Studi di Bologna (ITA), sob a orientao

    do Prof. Massimo Pavarini, intitulada

    Esecuzione delle Pene e dele Misure di

    Sicurezza nel Diritto Penale Brasiliano,

    financiada pelo Conselho Nacional de

    Pesquisa (CNPq).

    2 Baratta (1997), ao configurar a

    criminologia crtica como crtica ao direito

    penal, postula a construo da sociologia

    do direito penal, cujo objeto corresponde

    a trs categorias de comportamentos:

    a sociologia jurdico penal estudar,

    pois, em primeiro lugar, as aes e

    os comportamentos normativos que

    consistem na formao e na aplicao

    de um sistema penal dado; em segundo

    lugar, estudar os efeitos do sistema penal

    entendido como aspecto institucional da

    reao ao comportamento desviante e do

    correspondente controle social. A terceira

    categoria de aes e comportamentos

    abrangidos pela sociologia jurdico-penal

    compreender, ao contrrio (a) as reaes

    no-institucionais ao comportamento

    desviante, entendidas como um aspecto

    integrante do controle social do desvio, em

    concorrncia com as reaes institucionais

    estudadas nos dois primeiros aspectos e

    (b) em nvel de abstrao mais elevado,

    as conexes entre um sistema penal dado

    e a correspondente estrutura econmico-

    social (Baratta, 1997:23).

    3 As leis se expressam atravs de palavras,

    mas o fazem em um mundo onde ocorrem

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 6 0

    fenmenos fsicos, sociais, culturais,

    econmicos, polticos etc., em permanente

    mudana, em uma realidade que flui

    continuamente, protagonizada por pessoas

    que interagem e se comportam conforme

    certos contedos psicolgicos. Todas estas

    coisas so reais e sucedem deste modo e no

    de outro, e as leis devem ser interpretadas

    neste mundo e no em outro que no existe.

    O impossvel neste mundo, tanto por

    razes sociais como fsicas. Se impossvel

    caminhar sobre a gua, igualmente

    ressocializar o preso (Zaffaroni, Alagia &

    Slokar, 2006:77).

    4 Sobre os equvocos da reiterao da punio

    como soluo ao problema da violncia,

    importantes as reflexes de Jacinto Coutinho

    a partir da posio de Stippel (Coutinho,

    2013).

    5 A partir de Bourdieu, Geraldo Prado

    sustenta que necessrio escapar s

    tentaes narcotizantes da cincia pura

    (alheias s necessidades sociais) e da

    cincia escrava (submetida s demandas

    poltico-econmicas). Exatamente por isso

    procura problematizar os pontos de partida

    no como dados, mas como construes. No

    direito penal, um dos principais ser o delito

    as teorias penais surgiram nos sculos

    XIX e XX para legitimar o funcionamento

    do sistema criminal, conforme o discurso

    da modernidade, no problematizando no

    incio um dos seus elementos principais, o

    crime, que era considerado como um dado

    social e no criao do prprio poder

    poltico (Prado, 2011:26).

    6 O Estado, como expresso da sociedade,

    est legitimado para reprimir a criminalidade,

    da qual so responsveis determinados

    indivduos, por meio de instncias oficiais

    de controle social (legislao, polcia,

    magistratura, instituies penitencirias).

    Estas interpretam a legtima reao da

    sociedade, ou da grande maioria dela,

    dirigida reprovao e condenao do

    comportamento desviante individual e

    reafirmao dos valores e das normas

    sociais (Baratta, 1997:42).

    7 Embora em momento imediatamente

    posterior o autor conclua que os conceitos

    de fundamento e de funo no sejam

    coincidentes e que seja necessria a

    comprovao da utilidade da pena a

    funo [retribuio ou preveno] , pois,

    a base do fundamento, mas ambos os

    conceitos no coincidem, pois o fundamento

    tem que provar a necessidade da funo

    (Mir Puig, 2003:98) acaba por designar

    criminologia a verificabilidade emprica dos

    objetivos da pena atribudos pela dogmtica

    penal.

    Assim, o discurso do direito penal s

    aparentemente vincula sua construo teri-

    ca com a realidade do sistema punitivo, pois

    no apenas delega a anlise da vida fenom-

    nica criminologia como, na maioria das

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 161

    vezes, invocando a Lei de Hume, descarta

    seus resultados na edificao dos seus siste-

    mas. Desta forma, mesmo que de forma no

    explcita, o real funcionamento das agncias

    do sistema penal inescrupulosamente ex-

    cludo das problematizaes dogmticas.

    8 Ensina Lyra Filho que a contestao da

    ordem aristocrtico-feudal pela burguesia

    ocorreu atravs da reivindicao de um

    jusnaturalismo de cunho antropolgico, que

    gira em torno do homem, em contraposio

    ao de carter teolgico, voltado a Deus.

    A nova classe poltico-econmica (...)

    recorreu, ento, forma de direito natural,

    que denominamos antropolgico, isto , do

    homem, que extraa os princpios supremos

    de sua prpria razo, de sua inteligncia.

    Estes princpios, e de novo no por mera

    coincidncia, eram, evidentemente, os que

    favoreciam as posies e reivindicaes da

    classe em ascenso a burguesia e das

    naes em que capitalismo e protestantismo

    davam as mas para a conquista do seu

    lugar ao sol (Lyra Filho, 1991:42).

    9 Neste sentido, importante a reviso

    realizada por Schmidt, na qual, a partir de

    Antolisei (na crtica doutrina clssica do

    direito subjetivo do Estado) e, posteriormente

    Ferrajoli (na definio dos pressupostos de

    validade das normas jurdicas a partir dos

    direitos fundamentais), a ideia de pretenso

    punitiva do Estado (e, consequentemente,

    de jus puniendi) refutada e substituda

    pela ideia de pretenso acusatria. Nas

    palavras do autor, equivocado falarmos,

    no Estado Democrtico de Direito, numa

    suposta pretenso punitiva do Estado

    surgida no momento em que um crime

    praticado. Isso porque, em primeiro lugar, a

    notcia da prtica de um caso penal no faz

    surgir, desde j, para o Estado, o direito

    (subjetivo) ou dever de punir o suposto

    infrator, mas sim o dever fundamental de

    movimentar a jurisdio criminal segundo

    a estrutura operacional determinada na

    Constituio e limitada por ela mesma. Por

    enquanto, o mximo que se poderia falar,

    nas palavras de Aury Lopes Jnior, em

    pretenso acusatria ou persecutria do

    Estado, devidamente resistida pelo direito

    de liberdade do acusado assegurado na

    garantia de presuno de inocncia. Esta

    afirmao complementada por outra,

    de natureza organizacional: o monoplio

    da jurisdio faz recair sobre um rgo

    do Estado o dever de iniciar a persecuo

    penal (princpio da obrigatoriedade);

    a outro rgo, o dever de decidir sobre

    a matria objeto do processo (princpio

    da jurisdicionalidade); e, por fim, a um

    terceiro, a tarefa de defender o acusado

    (princpio da ampla defesa). Nessa etapa

    do processo de conhecimento teramos de

    falar (impropriamente, frise-se), ento,

    em pretenso acusatria, pretenso

  • Carvalho, S.

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 1 6 2

    decisria e pretenso defensiva (Schmidt,

    2003: 94).

    10 No Manifesto do Partido Comunista

    (1848), texto seminal para a percepo dos

    conflitos de classe na disputa pelo poder

    poltico e do papel (revolucionrio) da

    burguesia na dilacerao do mundo feudal

    e na edificao do Estado moderno, Marx e

    Engels referem que o executivo do Estado

    moderno no mais do que uma comisso

    para administrar os negcios comuns de

    toda a classe burguesa (Marx e Engels,

    Manifesto Comunista, p. 62). Mas se toda a

    luta luta de classe; e se toda a luta de classe

    uma luta poltica, as leis, a moral, a religio

    so outros tantos preceitos burgueses em

    que se acoitam outros tantos preceitos

    burgueses. Todas as classes anteriores que

    se apoderaram do poder procuram proteger

    uma posio social j alcanada, e para tal

    submeteram toda a sociedade s condies

    do seu lucro. (Marx e Engels, 1975: 72).

    11 A reduo da percepo do crime como atos

    delitivos das classes baixas e a vinculao dos

    valores sociais homogneos aos interesses da

    burguesia industrial das sociedades capitalistas

    so ntidas na crtica s teorias da anomia e

    das subculturas. Larrauri e Cid demonstra

    que (...) a teoria da anomia serve apenas

    para explicar um setor da delinquncia: a

    delinquncia das pessoas de classe baixa que

    tem bloqueadas ou reduzidas as vias legtimas

    para alcanas suas aspiraes e que realizam

    comportamentos delitivos como uma via

    alternativa para logras tais xitos (Larrauri

    e Cid, 2001:145).

    Em relao a relatividade do conceito

    de sociedade competitiva, a ingnua f nas

    regras do jogo, os limites tericos das teorias

    consensuais, a absolutizao da ideologia

    da classe mdia e o equvoco relativo ao

    conceito de subcultura, fundamental a

    contribuio crtica de Pavarini (1988).

    12 Se a teoria do etiquetamento promoveu a

    superao da categoria criminalidade pela

    ideia de criminalizao e o reconhecimento

    da seletividade do sistema penal a partir da

    crtica das estatsticas criminais, as teorias do

    conflito desnudaram as relaes de poder que

    influenciam os processos de criminalizao

    e a natureza poltica do direito penal. No

    por outro motivo, consolidam a base terica

    da criminologia crtica a criminologia

    crtica emerge, portanto, como uma

    perspectiva criminolgica orientada pelo

    materialismo (mtodo) que, ao incorporar

    os avanos das teorias rotulacionistas e

    conflituais, refuta os modelos consensuais

    de sociedade e os pressupostos causais

    explicativos da criminalidade de base

    microssociolgica (criminologia ortodoxa)

    e redireciona o objeto de investigao aos

    processos de criminalizao, atuao das

    agncias do sistema penal e, sobretudo, s

    relaes entre estrutura poltica e controle

    social (Carvalho, 2013b:286).

  • Sobre as Possibilidades de uma Penologia Crtica: Provocaes Criminolgicas...

    Rev. Polis e Psique, 2013; 3(3):143-164 | 163

    vi Pasukanis (1988) desenvolve, igualmente,

    importante crtica s tradicionais teorias da

    pena e o desdobramento politico da teoria da

    retribuio equivalente.

    13 possvel notar que a indstria cultural

    transformou a violncia em um rentvel

    produto de entretenimento que se encontra

    presente em uma srie incontvel de mdias

    (rdio, cinema, televiso, jornais, games,

    internet), inclusive em forma de arte

    (msica, filmes, literatura, artes plsticas,

    fotografia, quadrinhos, publicidade). Neste

    sentido, percebem Hayward e Young que o

    crime embalado e comercializado para os

    jovens como um romntico, emocionante,

    cool e fashion smbolo cultural. E neste

    contexto a transgresso torna-se opo de

    consumo desejvel (Hayward & Young,

    2007:109).

    Mas se o delito transformado em um

    produto de consumo, a resposta ao crime

    (pena) e as suas instituies igualmente so

    convertidas em mercadorias. Em relao

    priso, imprescindvel o estudo de Christie,

    A Indstria do Controle do Crime (1998).

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    Recebido em: 16/10/2013 Aceito em: 10/12/2013