Benilton Bezerra Jr - Uma Encruzilhada Cultural - Entre o Espiritual e o Nervoso

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7/25/2019 Benilton Bezerra Jr - Uma Encruzilhada Cultural - Entre o Espiritual e o Nervoso http://slidepdf.com/reader/full/benilton-bezerra-jr-uma-encruzilhada-cultural-entre-o-espiritual-e-o-nervoso 1/2 porque as respostas que vêm sendo dadas num certo nível, quer se mos trem mais ou menos eficazes, já estão codificadas, sabe-se qual é o caminho da pesquisa. Entretanto, não é o que acontece nas redes públicas de Saúde Mental. Aí precisamos começar a refinar o instrumental de intervenção, desco brir categorias e noções novas que permitam levar a prática adiante. Pa ra tanto, está faltando elaborar me diações teóricas que possam vir a pro var a possibilidade da prática, neste tipo de atendimento, o que até agora foi tratado com certa negligência teó rica. Em Psicanálise e contexto cul tural , considero que a mediação teó rica básica que tenho encontrado — sem contar outras possíveis que não tenho pesquisado — é a do conceito psicanalítico de imaginário. É através do imaginário que podemos entender a construção da subjetividade histori camente contingente e socialmente determinada. Evidentemente, quando faço essa afirmação não quero dizer que estou postulando algo que na pes soa ou no aparelho psíquico seja uni versal, desde sempre e para sempre. Restrinjo essa afirmação no meu estu do a uma questão metodológica. Em face de determinados problemas e de determinados objetivos, como o de estudar a psicoterapia em situações culturais diversas e formações históri cas de subjetividade, então, metodo logicamente, postulo certas categorias como universais porque funcionam como invariantes, enquanto outras funcionam como variáveis. Estas va riações são capazes de intervir na alte ração das técnicas, dos métodos e até da própria maneira teórica de como se aborda esse problema todo. Posso falar de um dos aspectos específicos deste trabalho que é a aná lise da noção de doença dos nervos. Esta é uma noção corrente na popula ção e, por isso, procurei estudar a semântica, os sentidos do uso da pala vra, no contexto em que ela expressa. Através disso, pude perceber o modo como a subjetividade se organiza (o que evidentemente está sujeito a cor reções e críticas, minhas e dos ou tros). Devido à variação subjetiva das formas imaginárias de apreensão da identidade, defendo a tese radical de que devemos abandonar de vez a no ção de essência da doença ou de es sência do doente. Conseqüentemente, a universalidade de métodos e a uni versalidade de tratam ento são balelas. Quero registrar uma última pala vra que não vale somente para o psicólogos, e mais especificamen para os psicólogos clínicos, mas ta bém vale para os psiquiatras e qua quer psicanalista. Em certo tipo d trabalho psiquiátrico institucional, resultado mais pernicioso possível essa espécie de divisão burocrática saber. Se o leitor quiser, essa retalh ção do psiquismo ideal conform áreas de competências e atribuiçõ técnicas. Além de ser absolutamen dispensável, isso está sendo respons vel por uma espécie de incapacida de os trabalhadores de Saúde Ment nos locais coletivos conviverem d uma forma mais produtiva no senti de auxiliarem as pessoas. E como pensássemos que a experiência hum na da loucura pudesse ser equipara à fabricação ou conserto de autom veis,onde existe técnico especializad em eletricidade, em mecânica e ass por diante. Isso não existe porqu devemos criar um saber que pode ser exercido por todos os membros equipe, conforme o momento d cliente; conforme o momento da in tituição e conforme a necessidade história dele. Jamais previamente qualquer destes níveis e em função competências burocráticas . ma encruzilhada cultural: entre o espiritual e o nervoso Benilton C arlos Bezerra Júnior é professor no Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e médico psiquiatra no Ambulatório do Centro Psiquiátrico Pedro II Seu depoimento revela quais são as dificuldades de atendimento às classes populares que apresentam representações e explicações religiosas sobre o espírito as quais freqüentemente colocam novas questões e desafios ao discurso e prática psicoterápicos. Para começar, duas cenas ocorr das no Ambulatório do Centro Ps quiátrico Pedro II, nos subúrbios Rio de Janeiro: Cena 1 —O médico, na entrevi ta inicial, pergunta à mãe que traz s filho à consulta: Então, o que se filho tem? mãe responde: Dou tor, meu filho tem bastante mediun dade e um pouco de nervoso . Cena 2 —Trata-se de uma sessão psicoterápica ocorrida algum tem depois de um período de ausência cliente, que se afastara do tratamen para fazer a cabeça . É umbandis veste-se de branco, e está nesta sess falando das razões que a levam

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porque as respostas que vêm sendodadas num certo nível, quer se mostrem mais ou menos eficazes, já estãocodificadas, sabe-se qual é o caminhoda pesquisa.

Entretanto, não é o que acontecenas redes públicas de Saúde Mental.Aí precisam os come çar a refinaro instrumental de intervenção, descobrir categorias e noções novas quepermitam levar a prática adiante. Para tanto, está faltando elaborar mediações teóricas que possam vir a provar a possibilidade da prática, nestetipo de atendimento, o que até agorafoi tratado com certa negligência teórica.

Em Psicanálise e contexto cultural , considero que a mediação teórica básica que tenho encontrado —sem contar outras possíveis que não

tenho pesquisado — é a do conceitopsicanalítico de imaginário. É atravésdo imaginário que podemos entendera construção da subjetividade historicamente contingente e socialmentedeterminada. Evidentemente, quandofaço essa afirmação não quero dizerque estou postulan do algo que na pessoa ou no aparelho psíquico seja universal, desde sempre e para sempre.Restrinjo essa afirmação no meu estudo a uma questão metodológica. Em

face de determinados problemas e dedeterminados objetivos, como o deestudar a psicoterapia em situaçõesculturais diversas e formações históricas de subjetividade, então, metodologicamente, postulo certas categoriascomo universais porque funcionamcomo invariantes, enqu anto outrasfuncionam como variáveis. Estas variações são capazes de intervir na alteração das técnicas, dos métodos e atéda própria maneira teórica de comose aborda esse problema todo.

Posso falar de um dos aspectosespecíficos deste trabalho que é a análise da noção de doença dos nervos.Esta é uma noção corrente na população e, por isso, procurei estudar asemântica, os sentidos do uso da palavra, no contexto em que ela expressa.

Através disso, pude perceber o modocomo a subjetividade se organiza (oque evidentemente está sujeito a correções e críticas, minhas e dos outros). Devido à variação subjetiva dasformas imaginárias de apreensão daidentidade, defendo a tese radical deque devemos abandonar de vez a noção de essência da doença ou de essência do doente. Conseqüentemente,a universalidade de métodos e a universalidade de tratam ento são balelas.

Quero registrar uma última palavra que não vale somente para opsicólogos, e mais especificamenpara os psicólogos clínicos, mas tabém vale para os psiquiatras e quaquer psicanalista. Em certo tipo dtrabalho psiquiátrico institucional,resultado mais pernicioso possível essa espécie de divisão burocrática saber. Se o leitor quiser, essa retalhção do psiquismo ideal conformáreas de competências e atribuiçõtécnicas. Além de ser absolutamendispensável, isso está sendo responsvel por uma espécie de incapacidade os trabalhadores de Saúde Mentnos locais coletivos conviverem duma forma mais produtiva no sentide auxiliarem as pessoas. E como pensássemos que a experiência humna da loucura pudesse ser equipara

à fabricação ou conserto de automveis, onde existe técnico especializadem eletricidade, em mecânica e asspor diante. Isso não existe porqudevemos criar um saber que podeser exercido por tod os os membros equipe, conforme o mo me nto dcliente; conforme o momento da intituição e conforme a necessidade história dele. Jamais previamente qualquer destes níveis e em função competências burocráticas .

ma encruzilhadacultural: entre oespiritual e o nervoso

Benilton C arlos Bezerra Júnior éprofessor no Instituto de M edicina

Social da Universidade Federal do Riode Janeiro e médico psiquiatra no

Am bulatório do Centro PsiquiátricoPedro II Seu depoimento revela quaissão as dificuldades de atendimento às

classes populares que apresentamrepresentações e explicações

religiosas sobre o espírito as quaisfreqüentemente colocam novasquestões e desafios ao discurso e

prática psicoterápicos.

Para começar, duas cenas ocorrdas no Ambulatório do Centro Psquiátrico Pedro II, nos subúrbios Rio de Janeiro:

Cena 1 — O médico, na entrevita inicial, pergunta à mãe que traz sfilho à consulta: En tã o, o que sefilho tem ? mãe responde: Do utor, meu filho tem bastante mediundade e um pouco de nervoso .

Cena 2 —Trata-se de uma sessãopsicoterápica ocorrida algum temdepois de um período de ausência cliente, que se afastara do tratamenpara fazer a cabeç a . É um bandisveste-se de branco, e está nesta sess

falando das razões que a levam

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7/25/2019 Benilton Bezerra Jr - Uma Encruzilhada Cultural - Entre o Espiritual e o Nervoso

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recorrer à mãe de santo e à psicólogaconco mitante men te: lá eu cuido doespírito; aqui, cuido do corpo .

Creio que cenas deste tipo nãodevem ser raras. Pelo contrário, imagino que para aqueles que têm olhos e(sobretudo) ouvidos atentos, eles devem evocar experiências próximas,ocorridas no cotidiano da assistênciapública. De todo modo, penso quesão ricas em sugestões acerca do temaproposto e, entre as várias observações que poderiam inspirar, gostariade comentar algumas.

A primeira coisa que atrai a atenção é esta espécie de encruzilhada cultural em que os personagens parecemse encontrar. Diante de uma situaçãode sofrimento psíquico, duas ordensde significação se apresentam comomatrizes de ordenação simbólica daexperiência que ainda não tem nome,é ainda dor, mal-estar. A me diunid a¬d e e o esp írito reivindicam umaexplicação sobrenatural, apontam para perturbações que se situam paraalém da individualidade de cada sujeito , na rede de relações que o ligam aesta outra esfera de existência, o sobre-humano, o divino. São estas relações que estão em crise, são elas quereclamam atenção e cuidado. Já onervo so e o co rpo dizem respeito

a outro sofrimento, e suas queixastêm outro destinatário. Quem padece

aqui é o sujeito na sua singularidade.É a sua vida que está em questão: aszonzeiras, as dores que sobem e descem, os nervos que pulam, a vontadede quebrar tudo, todo o discurso da(por nós) chamada doença dos nervosremete ao sentimento de fracasso dosujeito em lidar consigo próprio ecom suas circunstâncias. Ele revela oconflito que, o sujeito bem sabe que édele, se passa nele (a experiência nosensinou), que ele não confunde comdoença física. Daí o destinatário desua demanda ser outro: não é o agente religioso, tam pou co é o médicoclínico, é alguém que entenda e possaacolher esta peculiar demanda. Creioque a cronificação dos pacientes queapresentam quadros como este, nosambulatórios clínicos e nos atendimento psiquiátricos tradicionais, étestemunha da insistência desta demanda em se fazer ouvir na sua especificidade. No CPP II, clientes quedurante anos repetiram sem cessar estas queixas, mudaram seu discursoquando se lhes foi oferecida uma escuta que, sem esperar um vocabulário

psicologizado e intimista, procuravaestar atento àquilo que na superfíciedo nerv oso revelava a trama pul¬sional profun da .

Estamos assim diante de um fatohistórico, com to da a riqueza que esteadjet ivo pode conter. Percebemosnestas cenas o impacto de algumastransformações estruturais por quepassa o mundo moderno, principalmente nos centros urbanos: a fragmentação dos universos simbólicos,com progressiva hegemonia do discurso científico em áreas de existênciaantes reservadas a outra s agências nô¬micas, como a religião, a tradição, afamília. Mas o mais curioso é que osefeitos destas transformações emergem no terreno da idiossincrasia, lá

mesmo onde o social parece ausente.Daí o desafio que nos é dirigido. Somos nós os profissionais do idiossincrático. As relações entre a práticapsicoterápica e o contexto culturaldizem respeito, portanto, a todas asdimensões teóricas, técnicas, políticas, etc, que emergem destas mudanças e se expressam diante de nós como um modo de o sujeito se defrontarcom seu sofrimento.

E nesta encruzilhada, nós, profissionais, também nos encontramos. D eum lado,temos defendido com ardor auniversalização dos melhores recursos terapêuticos à nossa disposição.Isto nos tem feito elaborar propostasassistenciais que comtemplam o atendimento psicoterápico para todos.Por outro lado, nos angustiamos comas implicações deste movimento. or¬

namo-nos, de algum modo, agentesdo processo de psicologização do co

tidiano, cuja dim ensã o ide ológicnormalizadora não nos escapa. Ndiscussões a respeito, parec emo s às vzes nos sentir num mato sem cachoro : se não respondemos às demandaestamos excluindo a população dusofruto de bens a que apenas a elitem acesso; se respondemos, é commã o pesada do etnoc entrism o domode los hegem ônicos. Situação típionde um falso problema, que embarlha qualq uer resposta, nos leva a umaflição paralisante.

Na realidade, há uma enorme rqueza de questões a serem exploradneste quadro. Cenas desse tipo abrea porta a investigações acerca dos mdos de construção das subjetividadnuma sociedade tão marcada por d

ferenças como a nossa;perguntas sugem acerca da adequação de procdimentos técnicos tidos como univesais e que parecem pouco eficazes juto à população trabalhad ora; estudpodem ser elaborados com a perspetiva de modificar a oferta de serviçde saúde mental, ainda calcada nmodelo médico-hospitalar, e assimpor diante. É preciso trazer os achdos e embaraços da prática psicoterpica para o plano das indagações dpesquisas. Já existe atualmente entnós uma produção que toma nossintervenção (junto ao nossos cliente instituições e suas característicacom o objeto de curiosidade e reflexcientíficas. Este movimento deve sincentivado não só nas instituiçõeassistenciais como nas de formaçãde profissionais. A possibilidade dproduzirmos novos horizontes para nossa prática depende deste esforço