Bauman Traduzido
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De peregrino a turista, ou uma breve histria da identidade
Zygmunt Bauman
,
disse Douglas Kellner, e complementa que, , embora apenas uns
pargrafos adiante coloca em dvida a viabilidade existente , ao assinalar que e que .1 A ambivalncia de
Kellner reflete a ambivalncia atual da questo. Hoje escutamos falar da identidade e
seus problemas como nunca houve nos tempos modernos. No obstante, nos
perguntamos se a presente obcesso no mais que outro caso da regra geral das coisas
que se advertem ex post facto, quando se desvanecem, caem na falncia ou se deslocam
Ao meu ver, certo que a identidade , no . Para dizer a verdade, o era como constru-la e mant-la slida e estvel, o no fundamental como evitar a fixao e
manter vigentes as opes. No caso da identidade, como em outros, a palavra coringa da
modernidade era ; a palavra coringa da ps-modernidade
. Ou podemos dizer: se o da
modernidade era o papel fotogrfico (pense nos lbuns de famlia em grande aumento,
cujas pginas amareladas descreviam a lenta acumulao dos sucessos gerados de uma
identidade, irreversvel e impossvel de apagar), o ltimo meio ps- moderno a fita de
vdeo (apagvel e reutilizvel, calculada para no guardar nada para sempre, que admite
os sucessos de hoje com a nica condio de apagar os de ontem e resumir a mensagem
universal de que tudo digno de gravao ). A principal
angustia relacionada com a identidade dos tempos modernos era a preocupao pela
durao, hoje o interesse em evitar o compromisso. A modernidade construa em ao e
concreto, a ps-modernidade constri em plstico biodegradvel.
1 Douglas Kellner, , enScott Lash e Jonathan Friedman, eds., Modernity and identity, Oxford: Basil Blackwell, 1992.
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Como tal, a identidade uma inveno moderna. Dizer que a modernidade levou
da identidade ou a deixou afirmar
um pleonasmo, posto que em nenhuma poca em um ;
foi um desde seu nascimento: nasceu como problema ( dizer, como
algo com o qual necessrio fazer algo: como uma tarefa) e somente podia existir como
problema; era um problema e desse modo estava traada para nascer, precisamente
devido a essa experincia de subdeterminao e independncia que chegou a anunciar
ex post facto como . A identidade no se teria coagulado numa
entidade visvel e captvel em nenhuma outra forma e .
Pensamos na identidade quando no estamos seguros do lugar que pertencemos;
dizer, quando no estamos seguros de como situarmos na evidente variedade de estilos e
comportamentos e fazer que as pessoas que nos rodeia aceite essa situao como correta
e apropriada, a fim que ambas as partes saibam como atuar na presena da outra.
um nome dado busca de sada dessa incerteza. Embora, a palavra
de maneira notria um substantivo, se comporta como um verbo, porem um verbo
estranho, sem lugar para dvida: s aparece no futuro. Mesmo que objetivada com
demasiada frequncia como um atributo de uma entidade material, a entidade tem o
status ontolgico de um projeto e um postulado. Dizer quer
dizer mais do que uma palavra, j que no h nem pode haver outra identidade que a
postulada. A identidade uma projeo crtica do que se demanda ou se busca com
respeito ao que ; ou mais exatamente, uma afirmao indireta da inadequao ou o
carter inconcluso do que .
A identidade se incorporou mentalidade e a prtica moderna desde o inicio como
uma tarefa individual. Correspondia ao individuo encontrar um escape da incerteza.
Nem por primeira nem por ultima vez, os problemas socialmente criados seriam
resolvidos pelos esforos individuais, e a enfermidades coletivas e remediariam graas
medicina privada. No que os indivduos ficariam livres a sua prpria iniciativa e se
confiaria em sua sagacidade; muito pelo contrrio, o feito de por na agenda a
responsabilidade individual pela autoformao gerou uma multido de treinadores,
tutores, docentes, assessores e guias, todos os quais afirmam ter um conhecimento
superior sobre as identidades que pudessem adquirir. Os conceitos de construo da
identidade e de cultura (vale dizer, da ideia de incompetncia individual, a necessidade
de educao coletiva e a importncia de educadores profissionais e bem informados)
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nasceram e s podiam nascer juntos. A identidade anunciou
sua dependncia da orientao especializada.
A vida moderna como peregrinao
A figura do peregrino no foi uma inveno moderna; to antiga como a
cristandade. Mas a modernidade deu um novo destaque e um aspecto negativo.
Enquanto Roma estava em runas, abatida, humilhada, saqueada e devastada pelos
nmades de Alarico, Santo Agostinho anotava a seguinte observao: . ; aqui, na
terra, disse Santo Agostinho, os cristos erram .2
Para os peregrinos de todas as pocas, a verdade est em outra parte; o verdadeiro
lugar est sempre distante no tempo e no espao. Qualquer que seja o lugar em que est
hoje o peregrino, no onde deveria nem onde sonha estar. A distncia entre o
verdadeiro mundo e este mundo do aqui e agora est constituda pela discordncia entre
o que se deve alcanar e o que j se alcanou. A glria e a solenidade do futuro destino
degradam o presente e zombam dele. Que finalidade pode ter a cidade para o peregrino?
Para ele somente as ruas possuem sentido, no as casas; a casa o tenta a ficar e relaxar,
esquecer o destino. Ainda as ruas, no entanto, podem revelar-se mais como obstculos
do que como ajuda, mais como armadilhas que como vias pblicas. Podem desorientar,
desviar do caminho correto, descarrilar. , escreve Richard
Sennett, .3
Na pena de Santo Agostinho, a frase no
era uma exaltao, mas sim a exposio de um fato. No importa o que faamos, somos
peregrinos, e pouco podemos fazer a respeito ainda que desejemos. A vida terrena no
seno uma breve abertura persistncia eterna da alma. S uns poucos desejariam e
seriam capazes de compor a abertura por si mesmo, ao tom da msica das esferas
celestiais: converter sua contingncia num destino conscientemente abraado.
2 Santo Agostinho, The City of God, traduo de Gerald S. Walsh et al., Nova York: Imagem, 1958. [A cidade de dues, Nueos Aires: Club de Leitores, 2 vols., 1989.]
3 Richard Sennett, The Conscience of the Eye: The Design and Social Life of Cities, Londres: Faber and Faber, 1993, pg. 6 [A concincia do olho, Barcelona: versal, 1991]
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Esses poucos teriam que escapar das distraes da cidade. O habitat que devem
escolher o deserto. O deserto do eremita cristo estava distante da confuso da vida
familiar, longe da cidade, da aldeia, do mundo e das polis. O deserto significava por
distancia entre si mesmo e seus deveres e obrigaes, o calor e a agonia de estar com os
outros, ser olhado pelo outros, ser forjado e moldado pelo seu escrutnio, suas demandas
e suas expectativas. Aqui na cotidianidade mundana, nossas mos estavam atadas, e
tambm nossos pensamentos. Aqui, o horizonte estava repleto de galpes, celeiros,
arbustos, bosques e torres de igreja. Aqui, nos movamos onde nos movamos,
estvamos num lugar, e estar num lugar significava no mover-se, fazer o que o lugar
requeria que se fizesse. O deserto, ao contrrio, era uma terra ainda no dividida, por
isso, a uma terra auto concentrada. O deserto, dizia Edmond Jabs, .
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Inventaram uma forma de embarcar numa peregrinao sem abandonar o lar, e de
abandonar o lar sem ficar sem teto. S puderam faz-lo, no entanto, porque o deserto
estava extinto e havia penetrado profundamente nas cidades, at o umbral de suas casas.
No se aventuraram no deserto; era o mundo da sua vida diria que se tornava mais e
mais . Como o deserto, o mundo permanecia sem lugares; os traos
conhecidos haviam sido suprimidos, mas os novos destinados a substitu-los, lhes
davam um papel que outrora se acreditava exclusivos das dunas. Na nova cidade da
modernidade, posterior a Reforma, o deserto comeava do outro lado da porta.
O protestante, esse fixador de pautas (no seno uma alegoria?) para o homem
moderno assim nos diz Sennett - , se sentia . Nesse aspecto, no era
diferente do emrita. A diferena era que, em vez de viajar ao deserto, o protestante se
esforava para fazer que o deserto fosse a ele: para refazer o mundo semelhana do
deserto. .5 Este o tipo de linguagem em que se fala do deserto: do nada que se espera
converter em algo, ainda que seja por um momento; da insignificao a espera de um
significado, ainda que seja passageiro; de espao sem contornos, dispostos a aceitar
qualquer coisa que se oferea, ainda que seja at que se propagam outros; de um espao
sem as cicatrizes de riscos futuros. Mas frtil de expectativas de lminas afiadas; de
terras virgens ainda para arar e cultivar, a terra do eterno comeo, do lugar cujo nome e
a identidade so os do no lugar. Nessa terra o destino do peregrino abre os caminhos, e
apenas h outros caminhos que se devam levar em conta.
Nessa terra, geralmente chamada sociedade moderna, a peregrinao j no a
eleio de um modo de vida; menos ainda uma eleio heroica ou piedosa. Viver a
prpria vida como peregrinao j o tipo de sabedoria tica revelada aos eleitos, e
honrado ou iniciada por eles. A peregrinao o que fazemos por necessidade, para
evitar nos perder num deserto; para conferir uma finalidade ao caminhar enquanto
vagamos sem rumo pela terra. Ao sermos peregrinos, podemos fazer mais que caminhar:
podemos caminhar para (em direo a). Podemos olhar atrs, contemplar as pegadas de
nossos ps na areia e as ver como um caminho. Podemos refletir sobre o caminho
passado e olh-lo como um progresso para, um avano, uma aproximao a;
5 Sennett, The conscience of the Eye, op. cit., pgs. 44, 46.
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podemos distinguir entre e , e traar o
como uma sucesso de pegadas que ainda tem que marcar como cicatrizes de varola da
terra sem traos. O rumo, o objetivo fixado na peregrinao de uma vida, da forma ao
informe, faz um todo do fragmentrio, empresta continuidade ao episdio.
O mundo como deserto impe viver a vida como peregrinao. Mas como a vida
uma peregrinao, o mundo diante da nossa porta semelhante ao deserto, sem marcas,
j que ainda resta dar seu sentido pelo meio do vagabundo que o transformar num
caminho para a meta onde se encontra o sentido. Essa do sentido havia
sido chamada . O peregrino e o mundo semelhante ao
deserto por ele que caminha adquirem seu sentido juntos, e cada um atravs do outro.
Ambos processos podem e devem continuar, porque h uma distancia entre a meta (o
sentido do mundo e a identidade do peregrino, sempre para alcanar, sempre o futuro) e
o momento presente (a posio do vagabundo e a identidade do vagabundo).
Tanto o sentido como a identidade s podem existir como projetos, e o que permite
sua existncia a distancia. A o que denominamos, na linguagem
do espao, a experincia que nos termos psicolgicos
aludimos como insatisfao e menosprezo do aqui e agora. A e a
tm o mesmo referente, e ambas possuem sentido dentro da vida
vivida como peregrinao.
, assinala Freud em Muito alm do principio do prazer. Janine
Chasseguet-Smirgel prope um comentrio extenso dessa observao seminal,
rastreando o inicio do autodesenvolvimento, a construo da identidade, etc., na
condio primaria da gratificao demorada, a distncia intransponvel entre o ideal do
eu e as realidades do presente.6
A se traduz como ... O passo atravs do espao uma
funo do tempo, as distncias se medem pelo tempo necessrio para aboli-las.
est a espera, est a gratificao. Quando h desde aqui at ali, da
espera gratificao, do vazio ao sentido, do projeto identidade? Dez, vinte anos? O
6 Janine Chasseguet-Smirgel, The Ego-ideal: A Psychoanalytic Essay on the Malady of the Ideal, traduo de Paul Barrows, Londres: Free Association Books, 1985. [O ideal do eu: ensaio psicoanaltico sobre a enfermidade de idealidade, Buenos Aires: Amorrortu editores, 1991.]
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que tardamos em viver nossa vocao de principio ao fim? O tempo que podemos usar
para medir as distncias deve ser como as rguas: reta, de uma s pea, com marcas
equidistantes, feito de um material duro e slido. E assim era, o efeito, o tempo dos
projetos modernos do . Como a vida mesma, era direcionada, continua e
impossvel de contorcer. > e . Tanto a
vida como o tempo estavam feitos a medida da peregrinao.
Em termos prticos, para o peregrino, para o homem moderno, isto significava que
numa etapa bastante cedo da vida, podia, devia e tinha que selecionar com confiana seu
ponto de chegada, com a segurana de que a linha reta do tempo de vida que tinha
adiante no se curvaria, torceria ou descarrilaria, no se interromperia nem voltaria
atrs. A demora da gratificao, assim como a frustrao momentnea que gerava, eram
um fator revigorante e de origem de fervor (entusiasmo) pela construo da identidade,
na medida em que se combinaram com a confiana no carter linear e acumulativo do
tempo. A principal estratgia da vida como peregrinao, da vida como construo da
identidade, era , mas poupar para o futuro s tinha sentido
como estratgia se se podia estar seguro de que esse futuro recompensaria as economias
com interesse e de que a bonificao, uma vez acumulada, no seria retirada, que as
economias no se desvalorizassem antes da data de distribuio dos benefcios nem se
os considerassem moeda sem curso real; que o que hoje se v como capital se ver do
mesmo modo amanh e depois de amanh. Os peregrinos apostavam na solidez do
mundo pelo que caminhavam; um tipo de mundo no qual um pode contar a vida como
um relato continuo, um relato , uma histria que faz de cada
sucesso o efeito do anterior e a causa do seguinte, e de cada idade uma estao no
caminho fazia a realizao. O mundo dos peregrinos dos construtores de identidade
deve ser ordenado, determinado, previsvel, firme; mas, sobre tudo, deve ser um tipo de
mundo no qual as pegadas de seus ps fiquem gravadas para sempre, a fim de manter o
projeto e o registro de viagens passadas. Um mundo em que viajar possa ser, em efeito,
uma peregrinao. Um mundo hospitaleiro para os peregrinos.
O Mundo Inospitaleiro para os peregrinos
O mundo j no hospitaleiro para os peregrinos. Ao ganhar sua batalha, a perderem.
Eles lutaro para que o mundo fora slido e o fizeram flexvel, a fim de que a identidade
pudesse construir-se a vontade, mas sistematicamente, piso por piso e ladrilho por
ladrilho. Procederam a converter num deserto o espao em que devia construir-se a
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identidade. Comprovaram que o deserto, ainda reconfortantemente carente de traos
para quem busca deixar sua marca, no conserva bem os traos. Quanto mais fcil
estampar uma pegada, mais fcil apag-la. Uma rajada de vento o far. E os desertos
so lugares ventosos.
Logo se deixou ver que o verdadeiro problema no como construir a identidade,
mas sim como preserv-la; no importa o que levantemos na areia, improvvel que
seja um castelo. Num mundo semelhante a um deserto no custa muito abrir uma trilha;
o difcil reconhec-la posteriormente. Como distinguir uma marca feita depois de uma
trajetria em crculos, de um eterno retorno? virtualmente impossvel fazer das
transitadas extenses de areia um itinerrio, e menos ainda o roteiro de viajem de uma
vida inteira.
O significado da identidade, assinala Christopher Lash, . Um mundo construdo com objetos duradouros foi
substitudo .
Nesse mundo, .7 O horror da nova situao que qualquer trabalho diligente de construo
pode resultar em vo; seu atrativo consiste em no estar limitado por ensaios anteriores,
em que nunca h derrotas irrevogveis e as .
Tanto o horror como o atrativo faz que a vida como peregrinao dificilmente seja
vivel como estratgia, e improvvel escolhe-la como tal. Poucos a elegero, de
qualquer maneira. E no com grandes possibilidades de xito.
No jogo da vida dos consumidores ps-modernos, as regras mudam durante seu
desenvolvimento. Por tanto, a estratgia sensata fazer que cada partida seja curta, de
modo que um jogo da vida jogado com sensatez exige a diviso de uma grande partida
geral, com enormes apostas, numa srie de jogos breves e limitados com apostas
pequenas. A e 8 se converteram nos princpios receptores
de toda conduta racional.
Fazer que a partida seja curta significa estar em guarda contra os compromissos de
longo prazo, Negar-se a ficar de uma maneira ou de outra. No ater-se ao
7 Christopher Lash, The Minimal Self: Psychic Survival in Troubled Times, Londres: Pan Books, 1985, pgs. 32, 34, 38.
8 Ibid., pgs. 57, 62.
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lugar. No casar a prpria vida a uma s vocao. No jurar coerncia e lealdade a nada
e nem a ningum. No controlar o futuro, seno negar-se a hipotec-lo: ter a precauo
de que as consequncias de cada partida no sobrevivem mesma partida, e renunciar
responsabilidade pelas que a fazem. Proibir ao passado pesar sobre o presente. Em
sntese, amputar o presente em ambos extremos, cort-lo da histria, abolir o tempo em
qualquer outra forma que no seja a de uma coleo no atrativa ou uma sequencia
arbitrria de momentos presentes; um presente continuo.
Uma vez Uma vez desarmado e despojado de sua condio de vetor, o tempo j no
estrutura o espao. No terreno, no h mais ou ; o nico
que conta a atitude de no ficar-se quieto. O bom estado fsico [fitness] a capacidade
de ir rapidamente ao lugar da ao e estar disposto a assumir as experincias nem bem
se presenteiam tem precedncia sobre a sade, a ideia de um padro de normalidade e
a inteno de mant-lo estvel e sem impressionar. Toda demora, includa a , perde seu significado; no fica nenhuma flecha do tempo para
medi-la.
E desse modo, a dificuldade j no como descobrir, inventar, construir, armar uma
identidade, mas sim como impedir que esta nos pegue. A identidade bem construda e
duradoura deixa de ser um ativo para converter-se num passivo. O eixo da estratgia na
vida ps-moderna no construir uma identidade, mas sim evitar sua fixao.
De que serviria em nosso mundo uma estratgia do ao estilo de
peregrino? No s h desaparecido o emprego de por vida, seno que os ofcios e
profisses tomaram o confuso costume de aparecer do nada e dissiparem-se sem aviso, e
dificilmente podem viver-se como weberianas. Para esfregar sal sobre a
ferida, a demanda das habilidades necessrias para exercer essas profisses raramente
dura tanto quanto o tempo requerido para adquiri-las. Os empregos j no esto
protegidos, e sem dvida alguma no esto mais a estabilidade dos lugares onde se
desempenham; cada vez que se pronuncia a palavra , um sabe a
cincia certa que se aproxima a desapario de mais postos de trabalho. No muito
melhor a sorte da estabilidade e confiabilidade da rede de relaes humanas. A nossa a
era da de Anthony Giddens, que e, pelo tanto, ; a era do que , de modo que
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permanncia>>; a era da , dizer, o gozo sexual .9
Dificilmente podemos uma identidade s relaes que em si mesmas
esto irreparavelmente ; e se nos aconselha com solenidade a no
tentar, dado que o compromisso intenso, o apego profundo (e nem falar da lealdade,
essa homenagem ao hoje obsoleta ideia de que o apego tem consequncias vinculantes,
enquanto o compromisso significa obrigaes), podem lastimar e ferir quando chega o
tempo de separar-se do companheiro, como caso com seguridade chegar. O jogo da
vida rpido e no deixa tempo para fazer uma pausa, pensar e tramar planos
detalhados. Mas uma vez mais, para somar ao desconcerto, as regras do jogo mudam
muito antes de que este termine. Neste, nosso (como disse
George Steiner), os valores que devemos apreciar e buscar ativamente, as recompensas
pelas quais lutar e as estratagemas que preciso despregar para consegui-las se
calculam para alcanar .
Impacto mximo, dado que num mundo hipersaturado de informao a ateno se
converte no mais escasso dos recursos e s uma mensagem escandalosa e que a seja
mais que a anterior tem possibilidades de atra-la (at o seguinte escndalo); e
obsolescncia instantnea, pois apenas se ocupou necessrio esvaziar o local da
ateno, para deixar lugar s novas mensagens que golpeiam a porta.
O resultado global a fragmentao do tempo em episdios, cada um deles
amputado do seu passado e seu futuro, fechado em si mesmo e autnomo. O tempo j
no um rio, mas sim uma srie de lagos e estanques.
Nenhuma estratgia de vida coerente e coesiva surge da experincia que pode
recolher-se num mundo semelhante: nenhuma estratgia remotamente reminiscente da
sensao de finalidade e a vigorosa determinao da peregrinao. Nada surge dessa
experincia salvo algumas regras prticas, em sua maioria negativas: no planifique
viagens muito longas quanto mais curtas, mais possibilidades de complet-las - ; no
se apegue emocionalmente a pessoas que conhece na paradas temporrias quanto
menos se preocupar com elas, menos vai custar seguir sua marcha - ; no se
comprometa intensamente com pessoas, lugares, causas um no pode saber quanto
duraro ou quanto tempo os considerar merecedores do seu compromisso - ; no pense
9 Anthony Giddens, The Transfirmation of Intimacy: Sexuality, Love and Eroticism inModern Societies, Cambridge: Polity Press, 1992, pgs. 58, 137, 61, 52, 27. [a transformao da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, Madrid: Ctedra, 1995]
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nos seus recursos presentes como um capital: as poupanas perdem rapidamente seu
valor e o outrora vangloriado tende a converter-se num instante em
passivo cultural. Sobre todo, no demore a gratificao, se pode evit-lo. Queira o que
quiser, trate de consegui-lo j, porque impossvel saber se a gratificao que busca
hoje seguir sendo gratificante amanh.
Assim como o peregrino foi a metfora mais adequada para a estratgia da vida
moderna preocupada pela esmagadora tarefa da construo identitria, o passeante, o
vagabundo, o turista e o jogador propem em conjunto, a meu juzo, a metfora da
estratgia ps-moderna, motorizada pelo horror aos limites e a imobilidade. Nenhum
dos tipos e estilos enumerados uma inveno ps-moderna: se conheciam muito antes
do advento dos tempos ps-modernos. Contudo, assim as condies modernas
remodelaram a figura do peregrino herdada da cristandade, o contexto ps-moderno de
uma nova qualidade aos tipos conhecidos pelos seus antecessores, e o faz em dois
aspectos cruciais. Primeiro: os estilos outrora praticados por pessoas marginais em
lapsos e lugares marginais so hoje patrimnio da maioria na flor da idade e em lugares
centrais para seu mundo vivido; se converteram hoje, plena e verdadeiramente, em
estilos de vida. Segundo: para alguns, se no para todos os tipos no se elegem, nem
so excludentes ente si -, a vida ps-moderna muito desordenada e incoerente para
caber num nico modelo coesivo. Cada tipo transmite somente uma parte da histria
que nunca integra numa totalidade (sua nada mais que a soma de suas
partes). No coro ps-moderno, os quatro tipos cantam, s vezes em harmonia, ainda que
com maior frequncia o resultado seja a cacofonia.
Os sucessores do peregrino
O passeante
Charles Baudelaire batizou Constatin Guy , porque
pintava as cenas cotidianas (da rua) tal como as via o passeante (flneur). Em seu
comentrio sobre a observao de Baudelaire, Walter Benjamim feito do flneur um
nome familiar de anlises cultural e a figura simblica central da cidade moderna. Todas
as correntes da vida moderna pareciam unir e reunir no passatempo e a experincia do
passeante: sair a dar um passeio como se sai para ir ao teatro, se encontrar entre
estranhos e ser um estranho para eles (na multido, mas no da multido), observa-los
como > - de modo que esgotar > -
-
e sobre todo v-los e conhec-los de maneira episdica; fisicamente, passear significa
repetir a realidade humana como uma srie de episdios, dizer, sucessos sem passado
nem consequncias. Significa tambm reencontrar os encontros como desencontros,
encontros sem incidncia: o passeante costurava a vontade os fragmentos fugitivos da
vida de outras pessoas; era sua percepo a que as convertia em atores, para falar do
enredo do drama que representavam. O passeante era um experiente em simulao: se
imaginava como um roteirista ou diretor que movia os fios da vida de outras pessoas
sem prejudicar ou destorcer seu destino. O passeante levava a vida do e
exercia o compromisso do com a vida de outra gente; destrua a oposio
entre e ; era o criador sem os padecimentos associados
criao, o amo que no devia temer as consequncias de seus atos, o audaz que nunca
tinha que pagar os pratos quebrados da coragem. O passeante gozava de todos os
prazeres da vida moderna sem os tormentos associados a eles.
A vida como passeio estava muito longe da vida como peregrinao. O que o
peregrino fazia com toda seriedade, o passeante fazia brincando; no processo, se
liberava tanto dos custos como dos efeitos. O passeante se encaixava mal na cena
moderna, mas nesse caso se escondia entre bastidores. Era o homem ocioso e passeava
nas horas vagas. O passeante e o passeio esperavam na periferia que chegara sua hora. E
sua hora chegou, o melhor dito, trouxe o avatar ps-moderno do produtor heroico
transformado em consumidor ldico. O passeio, outrora a atividade praticada pelas
pessoas marginais nas margens da , chegou a ser agora a mesma vida, e j
no foi preciso encarar a questo da .
Em seu significado, [] se referia aos espaos para as
caminhadas. Agora, a maioria dos passeios so passeios de compras [shoppings malls],
espaos para passear enquanto faz compra e para comprar enquanto passeia. Os
comerciantes farejaram o atrativo e o poder sedutor dos costumes dos passeantes e se
propuseram a dar a forma de vida. As galerias parisienses foram promovidas
retrospectivamente categoria de cabeceiras de ponte dos tempos por vir: as ilhas
ps-modernas no mar moderno. Os passeios de compras fazem que o mundo (ou a parte
do mundo cuidadosamente emparedada, eletronicamente controlada e estreitamente
custeada) seja seguro para a vida como passeio. Ou melhor, os passeios de compras so
os mundos feitos por desenhistas contratados medida do passeante. Os lugares, do
presente desgarrado do passado e o futuro, de superfcies que simulam superfcies.
Nesses mundos, cada passeante pode se imaginar como diretor, ainda que todos eles so
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objeto de uma direo. Esta, como aqueles mesmos se destinavam, discreta e invisvel
(ainda que, a diferena da outra, cada vez necessita de consequncias), de modo que as
iscas parecem desejos; as presses, intenes; a seduo, uma deciso; nos passeios de
compras na vida como comprar para passear e passear para comprar, a dependncia se
dissolve na liberdade e na liberdade busca a dependncia.
Os passeios iniciaro a ascenso ps-moderna do passeante, mas tambm prepararo
o terreno para uma maior elevao (ou purificao?) do seu modelo de vida. Essa
elevao se alcanou na telecidade (segundo a feliz expresso de Henning Bech), a
cidade como refgio do passeante, destilada at sua essncia pura, que agora entra no
refgio ltimo do mundo do nmade solitrio, totalmente privado, seguro, fechado e a
prova de ladres, onde a presena fsica de estranhos no oculta sua inacessibilidade
psquica nem interfere com ela. Nesta verso da telecidade, as ruas e os passeios de
compras tem sido liberados de tudo que desde o ponto de vista do passeante arruinava a
diverso, era uma impureza, uma redundncia ou um desperdcio; o que se manteve, por
tanto, pode brilhar e desfrutar em toa sua pureza imaculada. Em palavras de Bech, .10 A liberdade ltima est
orientada fazia a tela, se vive em companhia de superfcies e se chama zapping.
O Vagabundo
O vagabundo era a aflio da primeira modernidade, o espantalho que provocava nos
governantes e filsofos um frenesi de ordem e legislao.11 O vagabundo no tinha
mestres, e no t-los (estar fora do controle, fora de todo quadro, sem ataduras) era uma
condio que a modernidade no podia tolerar, razo pela qual passou o resto de sua
histria combatendo-a. Os legisladores do perodo isabelino estavam obsecados com a
10 Henning Bech, , trabalho apresentado na sesso da European Conference of Sociology, Viena, 22 a 28 de Agosto de 1992.
11 Cf. Zygmunt Mauman, Legislators and Interpreters: On Modernity, Postmodernityanda Intellectual, Cambridge: Polity Press, 1987, cap. 3. [Legisladores e interpretes. Sobre a modernidade, a ps-modernidade e os intelectuais, Bernal, Buenos aires: universidade Nacional de Quilmes, 1997.]
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necessidade de expulsar os desocupados do caminho e devolv-los s parquias (mas das quais se haviam marchado precisamente porque j no
pertenciam a elas). Os vagabundos eram as avanadas ou unidades guerrilheiras do caos
ps-tradiconal (interpretado pelos governantes, segundo a maneira habitual de usar um
espelho para pintar a imagem do Outro, como anarquia) e deviam ir-se sem a inteno
era que prevaleceria a ordem (isto , o espao administrado e controlado). Foram os
vagabundos que erravam livremente que nem fizeram imperativa quem fizeram
imperativa e urgente a busca de um novo ordenamento social estratificado e manejado
pelo Estado.
A causa do terror levantado pelos vagabundos era sua aparente liberdade de
movimentao e, portanto, a possibilidade de escapar a uma rede de controle at ento
local. Pior ainda: seus movimentos eram imprevisveis; a diferena do peregrino, o
vagabundo no tinha destino. No sabemos onde ir a continuao, porque o mesmo
no o sabe nem se preocupa muito por ele. O vagabundo no tem um itinerrio
antecipado: sua trajetria se arma fragmento por fragmento, de cada vez. Cada lugar
para o vagabundo uma parada transitria, mas ele nunca sabe quanto ficar ali;
depender da generosidade e pacincia dos residentes, mas tambm das notcias de
outros lugares capazes de despertar novas esperanas (deixa nas suas costas as
esperanas frustradas e as esperanas no confirmadas o empurram para frente). O
vagabundo decide que rumo tomar quando chega a uma encruzilhada; elege sua
prxima estadia lendo os nomes e os cartazes do caminho. fcil controlar o peregrino,
to completamente previsvel graa a sua autodeterminao. Controlar o caprichoso e
errtico vagabundo uma tarefa covarde (ainda que demonstrou ser uma das poucas que
o engenho moderno conseguiu resolver).
Onde v, um estrangeiro; nunca pode ser , o , algum
com > ( est muito fresca a lembrana de sua chegada, dizer, do
feito de que antes estava em outra parte). Alimentar um sonho de fincar-se s pode
terminar na recriminao mutua e a amargura. melhor, por assim, no acostumar-se
muito ao lugar. E, depois de tudo, est a tentao de outros lugares ainda no visitados,
talvez mais hospitaleiros e sem duvida em condies de brindar novas possibilidades.
Assegurar o prprio ds-enraizamento uma estratgia sensata, que d a todas as
sensaes um aroma de >, permite manter vigentes todas as
opes e impede hipotecar o futuro. Se os nativos deixam de distrair, sempre se pode
tratar de buscar outros mais divertidos.
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O primeiro vagabundo moderno errava atravs dos lugares povoados; era um
vagabundo porque no podia se fincar em nenhum lugar, como o haviam feito os
demais. Os sedentrios eram muito, os vagabundos, poucos. A ps-modernidade
inverteu a proporo. Hoje ficam poucos lugares >. Os residentes
se despertam e comprovam que os lugares aos quais
(lugares na terra, lugares na sociedade e lugares na vida) j no existem
ou no do capacidade; as ruas limpas se convertem em miserveis, as fabricas se
dissipam junto com os postos de trabalho, as qualificaes j no encontram
compradores, o conhecimento se transforma em ignorncia, a experincia profissional
se volta num impedimento, as redes consolidadas de relaes se desfazem em pedaos e
sujam os lugares com desperdcios putrefatos. O vagabundo no hoje um vagabundo
pela renuncia ou a dificuldade para assentar-se, mas sim devido a escassez de lugares
assentados. Agora, o provvel que as pessoas a quem conhece em suas viagens sejam
outros vagabundos: vagabundos hoje ou vagabundos amanh. O mundo est se
colocando a par do vagabundo, e o faz com rapidez. Se refaz a medida do vagabundo.
O Turista
Como o vagabundo, o turista habitou outrora as margens da ao (ainda que o primeiro era um homem marginal, enquanto que o turismo era
uma atividade marginal), e hoje h passado ao centro (em ambos sentidos). Como o
vagabundo, o turista est em movimento. Como o vagabundo, est em todos os lugares
onde v, mas em nenhuma parte o lugar. Ainda que tambm haja diferentes, e so
semelhantes.
Primeiro, no caso do turista o equilbrio entre os fatores de e
[] se inclina fazia este ltimo. O turista se move com a
finalidade (ou isso cr). Seus movimentos so antes de tudo , e s
secundariamente (no melhor dos casos) . A finalidade uma nova
experincia; o turista um buscador consciente e sistemtico de experincia, de uma
nova e diferente experincia, da experincia, da diferena e da novidade, quando os
gozos do conhecido se desgastam e deixam de atrair. Os turistas querem submergir num
estranho e curioso elemento (uma sensao agradvel, uma sensao rejuvenescedora,
como deixasse golpear pelas ondas do mar), com a condio, sem a preocupao, de que
no se cole pele e, em consequncia, podem desprender-se dele quando o desejarem.
Elegem os elementos nos quais querem mergulhar de acordo com seu exotismo, mas
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tambm por sua segurana; reconhecemos os lugares favoritos dos turistas por sua
singularidade estridente e pretensiosa (ainda que cuidadosamente preparada), mas
tambm pela profuso de varandas de proteo e rotas de fuga bem marcadas. No
mundo do turista, o estranho est domado, domesticado, e j no assusta; as comoes
se incluem no mesmo pacote que a segurana. Isto faz que o mundo parea
infinitamente amvel, obediente aos desejos e caprichos do turista, disposto a contentar,
mas tambm o mundo , agradavelmente flexvel, amassado
pelo desejo do turista, feito e refeito com um s objetivo em mente: estimular, contentar
e divertir. No h outra finalidade que justifique a presena desse mundo, e a do turista
nele. O mundo do turista est total e exclusivamente estruturado por critrios estticos
(cada vez mais escritores que advertem a do mundo ps-moderno em
detrimento de suas outras dimenses, tambm moral, o descrevem ainda quando no
sejam conscientes dele como se fora visto pelo turista; o mundo o
mundo habitado pelo turista). A diferena do que sucede na vida do vagabundo, aqui as
duras e speras realidades resistentes esculpida esttica no se intrometem. Podemos
dizer que o turista compra, paga, exige a entrega (ou aude justia se esta se demora),
precisamente, do direito a que no o molestem, a estar livre de qualquer espao salvo o
esttico.
Segundo, a diferena do vagabundo que tem poucas opes para reconciliar com a
situao de desamparo, o turista tem um lar; ou, em todo caso, deveria t-lo. Ter um lar
parte do pacote de segurana: para que o prazer no se turve e seja verdadeiramente
fascinante, em alguma parte deve fazer um lugar acolhedor e receptivo, sem duvida
, ao qual seja possvel ir quando a aventura atual termine ou se a
viagem demonstra no ser to aventureira como se esperava. o lugar onde
no necessrio provar nem defender nada, j que tudo est simplesmente ali, bvio e
familiar. A placidez do lar exalta ao turista a buscar novas aventuras, mas essa mesma
placidez faz da busca de aventuras um passatempo desocupadamente agradvel: aqui, na
terra turstica, pode haver passado qualquer coisa com minha aparncia e posso colocar
qualquer mscara, mas meu est bem resguardado, imune,
resistente s manchas, imaculado ... O inconveniente, contudo, que quando a vida
mesma se converte numa extensa fuga turstica, quando a conduta do turista chega a ser
o carter, resulta cada vez menos claro quando dos lugares recorridos o lar. A oposio
segue sendo to definida
como antes, mas no fcil observar onde est o >. O se desnuda cada
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vez mais de todos os traos materiais; o que contm nem se quer imaginrio
(qualquer imagem mental seria tambm especfica, tambm restrita), seno postulada; o
que se postula ter um lar, no um edifcio, uma rua, uma paisagem ou uma companhia
de pessoas em particular. Jonathan Matthew Schwartz nos aconselha ; este
ltimo est, ao menos de maneira ostensvel, orientado fazia o passado, enquanto que o
lar da saudade domstica [home-sickness] se anuncia, pela regra geral, .12 A saudade domstica implica um sonho de pertencimento; ser, se quer uma
vez, do lugar, no estar meramente nele. No obstante, se o presente notoriamente o
destino de todo tempo futuro, o tempo futuro da uma
exceo. Para quem sente saudade, o valor do lar radica precisamente em na sua
tendncia a pertencer para sempre no tempo futuro. No pode passar ao presente sem
ficar despojado do seu encanto e atrativo; quando o turismo se converte no modo de
vida, quando as experincias digeridas at agora despertam o apetite de maior excitao,
quando o umbral desta excitao sobe implacavelmente e cada sacudida deve comover
mais que a anterior, a possibilidade de que alguma vez se cumpra o sonho do lar to
horrorosa como a possibilidade de que nunca se realize. A saudade domestica, por assim
dizer, no o nico sentimento do turista: o outro o temor ao confinamento no lar, a
ficar preso num lugar e impedido de sair. O persiste no horizonte da vida
turstica como uma mescla enigmtica de refgio e priso>>. O eslogan favorito do
turista . E espao o ltimo que um encontraria em casa.
O jogador
No jogo no h nem inviabilidade nem acidente (no h acidente num mundo que
no conhece necessidade nem determinao); nada plenamente prescindvel e
controlvel, mas nada to pouco totalmente imutvel e irrevogvel. O mundo do jogo
suave mas ilusrio; nele, o que mais importa a atitude com que jogamos nossa mo.
Existem, desde logo, os >, quando as cartas nos so favorveis ou o
vento ajuda a empurrar a bola para a rede. Mas o (ou de infortnio,
por assim diz-lo) no presta ao mundo a dureza de que notoriamente carece; s assinala
at que ponto a forma de jogar corretamente nossas cartas pode contribuir a assegurar as
12 Jonathan Matthew Schwartz, In defense of Homesickness: Nine Essays on identity and Locality, Copenhague: Akademisk Forlag, 1989, pgs. 15, 32.
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coisas, mas compartilhar a condio no necessria nem acidental dos clculos do
jogador.
No jogo, o mundo mesmo um jogador, e a sorte e o infortnio no so seno as
jogadas do mundo como jogador. Na confrontao entre o jogador e o mundo no h
nem leis nem ilegalidade, nem ordem nem caos. S esto as jogadas, mais ou menos
inteligentes, sagazes ou trapaceiras, perspicazes ou descaminhadas. A questo
adivinhar as do adversrio e antecipar-se a elas, preveni-las ou apropriar-se delas:
manter-se . As regras prticas; instrues investigativas, no
algortmicas. O mundo do jogador o mundo dos riscos, a intuio, a tomada de
precaues.
No mundo como jogo, o tempo se divide em uma sucesso de partidas. Cada uma
delas est feita de convenes prprias; cada uma delas uma independente, um pequeno universo autrquico, fechado sobre si mesmo e
autnomo. Todas exigem suspender a incredulidade, ainda que em cada partida deve
suspender-se uma incredulidade diferente. Quem se nega a obedecer as convenes no
se rebelam contra a partida; s decidem afastar-se e deixar de ser jogadores. Mas a
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nem alimentar rancores: , pede o
jogador decide separar-se do jogo do matrimonio, em nome da limpeza das partidas
futuras, por desumano que seja. A marca da maioridade ps-moderna a disposio a
abraar o jogo de todo corao, como os meninos.
Que possibilidade de moralidade? Que possibilidade de construo poltica?
Cada um dos quatro tipos antes esboados contm sua prpria dose slida de
ambivalncia; ademais, tambm diferem entre si em alguns aspectos, por o que
mescla-los num estilo de vida coerente no fcil. No surpreende que haja uma
generosa dose de esquizofrenia em cada personalidade ps-moderna, o qual contribui a
explicar em parte a desassossego, a inconstncia e a irresoluo notria das estratgias
de vida postas em prtica.
H certas caractersticas, contudo, compartilhadas pelos quatro tipos. As mais
semelhantes so seus efeitos sobre a moral popular e as atitudes polticas, e de maneira
indireta sobre o statu da moralidade e a poltica em um contexto ps-moderno.
Em outra parte assinalei que a modernidade se destacava pela tendncia a separar as
responsabilidades morais do eu moral e canaliz-las fazia agencias supraindividuais
socialmente construdas e administradas, ou atravs de uma responsabilidade flutuante
dentro de uma burocrtica.13 O resultado global foi, por um lado, a
tendncia a substituir os sentimentos, intuies e impulsos morais dos eus autnomos
pela tica, dizer, um cdigo de regras e convenes semelhante a uma lei; e, por outro,
a tendncia , isto , a isentar uma parte considervel da ao
humana do juzo moral e, em rigor, da significao moral. Estes processos no so em
modo algum, mas ao aparecer ao parece sua incidncia um tanto menos decisiva que
na poca da modernidade . Ao meu entender, o contexto em que se forjam
(ou no) as atitudes morais hoje o da poltica da vida, mais que o das estruturas sociais
e sistemticas; em outras palavras, as estratgias de vida ps-moderna, mais que a
modalidade burocrtica de gesto dos processos sociais e a ao coordenadora, so os
fatores mais influentes entre os que do forma situao moral dos homens e mulheres
ps-modernos.
13 Cf. zygmunt Bauman, Modernity and the Holocaust, Cambridge: Plity press, 1993, cap. 7 [Modernidade e holocaust, Madrid: Sequitur, 1997]; Zygmunt Bauman, Posmodern Ethics, Oxford: Basil Blackwell, 1993.
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As quatro estratgias de vida ps-moderna, entrelaadas e interpenetradas, tem em
comum a tendncia a fazer fragmentrias (recorda-se a das relaes
reduzidas a uma s funo e servio) e descontinuas as relaes humanas; todas se
levantam em armas contra as e as consequncias duradouras,
e militam contra a construo de redes perdurveis de deveres e obrigaes mutuas.
Todas favorecem e propiciam a existncia de uma distncia entre o individuo e o Outro
e postulam a este, em essncia, como o objeto de uma avaliao esttica e no moral;
como uma questo de gosto, no de responsabilidade. Em substncia plantam a
autonomia individual em oposio s responsabilidade morais (assim como todas as
demais) e tiram enormes reas da interao humana, inclusive as mais intimas entre
elas, da rbita do juzo moral (um processo notavelmente similar em suas consequncias
adiaforizacin promovida de maneira burocrtica). Seguir o impulso moral significa
assumir responsabilidade por ele outro, o qual leva a sua vez a participar em seu destino
e a comprometer-se com seu bem-estar. A no interveno e a evitao do compromisso
favorecidas pela quatro estratgias ps-modernas tm um efeito de retrocesso
consistente na supresso do impulso moral, assim como na censura e o demrito dos
sentimentos morais.
O dito at aqui bem pode parecer em estridente discrepncia com o culto da
intimidade pessoal, outro trao destacado da conscincia ps-moderna. Contudo, no h
aqui nenhuma contradio. Em culto no mais que uma compensao psicolgica
(ilusria e aflituosa) da solido que inevitavelmente envolve aos sujeitos de desejo
orientados fazia a esttica; e, por outra parte, contraproducente, dado que a
interpersonalidade a prova de consequncias e reduzida s
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A incapacidade poltica dos homens e mulheres ps-modernos surge da mesma fonte
que a incapacidade moral. O espao esttico, preferido e dominante e todas as
estratgias ps-modernas enumeradas, difere de outros tipos de espao social (como o
moral ou o cognitivo) em quanto no escolhe como pontos de referncias e orientao
as caractersticas e qualidades possudas pelos objetos do espao ou concedidas a eles,
seno os atributos do sujeito espaador (como o interesse, o entusiasmo, a satisfao ou
o prazer). Segundo o assinalou faz pouco Jean-Franois Lyotard, .15 O
mundo se converte no agrupamento de objetos potencialmente interessantes, e a tarefa
consiste em exprimir a maior quantidade de interesse que podem oferecer. Essa tarefa e
seu cumprimento exitoso se mantm e caem, contudo, pelo esforo e a inventiva do
buscador de interesse. Os objetos mesmos poucos e nada podem fazer, e pouco e nada
pode fazer-se com respeito a eles.16 O feito de concentrar-se no sujeito buscador de
interesse borra os contornos do mundo onde esse interesse deve buscar-se. Encontrados
(Desencontros?) s de maneira rotineira, e passada, num plano superficial, os objetos
no chegam a fazer-se visveis como entidades por direito prprio, necessitados talvez
de mais vigor, uma melhora ou uma forma completamente diferente; no refletimos
sobre como corrigir as mercadorias exibidas nas prateleiras de um supermercado: se nos
parecem insatisfatrias, as passamos de longo, sem que nossa confiana no sistema
supermercadista sofra desprezo e com a esperana de encontrar os produtos que
respondam ao nosso interesse na prxima prateleira ou a prxima loja. A emancipao,
disse Lyotard, ; em consequncia, a
prtica militante h sido recomeada por uma prtica defensiva, que o
assimila com facilidade, pois agora se supe que este contm todos os elementos com
15 Jean-Franois Lyotard, Moralits postmodernes, Pars: Galite, 1993, pgs. 32-3. [Moralidades ps-modernas, Madrid: Tecnos, 1996.]
16 Dizze Lasch: (Lasch, Culture of Narcissism, op. Cit., pg. 29). Agregamos que o sentimento difusoe descentrado de que nem tudo est bem no programa tende a enunciar-se como uma questo de terapia destinada ao autoperfeccionador desafortunado ou inepto, que este sai da prova com uma autoridade fortalecida.
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que em definitiva se armar o .17 O feito tudo o que
estava dentro de suas possibilidades. O resto depende de quem .
Se exagerarmos o quadro, ainda s um pouco, podemos dizer que na percepo
popular o dever do cidado ps-moderno (de maneira muito similar ao dever dos
internos da Abada de Tlme de Rabelais) ter uma vida deleitosa. Para tratar aos
sujeitos como cidados, os estado est obrigado a proporcionar as facilidades
consideradas necessrias para essa vida, e no dar sustento s dvidas sobre o
cumprimento da misso. Isto no significa necessariamente que a vida dos cidados
assim reduzidos deva ser um arrebatamento imoderado. O descontente surge
concretamente, e as vezes to marcado que provoca aes que vo mais l da
preocupao habitual pelo cuidado de si mesmo. Isto sucede uma e outra vez, inclusive
de maneira regular, sempre que se pem de relevo os limites da busca individual de ; cada vez que fatores que esto evidentemente mais l do controle
individual (como, por exemplo, o planejamento de decises sobre uma nova via de
circulao, uma autopista ou complexos residncias suscetveis de atrair
, o fecho de um hospital, a de uma escola ou uma
faculdade) interferem no contedo de interesse do mdio ambiente. Apesar dele, as
exploses momentneas de ao solidaria que podem resultar no alteram os traos
essenciais das relaes ps-modernas: seu carter fragmentrio e sua descontinuidade, a
estreiteza de seu enfoque e sua finalidade, a superficialidade do contato. O compromisso
conjunto vem e vai, e em cada caso, em efeito, a emergente no mais
que a . Ademais, as animosidades e prejuzos difusos, que por
regra geral suscitam campanhas centradas em um s tema, no se agregam, condensam
ou mostram uma propenso a fortalecer-se mutuamente. Ao contrrio, ao revitalizar
entre si pelo recurso escasso da ateno pblica, dividem tanto como unem, Podemos
dizer que os ossos de conteno no encaram uns com outros para formar um esqueleto
em torno do qual possa tramar-se um compromisso compartilhado continuo e no
fragmentrio.
Stuart Hall resumiu concisamente a condio resultante e as perspectivas que pode
ou no conter:
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maneira livre e aberta. Neste sentido, carecemos de uma noo da cidadania
democrtica>>.18 Mas talvez possamos obt-la imagin-la-; o que no podemos
imaginar, por no ter tempo para exercer a imaginao e a segurar. Em definitiva, a
velha verdade reaparece uma e outra vez: cada sociedade fixa limites s estratgias de
vida suscetveis de imaginar-se, e sem dvida as suscetveis de praticar-se. Mas o tipo
de sociedade em que vivemos limita a(s) estratgia(s) que pode(m) questionar crtica e
militantemente seus princpios, e desse modo aplanar o caminho novas estratgias,
hoje excludas por causa de sua invalidade ...
Dedicado a Judith Adler
18 Stuart Hall, , New statesman and Society, 26 de novembro de 1993, pg. 16.