Bartleby - Escrita Da Potência

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Giorgio AGAMBEN

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  • arte e produo

    disciplina sem nome / 1

    COLECO DIRIGIDA POR PEDRa A.H. PAIXO

  • arte e produodisciplina sem nome

    BARTLEBYESCRITA DA POTNCIA

    COLECO DIRIGI DA POR PEDRa A.H. PAIXO

    Bortk6y Em/li dd Potncia, Giorgio Agambenseguido de Bort/~6y, O Ecrivdo de Herman Melville,

    D~jmho, A TronspllrtncM dos Signos, Pedro A.H. Paixo

    Etudos do 16irinto, Kroly Kernyiseguido de A /deio R~/igiosodo Nno-Ser

  • Veneza, 2007

    Giorgio Agamben

    BardebyEscrita da Potncia

    Bar tleby, ou Da Contingncia

    seguido de

    Bartleby, O Escrivo de Herman Melville

    ediro de

    Giorgio AgambenPedra A. H. Paixo

    Assrio & Alvim

    com o dPoio

    Fundao Calouste GulbenkianFundao Carmona e Costa

  • Bartleby,ou Da Contingncia

    (1993)

    Nam simul cum cathedra creauit Deustabulam quamdam ad scribendum, quetantum grossa erat quantum posset bomo irein mil/e annis. E: erat tabula dia de perlaalbissima et extremitas eius undique derubino et locus medius de smaragdo.Scriptum uerum in ea existem totum eratpurissime claritatis. Respiciebat namqueDeus in tabulam illam centum uicibus diequolibet et quantiscumque respiciebatvicibus, construebat et destruebnt, creabat etoccidebat ... Creaui: namque Deus cumpredicta tabula pennam quamdam claritatisad scribendum, que babebat in selongitudinis quantum posset homo ire inVC annis et tantumdem ex latitudinequidem sua. Et ea creata, precepit sibi Deusut scriberet. Penna uero dixit: Quidscribam? At ill respondem: Tu scribessapienciam meam et creaturas omnes measa principio mundi usque ad finem .

    Liber Scale Macbometi, capo XX

  • Como escrivo, Bartleby pertence a uma constelao literdria,cuja estrelapolar Akdki Akdkievitch (
  • o Escriba, ou Da Criao

    1.1 O lxico bizantino conhecido como Suda contm, na en-trada AristteLes, esta definio singular: Aristteles era o escribada natureza, que tingia a pena no pensamento. Nas suas Notas traduo do dipo de Sfocles, Hlderlin cita este passo, sem ne-nhum motivo aparente, subvertendo-o atravs de uma mnimacorreco: Aristteles era o escriba da natureza, que tinge a penabenvola (unoun em vez de eis non), As Etimologias de Isidoroconhecem-no numa verso diferente, que remonta a Cassiodoro:Aristotele, quando perihermeneias scriptabat, calamum in mente tin-gebat (Aristteles, quando escrevia o tratado sobre a interpretao- uma das obras lgicas fundamentais do Organon - tingia apena na mente). Tanto num caso como noutro, decisivo no tanto a imagem do escriba da natureza (que se encontra j em tico),mas o facto de o nos, o pensamento ou a mente, ser comparado aum tinteiro no qual o filsofo tinge a prpria pena. A tinta, a gotade trevas com que o pensamento escreve, o prprio pensamento.

    De onde provm esta definio, que nos apresenta a figurafundamental da tradio filosfica ocidental nos trajes modestos deum escriba e o pensamento como um acto, mesmo se muito parti-cular, de escrita? Existe um s texto, em todo o corpus aristotlico,onde encontramos uma imagem de algum modo similar, que podeter fornecido o impulso a Cassiodoro ou ao desconhecido merafo-rista; ela no pertence, porm, ao Organon lgico, mas ao tratadosobre a alma. Trata-se do passo, do livro terceiro, no qual Aristteles

    II

  • compara o nos, o intelecto ou pensamento em potncia, a uma ta-buinha de escrever sobre a qual nada est ainda escrito: como sobreuma tabuinha de escrever (grammateion) onde nada est escrito emacto, assim acontece no nos (De Anima 430 a).

    Na Grcia do sculo N a.c., a escrita com tinta sobre uma fo-lha de papiro no era a nica prtica corrente; mais comummente,sobretudo para uso privado, escrevia-se grafando com um estilerenuma tabuinha coberta com um subtil estrato de cera. Chegado aum ponto crucial do seu tratado, no momento de indagar acerca danatureza do pensamento em potncia e o modo como este passa aoacto de inteleco, ao exemplo de um objecto deste gnero queAristteles recorre, provavelmente prpria tabuinha sobre a qualia anotando, naquele instante, os seus pensamentos. Muito depois,quando a escrita a clamo e tinta se tornara j prtica dominante ea imagem aristorlica corria o risco de parecer antiquada, algum amodernizou no sentido posteriormente registado na Suda.

    vao (para a qual Alexandre tinha razes especiais em insistir) eracontudo exacta. A dificuldade, que Aristreles tenta contornar coma imagem da tabuinha, , de facto, aquela da pura potncia do pen-samento e de como seja concebvel a sua passagem ao acto. De facto,se o pensamento tivesse j em si qualquer forma determinada, fossesempre j alguma coisa (como coisa a tabuinha de escrever), elemanifestar-se-ia necessariamente no objecto inteligvel e faria assimobstculo sua inteleco. Por isto, Arisrreles tem o cuidado de pre-cisar que o nos no tem outra natureza que a de ser em potnciae, antes de pensar, no em acto absolutamente nada (De Anima429 a).

    A mente , ento, no uma coisa, mas um ser de pura potnciae a imagem da tabuinha de escrever, sobre a qual nada est aindaescrito, serve precisamente para representar o modo de ser umapura potncia. Toda a potncia de ser ou de fazer qualquer coisa ,de facto, para Aristteles, sempre tambm potncia de no ser oude no fazer ((djnamis m einai, m energin), sem a qual a potn-cia passaria j sempre ao acto e se confundiria com ele (segundo atese dos Megricos que Aristteles refuta explicitamente no livroTheta da Metafisica). Esta potncia de no o segredo cardeal dadoutrina aristotlica sobre a potncia, que faz de toda a potncia,por si mesma, uma impotncia ((tu autu ka'l kat to auto psadjnamis adynamla, Metafisica 1046 a 32). Como o arquitecto man-tm a sua potncia de construir mesmo quando no a pe em actoe, como o tocador de ctara tal porque pode tambm no rocar actara, assim o pensamento existe como uma potncia de pensar e deno pensar, como uma tabuinha encerada sobre a qual nada aindaest escrito (o intelecto possvel dos filsofos medievais). E, assimcomo o estrato de cera sensvel num instante grafada pelo estiletedo escriba, assim a potncia do pensamento, que em si no coisaalguma, deixa que advenha o acto da inteligncia.

    I.2 Na tradio da filosofia ocidental, a imagem teve xito. Tra-duzindo grammateion por tabula rasa, o primeiro tradutor latinodo De Anima remeteu-a a uma nova histria que viria a desaguar,por um lado, na pgina branca de Locke (

  • I.3. Em Messina, entre 1280 e 1290, Abraham Abulafia com-ps aqueles tratados cabalsticos que, permanecendo manuscritosdurante sculos nas bibliotecas europeias, apenas no nosso sculovieram a ser restitudos ateno dos no especialistas por GershomScholem e Moshe Idel. Aqui a criao divina concebida comoum acto de escrita, no qual as letras representam, por assim dizer, oveculo material atravs do qual o verbo criador de Deus - compa-rado a um escriba que move a sua pena - se incorpora nas coisascriadas. O segredo que est na origem de todas as criaturas a letrado alfabeto e cada letra um signo que se refere criao. Tal comoo escriba tem na mo a sua pena e, por meio dela, extrai algumasgotas da matria da tinta, prefigurando na sua mente a forma quequer dar matria - gestos nos quais a mo do escriba a esferaviva que move a pena inanimada que lhe serve de instrumentopara fazer escorrer a tinta sobre o pergaminho que representa o cor-po, suporte da matria e da forma - assim, actos semelhantes sorealizados nas esferas superiores e inferiores da criao, como quemtem inteligncia pode entender por si, porque proibido dizer demais.

    Abulafia era um leitor de Aristteles e, como todo O hebreu cul-to do seu tempo, lia o filsofo atravs das tradues e dos comen-trios rabes. Ora, o problema do intelecto passivo e da sua relaocom o intelecto agente ou potico (que Aristteles, no De Anima,liquidou com poucas e enigmticas frases) tinha solicitado particu-larmente a ateno dos folsifa (assim eram designados no Islo osdiscpulos de Arisrteles). O prprio prncipe dos folsifa, Avicena,tinha concebido a criao do mundo como um acto de intelignciadivina que se pensa a si mesma. At a criao da esfera sublunar (que,no processo emanancionista que Avicena tem em mente, obra doltimo dos anjos-inteligncia, que no outro seno o intelecto agen-te de Arisrreles) no podia, por isso, seno exernplificar-se atravs

    do modelo do pensamento que se pensa a si mesmo e, deste modo,deixa ser as mltiplas criaturas. Cada acto de criao (como bemsabiam os poetas de amor do sculo XIII, que transformaram emdamas os anjos de Avicena) um acto de inteligncia e, vice-versa,cada acto de inteligncia um acto de criao, deixa ser alguma coi-sa. Mas, precisamente no De Anima, Aristteles tinha representadoo intelecto em potncia como uma tabuinha sobre a qual nada estescrito. Consequentemente, Avicena, naquele seu maravilhoso tra-tado sobre a alma que os medievais conheciam por Liber VI Natu-ralium, serve-se da imagem da escrita para ilustrar as vrias espciesou graus do intelecto possvel. Existe uma potncia (que ele chamamaterial), que se assemelha condio de uma criana que podercertamente um dia aprender a escrever, mas que no sabe aindanada da escrita; existe, depois, uma potncia (que ele chama fiteilou possvel), que como aquela de uma criana que comea a fami-liarizar-se com a pena e com a tinta e apenas sabe traar as primeirasletras; existe, enfim, uma potncia completa ou perfeita, que aque-la de um escriba perfeitamente senhor da arte de escrever, no mo-mento em que no escreve (

  • os escolsticos simplesmente inefvel, definida por Ibn 'Arabcomo uma letra da qual tu s o sentido e a passagem da potnciaao acto da criao representado graficamente como o ductus queentrelaa num s gesto as trs letras aliflm-mim:

    r

    logos sunitas, e os folsifo. Contra estes, que mantinham o olharfixo na tabuinha de escrever de Aristteles e indagavam os princ-pios e as leis segundo os quais, no acto criativo, o possvel, que exis-te na mente divina ou na do artfice, acontece e no acontece, osash'aritas, que representam a corrente dominante da ortodoxia su-nita, sustm uma opinio que no s destri os prprios conceitosde causa, lei e princpio, mas torna vo tambm qualquer discursoacerca do possvel e do necessrio, minando assim a prpria base deinvestigao dos folsifo. Os ash'aritas concebem, de facto, o actode criao como uma incessante e instantnea produo de aciden-tes milagrosos, privados de todo o poder de agir uns sobre os outrose, por conseguinte, subtrados a todas as leis e a todas as relaescausais. Quando o rintureiro mergulha o cndido pano no banho dendigo ou quando o ferreiro tempera a lmina no fogo, no a tin-ta que penetra no tecido para a colorir nem o calor que se propagaao metal tornando-o incandescente; ao invs, Deus ele prprioque estabelece uma coincidncia habitual, mas, em si, puramentemilagrosa, de maneira que a cor alourada se produz no pano nomomento em que imerso no ndigo e a incandescncia no metaltodas as vezes que temperado no fogo. Assim, quando o escribamove a pena no ele a mov-Ia, mas este movimento s um aci-dente que Deus cria na mo: Deus estabeleceu como hbito que omovimento da mo coincida com o da pena, e este com o produ-zir-se da escrita, sem que por isto a mo tenha qualquer influnciacausal no processo, pois que o acidente no pode agir sobre um ou-tro acidente ... Para o movimento da pena, Deus cria, ento, quatroacidentes, que no so absolutamente causas uns dos outros, massimplesmente coexistem juntos. O primeiro acidente a minhavontade de mover a pena; o segundo, a minha potncia de memover; o terceiro, o prprio movimento da mo; o quarto, enfim, omovimento da pena. Assim, quando o homem quer alguma coisa

    A primeira parte deste grafema, a letra, alif.j

    \significa a descida do ser em potncia para o atributo, a segunda, lm:

    a extenso do atributo para o acto e a terceira, mim:

    a descida do acro manifestao.A equiparao entre a escrita e o processo da criao aqui ab-

    soluta. O escriba que no escreve (do qual Bardeby a ltima, ex-tremada figura) a potncia perfeita, que s um nada separa agorado acro de criao.

    I.4. Quem move a mo do escriba para a fazer passar ao actode escrita? Segundo que leis se d a transio do possvel ao real? Ese existe algo como uma possibilidade ou potncia, que coisa, den-tro ou fora dela, a dispe existncia? sobre estas questes que seproduziu, no Islo, a ruptura entre os mutakallimn, isto , os te-

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  • e a faz, tal significa que primeiro foi criada para ele a vontade, de-pois a faculdade de agir e, por ltimo, a prpria aco.

    No se trata aqui simplesmente de uma concepo do acto cria-tivo diferente da dos filsofos; aquilo que os telogos querem quebrar para sempre a tabuinha de escrever de Aristteles, apagar domundo qualquer experincia da possibilidade. Mas o problema dapotncia, retirado da esfera humana, transfere-se para a divina. Poristo al-Ghazzli, que, quando era um brilhante professor na ma-drassa de Bagdade, tinha sustido tenazmente, no livro que se intirulaA Incoerncia dos Filsofos, a posio dos ash'aritas, mais tarde, nocurso das suas deambulaes pela Cpula do Rochedo, em Jerusalm,ou pelos minaretes de Damasco, constrangido a confrontar-senovamente com a imagem do escriba. No Reavivamento das CinciasReligiosas compe assim a apologia sobre a potncia divina que iniciacom: Um iluminado pela luz de Deus depara-se com uma folhade carta escrita com tinta negra e pergunta-lhe: "como que tu, queantes eras de ofuscante candor, ests agora coberta de sinais negros?Porque enegreceu o teu rosto?". "s injusto comigo, responde a folha,porque no fui eu a enegrecer o meu rosto. Interroga a tinta, quesem razo se moveu do tinteiro para se espalhar sobre mim". O ho-mem dirige-se ento tinta para receber explicaes, mas esta res-ponde reenviando-o pena, que a roubou sua tranquila moradapara a exilar na folha. Interrogada por sua vez, a pena reenvia-o moque, depois de a ter espalmado e cruelmente dividido na ponta, asubmergiu na tinta. A mo, que diz no ser mais que carne e mise-rveis ossos, convida-o a dirigir-se Potncia que a moveu; a Po-tncia Vontade e esta Cincia, at que, de reenvio em reenvio, oiluminado chega ao fim ante os impenetrveis vus da Potncia di-vina, dos quais uma voz terrvel grita: "A Deus no se pedem con-tas daquilo que faz, enquanto a vocs sero pedidas contas".

    O fatalismo islmico (a quem deve o seu nome a figura maisobscura entre os habitantes dos Lager nazis, o rnuulmano) notem, portanto, a sua raiz num comportamento de resignao, mas,pelo contrrio, na lmpida f na operao incessante do milagre di-vino. Certo , todavia, que do mundo dos mutakallimun (e dos seuscorrespondentes entre os telogos cristos) a categoria da possibili-dade foi no entanto apagada, toda a potncia humana destitudade fundamento. Existe apenas o inexplicvel movimento da penadivina e nada que o deixe pressagiar ou que o aguarde sobre a tabui-nha de escrever. Contra esta absoluta de-rnodalizao do mundo,os folsifa permanecem fieis ao legado de Aristteles. Na sua inten-o mais profunda, a filosofia , de facto, uma firme reivindicaoda potncia, a construo de uma experincia do possvel enquantotal. No o pensamento, mas a potncia de pensar; no a escrita,mas a folha cndida o que ela, a todo o custo, no quer esquecer.

    I.5. E, todavia, a potncia a coisa mais difcil de pensar. Poisse a potncia fosse sempre e s potncia, de fazer ou de ser algumacoisa, nunca a poderamos experimentar como tal, mas, segundo atese megrica, ela existiria somente no acto que a realiza. Uma ex-perincia da potncia enquanto tal s possvel se a potncia forsempre tambm potncia de no (fazer ou pensar alguma coisa), sea tabuinha de escrever poder no ser escrita. Mas exactamente aquique tudo se complica. Como possvel, de facto, pensar uma potn-cia de no pensar? O que significa, para uma potncia de no pensar,passar ao acto? E se a natureza do pensamento de ser em potn-cia, o que pensar?

    No LivroLambda da Metaflsica (1074 b 15-35), no ponto em quetrata a mente divina, com estas aporias que Aristteles se agasta:

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  • A questo do pensamento implica algumas aporias. Ele pareceser o mais divino dos fenmenos, mas o seu modo de ser pro-blemtico. Se, de facto, no pensa nada (isto , se se atrn suapotncia de no pensar), que coisa ter de digno? Ser comoalgum que dorme. Se, ao invs, ele pensa em acto alguma coisa,ficar subordinado ao que pensa, dado que o seu ser no opensamento em acto mas a potncia; ele no ser o ser mais no-bre, pois receber a sua excelncia do pensamento em acto (isto, ser determinado por outro e no pela sua prpria essncia,que a de ser potncia). E, quer a sua potncia seja o pensamen-to em potncia (o noUs) quer, ao invs, o pensamento em acto(nsis), que coisa pensa? A si mesmo ou alguma outra coisa.Se pensa alguma outra coisa, pensar ou sempre a mesma ousempre outra coisa. Mas no existe talvez diferena entre pen-sar o bem e pensar o que calha? evidente, ento, que pensara coisa mais divina e venervel, e sem mudana (... ) Por outrolado, se ele no pensamento em acto, mas potncia de pen-sar, sensato que a continuidade do pensar se lhe torne cansa-tiva. Alm do mais, claro que, neste caso, haveria alguma coisamais excelente que o pensamento, isto , o pensado; de facto,o pensar e o pensamento em acto pertencem tambm a quempensa as coisas mais vis. Se isto deve ser evitado (existem coisas,de facto, que melhor no ver), o pensamento em acto no po-der ser o bem mais alto. Logo, ele pensa-se a si mesmo, se omais excelente, e o pensamento pensamento do pensamento.

    pensar nada e pensar alguma coisa, entre potncia e acto. O pensa-mento que se pensa a si mesmo no pensa um objecto nem pensanada: pensa uma pura potncia (de pensar e de no pensar); e su-mamente divino e feliz aquilo que pensa a sua prpria potncia.

    Mas a aporia agora resolvida volta de novo a emaranhar-se. Quecoisa significa, de facto, para uma potncia de pensar, pensar-se a simesma? Como se pode pensar em acto uma pura potncia? Comopode uma tabuinha de escrever sobre a qual nada est escrito diri-gir-se a si mesma, impressionar-se?

    Reiectindo, no seu comentrio ao De Anima, acerca do enigmada tabula rasae acerca do pensamento que se pensa a si mesmo, Alber-to Magno detm-se precisamente sobre estas questes. Averris,com o qual declara concordar em tudo, e que tinha tambm atri-budo ao pensamento em potncia o nvel mais alto, fazendo deleum ser nico e comum a todos os indivduos, tinha tratado de formaapressada exactarnente este ponto decisivo. E, no entanto, a tesearistotlica segundo a qual o prprio intelecto inteligvel no po-dia ser entendida no mesmo sentido em que se diz de um qualquerobjecto que inteligvel. O intelecto em potncia no , de facto,uma coisa; ele no seno a intentio atravs da qual alguma coisa intendida, no mais que uma cognoscibilidade e receptividadepuras (pura receptibilitasi e no um objecto conhecido. Antecipandoa tese wirtgensteineana sobre a impossibilidade da meta-linguagem,Alberto v claramente que dizer que uma inteligibilidade se inrendea si mesma no pode significar reific-la, cindi-la numa meta-inte-ligncia e numa inteligncia-objecto. A escrita do pensamento no a de uma pena que uma mo estranha move para grafar a dctilcera: antes, no ponto em que a potncia do pen amento se dirige asi mesma e a pura receptividade sente, por assim dizer, o prprio nosentir, naquele ponto - escreve Alberto - como se as letras se

    A aporia , aqui, que o pensamento supremo no pode nempensar nada nem pensar alguma coisa, nem ficar em potncia nempassar ao acto, nem escrever nem no escrever. E para fugir a estaaporia que Aristreles enuncia a sua clebre tese sobre o pensan1en-to que se pensa a si mesmo, que uma espcie de ponto mdio entre

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  • 1.6. um lugar-comum que as trs grandes religies monotes-tas concordantemente professem a criao do mundo a partir do nada.Os telogos cristos opem assim a criao, que um operari ex ni-hilo, ao acto do artfice, que , ao invs, sempre um facere de materia.No menos decidida a polmica dos rabinos e dos mutakallimncontra a opinio, atribuda aos filsofos, segundo a qual impossvelque Deus tenha criado o mundo do nada, porque nihil ex nihilo fitoEm qualquer caso, essencial a recusa mesmo s da ideia de que al-guma coisa como uma matria (isto , um ser em potncia) possapreexistir a Deus. Mas, que significa criar do nada? Basta que seobserve de mais perto o problema tudo se complica e o nada comeaa assemelhar-se cada vez mais a qualquer coisa, ainda que seja mui-to peculiar.

    Maimnides que, no Guia dos Perplexos, declara professar a cria-o do nada, tinha porm em vista um passo da venervel midrash,conhecida como Pirk Rabbi Eliezer, que abala fortemente o telo-go e o homem de cincia na sua f, pois a figura algo que no podeno fazer pensar seno numa matria da criao. De que coisa foramcriados os cus? a se l Deus tomou a luz da sua veste e estendeu-acomo um lenol; dali se desenrolaram os cus, como foi escrito: "Eleenvolve-se de luz como se de uma veste, e estende os cus como umtapete". Por outro lado, o versculo do Alcoro onde Deus apostrofaa criatura dizendo: Ns te crimos quando tu eras nada (eras umano-coisa) provava segundo os Sufis que esta no-coisa no era umpuro nada, dado que Deus, no acro de criao, tinha podido diri-gir-se a ela dizendo: Que tu sejas!.

    O facto que, quando os telogos hebreus, rabes ou cristosformularam a ideia de uma criao a partir de nada, o neoplaronis-mo j tinha concebido o mesmo princpio supremo como: o nada doqual tudo procede. Tal como tinham distinguido dois nadas, umque supera os entes por assim dizer do alto, e um que os ultrapassapara o baixo, assim os neoplatnicos distinguiram duas matrias,uma incorprea e uma corprea, que como o fundo obscuro eeterno dos seres inteligveis. Cabalistas e msticos levaram ao extremoesta tese e, com a sua habitual radicalidade, afirmaram sem meiostermos que o nada, de onde procede a criao, Deus ele mesmo.O ser (melhor, o super-ser) divino o nada dos entes, e apenas ca-lando-se, por assim dizer, neste nada, pde Deus criar o mundo.No De Divisione Naturae, Escoto Erigena, comentando o verscu-10 do Gnesis terra autem erat inanis et vacua et tenebrae erant superfaciem abyssi, refere-o s ideias ou causas primordiais de todos osseres que so eternamente gerados na mente de Deus; e s des-cendo nestas trevas e neste abismo que a Divindade cria o mundoe, ao mesmo tempo, a si mesma (

  • vontade, como o seu ser, , por assim dizer, absolutamente privadade potncia.

    E precisamente a potncia divina , pelo contrrio, a obscuramatria que msticos e cabalistas pressupem criao. O acto decriao a descida de Deus num abismo que no seno o da suaprpria potncia e impotncia, do seu poder e do seu poder no.Melhor, na radical formulao de David de Dinant, cuja doutrinafoi condenada como hertica em 1210, Deus, o pensamento e amatria so uma s coisa e este abismo indiferenciado o nada deonde o mundo procede e sobre o qual eternamente se apoia. Abis-mo no aqui uma metfora: como Bhrne afirmar sem meiostermos, ele , em Deus, a prpria vida das trevas, a raiz divina doinferno, no qual o nada eternamente se gera. Apenas no ponto emque nos conseguimos calar neste Trtaro e fazer experincia da nos-sa prpria impotncia nos tornamos capazes de criar, nos tornamospoetas. E o mais difcil, nesta experincia, no so o nada e as suastrevas, nas quais tambm muitos ficam para sempre aprisionados- o mais difcil sermos capazes de anular este nada para fazer ser,do nada, alguma coisa. O louvor pertence a Deus escreve Ibn'Arabi no incio das suas Revelaes, que do nada fez existir as coi-sas e o nada anulou.

    A Frmula, ou Da Potncia

    11.1. a esta constelao filosfica que Bartleby, o escrivo, per-tence. Como escriba que cessou de escrever, ele a figura extremado nada de onde procede toda a criao e, ao mesmo tempo, a maisimplacvel reivindicao deste nada como pura, absoluta potncia.O escrivo tornou-se a tabuinha de escrever, nada mais agora quea sua folha branca. No surpreende, portanto, que ele se demoreassim obstinadamente no abismo da possibilidade e no parea ter amnima inteno de dele sair. A nossa tradio tica procurou vriasvezes dar a volta ao problema da potncia reduzindo-o aos termosda vontade e da necessidade: no aquilo que podes, mas aquilo quequeres ou deves o seu tema dominante. tudo o que o homem deleis no deixa de recordar a Barcleby. Quando, ao seu pedido para sedirigir aos correios (

  • que aquelas leituras lhe induzem, as suas categorias permanecemsem efeito sobre Barrleby. Crer que a vontade tenha poder sobre apotncia, que a passagem ao acto seja o resultado de uma deciso quepe fim ambiguidade da potncia (que sempre potncia de fazere de no fazer) - esta precisamente a perptua iluso da moral.

    Os telogos medievais distinguiam em Deus uma potentia abso-luta, segundo a qual ele pode fazer qualquer coisa (at, segundo al-guns, o mal, fazer que o mundo nunca tenha existido ou mesmorestituir a uma rapariga a virgindade perdida) e uma potentia ordi-nata, segundo a qual ele pode fazer somente aquilo que se acordacom a sua vontade. A vontade o princpio que consente pr ordemno caos indiferenciado da potncia. Assim, se verdade que Deusteria podido mentir, perjurar, encarnar-se numa mulher ou num ani-mal e no no Filho, todavia ele no quis faz-lo, nem podia quer-lo,e uma potncia sem vontade totalmente sem efeito, no pode nun-ca passar ao acto.

    Barrleby repe em questo precisamente esta supremacia da von-tade sobre a potncia. Se Deus (pelo menos de potentia ordinata)pode verdadeiramente s aquilo que quer, Barrleby pode somentesem querer, pode s de potentia absoluta. Mas a sua potncia no ,por isto, sem efeito, no fica por activar por um defeito de vontade:pelo contrrio, ela excede por todos os lados a vontade (a prpria ea dos outros). Invertendo o dito espirituoso de Karl Valentin (etervontade, isso queria eu, mas no senti que a pudesse ter), dele sepoderia dizer que conseguiu poder (e no poder) sem absolutamen-te o querer. Daqui a irredutibilidade do seu preferirei no. No que ele no queira copiar ou que queira no deixar o escritrio-somente preferiria no faz-lo. A frmula, to agudamente repetida,destri qualquer possibilidade de construir uma relao entre po-der e querer, entre potentia absoluta epotentia ordinata. Essa a fr-mula da potncia.

    Il.2. Gilles Deleuze analisou o carcter particular da frmula,aproximando-a quelas expresses que os linguistas definem comoagramaticais, como he danced his did em Cummings ou j'en ai unde pas assez, atribuindo a esta secreta agramaticalidade o seu poderdevastante: a frmula desune as palavras e as coisas, as palavras eas aces, mas tambm os actos lingusticos e as palavras: ela cortaa linguagem de qualquer referncia, segundo a vocao absoluta deBarrleby, ser um homem sem referncia, o que aparece e desaparece,sem referncia a si ou a outro. Jaworski, por seu lado, observou quea frmula no nem afirmativa nem negativa, que Barrleby noaceita nem rejeita, avana e retira-se no seu prprio avanar; ouseja, como sugere Deleuze, que ela abre uma zona de indiscernibi-lidade entre o sim e o no, o prefervel e o no preferido. Mas tam-bm, na perspectiva que aqui nos interessa, entre a potncia de ser(ou de fazer) e a potncia de no ser (ou de no fazer). como se oto que a conclui, que tem carcter anafrico porque no reenvia di-rectamente a um segmento de realidade mas a um termo precedentedo qual somente pode obter o seu significado, ao invs se absoluti-zasse, at perder toda a referncia, dirigindo-se, por assim dizer, prpria frase: anfora absoluta, que gira sobre si, sem reenviar j aum objecto real ou a um termo anaforizado (1 wouLdprefer not toprefer not to... ).

    De onde provm a frmula? Citou-se, como possvel percur-sor, um passo da carta a Hawthorn, no qual Melville faz o elogio dono contra o sim (

  • ocidental que se mantm em equilbrio com semelhante decisoentre o afirmar e o negar, a aceitao e a recusa, o pr e o tirar. Mor-fologicarnente e semanticamente prxima da li tania do escrivo, afrmula registada, alm do mais, num texto que, no sculo XIX,era familiar a qualquer homem culto: as Vidas dos Filsofos de Di-genes Larcio. Trata-se do ou mllon, o no mais (non piuttosto)*, otermo tcnico com que os cpticos exprimiam o seu pdthos maisprprio: a epocb, o estar em suspenso.

    Os cpticos escreve Digenes na VM de Pirro usam esta ex-presso nem positivamente (thetiks) nem negativamente (anairetiks),como quando, refutando um argumento, dizem: "Cila existe nomais (ou mllon) do que a Quimera". O termo, porm, no deve se-quer ser entendido como um verdadeiro e rigoroso comparativo: Oscpticos, com efeito, eliminam at o prprio "no mais"; como, defacto, a providncia existe no mais do que no existe, assim tambmo "no mais" no mais do que no . Sexto Emprico tambm reba-te agudamente este particular estatuto auto-referencial do ou mllon:Como a proposio "todo o discurso falso" diz que, tanto quanto asoutras proposies, tambm ela falsa, assim a frmula "no mais"diz que ela mesma no mais do que no ... E mesmo se esta ex-presso se apresenta como uma afirmao ou uma negao, no , po-rm, neste sentido que ns a empregamos, mas sim em modoindiferente (adiaphrs) e em sentido abusivo (katakhrstiks)).

    No se poderia caracterizar com maior preciso o modo emque o escrivo se serve da sua obstinada frmula. Mas a analogiapode ser prosseguida tambm numa outra direco. Depois de ter

    comentado o significado da expresso ou mllon, Sexto, acrescenta:E eis a coisa mais importante: no enunciado desta expresso, ocptico diz o fenmeno e anuncia o pdthos sem opinio alguma(apangllei to pdthos adoksdsts). Ainda que no seja geralmente re-ferida como tal, tambm esta ltima expresso (pdthos apangllein) um termo tcnico do lxico cptico. Encontramo-lo, de facto,novamente com o mesmo valor num outro passo das HipotiposesPirrnicas: Quando dizemos "tudo incompreensvel", no pre-tendemos afirmar que aquilo que os dogmticos procuram pornatureza incompreensvel; limitamo-nos a anunciar a paixo (tobeauto pdthos apangllontes)>>.

    Angllo, apangllo so os verbos que exprimem a funo do dnge-los, do mensageiro, que leva simplesmente uma mensagem semacrescentar nada ou, melhor, declara performativamente um evento(plemon apangllein vale por: declarar a guerra). O cptico no se li-mita a opor a afasia phsis, o silncio ao discurso, mas desloca a lin-guagem do registo da proposio, que predica algo de alguma coisa(lgein ti katd tinos), para o do anncio, que no predica nada denada. Mantendo-se na epoch do no mais, a linguagem faz-se anjodo fenmeno, puro anncio da sua paixo. Como precisa o advrbioadoksdsts, paixo no indica aqui nada de subjectivo; o pdthos pu-rificado de cada dksa, de cada provenincia subjectiva, puro ann-cio do aparecer, intimao do ser sem nenhum predicado.

    Sob esta luz, a frmula de Bartleby mostra toda a sua pregnn-cia. Ela inscreve aquele que a pronuncia na estirpe dos dngeloi, dosmensageiros. Um destes o Barnab kafkaniano, de quem se dizque talvez no fosse seno um mensageiro e ignorava o contedodas cartas que lhe eram confiadas, mas tambm o seu olhar, o seusorriso, o seu jeito de andar, pareciam uma mensagem, mesmo seo no soubesse. Como mensageiro, Barcleby havia sido aboletadopara um qualquer misterioso desenho de uma omnisciente Provi-

    * Pelo uso frequeme e pela importncia e qualidade deste termo tcnico. difcil de ver-ter para portugus - termo que traduz o advrbio comparativo grego mllon, mais [doque], e que vale por isto de preferncia a isto -. deixamos. sempre que necessrio para es-clarecer a leitura. o equivaleme italiano entre parnteses - i piuttosto) -. de maneira a per-mitir acompanhar o sentido que o autor pretende dar ao texto e ao referido termo. (N M T.)

  • dncia, que um mero mortal no pode sondar. Mas se, manten-do-se teimosamente em equilbrio entre a aceitao e a recusa, en-tre a negao e a posio, a frmula que ele repete predica nada denada e subtrai-se, por fim, tambm a si mesma, qual a mensagemque ele nos trouxe, que coisa anuncia a frmula?

    razo suficiente, que o seu mestre Leibniz tinha deixado sem de-monstrao, Wolff explica que nossa razo repugna admitir que al-guma coisa possa acontecer sem uma razo. Se se tira, de facto, esteprincpio, o mundo verdadeiro ele escreve transforma-se nummundo de fbula, no qual a vontade dos homens faz de razo para oque acontece (mundus verus abit in mundum fobulosum, in quo uo-luntas hominis stat pro ratione eorum, quae jiunt)>>.O mundus fobulo-sus, de que aqui se trata, aquela fbula absurda que contam asvelhas e que na nossa lngua verncula se chama Schlaraffenland, pasda Cocanha ... Apetece-te uma cereja, e eis que ao teu comando apa-rece uma cerejeira carregada de frutos maduros. A uma tua ordem, ofruto voa para a tua boca, e, se assim queres, divide-se no ar em me-tade, de maneira a deixar cair o caroo e as partes murchas, para queno tenhas de as cuspir. Pombas no espeto esvoaam no cu e espon-taneamente se enfiam na boca de quem tem fome. O que verdadei-ramente repugna mente do filosofo no , porm, que vontade ecapricho substiruam a razo na esfera das coisas, mas o facto que,deste modo, a ratto seja eliminada at mesmo do reino da vontade eda potncia. o s no existe outro princpio da possibilidadenem outro princpio da acrualidade exterior ao homem, como nemmesmo a vontade tem outro princpio para o seu querer; mais, in-diferente a querer seja o que for. Portanto, nem mesmo quer por de-sejar (ideo nimirum uult, quia libet): no h, de facto, razo nenhumapara que queira isto mais do que aquilo. No verdade, portanto,que, tirando o princpio de razo, o arbtrio dos homens tome olugar da ratio, transformando o mundo verdadeiro em fbula; ver-dade precisamente o contrrio, ou seja, que tambm a vontade, eli-minada a ratio, caa em runa juntamente com ela.

    No asctico SchlaraJfenland, no qual Bardeby se sente em casa,h s um no mais (piuttosto) inteiramente liberto de toda a ratio,uma preferncia e uma potncia que no servem j para assegurar

    1I.3. Os cpticos entendem por potncia-possibilidade (djna-mis) uma qualquer contraposio dos sensveis e dos inteligveis:deste modo, em virtude da equivalncia que se encontra na oposiodas palavras e das coisas, ns alcanamos a epoch, o estar suspen-so, que uma condio em que no podemos nem pr nem negar,nem aceitar nem recusar. Segundo esta singular anotao de Sexto,os cpticos viam no estar suspenso no uma simples indiferena,mas a experincia de uma possibilidade ou de uma potncia. Aquiloque se mostra no limiar entre ser e no ser, entre sensvel e inteligvel,entre palavra e coisa, no o abismo incolor do nada, mas o raioluminoso do possvel. Poder significa: nem pr nem negar. Mas deque modo aquilo que--no-mais-que-no- conserva ainda em sialguma coisa como uma potncia?

    Leibniz expressou certa vez.a potncia originria do ser na formade um princpio, que se costuma definir como princpio de razosuficiente. Este diz: ratio est eur aliquid sit potius quam non sit, huma razo para que algo exista mais (piuttosto) que no exista. En-quanto no se deixa reconduzir nem ao plo do ser nem ao do nada,a frmula de Barrleby (como o seu arqutipo cptico) torna a pr emquesto este mais forte de todos os princpios exercendo fora exac-tamente no potius, no mais (piuttosto) que lhe articula a escanso.Extraindo-o fora do seu contexto, a frmula emancipa a potncia(potius, de potis, vale por mais porenre) tanto da sua conexo a umaratio como da sua subordinao ao ser. Comentando o princpio de

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  • a supremacia do ser sobre o nada, mas que existem, sem razo, na in-diferena entre ser e nada. A indiferena de ser e nada no , porm,uma equivalncia entre dois princpios opostos, mas o modo de serde uma potncia que se purificou de toda a razo. Leibniz negava aopossvel qualquer autnorna puissance pour sefoire exister, procuradafora dele, em Deus, enquanto ser necessrio, isto , existentificante(Est ergo causa cur existentia praeualeat non-existentiae, seu ens neces-sarium est existentificanss). Subvertido de alto a baixo, o princpioleibniziano assume agora, ao invs, a forma inteiramente bartlebia-na: o no haver uma razo para que algo exista mais (piuttosto) queno exista a existncia de algo no mais (non piuttosto) que nada. boutade do prncipe da Dinamarca, que resolve cada problema naalternativa entre ser e no ser, a frmula do escrivo ope um tercei-ro termo, que transcende ambos: o mais [que] (ou o no mais [que])[ilpiuttosto (o il non piuttosto)]. Esta a nica lio a que ele se atrn.E, tal como o homem de leis parece inruir a certo momento, a pro-va de Bartleby a mais extrema a que uma criatura se possa arriscar.Porque ater-se ao nada, ao no-ser, certamente difcil: mas exacta-mente a experincia daquele hspede ingrato, o niilismo, com o qualj h tempos nos habituamos a lidar. E ater-se somente ao ser, e suanecessria positividade, tambm isto difcil: mas no precisamen-te o sentido do complicado cerimonial da onto-teo-lgica ocidental,cuja moral secretamente solidria com o hspede que quereria ex-pulsar? Ser capaz, numa pura potncia, de suportar o no mais [que](non piuttosto), para l do ser e do nada, demorar-se at ao fim naimpotente possibilidade que excede ambos - esta a prova deBartleby. O biombo alto e verde, que isola o seu escritrio, traa opermetro de um laboratrio no qual a potncia, trs decnios antesde Nierzsche, e num sentido completamente diferente, prepara oexperimento no qual, desligando-se do princpio de razo, se eman-cipa tanto do ser como do no-ser e cria a sua prpria ontologia.

    o Experimento, ou Da Decriao

    111.1.A propsito de Robert Walser, Walter Lssi inventou oconceito de experimento sem verdade, ou seja, de uma experin-cia caracterizada pelo advir menos de qualquer relao com a ver-dade. A poesia de Walser pura poesia (reine Dichtung), porquerecusa, no sentido mais amplo, reconhecer o ser de alguma coisacomo alguma coisa. Ocorre alargar este conceito a paradigma daexperincia literria, dado que no s na cincia, mas tambm napoesia e no pensamento se preparam experimentos. Estes no con-cernem simplesmente, como os experimentos cientficos, verdadeou falsidade de uma hiptese, o verificar-se ou o no-verificar-sede alguma coisa, mas pem em questo o prprio ser, antes ou paral do seu ser verdadeiro ou falso. Estes experimentos so sem verda-de, porque neles a verdade posta em causa.

    Quando Avicena, propondo a sua experincia do homem voa-dor, desmembra e desorganiza na imaginao, o corpo de um ho-mem, pedao a pedao, para provar que, assim despedaadosuspenso no ar, ele pode dizer ainda: eu sou, que o existente puro a experincia de um corpo j sem partes nem rgos; quandoCavalcanti descreve a experincia potica como transformao docorpo vivo num autrnaro mecnico (I' vo come colui ch foor divita I chepare, a chi 10 sguarda, cb'omo I siajatto di rame o di pietra odi legno I che si conduca solo per maestrias) ou quando Condillacabre o olfacto sua esttua de mrmore e ela no mais que chei-ro de rosa; quando Dante desobjectiva o eu do poeta numa rercei-

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  • ra pessoa (
  • sado) posto por Aristteles na boca do poeta trgico Agato: Re-lativamente ao passado no existe vontade. Por isto ningum querque Tria tenha sido saqueada, porque ningum decide sobre aquiloque aconteceu, mas apenas sobre aquilo que ser e possvel; o queaconteceu no pode, de facto, no ter acontecido. Da Agato terrazo em dizer: "Apenas sobre esta coisa Deus no tem poder: fazerque no sejam as coisas feitas" (tica Nicomaqueia II39 b 6-10)>>. o princpio que os latinos exprimiam na frmula: foctum infectumfieri nequite que, no De Caelo, Aristteles rearticula em termos deimpossibilidade de realizar a potncia do passado: no existe ne-nhuma potncia do ter sido, s do ser e do a ser.

    O segundo princpio, estreitamente entretecido no primeiro, o da necessidade condicionada, que limita a fora da contingnciasobre o ser em acto. Aristteles exprime-o deste modo: necess-rio que o que , enquanto , seja, e o que no , enquanto no , noseja (De Interpretatione 19 a 22). Wolff, que o compendia na fr-mula: quodLibet, dum est, necessario est, define este princpio comoum canon tristissimus in philosophia e funda-o, no sem razo, sobreo princpio de contradio (

  • a contingncia. o problema dos futuros contingentes, que Leib-niz, na Teodiceia, compendia, uma vez mais sob o signo da escrita,numa seca abreviatura: j era verdade h cem anos que hoje escre-verei, como daqui a cem anos ser verdade que hoje escrevi. Supo-nhamos que algum diga que amanh se dar ou no se dar umabatalha naval. Se no dia seguinte a batalha se verifica, ento era jverdade no dia antes dizer que ela se teria realizado, o que significaque ela no podia no realizar-se; se, vice-versa, a batalha no se ve-rifica, ento era j sempre verdade dizer que no se teria realizado, oque significa que a sua realizao era impossvel. Em ambos os ca-sos, necessidade e impossibilidade inserem-se na contingncia.

    Na teologia medieval, o problema dos futuros contingentesliga-se dramaticamente ao da prescincia divina, tornando a prem questo o livre arbtrio da vontade humana, ou ento destruindoa prpria possibilidade da revelao da vontade divina. Por um lado,uma frrea necessidade, que, sendo o futuro necessrio, tira todo osentido deciso; por outro, uma contingncia e uma incerteza abso-lutas, que implicam o prprio Cristo e os anjos. Suando sangue noGethsemani, assim argumenta por absurdo a quaestio bblica deRichard Fitzralph, professor em Oxford nos primeiros anos do scu-lo XIV, Cristo previa a sua morte no mais que a continuao dasua vida e os anjos no cu no prevem as suas prprias eternas bea-tirudes no mais do que mostram as suas eternas misrias, pois sabemque, se agradasse a Deus, poderiam ser para sempre miserveis.

    Como impedir o argumento depraesenti ad praeteritum, que ar-runa a contingncia do futuro, sem, no entanto, tirar toda a certezaaos enunciados sobre ele? A soluo de Aristteles elegante: quecada coisa seja ou no seja necessrio, escreve no De Interpretati-one (19 a 28-32) como tambm que ser ou no ser; todavia, nocertamente que, tendo-as separadas, se diga que uma ou outra necessria. Digo, por exemplo, que amanh se dar uma batalha

    naval ou no se dar, todavia, no necessrio que uma batalha na-val se verifique nem que no se verifique.

    Ou seja, a necessidade no diz respeito ao verificar-se ou ao noverificar-se do evento entendidos disjuntamente, mas sim alterna-tiva se-verificar-e-no-se-verificar no seu conjunto. Por outraspalavras, s a taurologia (em sentido wittgensreineano) amanhdar-se-a ou no se dar uma batalha naval necessariamente sem-pre verdadeira, enquanto cada um dos dois membros da alternativa restitudo contingncia, sua possibilidade de ser e de no ser.

    Tanto mais inevitvel , contudo, nesta perspectiva, manterfirme o princpio de necessidade condicionada. Por isto Aristtelesdeve definir o potente-possvel (dynats) nestes termos: potente--possvel aquilo pelo qual quando se realiza o acto do que se diz ter apotncia, nada ser de potente no ser (Metajisica 1047 a 24-26).As ltimas trs palavras da definio (

  • 1Il.4. Na Teodiceia,Leibniz justificou o direito daquilo que acon-teceu contra aquilo que podia ser e no aconteceu com um aplo-go to grandioso quanto terrvel. Prolongando a histria narradapor Lorenzo Valia, no seu dilogo De Libero Arbtrio, ele imaginaSexto Tarqunio - insatisfeito com a resposta do orculo de Apoioem Delfos, que lhe anunciou infortnio se quisesse ser Rei de Roma- a dirigir-se ao templo de [piter em Dodona e acusar o deus deo ter condenado a ser malvado, pedindo-lhe para mudar a sua sor-te ou, pelo menos, confessar o prprio erro. recusa de J piter,que o convida ainda uma vez a renunciar a Roma, Tarqunio sai dotemplo e abandona-se ao seu destino. Porm, o sacerdote de Dodo-na, Teodoro, que assistiu cena, quer saber mais. Tendo-se dirigido,por conselho de Jpiter, ao templo de Palas em Atenas, cai a numsono profundo e, em sonho, v-se transportado a um pas desconhe-cido. Aqui a deusa mostra-lhe o Palcio dos Destinos, uma imensapirmide de cume resplandecente cuja base se precipita at ao infi-nito. Cada uma das inumerveis salas que compem o palcio re-presenta um destino possvel de Sexto, ao qual corresponde ummundo possvel, mas que no se realizou. Numa das salas, Teodorov Sexto sair do templo de Dodona persuadido pelo deus: dirige-sea Corinto, compra um pequeno jardim, descobre, cultivando-o, umtesouro, e vive feliz at velhice, amado e considerado por todos.Numa outra, Sexto est na Trcia, onde casa a filha do rei e herda-lheo trono, soberano feliz de um povo que o venera. Numa outra, viveuma existncia medocre mas sem dor e assim, de sala em sala, dedestino possvel em destino possvel.
  • de outro modo e teve de ser sacrificado, para que o mundo acrualfosse assim como . O melhor dos mundos possveis projecta parabaixo uma sombra infinita, que se afunda de andar em andar at aoextremo do universo - inconcebvel at mesmo aos celestes -,onde nada compossvel com outro, onde nada pode realizar-se.

    recordao restitui possibilidade ao passado, tornando inconcludoo que aconteceu e concludo o que no aconteceu. A recordaono nem o acontecido, nem o no acontecido, mas o potencia-mento destes, os seus re-tornarern-se possveis. neste sentido queBartleby repe em questo o passado, volta a cham-lo: no simples-mente para redimir aquilo que aconteceu, para o fazer ser nova-mente, mas sim para o restituir potncia, indiferente verdade datautologia. O preferirei no a resttuto in integrum da possibi-lidade que a mantm em equilbrio entre o acontecer e o no acon-tecer, entre o poder ser e o poder no ser. Ele a recordao do queno aconteceu.

    O dirigir-se da potncia para o passado pode, de facto, advir emdois modos. O primeiro o que Nietzsche confia ao eterno retorno.Dado que mesmo a repugnncia, a contra-vontade (WiderwiLLe)da vontade em relao a o passado e o seu "assim foi" , para ele,a origem do esprito de vingana, do pior castigo imaginado peloshomens: ''Assim foi": eis o ranger de dentes da vontade e a suamais solitria aflio. Impotente contra o que foi feito, a vontade uma espectadora malvola do passado. Ela no pode querer o pas-sado ... que o tempo no possa voltar atrs a sua firia; "o que foi":eis a pedra que a vontade no pode derrubar.

    A impossibilidade de querer que Tria tenha sido saqueada,de que falavaAristteles na tica Nicomaqueia, aquilo que atormen-ta a vontade, a transforma em ressentimento. Por isto Zaratustra quem ensina vontade a querer para trs (zurckwoLLen), a trans-formar cada assim foi num assim o quis: s a este se chamaresgate. Apenas preocupado pela remoo do esprito de vingana,Nietzsche esquece completamente o lamento daquilo que noaconteceu ou que poderia ser de outro modo. Um eco deste lamento ainda audvel em Blanqui, quando, numa cela do Fort du Taureauevocando, dez anos antes de Nietzsche, o eterno retorno, confere

    III.5. na arquirectura egpcia deste palcio dos destinos queBarcleby prepara o seu experimento. Ele toma letra a tese aristo-tlica, segundo a qual a tautologia se-verificar-ou no-se-verificar necessariamente verdadeira no seu todo, para alm do realizar-sede uma ou outra possibilidade. O seu experimento diz respeito pre-cisamente ao lugar desta verdade, tem em vista exclusivamente averificao de uma potncia enquanto tal, isto , de alguma coisa quepode ser e, ao mesmo tempo, no ser. Mas um tal experimento possvel s pondo em questo o princpio de irrevocabilidade dopassado, ou, antes, contestando a no realizabilidade da potncia nopassado. Invertendo o sentido do argumento de praesenti ad praeteri-tum, ele inaugura uma novssima quaesto disputata, a dos passadoscontingentes. A necessria verdade da tautologia: Sexto-ir-a-Ro-ma-ou-no-ir-a-Roma retroage sobre o passado no para o tornarnecessrio, mas para o restituir sua potncia de no ser.

    Benjamin expressou uma vez a tarefa de redeno, que confiava memria, na forma de uma experincia teolgica que a recorda-o faz com o passado. O que a cincia estabeleceu, escreve ele,pode ser modificado pela recordao. A recordao pode fazer doinconcludo (a felicidade) um concludo, e do concludo (a dor) uminconcludo. Isto teologia: mas, na recordao, ns fazemos umaexperincia que nos impede de conceber de um modo fundamen-talmente a-teolgico a histria, assim como nem sequer nos con-sentido escrev-Ia directamente com conceitos teolgicos. A

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  • - com um riso amargo - existncia acrual a todos os mundospossveis do Palcio dos Destinos. Le nombre de nos sosies, escreve,est infini dans le temps et dans l'espace. En conscience, on nepeut gue-re exiger davantage. Ces sosiessont en chair et en os, voir en pantalonet paletot, en crinoline et en chignon. Ce ne sont point desfantmes,c'est de l'actualit eternise. Vici nanmoins un grand dfaut: il ny apas de progrs. Hlas! Non, ce sont des reditiom uulgaires, des redites.Tels les exemplaires des mondes passes, tels ceux des mondes foturs.Seul le chapitre des bifurcatiom reste ouvert l'esprance. N'oublionspas que tout ce qu'on aurait pu tre ici bas, on l'est quelque part ail-leurs. Em Zaratustra este eco completamente abafado. O eternoretorno , no fundo, somente uma variante ateia da Teodiceia leib-niziana, que em cada uma das salas da pirmide v repetir-se sem-pre e somente o que aconteceu e, s a este preo, apaga a diferenaentre mundo actual e mundo possvel, restitui-lhe potncia. E no casual que tenha sido mesmo Leibniz a formular pela primeira vez,e quase nos mesmos termos, a experincia decisiva de Nierzsche:Se o gnero humano durasse tempo suficiente no estado em que seencontra agora, viria necessariamente um momento em que at avida de cada um regressaria nos mnimos detalhes, nas mesmas cir-cunstncias - eu mesmo, que estou aqui sentado na cidade ditaHannover, sobre as margens do rio Leine, ocupado com o estudoda histria de Brunswick, e no acto de escrever cartas aos mesmosamigos e com o mesmo significado.

    a esta soluo que o escrivo Barcleby se atrn at ao momen-to em que decide abandonar a cpia. Benjamin percebeu a ntimacorrespondncia entre cpia e eterno retorno, quando comparacerta vez este ltimo Strafe des Nachsitzens, isto , punio queo professor aplica aos alunos negligentes e que consiste em copiarinmeras vezes o mesmo texto. (

  • come nem tem fome; perdo para os que morreram desesperados,esperana para os que morreram sem a ter, a boa nova para quantosmorreram opressos por fatais calamidades. Mensageiros de vida, estascartas correm para a morte. No se poderia sugerir mais clara-mente que as cartas nunca entregues so a cifra dos eventos afortu-nados que poderiam ter acontecido, mas no se realizaram. Aqueleque se realizou , antes, a possibilidade contrria. A carta, o acto deescrita, grafa, sobre a tabuinha do escriba celeste, a passagem dapotncia ao acto, o verificar-se de um contingente. Mas, mesmopor isto, cada carta grafa tambm o no verificar-se de alguma coisa, sempre tambm, neste sentido, carta morta. esta intolervelverdade que Barcleby aprendeu no Servio de Washington, este osignificado da frmula singular: mensageiros de vida, estas cartascorrem para a morte (on errands oflifo, those letters speed to death),

    No se notou at agora que esta frmula , na realidade, umacitao mal camuRada da carta aos Romanos 7,10: heurth moi hentol b eiszn, aut eis thnaton, na traduo inglesa que Melvilletinha diante dos olhos: And the commandment, which was ordai-ned to life, I found to be unto death (entol indica o mandamento,aquilo que foi enviado para um fim - da epistol, carta - e me-lhor traduzido por errand que por comandmen. o texto de Pau-lo, o mandamento - a entol - o da Lei, do qual o cristo foilibertado. O mandamento refere-se antiguidade da letra, qualo apstolo contrape pouco antes a novidade do esprito (Rom.7,6: But now toe are delivered from the Laui that being dead wheretoe were beld; that we should serve in newness ofspirit, not in tbe old-ness 01 tbe letter; cf tambm 2 Cor. 3,6: tbe letter killeth, but thespirit giveth tifo). No s a relao entre Barcleby e o homem deleis mas tambm aquela entre Bartleby e a escrita adquire, nestaperspectiva, um novo sentido. Bardeby um Law-copist, um escri-ba no sentido evanglico, e a sua renncia cpia tambm uma

    renncia Lei, um liberar-se da antiguidade da letra. Como emJosefK., tambm em Barcleby os crticos viram uma figura de Cristo(Deleuze diz: um novo Crisro), que vem para abolir a velha Lei epara inaugurar um novo mandamento (ironicamente, o prpriohomem de leis a record-lo:

  • Sabe que Gabriel tem duas asas. A primeira, a direita, luzpura. Esta asa a nica e pura relao do ser de Gabriel comDeus. H nele depois a asa esquerda. Esta est manchada poruma marca tenebrosa que se assemelha cor avermelhada dalua na alba ou das patas do pavo. Esta marca de treva oseu poder ser, que tem um lado virado para o no ser (dadoque ele, como tal, tem tambm um poder no ser). Se consi-deras Gabriel quanto ao seu acto de ser atravs do ser de Deus,ento o seu ser dito necessrio, dado que sob este aspecto,ele no pode no ser. Mas se o consideras quanto ao direito dasua essncia em si, este direito imediatamente, e na mesmamedida, um direito a no ser, dado que tal direito compete aoser que no tem em si o seu poder ser (e , por isto, um poderno ser).

    mandamento de vida, corre para a morte. E aqui est finalmenteem casa a criatura, salva porque no redimvel. Por isto, o ptio mu-rado no assim um lugar to triste. Ai h o cu e h a erva. E acriatura sabe perfeitamente onde se encontra.

    A decriao o voo imvel que se sustm s sobre a asa negra.A cada bater desta asa, tanto o mundo actual como os possveis soreconduzidos, um, ao direito de no ser, e os segundos, ao seu di-reito de ser - Sexto tirano desgraado em Roma e Sexto campo-ns feliz em Corinto indererrninam-se at coincidir. Este voo abalana eterna, sobre o nico prato da qual o melhor dos mundospossveis mantido em zeloso equillbrio pelo contrapeso do mun-do impossvel. A decriao acontece no ponto onde Bartleby jaz,no corao das pirmides eternas do Palcio dos Destinos, ditotambm, segundo a irnica inteno desta teodiceia invertida, ce-las da judiciria (the Halls ofJustice). A sua palavra no o Juizo,que confere ao que aconteceu a sua recompensa ou o seu perptuocastigo, mas Palingnese, Apokatstasis pntn, em que a nova cria-tura alcana o centro inverificvel do seu se-verificar-ou-no-se--verificar. Aqui termina para sempre a viagem da carta que, em

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  • OARTE__ .,..J~Ja

    (It . ,....

  • -

  • Bartleby, o Escrivode Herman Melville

    (1853)

  • o texto usado o de Harold Beaver no seu HERMAN MELVlLLE, Billy Budd; Sailor AndOther Storia (London, 1967) - com duas alteraes segundo a edio dos Piazza Talesque figura no volume de escritos de H.M. publicado por The Library of America (NewYork, 1984) - na verso de Gil de Carvalho (Assrio & Alvim, Lisboa, 1988). Foramfeitas algumas modificaes - quando nos pareceu necessrio aderir tanto ao originalcomo ao ensaio de Giorgio Agamben.

    J tenho uma cena idade. A natureza das minhas ocupaes, nos lti-mos trinta anos, ps-me em contacto estreito com o que seria de consideraruma interessante e algo singular classe de homens, sobre a qual, que eu sai-ba, nada se escreveu ainda - quero dizer, os escrives, ou copistas do foro.Conheci muitos deles, quer profissional quer particularmente, e, se me ape-tecesse, podia contar variadas histrias, acerca das quais os cavalheiros de boandole ririam, ao passo que as almas sensveis verteriam lgrimas. Mas eu po-nho de lado as biografias de todos os outros, em troca de algumas passagensda vida de Bartleby, que era escrivo, o mais estranho que conheci ou de queouvi falar. Enquanto de outros copistas do foro, eu poderia escrever a vidacompleta, acerca de Bartleby tal no possvel fazer-se. Creio no haver ma-terial existente de modo a fazer-se a biografia integral e capaz deste homem. uma perda irreparvel para a literatura. Bartleby era um desses seres acer-ca dos quais nada se pode concluir a no ser a partir de fontes originais, que,no seu caso, so minimas. O que os meus pr6prios olhos, atnitos, viram deBartleby, isso tudo quanto sei dele, excepto, na verdade, determinado ru-mor, que aparecer em devido tempo.

    Antes de apresentar o escrivo, como ele primeiro me apareceu, neces-srio que faa alguma luz sobre mim mesmo, os meus empregados, os meusneg6cios, os meus aposentos, e toda a atmosfera que me rodeia; visto queessa descrio se torna indispensvel para uma compreenso adequada doprotagonista que apresentaremos de seguida. Imprimis: sou um homem que,logo desde a juventude, sempre esteve possudo da convico profunda deque o caminho mais fcil , na vida, o melhor. Da que, embora pertencen-te a uma profisso proverbialmente enrgica, agitada, em certos casos at turbulncia, mesmo assim jamais permiti que coisa alguma dela invadisse a

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  • minha tranquilidade. Sou um daqueles homens de leis pouco ambiciososque nunca se dirige a um jri, que nunca chama a si os aplausos do pblico;mas que na serena tranquilidade de um confortvel retiro negoceiam confor-tavelmente com obrigaes, hipotecas e ttulos pertena dos ricos. Todos osque me conhecem, consideram-me um homem eminentemente seguro. O fa-lecido John Jacob Astor, um personagem pouco dado a entusiasmos poti-cos, no teve qualquer hesitao em afirmar que o meu grande trunfo era aprudncia, logo seguido pelo mtodo. No digo isto por vaidade, registosimplesmente o facto, que nunca o defunto [ohn Jacob Astor me deixou semtrabalho na minha profisso; nome que, admito-o, eu gosto de repetir, por-que tem nele um som redondo e orbicular, que retine como oiro em barra.Acrescento de livre vontade que eu no era indiferente boa opinio que ofalecido John Jacob Astor tinha de mim.

    Algum tempo antes do perodo em que tem incio esta histria, as mi-nhas ocupaes tinham-se consideravelmente alargado. O bom e velho cargo,hoje extinto no Estado de Nova Iorque, deMaster in Chancery, havia-me sidoconferido. O trabalho no era muito penoso, e era muito agradavelmente re-munerado. Raramente perco a calma, e ainda mais raras so as vezes em queme permito uma imprudente indignao perante injustias ou afrontas. Maspermitam-me neste particular ser algo brutal e declarar que considero a abo-lio sbita e violenta do cargo de Master in Chancery, expressa na nova Cons-tituio, como um ... acto prematuro; porquanto eu contara com proventosvitalcios, e afinal somente vim a auferir os de uns quantos anos. Mas isto um aparte.

    Os meus escritrios encontravam-se instalados num andar superior don. o ... de Wall Streer. De um lado davam para a parede branca do interior deum espaoso saguo com clarabia, que ia de alto a baixo do edifcio.

    Um tal panorama no podia deixar de ser considerado incaracterfsrico,falho daquilo a que os paisagistas chamam vida. Mas, assim sendo, o pano-rama da outra ponta oferecia, pelo menos, um contraste, se mais no fosse.Nessa direco, as janelas ofereciam a viso ampla de uma alta parede de ti-jolo, negra devido idade e sombra permanente, parede que naturalmenteno exigia qualquer luneta que dela extrasse belezas ocultas, mas que, para

    benefcio de quantos fossem mopes, se encontrava somente a cerca de qua-tro metros dos vidros da minha janela. Devido grande altura dos edifcioscircundanres e ao facto de os meus escritrios serem no segundo piso, o inter-valo entre essa parede e a minha assemelhava-se bastante a uma grande cis-terna quadrada.

    No perodo imediatamente anterior ao advento de Bartleby, tinha aomeu servio dois copistas, e um rapaz prometedor como moo de recados.Primeiro, Turkey, segundo, Nippers, terceiro, Ginger Nut'. Podem parecernomes que em geral se no encontram num anurio. Na realidade eram al-cunhas que os meus trs empregados se tinham mutuamente posto, e queera suposto reflectirem os temperamentos respectivos. Turkey era um Inglsbaixo e gordinho, mais ou menos da minha idade - ou seja, ai no muitolonge dos sessenta. Digamos que de manh o seu rosto apresentava um agra-dvel matiz rosado, mas que aps o meridiano - doze horas -, hora do seualmoo, brilhava como a grelha de um fogo de carves de Natal; e continua-va a brilhar - mas, mesmo assim, com uma diminuio gradual- at cercadas seis horas da tarde; aps o que eu deixava de ver o proprietrio do rosto,que alcanando o seu meridiano com o sol, parecia igualmente pr-se comaquele, levantar-se, atingir o znite, e declinar no dia seguinte, com a mesmaregularidade e idntica glria. No decorrer da minha existncia tive oportu-nidade de observar muitas coincidncias singulares, e a menor delas no foicertamente esta, que exactamente quando Turkey exibia em toda a sua glriao seu vermelho e radioso semblante, era precisamente nessa altura que, mo-mento crtico, tinha inicio o perodo dirio durante o qual eu considerava assuas capacidades de trabalho seriamente perturbadas para o resto do dia.No que ele ficasse por completo ocioso, ou adverso a trabalhar, longe disso.A dificuldade residia precisamente no facto de ele se tornar demasiado acti-vo. Possuido de desastrosa agitao, ficava esquisito, inflamado, caprichoso eexcitado. Tornava-se desastrado, quando molhava o aparo no tinteiro. Todosos borres que apareciam nos documentos, eram l depositados depois dasdoze - o meridiano. Na verdade ele ficava no s imprudente, tristementedado a fazer borres depois do almoo, como, alguns dias, ia mais longe, tor-nando-se bastante barulhento. Nessas alturas, ento, o seu rosto resplandecia

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  • mais, como se tivssemos misturado hulha e antracite. Fazia um ruido desa-gradvel com a cadeira, entornava o areeiro; ao consertar os aparos, de impa-cincia desfazia-os em bocados, e com a fria atirava com eles para o cho.Levantava-se, inclinava-se sobre a secretria, dava murros nos papis de umamaneira pouco digna e bem triste de observar num homem daquela idade.No entanto, como ele era a vrios ttulos algum que me era imprescindvel,e at ser meio-dia, o tal rneridiano, era a mais rpida das criaturas, realizandouma grande quantidade de trabalho de um modo que era difcil de igualar- por isto estava disposto a no fazer caso das suas excentricidades, emborana verdade o repreendesse uma vez.por outra. Usava no entanto de brandura,pois que sendo o homem mais cordato, educado e reverente durante a ma-nh, contudo, da parte da tarde, e se provocado, era capaz de ser atrevido -se no mesmo insolente. Assim, apreciando os servios prestados de manh,e disposto a no os perder - e apesar de me sentir incomodado pelo seu in-flamado proceder aps as doze - e sendo um homem de paz, no desejosode, pelas minhas admoestaes, desencadear inconvenincias por parte dele,resolvi falar-lhe, um sbado pelo meio-dia (estava sempre pior aos sbados).Sugeri-lhe, brandamente, que talvez agora que ele estava a ficar mais velho,fosse melhor encurtar o horrio de trabalho; ou seja, que no precisava de vol-tar ao escritrio aps o meio-dia; que, terminado o almoo, era melhor ir paraos seus aposentos, para casa, e descansar at hora do ch. Mas no, ele insis-tiu em cumprir as suas obrigaes da parte da tarde. O seu aspecto tornou-seextraordinariamente inflamado, quando me assegurou teatralmente - ges-ticulando com uma rgua comprida no lado oposto da sala - que se os seusservios eram teis de manh, como no seriam indispensveis, tarde?

    - Com o devido respeito, senhor - disse na altura Turkey -, consi-dero-me o seu brao direito. Pela manh, formo e disponho as minhas tro-pas, e de tarde ponho-me frente delas, e galantemente carrego sobre oinimigo, assim - e fez um movimento violento, em frente, com a rgua.

    - Mas os borres, Turkey - insinuei.- verdade, mas senhor, com o devido respeito, veja esta cabeleira!

    Estou a envelhecer. Certamente que um borro ou dois, senhor, e numa tardede irritao, no so motivo para lanar recriminaes contra uns cabelos

    grisalhos. A velhice - mesmo quando esborrata a pgina - honrosa. E,senhor, com o respeito que lhe devido, ambos estamos a ficar velhos.

    Este apelo a sentimentos que eu partilharia, no se lhe podia resistir. Dequalquer maneira, eu via que ele ir-se embora no iria. Decidi pois deix-Iaficar, resolvendo, no entanto, dispor as coisas de modo a que, durante a tar-de, ele ficasse com os documentos menos importantes.

    Nippers, o segundo da minha lista, era um rapaz de suas, arnarelento,e com uma aparncia geral que o assemelhava a um pirata, rondando os vintee cinco anos. Sempre me pareceu vtima de dois poderes malignos: a ambi-o e a indigesto. A ambio evidenciava-se numa certa impacincia paracom os seus deveres de mero copista, uma indesculpvel usurpao de assuntosestritamente profissionais, tal como redigir ele prprio documentos legais. Aindigesto parecia manifestar-se por vezes numa certa petulncia nervosa,nuns esgares de irritao, que provocavam um ranger de dentes perfeitamenteaudvel - tudo devido a erros cometidos ao copiar; maldies desnecess-rias, sibiladas em vez de proferidas, no af do trabalho; e muito especialmentepor um descontentamento, continuado, com a altura da escrivaninha ondetrabalhava. Embora muito engenhoso para tudo quanto era mecnico, Nippersjamais conseguiu ter a escrivaninha a seu contento. Punha-lhe calos, frag-mentos de material vrio, pedaos de carto, e por fim foi ao pontO de fazerum singular ajuste com bocados de mata-borro dobrados. Mas nenhumadas invenes resultava. Se, com o intuito de aliviar as costas, levava o tampoda mesa a fazer um ngulo agudo com o queixo, e ali escrevia tal como o ho-mem que usasse o telhado bastante inclinado de uma casa holandesa comoescrivaninha, era ento que se punha a dizer que isso lhe parava a circulao,nos braos. Se no entanto ele baixava o tampo at cintura, e se inclinava so-bre ele ao escrever, logo lhe aparecia uma dor irritante nas costas. Em resumo,a verdade que Nippers no sabia o que queria. Ou, se queria realmente algu-ma coisa, era ver-se completamente livre da mesa de copista. Entre as mani-festaes da sua doentia ambio, uma era a de gostar de receber indivduosde aspecto equvoco, com casacos surrados, a quem chamava seus clientes.Na realidade, eu sabia que ele no somente era, por vezes, um poltico debairro com talento, mas que em certas alturas fazia igualmente servios nos

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  • tribunais, e que no era desconhecido nas Tombs'. Tenho boas razes paraacreditar, no entanto, que um certo indivduo que o procurava no meu escri-trio, e o qual, dando-se grandes ares, ele insistia em considerar seu cliente,no passava de um credor, e o suposto ttulo que trazia consigo, uma factura.Mas com todos os seus defeitos, e com todos os aborrecimentos que me cau-sava, ippers, tal como o seu camarada Turkey, era-me extremamente til;escrevia depressa, com boa caligrafia, e, quando queria, no era falho de umacerta conduta de cavalheiro. Acrescente-se que se vestia com uma certa ele-gncia, e, assim, acrescentava algum lustro mais aos meus escritrios. J comrespeito a Turkey eu tinha muita dificuldade em que ele no se tornasse ummotivo de censura para a minha pessoa. A sua roupa parecia sempre sebentae tresandava a casa de pasto. Usava calas muito largas e demasiado folgadas,no Vero.As jaquetas eram medonhas, e no chapu nem se lhe podia tocar. Masenquanto o chapu pouco me importava, porquanto, devido s suas maneirase deferncia, naturais nele como em qualquer Ingls sem meios prprios, sem-pre o tirava no momento em que entrava na sala - j com a jaqueta era dife-rente. No que diz respeito s suas jaquetas, vrias V($!S discuti com ele, mas noserviu de nada. A verdade era provavelmente que, julgo eu, um homem comto poucos rendimentos no se podia dar ao luxo de exibir ao mesmo tempouma face brilhante e uma jaqueta igual. Como certa vez disse Nippers, o di-nheiro de Turkey ia principalmente para tinta encarnada. Um dia de Inverno,presenteei Turkey com uma casaca minha muito decente - cinzenta, acol-choada, quente e confortvel, que se abotoava dos joelhos ao pescoo. Julgueique Turkey apreciasse esta ateno, e moderasse a sua rudeza, os seus descon-trolados arrebatamentos, de tarde. Mas pelo contrrio. Acredito piamente queo facto de se abotoar a si prprio com uma casaca to macia como um cober-tor teve sobre ele uma influncia perniciosa - isto segundo o princpio deque demasiada aveia mau para os cavalos. De facto, e tal como se diz de umcavalo fogoso e irrequieto que sente a aveia dada, assim Turkey sentia a casa-ca. F-Ia insolente. Era algum a quem a prosperidade prejudicava.

    Embora em relao aos hbitos autocornplacentes de Turkey, eu tivesseas minhas prprias conjecturas, no entanto, no que diz respeito a Nippers,estava convencido de que, quaisquer que fossem as suas faltas noutros aspec-

    tos, ele era pelo menos um rapaz sbrio. Que na verdade a prpria Naturezaparecia ter sido o seu taberneiro, visto que logo nascena o carregara comuma natureza irritvel, como a da aguardente, que todas as doses posterioresse tornaram desnecessrias. Quando me lembro de como no meio do silnciodo meu escritrio, o ippers se levantava impacientemente do seu lugar, einclinando-se sobre a escrivaninha abria completamente os braos, abraando--a toda, e a deslocava e arrastava com um rudo horrvel, chiando pelo soalho,como se a sua escrivaninha fosse um agente perverso e voluntrio, postado emcontrari-Ia e vex-Ia, ento percebo que para Nippers o brandy com guaera perfeitamente suprfluo.

    Foi realmente uma sorte para mim, devido a uma causa particular, a in-digesto, que a irritabilidade e subsequente nervosismo de Nippers fossemsobretudo observveis da parte da manh, enquanto de tarde ele permaneciacomparativamente calmo. Assim, como os paroxismos de Turkey se faziamsentir por volta do meio-dia, nunca tinha de lidar com ambas excentricida-des ao mesmo tempo. Os acessos rendiam-se um ao outro, como sentinelas.Quando Nippers estava de servio, Turkey estava de folga, e vice-versa. Da-das as circunstncias, este era um bom arranjo natural.

    Ginger ut, o terceiro da minha lista, era um rapaziro de uns onze anos.O pai era carroceiro, desejoso de ver, antes de morrer, o filho ter assemo

    na barra dos tribunai em vez de no banco de uma carroa. Foi assim que omandou para o meu escritrio, como aprendiz de leis, paquete, encarregadode limpar e varrer, a um dlar por semana. Tinha uma pequena escrivaninha,mas pouco a usava. Examinada, a gaveta exibia uma grande quantidade e va-riedade de cascas de nozes. E na verdade, para este esperto rapaz, toda a nobrecincia das lei estava encerrada numa casca de noz. Decerto que o encargo,e no era dos menores, que Ginger Nut desempenhava com maior alegriaera o de fornecer bolos e mas a Turkey e Nippers. Copiar documentaolegal sendo manifestamente um trabalho rido e maador, os meus dois es-crives eram dados a humedecer a boca com uma determinada variedade demas, Sptizenbergs, que podiam ser compradas em variadas bancas situadasperto da Alfndega ou dos Correios. Tambm mandavam Ginger Nut, fre-quentemente, buscar um certo tipo de bolo - pequeno, achatado, redondo

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  • e muito condimentado, e que servira para lhe porem a alcunha. Nas manhsfrias, quando a monotonia do rrabalho pesava, Turkey engolia grande quan-tidade deles, como se fossem simples biscoitinhos - na verdade eram ven-didos razo de seis ou oito o penny - misturando-se o arranhar da canetacom o mastigar das partculas, esraladias, na sua boca. De todos os tremen-dos disparates e bruscas precipitaes do Turkey tarde, aconteceu-lhe umdia humedecer um bolo de gengibre entre os lbios e espetar com ele numahipoteca, a servir de selo. Estive por um triz para o despedir. Mas ele amole-ceu o meu intento ao fazer uma vnia oriental, e dizendo:

    - Com o devido respeito, senhor, foi generoso da minha parte forne-cer-lhe por minha prpria conta artigo de papelaria.

    Ora o meu negcio primitivo - de tabelio, procurador e redactor dedocumentos absrrusos de toda a espcie - viu-se consideravelmente aumen-tado quando fui empossado no cargo de master. Havia agora imenso trabalhopara escrives, Tive no s necessidade de os obrigar a andar mais depressa,como tambm de uma ajuda adicional.

    Em resposta ao anncio que tinha posto, apareceu-me um dia, imvelno limiar do meu escritrio, um homem novo - a porra estava aberta por serVero. Estou a ver a sua figura, plida e asseada, que inspirava piedade, masre peirvel, incuravelmente desamparada! Era Bartleby.

    Aps trocarmos algumas palavras acerca das suas aptides, contratei-o,feliz por ter enrre os meus copistas um homem to singularmente pacato, eque poderia, pensava eu, ter uma influncia benfica sobre o temperamentocapricho o de Turkey e o outro, arrebatado, de ippers.

    J o devia ter dito anteriormente, que umas porras de correr, em vidro,dividiam o meu escritrio em dois; uma parte era ocupada pelos copisras, ea outra por mim. Abria-as ou fechava-as, conforme a minha disposio. Resol-vi dar a Bardeby um canto junto destas porras, mas do meu lado, de modoa ter este tranquilo homem mo, em caso de necessidade. Coloquei-lhe aescrivaninha junto a uma pequena janela lateral, nesta parte da sala, janelaque primitivamente oferecera uma vista lateral de ptios sujos e muros de ti-jolos, mas que devido a construes ulteriores, no tinha neste momentoqualquer vista, embora fornecesse alguma luz. A cerca de um metro dos vi-

    dros da janela havia um muro, e a luz vinha muito l de cima, por enrre doisaltos edifcios, como se se tratasse de uma pequena aberrura numa cpula.De modo a tornar melhor este arranjo, adquiri um biombo alto, verde, queisolasse completamente Bardeby do meu campo de viso, mas mantendo-oao alcance da minha voz. E era assim que, de cerra maneira, privacidade econvivncia se aliavam.

    De incio, Bardeby executou uma quantidade extraordinria de escrita.Como se andasse esfomeado por algo que copiar, parecia saciar-se nos meusdocumentos. No havia pausa para a digesto. Trabalhava dia e noite, copian-do luz do sol e da vela.Teria ficado encantado com esta aplicao ao rrabalho,se ele tivesse revelado alegria ao faz-Ia. Mas escrevia silenciosamente, apaga-damente, mecanicamente.

    Uma parte indispensvel do trabalho de copista, reside, precisamente,em verificar a exactido da cpia que faz, palavra a palavra. Onde existam doisou mais, ajudam-se mutuamente nesse exame, um lendo a cpia e o outroseguindo o original. um trabalho aborrecido, enfadonho, e enrorpecedor,Imagino facilmente quo intolervel ser para um temperamento sanguneo.Para dar um exemplo, no pos o garantir que esse poeta fogoso, Byron, se dis-pusesse de bom grado a sentar-se junto com Bardeby, a fim de ambos confe-rirem um documento legal, digamos de quinhentas pginas, numa caligrafiaretorcida, e compacto.

    Uma vez por outra, quando havia mais pressa, eu prprio cosrumava aju-dar a conferir algum documento mais breve, chamando Turkey ou ipperspara o efeito. O meu objectivo, ao colocar Bardeby ali mo atrs do biombo,fora o de recorrer ao eu ervios nessas alruras. Foi no terceiro dia, pensoeu, de ele estar comigo, e antes de ter surgido qualquer necessidade de con-ferir o que ele copiava, que muito apressado em dar por concludo um pe-queno trabalho que tinha entre mos, chamei de repente por Bartleby. Coma pressa, e na expectativa, natural, de ser imediatamente atendido, fiquei senta-do secretria com a cabea inclinada sobre o original, e a mo direita nervo-samente estendida para o lado com a cpia, de modo a que, imediatamenteaps que emergisse do seu recanto Bartleby a agarrasse, procedendo tarefasem a mnima demora.

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  • Sentado, e nesta atitude, foi que o chamei, dizendo rapidamente o quepretendia que ele fizesse- ou seja, conferir comigo um pequeno documento.Imagine-se a minha surpresa, ou antes, a minha consternao, quando, e semse mover do seu retiro, Barcleby - numa voz singularmente suave e firme,me respondeu: - preferiria de no (
  • - Est ento decidido a no cumprir com o que lhe peo - uma so-licitao que feita de acordo com os usos estabelecidos e o bom senso?

    Fez-me perceber, quase imperceptivelmente, que neste pOntOo meu ju-w era acertado. Sim: a sua deciso era irrevogvel.

    No raro suceder, quando um homem tratado arrogantemente, deforma injusta e sem precedentes, que ele comece a perder a confiana em siprprio. Comea a desconfiar vagamente, como neste caso, que, por espanto-so que parea, a justia e a razo sempre esto do outro lado. E assim que,se esto presentes pessoas que no se encontram envolvidas no assunto, ele sevolta para elas de modo a que lhe sirvam de reforo - sua razo vacilante.

    - Turkey - perguntei - que pensa disto? No tenho razo?- Com o devido respeito, senhor, acho que tem - respondeu aquele

    no seu tom de voz mais brando.- Nippers - continuei - que pensa, voc, disto?-Acho que corria com ele do escritrio.(O leitor, que perspicaz, notar por aqui que, sendo de manh, a res-

    posta do Turkey vem expressa em termos polidos e tranquilos, ao passo quea de Nippers de mau gnio. Ou, para repetir uma frase anterior, os mausmodos de Nippers estavam de servio, e os de Turkey de folga.)

    - Ginger Nur - perguntei, desejoso de recolher o menor dos sufr-gios em meu favor, que pensa voc disto?

    - Penso, senhor, que ele um bocado chanfrado - replicou GingerNur com um esgar.

    - Est a ouvir o que eles dizem - disse eu voltando-me para o biom-bo. - Saia dai e cumpra o seu dever.

    Mas ele no se dignou dar qualquer resposta. Ponderei um momento,em dolorosa perplexidade. Mas uma vez mais o trabalho instava, e delibereide novo adiar a considerao deste dilema para uma oportunidade futura.Com alguma dificuldade conseguimos conferir os papis sem Bartleby, em-bora que a cada uma ou duas pginas Turkey, com deferncia, manifestassea sua opinio que um tal procedimento era totalmente fora do comum, en-quanto Nippers, torcendo-se na cadeira com nervosismo de dispprico, re-mofa por entre os dentes cerrados, silvando de vez em quando maldies

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    contra o imbecil teimoso que estava por detrs do biombo. E no que lhe di-zia respeito a ele (Nippers), esta era a primeira e ltima vez que faria o traba-lho de outro sem ser pago.

    Entretanto Bartleby continuava sentado no seu eremitrio, alheio atudo que no fosse o trabalho que l estava a fazer.

    Passaram-se alguns dias, e o escrivo estava a braos com um outro tra-balho de flego. A sua estranha conduta recente, levou-me a observar-lhe oshbitos de perto. Notei que nunca ia almoar; na verdade nunca ia a lado ne-nhum. At data, nunca, que eu tivesse conhecimento, o vira fora do escrit-rio. Era uma sentinela perptua no seu canto. Cerca das onze horas da manh,no entanto, notava que Ginger Nut se aproximava da abertura do biombode Bartleby, como se chamado por um gesto, invisvel do lugar onde eu es-tava sentado. O rapaz saia ento do escritrio fazendo tinir alguns pence, ereaparecia com uma mo cheia de ginger nuts, que ele entregava no eremit-rio, recebendo dois pelo trabalho.

    Ele ento vive de ginger nuts, pensei eu. Nunca come um almoo pro-priamente dito. Deve ser vegetariano, ento. Mas no, ele nunca come sequervegetais, no come nada a no ser bolos de gengibre. A minha mente ps-seento a devanear sobre os efeitos provveis na constituio do corpo humanode se viver exclusivamente de bolos de gengibre. Chamam-se bolos de gengi-bre porque contm gengibre como um dos seus ingredientes tpicos, e aqueleque lhe d o sabor caracterstico. Ora, o que era o gengibre? Um produto api-mentado e quente. Era Bartleby picante e quente? Nada disso. O gengibre,nesse caso, no tinha qualquer efeito sobre ele. Provavelmente ele preferiaque no tivesse nenhum.

    No h nada que irrite mais uma pessoa enrgica do que a resistnciapassiva. Se aquele que posto prova no possui tmpera inumana, e se oque resiste algum completamente inofensivo, ento o primeiro procurar,com a sua melhor boa vontade, explicar pelo recurso imaginao o que semostra incapaz de ser resolvido pela razo. Me mo assim, eu respeitava emgrande parte Bartleby e a sua maneira de ser. Pobre criatura! - pensava eu,no tem qualquer inteno de fazer mal, e evidente que no quer ser inso-lente; pelo seu aspecto se v perfeitamente que as suas excentricidades so in-

  • voluntrias. -me til. Posso mant-lo comigo. Se o abandono, o que pode-r suceder ele cair nas mos de um patro menos indulgente, e ser tratadocom rudeza, vindo talvez a ser empurrado para uma situao em que morrade fome, miseravelmente. Sim. Ora aqui est uma maneira de eu me garantir,por pouco, uma deliciosa auro-satisfao. er amigo de Bartleby. Condes-cender com a sua esquisita teimosia, pouco ou nada me custar, ao passo queestou a armazenar na minha alma o que bem poder tornar-se um rico ali-mento para a minha conscincia. Mas nem sempre tinha esta disposio deesprito. A passividade de Bartleby por vezes irritava-me. Era algo que me es-picaava, e que fazia com que eu quisesse despertar nele novas recusas, - demodo a que se desencadeasse a fasca de clera que respondesse minha.Mas era como se eu tentasse fzer fogo contra um pedao de sabo de Windsorcom os ns dos dedos. Mas uma tarde o mau irnpul o tomou conta de mim,seguindo-se a cenazita seguinte:

    - Bartleby - disse eu - quando tiver terminado esses papis, vouconferi-Ios consigo.

    - Preferiria de no.

    - O qu? Decerto no pensa continuar nesse capricho de teimosia?enhuma resposta.

    Abri de par em par as pOrtas de correr mesmo ao lado, e voltando-mepara Turkey e ippers, exclamei:

    - Bartleby diz-me uma segunda vez que no conferir as suas cpias.Que pensa disto Turkey?

    Era de tarde, recorde-se. Turkey, enrado, b~ilhava como uma chaleirade cobre; a cabea calva fumegava; as mos rodopiavam por entre os docu-mentos esborratados.

    - O que que eu penso? berrou Turkey. -Acho que vou a atrs des-se biombo e lhe ponho os olhos negros!

    Dizendo isto, Turkey ps-se de p e colocou os braos em atitude depugilista. J se preparava para cumprir a sua promessa, quando o detive, alar-mado por ter inadvertidamente despertado a combatividade - aps o al-moo - de Turkey.

    - Sente-se Turkey - disse-lhe eu - e oua o que ippers tem paradizer. - Que pensa disto, Nippers? No teria eu motivo para despedir ime-diatamente Bartleby?

    - Desculpe-me, mas isso cabe ao senhor decidir. Julgo a condura deledeveras inslita, e mesmo injusta, no que diz respeito ao Turkey e a mimprprio. Mas pode ser que se trate de um capricho passageiro.

    - Ah! - exclamei - mudou estranharnente de ideias, ento - faladele com muita brandura.

    - tudo da cerveja - gritou Turkey. A brandura efeito da cerveja-Nippers e eu almornos hoje juntos. Est a ver como eu estou hoje amvel,senhor? Vou l pr-lhe os olhos negros?

    - Est a referir-se a Bartleby, suponho? No, hoje no. Turkey - re-pliquei - baixe os punhos por favor.

    Fechei as portas, e de novo me dirigi para Bartleby. Tinha um incentivoadicional para persistir no meu intento. Ardia por me ver outra vez desobe-decido. Lembrei-me de que Bartleby nunca abandonava o escritrio.

    - Bartleby, disse eu - o Ginger Nut no est, importa-se de ir aoCorreio, no quer ((won'tyou?)? (No eram mais de trs minutos) Ver se halguma coisa para mim?

    - Preferiria de no.o quer (~Oll will llOt/,,)?

    - Prefiro no ((I prefer not.).Dirigi-me para a minha secretria, a cambalear, e l me sentei, em pro-

    funda meditao. A minha cega mania estava de volta. Haveria ainda algumacoisa mais que me pudesse ser ignominiosamente recusada por esta criaturamagra e sem vintm - meu empregado assalariado? Seria ainda possvel ar-ranjar alguma coisa mais perfeitamente razovel, mas que ele certamente serecusaria a fazer?

    - Bartleby!No houve resposta.- Bartleby! - agora num tom mais forte.No houve resposta.

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  • - Bartleby! - berrei.Tal qual um fantasma, afecto s leis da invocao mgica, terceira cha-

    mada apareceu ele entrada do seu eremitrio.- V sala ao lado e diga ao Nippers que venha aqui.- Prefiro de no - disse ele lenta e respeitosamente, e calmamente

    desapareceu.- Muito bem, Bartleby - disse eu, num tom calmo, severo, segura-

    mente seguro de si prprio, como que insinuando o inaltervel propsito deuma qualquer terrvel retribuio, ali bem mo. aquele momento eu esta-va meio decidido a uma resoluo dessas. Mas, vistas bem as coisas, como seaproximava a minha hora do almoo, achei melhor pr o chapu e ir at casa,dominado por violenta perplexidade e perturbao.

    Devo confess-Io? O resultado disto tudo foi que em breve se tornouum dado adquirido que os meus escritrios albergavam um jovem escrivoplido, que dava pelo nome de Bartleby, que tinha l uma secretria. Quecopiava ao preo habitual de quatro cents pgina (cem palavras); mas queestava permanentemente isento de conferir o trabalho que fazia, sendo e tetransferido para Turkey ou ippers, sem dvida como uma homenagem superior agudeza dos ditos. Alm disso, o referido Bartleby nunca, por mo-tivo algum, deveria ser mandado fazer qualquer recado; e mesmo que lhe so-licitassem que se encarregasse de algum, era tacitamente compreendido queele preferiria de no - por outras palavras, que ele se recusaria terminan-temente.

    Com o passar dos dias, ia-me reconciliando com Bartleby. A sua perse-verana, o estar liberto de qualquer dissipao, o seu trabalho incessante (ex-cepto quando decidia lanar-se num devaneio exttico por trs do biombo), aua imensa quietude, a inalrerabilidade da ua conduta em qualquer circuns-tncia, faziam dele uma aquisio de valor. Havia uma coisa fulcral- queele estava sempre l - o primeiro logo de manh, o dia todo sucessivamente,e por fim a noite. Tinha uma confiana especial na sua honestidade. Sentiaque os meus documentos mais preciosos estavam seguros nas suas mos. Porvezes, no entanto, eu no podia, pese embora minha alma, deixar de cair emacesso sbitos, espasmdicos, de clera - que o visavam. Pois que era ex-

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    tremam ente difcil suportar constantemente essas esquisitas peculiaridades,privilgios e isenes nunca vistos, que formavam as tcitas estipulaes deBartleby tendo em vista a sua permanncia no meu escritrio. Uma vez poroutra, na nsia de despachar assuntos urgentes, chamava eu por Bartleby inad-vertidamente, num tom brusco e rpido, para pr por exemplo o seu dedonum n incipiente que eu fazia com um bocado de tira vermelha, e com aqual me preparava para atar alguns documentos. Mas claro que detrs dobiombo vinha de certeza a resposta habitual: prefiro de no. E nessa cir-cunstncia como que uma criatura humana, enfermando dos vcios comunsda nossa natureza, como que ela poderia conter-se de proferir exclamaesamargas contra uma tal perversidade - tanta irracionalidade. o entanto,cada reiterada recusa da sua parte fazia com que diminusse a probabilidadede eu repetir a inadvertncia.

    por esta altura que se deve referir, obedecendo nisso a um costume demuitos cavalheiros que tratam de assuntos do foro e que ocupam escritriosem edifcios densamente ocupados, que havia vrias chaves de acesso minhaporta. Uma tinha-a a mulher que morava no sto, que era a pessoa que se-manalmente esfregava o meu escritrio e que todos os dias o varria, limpandotambm o p. Outra possua-a o Turkey, por uma questo de convenincia.A terceira andava eu s vezes com ela no bolso. A quarta no sei quem a tinha.

    Sucede que um Domingo de manh me dirigi para a Trinity Church, afim de ouvir um pregador de nomeada, e tendo chegado ao local bastante cedo,decidi dar uma volta at ao meu escritrio. Felizmente tinha a minha chavecomigo; mas ao met-Ia na fechadura, encontrei resistncia - algo fora in-serido nela pela parte de dentro. Bastante surpreendido, chamei, e foi quando,para grande consternao minha, deram do outro lado volta chave, e, en-treaberta a porta surgiu o fantasma de Bartleby com o seu ro to magro, emmangas de camisa, em traje meio esfarrapado, dizendo placidamente que la-mentava, mas que estava naquele momento muito ocupado e - que de mo-mento preferia no me deixar entrar.

    Com mais uma ou duas palavra, acrescentou ainda que se eu desse duasou trs voltas ao quarteiro, nessa altura possivelmente j ento ele teria con-cludo o que estava a fazer.

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  • Ora a altamente imprevista apario de Barcleby ocupando, como in-quilino, o meu canrio numa manh de Domingo, com a sua noncbalancecadavrica de cavalheiro, no entanto resoluto e senhor de si, teve um tal ex-traordinrio efeito sobre a minha pessoa, que imediatamente me escapuli daminha prpria porta, conforme o solicitado. Mas no sem sentir vrias ponta-das de impotente revolta contra a branda desfaatez deste inacreditvel escrivo.De facto, era principalmente a sua brandura maravilhosa que no somenteme de armava como me tirava a coragem. Pois eu considero, nestas circuns-tncias, que uma pessoa perdeu a coragem quando permite tranquilamentea um seu empregado que lhe d ordens e o mande embora dos seus prpriosdomnios. Alm disso, eu estava bastante inquieto pensando no que estariaBarcleby a fazer em mangas de camisa, e num estado de desarranjo tpicoduma manh de Domingo. Estaria algo de anormal a passar-se? No, isso es-tava fora de questo. No era de supor um minuto sequer que Bartleby fossepessoa imoral. Mas o que estaria ele ali a fazer?A copiar? No, de modo ne-nhum, quaisquer que fossem as suas excentricidades Bartleby era uma pessoado maior decoro. Seria a ltima pessoa a sentar-se a uma escrivaninha numestado prximo da nudez. Alm do mais