Neomarxismo, neo marxismo, neo marxismo, neo-marxism, néo marxisme
(BARROCO, TULESKI, FACCI, 2013) Psicologia Histórico-Cultural, marxismo e educação
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Teora y crtica de la psicologa 3, 281-301 (2013). ISSN: 2116-3480
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Psicologia Histrico-Cultural, marxismo e educao
Historical-Cultural Psychology, Marxism and Education
Silvana Calvo Tuleski, Marilda Gonalves Dias Facci e
Snia Mari Shima Barroco
Universidade Estadual de Maring (Paran, Brasil)
Resumo. Todos os trabalhos desenvolvidos pelos professores pesquisadores brasileiros
integrantes deste grupo que envolve alunos da graduao e ps-graduao em Psicologia possuem como caractersticas bsicas os seguintes aspectos: 1) neles, a Psicologia
Histrico-Cultural, analisada a partir de seus fundamentos filosficos marxistas, tomada
como uma das vertentes da Psicologia Crtica; 2) eles discutem possibilidades tericas e
prticas para enfrentamentos da Psicologia hegemnica, que toma os fenmenos humanos
pelo vis biologizante ou naturalizante, negando as mltiplas determinaes que os geram
e os fazem perpetuar; 3) afirmam reiteradamente que o desenvolvimento humano (normal e
especial) histrico-social e, em decorrncia, defendem rigorosamente propostas de
humanizao e transformao de prticas sociais com vistas ao pleno desenvolvimento das
funes psicolgicas superiores que compem a conscincia; 4) discutem e analisam a
constituio histrica do sujeito e sua vinculao com o processo de escolarizao, tendo
como norte a defesa da apropriao dos conhecimentos cientficos como instrumentos para
a anlise da realidade objetiva; 5) comprometem-se com uma Psicologia que busque a
transformao e superao do atual modo de produo capitalista, organicamente
excludente. Deste modo, as pesquisas se voltam para uma leitura crtica da realidade,
pautada nos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural elaborada por L. S. Vigotski, A.
R. Luria e A. N. Leontiev, objetivando criar condies para a transformao da prxis
psicolgica e pedaggica e, consequentemente, da sociedade.
Palavras-chave: Psicologia Histrico-Cultural; Psicologia marxista; prxis psicolgica;
educao para a humanizao.
Abstract. All work done by Brazilian teachers researchers, involving students in the
Undergraduate and Postgraduate Diploma in Psychology whose founding characteristics
are the following: 1. The Historical-Cultural Psychology, analyzed from its Marxists
philosophical foundations, is taken as one element of Critical Psychology; 2. Discussion of
theoretical and practical possibilities for coping Hegemonic Psychology, which naturalizes
human phenomena by biologizing bias; 3. Repeated affirmation of human development
(normal and special) as socio-historical and statement of proposals for humanization and
transformation of social practices with a view to the full development of higher
psychological functions that make up the conscience; 4. Discussion and analysis of the
historical constitution of the subject and its relationship with the schooling process, with
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the north to defend the appropriation of scientific knowledge as tools for the analysis of
objective reality. 5. The commitment to a psychology that seeks to transform and overcome
the current capitalist mode of production, organically exclusionary. Thus, researches are
turning to a critical reading of reality, based on the assumptions of Historical-Cultural
Psychology developed by Vigotski, Luria and Leontiev, aimed at creating conditions for the
transformation of psychological and pedagogical praxis.
Keywords: Historical-Cultural Psychology, Marxist Psychology, psychological praxis,
education for humanization
Introduo: Por que a Psicologia Histrico-Cultural pode ser considerada uma
vertente da Psicologia Crtica?
Iniciaremos este texto buscando elementos que explicitem a base terica sobre a qual se
assentam os trabalhos de autores da Psicologia Histrico-Cultural, ou seja, o materialismo
histrico-dialtico e o conceito de crtica nesta vertente terica, para, em seguida, expor os
pressupostos fundantes das prticas em psicologia educacional encaminhadas.
De acordo com Duarte (2000), o mtodo adotado por Vigotski dialtico porque a
apreenso da realidade no ocorre de forma imediata, no nvel da aparncia; o
conhecimento se d pela mediao do abstrato, buscando a essncia dos fenmenos, e no
sua aparncia. Neste sentido, cabe retomar as ideias de Vigotski (1996) quando ele afirma
que [...] o conhecimento cientfico tem que se libertar da percepo direta (p. 285) e ainda que [...] a base do conhecimento cientfico consiste em sair dos limites do visvel e buscar seu significado, que no pode ser observado (p. 289) de modo direto e sem mediaes que explicitem as mltiplas determinaes que geram e mantm os fatos ou
fenmenos (tomados como objetos). Cabe, portanto, ir essncia dos fatos estudados, como
afirma Duarte (2000), o que implica em ir essncia da prpria realidade objetiva, s
relaes sociais.
Esse entendimento tem subsidiado o nosso trabalho na formao de psiclogos no
curso de graduao em Psicologia na Universidade Estadual de Maring (Estado do
Paran/Brasil), as atividades voltadas formao continuada de professores (da educao
regular e especial) e de outros profissionais das reas da educao e da sade, por meio de
cursos e de assessorias vinculados ao governo federal do Brasil1, ao governo do Estado do
Paran e aos governos de vrios municpios deste estado (como Maring, Cascavel,
Cianorte, Campo Mouro, Lobato, Paiandu, entre outros). Tambm tem norteado nossa
atividade de docncia em nvel de ps-graduao, seja junto ao Programa de Ps-
Graduao em Psicologia (PPI/UEM Mestrado) 2, como em curso de especializao latu sensu intitulado Especializao em Teoria Histrico-Cultural, ofertada pelo Departamento
de Psicologia (DPI/UEM), que j conta com seis turmas concludas e at o momento parece
ser o nico no pas.
1 Houve a participao em cursos de formao docente e de especializao promovidos pelo Ministrio da
Educao (MEC), sob os ttulos Deficincia Sensorial Auditiva e Educao Escolar Indgena e Atendimento
Educacional Especializado, respectivamente. 2 Para informes consultar o site www.ppi.uem.br.
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Temos exposto, portanto, nas atividades formativas que o psiquismo do homem em
sua singularidade, de acordo com Duarte (2000), s pode ser entendido a partir do conceito
de totalidade, levando-se em conta as contradies que permeiam as relaes sociais. Neste
sentido, uma psicologia crtica considera que a questo do mtodo de anlise
fundamental, pois, como afirma Vigotski (1996, p. 389), a [...] possibilidade da psicologia
como cincia , antes de mais nada, um problema metodolgico. A dialtica marxista deve guiar a forma de compreender os fatos, pois considera-se que A dialtica abarca a natureza, o pensamento, a histria: a cincia em geral, universal ao mximo. (Vigotski, 1996, p. 393). Por meio deste mtodo possvel negar alguns fatos, buscar sua superao e
chegar a novas snteses.
Em outras palavras, situando-nos no campo da Psicologia, procuramos demonstrar
nas atividades que realizamos que os fatos que se apresentam nas escolas, nas unidades de
sade, Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS)3 e em outros espaos sociais,
precisam ser explicados, compreendidos e ter a interveno dos profissionais de modo a
impactar positivamente desvelando e transformando a prtica instituda. Isso s pode se dar,
a contento, com o respaldo de uma teoria e um mtodo explicativos de como o ser humano
se constitui em intrnseca relao com seus pares, com o mundo, em relao dialtica portanto, histrica. Consideramos que essa opo terico-metodolgica para a Psicologia,
enquanto cincia e profisso, constitui-se como crtica.
Nesta linha de pensamento, importante destacarmos a historicidade que permeia o
estudo dos fatos na Psicologia Crtica. Apoiando-nos em Shuare (1990), poderamos
afirmar que a psiquismo humano tem uma origem histrico-social e todos os fatos devem
ser estudados levando-se em conta a historicidade. O tempo, nesta perspectiva, tem o
significado de tempo histrico.
Para a autora,
[...] os processos psquicos no se desenvolvem no tempo isolados de suas
prprias caractersticas intrnsecas, como esse tempo que atua sobre uma
semente e que constitui a espera, o prazo necessrio para que as estruturas
internas implcitas se manifestem; no o tempo de maturao, como
habitualmente se entende, por exemplo, com respeito as estruturas
fisiolgicas que, aparentemente, contm em seu germem aquilo que sero,
uma vez que transcorra o tempo correspondente. (Shuare, 1990, p. 59)
O tempo, por esse modo, refere-se ao processo de desenvolvimento da sociedade.
Assim, assumir o historicismo, de acordo com Shuare, leva a uma segunda proposio: a
psique humana possui um desenvolvimento histrico e uma intrnseca relao de
dependncia essencial para com os fenmenos psquicos, com respeito vida e atividade
social. Para a autora, o desenvolvimento humano deve ser compreendido a partir da
atividade produtiva, das relaes que os homens estabelecem entre si e com a natureza. O
homem se torna, conforme tambm explicita Saviani (2005), com base em Marx, a sntese
das relaes sociais.
3 Para maiores informaes ver o site http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras .
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Vigotski (1996, p. 368) afirma que [...] cada pessoa em maior ou menor grau o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, j que nela se reflete a totalidade
das relaes sociais., portanto, uma psicologia crtica tem que compreender que o desenvolvimento do psiquismo est atrelado s relaes sociais, que so relaes de classes
sociais antagnicas e estabelecidas em determinados momentos histricos. Isso nos leva a
reconhecer que o social, em Vigotski, no implica apenas a reunio de pessoas em interao
entre si, mas refere-se a indivduos em processo de humanizao em conformidade com as
condies objetivas postas a cada poca, sociedade e classe social.
Shuare nos oferece, ainda, uma terceira proposio: a psique humana mediatizada e
as funes psquicas superiores so o produto da prpria interao mediatizada pelos
objetos criados pelo homem. Todo comportamento humano mediado por instrumentos e
signos, conforme veremos no decorrer deste texto.
O trabalho, compreendido como transformao da natureza, a fonte de mediao
universal. Segundo Engels (1986), o trabalho foi responsvel pela criao do homem, ele
a condio fundamental de toda vida humana, da ser tomado como atividade vital. Para
suprir suas necessidades bsicas e as criadas posteriormente, o homem trabalha, isto ,
transforma a realidade e, desta forma, tambm se transforma a si mesmo. Ao criar
processos e meios para retirar da natureza a sua sobrevivncia, ele cria sua prpria
humanidade e humaniza a natureza. O homem, diferentemente dos animais, no repassa s
novas geraes apenas as marcas genticas, mas, pelas mediaes estabelecidas, repassa
tambm experincias e produtos, para dar continuidade ao processo civilizatrio. Ele ,
pois, ao mesmo tempo sujeito e objeto das relaes sociais que cria e reproduz; sendo
produto da sociedade, tambm quem a produz. Ser criador e criatura (produto) constitui
uma relao dialtica e histrica. Enfim, cada progresso adquirido pelo homem significou,
assim, um avano no domnio da prpria natureza.
Vigotski compartilha das concepes de Engels sobre o trabalho humano e o uso de
instrumentos como meios pelos quais o homem, ao transformar a natureza, transforma-se a
si mesmo, isto , transforma a sua prpria conscincia. Para Marx e Engels (1846), a
conscincia do homem est determinada pelas condies materiais de vida e pelas relaes
sociais de produo. Desta forma, mudanas histricas na sociedade e na vida material
produzem modificaes na natureza humana, isto , na conscincia e no comportamento
dos homens.
Marx, assim como Engels, concebe o trabalho como a caracterstica fundamental do
homem. De acordo com Vigotski (2001b, p. 43), desde que se tornou possvel o trabalho
na acepo humana da palavra, ou seja, a interveno planejada e racional do homem nos processos naturais com o fim de reagir e controlar os processos vitais do homem e a
natureza, desde ento a humanidade se projetou um novo degrau biolgico [...] que diferencia o ser humano dos animais. a partir do trabalho que o ser humano, ao
transformar a natureza, constitui-se como tal, construindo a sociedade e fazendo a histria.
Para Marx & Engels (1846, p. 39),
[...] o primeiro pressuposto de toda existncia humana e, portanto, de toda
histria, que os homens devem estar em condies de viver para poder fazer histria. Mas para viver, preciso antes de tudo comer, beber, ter
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habitao, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histrico ,
portanto, a produo dos meios que permitam a satisfao das necessidades,
a produo da prpria vida material.
De acordo com Facci (2004), no processo de trabalho o homem tem produzido sua
histria. Quando se satisfaz a necessidade de subsistncia por meio de instrumentos
elaborados pelos prprios homens, essa satisfao conduz a novas necessidades. Desta
forma, para a autora, o homem est em processo constante de transformao da natureza e
de si prprio, sempre com carncia de suprir necessidades materiais e intelectuais, e a
formao do psiquismo humano ocorre na coletividade, por meio da apropriao da cultura.
A apropriao dos bens culturais e materiais provoca a superao das limitaes
postas pelo desenvolvimento biolgico. O processo de humanizao ocorre quando o
homem desenvolve as funes psicolgicas superiores tipicamente humanas, tais como abstrao, planejamento, memria lgica, entre outras que o diferenciam dos animais.
Leontiev (1978, p. 70) afirma que o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condio primeira e fundamental da existncia do homem, acarretaram a transformao e a
humanizao do crebro, dos rgos de atividade externa e dos rgos do sentido. O trabalho, para esse autor, caracterizado pelo uso e fabrico de instrumentos e por se efetuar
em condies de atividade coletiva. De acordo com Vigotski (1995, p. 85), a cada etapa determinada do domnio das foras da natureza, corresponde sempre uma determinada
etapa do domnio da conduta, na subordinao dos processos psquicos ao poder do
homem.
Para efetivar este domnio sobre a natureza, o homem no s produz ferramentas, mas
tambm introduz neste processo estmulos artificiais, como, por exemplo, os signos. Estes,
num primeiro momento, atuam em nvel externo, mas com a gradativa internalizao,
produzem novas conexes no crebro.
Nesta mesma linha, Markus (1974) tambm esclarece que o carter da conscincia e
do conhecimento humano s pode ser compreendido a partir do trabalho, que conduz
satisfao das necessidades no de um modo direto ou imediato, como o faz nos animais,
mas sim, de forma mediada. Esta mediao se apresenta em Marx, segundo o autor, de duas
formas: 1) como instrumento de trabalho que o homem insere entre ele mesmo e o objeto
de sua necessidade; e 2) como atividade de mediao, o prprio trabalho, que antecede e torna possvel a utilizao do objeto (p. 51). Assim, para o homem, a atividade produtiva pressupe um instrumento de trabalho elaborado, que transforma gradativamente o
ambiente natural em ambiente humano ou civilizado, um ambiente no qual se objetivaram as necessidades e capacidades do homem (p. 52). Segundo esse autor, ao nascer, o homem
[...] j encontra objetivadas aquelas necessidades e capacidades que se
manifestaram no passado, podendo assim dispor materialmente dos
resultados de todo o desenvolvimento social que lhe antecedeu, to-somente
por isso torna-se possvel que o processo de desenvolvimento no se veja
obrigado a recomear sempre do incio, mas possa partir do ponto em que se
deteve a atividade das geraes anteriores. Apenas o trabalho, enquanto
objetivao da essncia humana, configura de modo geral a possibilidade da
histria. (Markus, 1974, p. 52).
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Como exposto, os estudiosos soviticos Vigotski, Luria e Leontiev buscavam
fundamentos no marxismo para explicar o desenvolvimento do psiquismo, estabelecendo,
como apresentamos na citao de Markus (1974), que o ser humano nasce em uma
sociedade em desenvolvimento, na qual vrios conhecimentos j foram elaborados e devem
ser apropriados pelas novas geraes. A transformao do comportamento e desejo animal
em comportamento e desejo humano (processo de humanizao) se d com base e no
processo de trabalho, o que se apresenta de forma ora explcita ora implcita em toda a obra
desses autores soviticos.
A tese marxista de que o homem, ao transformar a natureza, no s a humaniza, mas
neste processo ele prprio se humaniza - constitui o mundo humano, objetivamente e
subjetivamente a base de toda a formao e desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, conforme Vigotski, Luria e Leontiev; mas para que essas funes se
desenvolvam plenamente, no basta a insero de cada novo membro na sociedade, pois, a
partir do momento em que as sociedades humanas tornaram mais complexas suas
atividades produtivas, tornaram-se igualmente mais complexos seus mecanismos e
ferramentas simblicas que permitem a compreenso da realidade em que os homens esto
inseridos. O desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, como veremos a seguir,
ocorre na coletividade e demanda a mediao instrumental.
Psicologia Histrico-Cultural e o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores
como base para a humanizao
Luria (1981), na tentativa de compreender a estrutura da atividade mental, isto , o
funcionamento do crebro, procurou superar duas vertentes explicativas vigentes na sua
poca: o localizacionismo estreito (pautado na possibilidade de localizar de forma estrita os
mecanismos mentais mais complexos) e a viso holstica. Opunha-se firmemente
compreenso do crebro como um conjunto de sistemas reativos ou esquemas elementares
que incorporam estmulos recebidos do mundo exterior e produzem respostas a estes
estmulos. Tal abordagem, considerada por ele como uma viso mecnica e passiva do
funcionamento cerebral, que tornaria esse funcionamento totalmente determinado pela
experincia pregressa do indivduo, seria inadequada para explicar as funes psicolgicas
superiores, de origem sociocultural.
Luria (1981) prope uma nova abordagem das funes corticais superiores. Por
terem sido formadas ao longo do desenvolvimento histrico e serem sociais em sua origem
e complexas e hierrquicas em sua estrutura, e por estarem baseadas em um sistema de
mtodos e meios culturais, implicando nas formas fundamentais da atividade consciente,
estas formas complexas de atividade devem ser tomadas como sistemas funcionais, o que
altera radicalmente a abordagem do problema da localizao de funes no crtex cerebral.
Para ele, os sistemas funcionais distinguem-se no somente pela complexidade de sua
estrutura, mas tambm pela mobilidade de suas partes constituintes. Alm disso, sua
estrutura sistmica caracterstica das formas complexas de atividade mental, que no
podem ser consideradas faculdades isoladas ou localizadas em reas estritas do crtex.
Luria (1981, p. 16) explicita que as formas superiores da atividade consciente so
sempre baseadas em certos mecanismos externos, apoios ou artifcios historicamente
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gerados, que atuam como elementos essenciais no estabelecimento de conexes funcionais entre partes individuais do crebro, e que por meio de sua ajuda reas do crebro que eram
previamente independentes tornam-se os componentes de um sistema funcional nico. A presena desses vnculos funcionais diferencia o crebro humano do animal, pois eles so
meios historicamente gerados pelos homens para a organizao de seu comportamento que
vo determinar novas relaes entre as partes responsveis pela atividade cortical.
A principal caracterstica que diferencia a regulao da atividade consciente humana
que esta ocorre com a ntima participao da fala. De acordo com Luria (1981), enquanto
as formas elementares de regulao de processos orgnicos e as formas mais simples de
comportamento podem ocorrer sem o auxlio da fala, os processos mentais superiores se
formam e ocorrem com base na atividade de falar, que expandida nos estgios iniciais de
desenvolvimento, mas depois se torna cada vez mais contrada ou internalizada. Assim, a
ao programadora e verificadora do crebro humano realizam-se naquelas formas de
atividade consciente cuja regulao ocorre pela ntima participao da fala como
controladora do comportamento.
Nesse mesmo sentido, Engels (1986, p. 272) afirma que a fala e o trabalho foram os dois estmulos principais sob cuja influncia o crebro do macaco foi-se transformando
gradualmente em crebro humano que, apesar de toda sua semelhana, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeio. Para esse autor, de acordo com cada nova etapa de desenvolvimento da humanidade, do domnio do homem sobre a natureza, que
tivera incio com o desenvolvimento da mo, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do
homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades at ento
desconhecidas. Ele afirma que
[...] o desenvolvimento do crebro e dos sentidos a seu servio, a crescente
clareza de conscincia, a capacidade de abstrao e discernimento cada vez
maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais
e mais o seu desenvolvimento (Engels, 1986, p. 273).
Os instrumentos ou ferramentas utilizados para transformar a natureza, produto da
prtica social, provocaram e provocam o desenvolvimento do funcionamento mental. Luria
(1994), portanto, coerente com a filosofia marxista, considera que as ferramentas no s
geram mudanas radicais nas condies de existncia do homem, mas agem sobre ele
efetuando uma mudana em sua condio psquica. Nas inter-relaes complexas com o
ambiente, sua organizao est sendo refinada e diferenciada: a mo e o crebro assumem
formas definidas e esto em processo de evoluo sries de mtodos complexos de conduta,
objetivando uma adaptao do homem ao mundo circundante e deste ltimo a ele, o
homem.
Neste sentido, para ele, nenhum desenvolvimento, nem mesmo o da criana, nas
condies da sociedade civilizada moderna pode ser reduzido ao desenvolvimento de
processos inatos naturais e a mudanas morfolgicas por eles condicionadas, mas em todo
processo de desenvolvimento incluem-se as mudanas efetuadas nos grupos sociais, nas
formas civilizadas e nos mtodos que ajudam a criana a se adaptar s condies da
comunidade que a cerca. Tais formas de autoadaptao cultural da criana so mais
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dependentes das condies do ambiente no qual a criana foi inserida do que propriamente
de fatores constitucionais.
Estes mtodos e formas de conduta na criana so constitudos, em primeiro lugar,
pelas demandas que lhe faz o ambiente. Estas demandas e condies so precisamente os
fatores que podem ou estancar ou estimular o seu desenvolvimento, pois, ao se exigir da
criana que trabalhe formas novas de adaptao, provocam-se nela sbitas transformaes,
obtendo-se "formaes indubitavelmente culturais", cujo papel fundamental em seu
desenvolvimento (Luria, 1994, p.46). Assim, o comportamento da criana e do adulto em
relao ao uso prtico de ferramentas e as formas simblicas de atividade conectadas com a
fala no so duas ligaes paralelas de ao. A partir da mediao instrumental se forma
uma entidade psicolgica complexa, na qual a atividade simblica dirigida para organizar
operaes prticas por meio da criao de estmulos de ordem secundria e o planejamento
do prprio comportamento. Ao contrrio dos animais superiores, no homem acontece uma
conexo funcional complexa entre a fala, o uso de ferramentas e o campo visual natural, e
sem a anlise desta ligao a psicologia das atividades prticas do homem seria
incompreensvel. A formao da unidade humana complexa de fala e operaes prticas produto de um processo profundamente arraigado de desenvolvimento no qual a histria
individual unida histria social (Vigotski & Luria, 1934, p. 113).
A criana, ao falar como resolve determinada tarefa prtica com o uso de ferramentas,
passa a combinar fala e ao em uma estrutura, e deste modo introduz um elemento social
em sua ao e assim determina o destino da ao e o caminho futuro de desenvolvimento
do seu comportamento. O comportamento da criana ento transferido pela primeira vez a
um nvel absolutamente novo, guiado por fatores que levam ao aparecimento de estruturas
sociais na vida psquica da criana. Assim, a histria inteira do desenvolvimento
psicolgico da criana mostra que, dos primeiros dias de desenvolvimento, sua adaptao
ao ambiente alcanada por meios sociais, ou seja, pelas pessoas que a cercam: o caminho
do objeto para criana e da criana para sua mente passa por outra pessoa (Vigotski &
Luria, 1934).
De acordo com Vigotski & Luria (1934), separando a descrio verbal da ao
(enunciado) antes da prpria ao, a criana socializa seu pensamento prtico, compartilha
sua ao com outra pessoa e por isso a sua atividade entra em relaes novas com a fala.
Ao introduzir conscientemente a ao de outra pessoa em suas tentativas de resoluo de
um problema, ela comea no s a planejar mentalmente sua atividade, mas tambm a
organizar o comportamento da outra pessoa conforme as exigncias do problema, criando
condies seguras para sua soluo. Depois este processo deslocado para seu prprio
comportamento, significando no s a transferncia temporria da fala relacionada com a
ao, mas tambm a transferncia do centro funcional do sistema inteiro. Assim, se em uma
primeira fase a fala segue a ao, refletindo-a, fortalecendo seus resultados e permanecendo
estruturalmente sujeita a ela e provocada por ela, na segunda fase o ponto de partida do
processo se transfere para a fala, que comea a dominar a ao, gui-la e determinar o curso
de seu desenvolvimento, constituindo a funo planejadora da fala, que fixa a direo das
operaes futuras. Destarte, os estmulos autodirigidos de fala mudam no processo de
evoluo de uns meios de excitao de outra pessoa para autoestmulos, reconstruindo
radicalmente o comportamento inteiro da criana (Vigotski & Luria, 1934).
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Estas funes, que, do ponto de vista da filognese, no so produto da evoluo
biolgica do comportamento, e sim, do desenvolvimento histrico da personalidade
humana, so denominadas por Vigotski & Luria (1934) de funes superiores. Isso se deve
ao seu lugar no plano de desenvolvimento: sua histria distinta da biognese das funes
inferiores, sendo considerada sociognese das funes psicolgicas superiores, pela
natureza social de sua gnese. A histria das funes psicolgicas superiores definida
como a histria da transformao de meios de comportamento social em meios de
organizao psicolgica individual.
Durante este processo de "interiorizao", isto , de transferncia interna de funes,
no somente acontece uma reconstruo complexa de sua estrutura e o aperfeioando de
funes separadas no processo de desenvolvimento psicolgico da criana, mas tambm
so alteradas as ligaes intrafuncionais e suas relaes de modo radical. Como resultado
destas mudanas surgem sistemas psicolgicos novos que se unem em cooperao e
combinaes complexas de vrias funes elementares antes separadas. Este conceito de
funes psicolgicas superiores inclui a combinao complexa de atividades simblicas e
prticas, isto , a correlao nova de funes, caracterstica do intelecto humano.
justamente por isso que a atividade humana considerada uma atividade livre, no
dependente de necessidades diretas e da situao imediatamente percebida - ou seja, uma
atividade engrenada para o futuro.
Importncia do Ensino Regular e/ou Especial para a constituio e desenvolvimento
das funes psicolgicas superiores
Ao discutirmos a formao das funes psicolgicos superiores numa perspectiva que
reposiciona o biolgico e o social de modo diferenciado daquele que recorrente nas
concepes hegemnicas na Psicologia as quais criticamos uma questo se apresenta: que relao existe entre a constituio dessas funes e o processo de escolarizao?
Para as concepes que tomam a atividade humana como resultante da herana
biolgica e do processo educacional familiar, a escola se torna espao para expresso do j
existente, daquilo que o indivduo j possui ou do que, lamentavelmente, no possui. Ao
contrrio, ante o posicionamento terico aqui defendido, consideramos que a escola se
constitui em espao para a formao daquilo que no existe mas pode vir a existir, visto que
o contedo escolar provoca a emergncia e o desenvolvimento das funes propriamente
humanas: as funes psicolgicas superiores. A escola, alm de ensinar o contedo
curricular, provoca o desenvolvimento daqueles que por ela passam ou que nela atuam
(com e sem deficincias); ou seja, ela (ou deveria ser) uma instituio provocadora do
processo de humanizao. Ela, obviamente, no a nica instituio promotora deste
processo, porm, como veremos, sua atividade clssica de ensinar assume nele importncia
fundamental.
A escola fundamental para o desenvolvimento humano porque, da mesma forma
que a ao produtiva do homem altera sua constituio biolgica pela criao e uso de
ferramentas, a apropriao de conhecimentos gera processos de raciocnio completamente
novos, bem como novas necessidades de conhecer e raciocinar. Para argumentarmos a esse
respeito preciso, primeiramente, retomar as modificaes que ocorrem do ponto de vista
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do sujeito, a partir da atividade do trabalho humano. Markus (1974) expe trs
modificaes: 1) o mundo objetivo estabelece-se como uma realidade estvel,
independentemente da relao momentnea que se tenha com ele, desaparecendo a fuso
entre sujeito e objeto existente nos animais; 2) a conscincia humana se constitui na
apropriao da experincia histrica da sociedade, visto que os traos essenciais do mundo
objetivo podem ser comunicados a outros indivduos, colocando-os em condio no s de
compreend-lo, mas tambm de utilizar formas comuns de comunicao; 3) a
universalidade da conscincia humana, fixada na linguagem (verbal escrita, oralizada,
sinalizada ou gestualizada), permite a apropriao do mundo em sua atividade material e
tambm espiritual, modificando a sensibilidade humana, lapidando, aperfeioando e
humanizando os sentidos4, ou ainda, formando vias colaterais de desenvolvimento diante de
estados diferenciados pelas deficincias.
Esse processo de apropriao do mundo humanizado est presente no
desenvolvimento ontogentico. Markus (1974, p. 54), afirma:
[...] para a criana, o ambiente humano algo dado, mas no os objetos em sua qualidade humana: esses, enquanto objetos humanos, so apenas
indicados como uma tarefa a levar a cabo. Para que o menino possa entrar
em relao com esses objetos enquanto objetivaes das foras essenciais do
homem, para que possa, portanto, utiliz-los de um modo humano, deve
desenvolver tambm em si prprio as mesmas faculdades e as mesmas
foras. Naturalmente, nesse caso, ocorre um processo que j no mais
espontneo, pois se realiza apenas pela mediao dos adultos e, por
conseguinte, da sociedade, o que explica o tempo inacreditavelmente breve
no qual esse processo pode ocorrer.
Desta forma, apropriar-se de um instrumento significa assimilar uma forma
determinada de agir que contm instrumento e objeto e transforma ou realiza a conexo
entre ambos, fazendo do objeto um instrumento para a satisfao de determinadas
necessidades. Leontiev (1978) afirma, nesse sentido, que o resultado do processo de
apropriao a reproduo, pelo indivduo, das aptides e funes humanas, historicamente formadas. Neste processo em que se transformam as capacidades humanas, so necessrias determinadas conexes e interaes objetivas para que a atividade do
sujeito chegue a cabo, as quais, embora no alterem concretamente os rgos humanos (no
criam novas estruturas ou rgos), podem alter-los funcionalmente. Um olho precisa
deixar de ser apenas um rgo que recebe impulsos eltricos que se transformam em luz,
para ser um rgo que capture a complexidade do mundo humanizado; o ouvido, do mesmo
modo, deve superar seu estado biolgico de capturar ondas sonoras para receber a
linguagem.
A vida societria impe que se realize essa transformao dos rgos biolgicos em
rgos sociais. Nela, as necessidades prticas geram, por sua vez, novas necessidades, e o
processo de humanizao implica justamente o alargamento dessas necessidades,
4 Leontiev (1978) afirma que a linguagem uma forma da conscincia e do pensamento humano. A conscincia s pode existir nas condies da existncia da linguagem; ela a forma histrica concreta do
psiquismo humano.
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complexificando o corpo e a mente. Retomando a questo da escola, esta pode ser
considerada como o espao de transformao do biolgico em social. Podemos dizer,
tambm, que uma das suas funes de maior relevncia na sociedade contempornea diz
respeito possibilidade de apropriao do pensamento terico ou conceitual.
As necessidades que determinam o conhecimento vo se tornando, assim, cada vez
mais numerosas e universais, dirigindo-se totalidade do objeto, da natureza e do homem,
o que conduz constituio do conhecimento cientfico, mas Isto foi possvel devido ao
desenvolvimento da produo material, objetivao do homem e universalizao do
processo de transformao da natureza. De acordo com Markus (1974), a atividade
cognoscitiva do homem resulta de uma complexa atividade de diversos processos parciais.
Refere esse autor que, segundo Marx,
[...] a humanizao dos sentidos suprime a alienao, a absolutizao das vrias atividades parciais de conhecimento; mas, ao mesmo tempo,
aperfeioando as caractersticas das faculdades cognoscitivas humanas,
possibilita a atuao do processo do conhecimento num mbito de relativa
autonomia. [...] Das contradies que eventualmente possam surgir nessa
atividade [...] surgem novos problemas; e a atividade terica e prtica que
busca a soluo de tais contradies, no curso do desenvolvimento histrico,
revela-se capaz de descobrir os limites da atuao parcial do indivduo
singular, de tomar conscincia deles e, portanto, de chegar a conhecer o
objeto em sua real natureza. (Markus, 1974, pp. 68-69)
Sendo assim, a atividade cognoscitiva um processo ininterrupto no qual o
conhecimento vai superando os prprios limites medida que o indivduo toma conscincia
deles, e o pensamento conceitual o mais importante meio de garantir tal ampliao. O
meio natural de existncia, no homem, cede lugar a um meio transformado por ele,
humanizado, produto da atividade humana que o precedeu, e os objetos que o envolvem
desde o incio so suportes material-objetivos, objetivaes da experincia, das faculdades
e necessidades de geraes anteriores. Mas esta faculdade que possibilita a utilizao dos
objetos artificiais no dada na estrutura fisiolgico-biolgica do organismo humano, ela deve ser desenvolvida durante a educao social (Markus, 1974). Assim, pautando-se em Marx, esse autor demonstra que somente o trabalho e a lngua, que exteriorizam os
resultados da produo intelectual enquanto objetivaes das foras essenciais humanas, podem criar a possibilidade da evoluo humana continuada e contnua, ou seja, a
prpria histria, e a condio de acesso a tais conhecimentos s pode ser oferecida pela
escola.
Seguindo este raciocnio, na escola, conforme menciona Facci (2004), a partir da e
para a apropriao do conhecimento cientfico, que o professor deve organizar as atividades
pedaggicas de forma a dirigir o desenvolvimento psicolgico dos alunos. Se as funes
psquicas superiores tm como trao comum o fato de serem processos mediados pelo
emprego de signos como meio fundamental de orientao e domnio nos processos
psquicos, conforme Vigotski (2001), no processo de formao dos conceitos a palavra o
signo que tem o papel de meio na formao de um conceito, tornando-se, posteriormente,
seu smbolo.
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A apropriao dos conceitos cientficos pelo aluno na escola , assim, considerada um
fator primordial para o seu desenvolvimento. No campo dos conceitos cientficos ocorrem
nveis elevados de conscincia dos conceitos espontneos. Vigotski (2001, p. 243) afirma:
O crescimento contnuo desses nveis elevados no pensamento cientfico e o
rpido crescimento no pensamento espontneo mostram que o acmulo de
conhecimentos leva invariavelmente ao aumento dos tipos de pensamento
cientfico, o que, por sua vez, se manifesta no desenvolvimento do
pensamento espontneo e redunda na tese do papel prevalente da
aprendizagem no desenvolvimento do aluno escolar.
O aluno, quando vai para a escola, possui j uma srie de conhecimentos cotidianos
que precisam ser superados pelos conhecimentos cientficos, e Vigotski (2001) esclarece
que ocorre, ento, uma colaborao original entre professor e aluno, a qual promove o
amadurecimento das funes psicolgicas superiores. Essa colaborao o momento
central do processo educativo, pois o momento em que o professor intervm na zona de
desenvolvimento prximo do educando, alterando os conhecimentos espontneos mediante
a apropriao de conhecimentos cientficos transformados em contedos curriculares e
assim provocando um maior desenvolvimento psicolgico.
Formar novos conceitos, para Vigotski (2001), no implica somente em fazer uma
soma de certos vnculos associativos formados pela memria, mas um ato real e complexo de pensamento que no pode ser aprendido por meio de simples memorizao, s
podendo ser realizado quando o prprio desenvolvimento mental da criana j houver
atingido o seu nvel mais elevado (p. 246). Formar novos conceitos implica em fazer generalizaes, em se partir daquilo que para aquilo que ainda no ; significa fazer
transies de uma estrutura de generalizao a outra, partindo de generalizaes
rudimentares para outras cada vez mais elevadas, processo que culmina na formao de
verdadeiros conceitos. Se tomarmos como exemplo a questo do uso do conceito de tempo,
podemos ver a complexidade desse conceito. Se pensarmos na criana pequena que, em sua
tenra idade, comea a ter a noo do que significa o termo amanh, e que vai tornando mais complexo este conceito conforme vai se desenvolvendo, tendo acesso a informaes
de fatos histricos, por exemplo, podemos concluir que o conceito se amplia at que na
adolescncia ou na idade adulta ela possa se perguntar: - O que ser do amanh do Brasil?. Assim, conforme j dito por Markus (1974), as contradies que surgem nas atividades humanas, sejam estas prticas ou terica, vo sendo resolvidas na singularidade
por meio da apropriao de novos conhecimentos que ao mesmo tempo satisfazem
determinadas necessidades e criam outras mais elaboradas.
Como podemos verificar nesse exemplo, os conceitos cientficos no so apenas
assimilados ou memorizados pelas crianas; muito pelo contrrio, eles constituem um meio
mais elaborado da atividade do prprio pensamento do aluno. Quando se inicia um novo
contedo curricular, o aluno apoia-se em um conhecimento espontneo, em princpio, para
fazer aproximaes e generalizao em relao ao conhecimento que est sendo exposto
pelo professor. medida que se apropria de conceitos do tipo superior, como so os
cientficos, estes conceitos influenciaro os prprios conceitos espontneos j
internalizados, constituindo-se, assim, como dinmica e dialtica a relao entre
conhecimentos cientficos e espontneos. Vigotski (2001, pp. 261-262) afirma que existem
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relaes complexas entre os processos de aprendizagem e de desenvolvimento na formao
de conceitos e que a escola determina todo o destino do desenvolvimento intelectual da criana, inclusive do desenvolvimento dos seus conceitos. Afirma ainda que os conceitos cientficos no podem surgir na cabea da criana seno a partir de tipos de generalizao elementares e inferiores preexistentes, nunca podendo inserir-se de fora da conscincia da
criana.
As diversas disciplinas, com os variados contedos curriculares, desenvolvem, de
forma conjunta, a capacidade intelectual dos alunos. O pensamento abstrato da criana, o
raciocnio lgico, o planejamento - enfim, as funes psicolgicas superiores - so
desenvolvidos de forma global, a partir da sistematizao do conhecimento pelo professor,
conhecimento que apropriado pela criana. Segundo Vigotski (2001, p. 326),
[...] existe um processo de aprendizagem; ele tem a sua estrutura interior, a
sua sequncia, a sua lgica de desencadeamento; e no interior, na cabea de
cada aluno que estuda, existe uma rede subterrnea de processos que so
desencadeados e se movimentam no curso da aprendizagem escolar e
possuem a sua lgica de desenvolvimento.
Na realidade, segundo Vigotski (2001), ocorre uma tomada de conscincia dos
contedos ministrados que se constituem numa base comum a todas as funes psquicas
superiores. Para esse autor, todas as funes bsicas envolvidas na aprendizagem escolar
giram em torno da tomada de conscincia e da arbitrariedade. Ele relata que o
desenvolvimento dos conceitos cientficos comea no campo da concretude e do empirismo
e se movimenta no sentido das propriedades superiores dos conceitos, que exigem a tomada
de conscincia e a arbitrariedade. Se voltarmos ao exemplo do conceito de tempo, exposto
acima, podemos dizer que o tempo compreendido pela criana, num primeiro momento,
apenas como uma sucesso de dias: ontem, hoje e amanh. Conforme ela vai tendo acesso
aos contedos curriculares da Fsica, da Matemtica, da Histria, por exemplo, esse
conhecimento aprendido cotidianamente vai se tornando mais complexo, exigindo novas
elaboraes e formando novos conceitos. Para a formao desses novos conceitos, as
capacidades de abstrao e de planejamento e a memria lgica so desenvolvidas, em um
processo dialtico no qual a apropriao de conceitos cientficos provoca o
desenvolvimento psicolgico, e este, por sua vez, propicia uma nova apropriao de
conhecimento, e assim, sucessivamente.
Como em nossa sociedade a escola a instituio mais organizada para transmitir
conhecimento, ela pode provocar o desenvolvimento das funes psicolgicas dos
indivduos a partir da apropriao espiritual do mundo, de acordo com Markus (1974), e quando ela se prope a conduzir o aluno ao pensamento por conceitos, isso os ajuda a obter
um maior conhecimento da realidade, porque
[...] penetra na essncia interna dos objetos, j que a natureza dos mesmos
no se revela na contemplao direta de um ou outro objeto isolado, seno
por meio dos nexos e relaes que se manifestam na dinmica do objeto, em
seu desenvolvimento vinculado a todo o resto da realidade (Vigotski, 1996,
p. 79).
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Com isso, reafirmamos a importncia da prpria concepo de cincia. Como
apresentamos inicialmente, ela deve ir alm daquilo que se apresenta primeira vista ou na
aparncia: deve explicitar e explicar as mltiplas determinaes que concorrem para que se
apresente determinado fato ou fenmeno e o modo como isso se d. Por essa viso
conhecer de fato a realidade no uma questo tranquila em uma sociedade que,
ideologicamente, reserva a uma pequena parcela da populao o acesso ao conhecimento
cientfico e maior parte destina meras informaes.
Duarte (2000) afirma que os homens constroem suas representaes mentais da
realidade a partir das necessidades objetivamente postas pela existncia social, o que
significa que a escola deveria sair de contedos que ficam no plano de categorias simples,
concretas, e elevar o aluno ao plano do pensamento abstrato, organizado, permitindo-lhe
desvendar e compreender o real. Tambm expe que o conhecimento decorrente do
pensamento cientfico a partir da mediao do abstrato no uma construo arbitrria da mente, no o que o fenmeno parece ser ao indivduo, esse conhecimento a captao,
pelo pensamento, da essncia da realidade objetiva (Duarte, 2000, p. 87). Assim sendo, elevar os alunos dos conhecimentos espontneos ao conhecimento cientfico significa
promover o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores de forma a permitir que
eles compreendam a essncia da realidade externa e interna e, a partir desta compreenso,
tenham possibilidade de revolucionar sua prtica social.
Facci (2004) demonstra que o conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, a
cincia, a arte e as diversas esferas da vida cultural podem ser corretamente assimilados
somente por meio dos conceitos, pois, como afirma Vigotski (1996, p. 71) [...] o pensamento em conceitos revela as profundas ligaes que subjazem da realidade, d a
conhecer as leis que a regem, a ordenar o mundo que se percebe com a ajuda de uma rede
de relaes lgicas. Para Vigotski, o conceito, segundo a lgica dialtica, no inclui somente o geral, mas tambm o particular e o singular. Ele resulta de um conhecimento
duradouro e profundo do objeto
Fazendo uma sntese, podemos concluir, com Facci (2004, p. 226), que a funo da
escola seria contribuir no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, haja vista que essas se desenvolvem na coletividade, na relao com outros homens, por meio da
utilizao de instrumentos e signos; levar os alunos a se apropriarem do conhecimento
cientfico atuando, por meio do ensino desses conhecimentos, na zona de desenvolvimento
prximo. Assim, atravs da apropriao dos conhecimentos cientficos que o processo de humanizao dos indivduos pode ocorrer de uma forma mais plena, pois d origem a
formas especiais de conduta, modifica a atividade das funes psquicas, cria novos nveis
de desenvolvimento humano e possibilita uma compreenso mais articulada da realidade.
Essas argumentaes revelam a importncia da escola como agncia de ensino de
contedos cientficos, de filosofia e de artes, para a formao, nos indivduos, da
genericidade em sua forma mais elaborada, com vista elevao destes de um estgio
primitivo a um estado cultural de desenvolvimento. Podemos dizer, ainda, que ao fazermos
esses assinalamentos se evidencia o compromisso tico e poltico de uma Psicologia
comprometida com os rumos da humanidade. Tambm cabe ressaltarmos que esse
compromisso se revela na obra de Vigotski (1997) a respeito da Defectologia sovitica,
quando o autor demonstra que as diferenas biolgicas no impedem os indivduos de
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aprender desenvolver-se. Isso se mostra da maior importncia num momento histrico em
que se defende a incluso de pessoas com deficincia na escola regular, embora esta
continue de m qualidade para todos os alunos de baixa renda. O fator de excluso so as
barreiras socioculturais, que nem sempre so visveis e identificveis primeira vista. Essas
barreiras se perpetuam em escolas e profissionais pouco preparados para a funo clssica
do ensino e se revelam em justificativas e explicaes que remetem ao biolgico ou aos
prprios indivduos e aos seus grupos prximos as razes do fracasso em alcanar um
estgio de desenvolvimento mais complexo.
Em relao a uma boa educao escolar ofertada a todos, a teoria vigotskiana nos
leva a compreender que tanto a conduta humana a ser desenvolvida pelo ensino quanto a
valorao atribuda escola so histrica e socialmente datadas. Ela nos leva tambm a
compreender que os limites podem ser vencidos mediante compensao, isto , pela
elaborao e emprego de estratgias de substituio das funes comprometidas pelas
ntegras, estabelecendo vias colaterais de desenvolvimento, de modo que no haja
obstculos relao do indivduo com o mundo. Sobre o desenvolvimento diferenciado
pela deficincia, podemos ainda dizer que se um indivduo no tem olhos biolgicos para
serem transformados em rgos sociais, possui dedos que precisam assumir a funo de
decifrar a linguagem codificada em Braille bem como os demais estmulos do meio. Desse
modo eles assumem, alm da funo principal de apontar e de apreender, a de capturar
sinais pelo tato. Em outras condies, para a teoria em tela, essa atividade de compensao
se processa do mesmo modo.
Com o exposto queremos dizer que, ao investigar e teorizar sobre o desenvolvimento
diferenciado pela deficincia, Vigotski nos oferece mais elementos para considerarmos que
a escolarizao fundamental para todos e, alm disso, preciso ter como alvo a
coletividade. Todos precisam alcanar a capacidade de apreender o mundo em sua
totalidade e de interpret-lo, para nele atuar e com ele contribuir com um trabalho que seja
socialmente til.
O que vimos expondo sobre aspectos crticos ou pistas alternativas Psicologia nos
estimula a continuar nos estudos da Escola de Vigotski, justamente porque ela busca retirar das mos do destino a causalidade que justificaria os homens a serem o que so, e a
ir para alm do reino das aparncias no propsito de desvendamento do homem social,
daquilo que ele produz e do modo como se reproduz (Barroco, 2007, pp. 20, 21).
Consideraes finais: das possibilidades e impossibilidades de afirmao de teorias
crticas em Psicologia em tempos de ps-modernidade
O desenvolvimento da sensibilidade humana e das funes psicolgicas superiores em sua
plenitude que conduz compreenso do objeto (a realidade) do unilateral-abstrato ao concreto torna o homem rico e profundamente sensvel a tudo (Marx, apud Markus, 1974, p. 65), pois este no tem mais uma relao com o objeto fundada apenas em sua
utilidade; no o v apenas em suas relaes biologicamente significativas, utilitrias, mas
ao contrrio o objeto no mundo sensvel desse homem passa a ser objeto tal como existe,
em si e para si (Markus, 1974).
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Como vimos, nesse processo, novas capacidades intelectuais surgem e se fazem
acompanhar de novas necessidades histricas, como a curiosidade cientfica, as aspiraes religiosas e estticas, assim como da necessidade de realiz-las, tornando-as
cada vez mais universais. Assim, as condies sociais dos indivduos, generalizando-se cada vez mais, permitem a cada indivduo mostrar-se cada vez mais apto a aproveitar
experincias, conhecimentos e riquezas acumulados pela humanidade. (Markus, 1974, p. 88)
Cumpre observar, por outro lado, que esta ideia de carter social do indivduo posta
em Marx, na qual se pautam os tericos da Psicologia Histrico-Cultural, no pode ser
confundida ou compreendida mecanicamente como uma modelao passiva da natureza
humana pelo meio material e social. As formas de comportamento e as ideias se constituem
na e com a atividade humana e durante ela so interiorizadas; portanto, as consequncias
sociais da atividade que modelam e criam o indivduo so definidas mais ou menos
estritamente pela sua situao histrica, sua condio de classe, etc., pois o homem s pode
modelar sua existncia a partir dos materiais que a sociedade coloca sua disposio. A
situao histrica tambm determina em que medida ele poder realizar uma escolha livre e
consciente, dentro dos limites e possibilidades postos socialmente. Mesmo numa poca da maior generalizao da alienao, e por mais estreitos que sejam os limites entre os quais
ele est colocado, o homem cria ele mesmo sua vida a partir dessas matrias brutas. (Markus, 1974, p.90)
Assim, o homem no se submete simplesmente histria, pois a humanidade quem
cria sua prpria histria e, neste processo, transforma sua prpria natureza. O processo
histrico no a soma dos processos externos de socializao em oposio aos impulsos
naturais, mas sim, o processo pelo qual, atravs do trabalho, o homem se forma e se
transforma. A principal caracterstica humana est nessa atividade que modela sua prpria
subjetividade e o coloca num estado constante de movimento do vir-a-ser.
Quando considerada do ponto de vista da sociedade, a histria o crescente processo
de universalizao e de libertao do homem; entretanto, a histria at aqui conhecida vem
significando o aparecimento de indivduos cada vez menos livres e universais e cada vez
mais unilaterais, limitados, abstratos e fortuitos, pois tudo o que o capitalismo moderno realizou com a produo industrial, como o desenvolvimento e ampliao das necessidades
humanas e o crescimento dos meios para satisfaz-las, para a maioria dos homens tornou-se
impossvel ou completamente inacessvel. Para Marx, de acordo com Enguita (1993), no
h nenhum critrio predeterminado de humanidade ou humanizao, mas tal critrio dado
pelas conquistas alcanadas pelo homem - da ser diferente em cada indivduo a realizao
da espcie - enquanto na sociedade capitalista a maioria dos homens tem um complexo de
necessidades no satisfeitas. Segundo o mesmo autor,
[...] A realizao de que se fala a do ser genrico do homem, e a
desumanizao sua perda. No h nenhuma natureza humana abstrata,
natural ou supra-histrica a ser realizada. Trata-se, simplesmente, de
saber se o homem individual se situa altura alcanada pela espcie
ou se, pelo contrrio, se v afastado em massa dela, inclusive se
converte esse afastamento na condio e base dos mais elevados feitos
de sua espcie. (Enguita, 1993, p.157)
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Na sociedade atual temos assistido a um empobrecimento dessa capacidade de
humanizao, pois mesmo a instituio social que tem a funo de transmitir
conhecimentos a escola - tem se deteriorado na sua tarefa, tem ficando merc de teorias que desvalorizam o trabalho do professor - conforme observa Facci (2004) - e colocam a
prtica como fonte de reflexo, em detrimento do contedo. Trabalhar na contramo deste
processo no tarefa fcil, porm, justamente por no s-lo, ainda maior sua importncia
neste momento histrico.
Temos, conforme explicita Moraes (2003, p. 153) celebrado o fim da teoria, priorizando a eficincia e a construo de um terreno consensual que toma por base a experincia imediata; e nessa utopia praticista basta o know-how e a teoria considerada perda de tempo ou especulao metafsica. Desta forma, se neste texto vimos afirmando a necessidade de conceitos cientficos para o desenvolvimento psicolgico,
perguntamo-nos se nossas escolas, quando ficam somente no conhecimento cotidiano, esto
contribuindo verdadeiramente para o processo de humanizao, para uma frente de
resistncia barbrie. O que constatamos a necessidade de enfatizar, no trabalho de
ensino-aprendizagem, a importncia dos conhecimentos mais elaborados (dos conceitos
cientficos) e da prpria prxis educativa para o rompimento deste processo de
naturalizao das relaes sociais de produo capitalistas, de modo a assegurar a
realizao do ser genrico do homem, isto , a constituio plena de suas funes
psicolgicas superiores.
Em nossas atividades de formao de psiclogos, professores e de outros
profissionais, ao adotarmos essa base terica eleita, e diante do exposto e das ideias de
Vigotski (1930), que afirma serem os seres humanos criados pela sociedade em que vivem,
perguntamo-nos: como romper com uma viso biologizante da Psicologia e superar o
divrcio que ainda existe entre uma psicologia objetivista e uma psicologia subjetivista?
Considerando este questionamento e tomando os pressupostos j apontados
entendemos que a Psicologia Histrico-Cultural nos fornece subsdios para alcanar este
objetivo. Como exemplo, todas as atividades encaminhadas na formao continuada dos
professores de Educao Infantil, Ensino Fundamental e Mdio no Estado do Paran
diversos temas foram aprofundados, problematizados, buscando-se a sistematizao de
novas prticas pedaggicas que fujam ao espontanesmo educativo que se respalda em
concepes biologizantes. Temas como: Educao Especial, relao desenvolvimento e
aprendizagem, mediao do professor, implicaes da apropriao do conhecimento
cientfico para o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores; o desenvolvimento
da escrita e matemtica; dificuldades no processo de escolarizao; compreenso dos
distrbios de aprendizagem, dentre outros tm sido exaustivamente explorados a cada ano e
verifica-se a cada novo trabalho um diferencial na atuao dos professores que nos relatam
avanos significativos no desenvolvimento de seus alunos a partir do emprego de
estratgias ancoradas nos pressupostos acima apresentados. Todo o trabalho se respalda na
busca por sistematizar conceitos cientficos abstratos e como estes podem ser instrumentos
para viabilizar uma ao efetiva com crianas e adolescentes expostas ao fracasso escolar e
em estado de vulnerabilidade social, inseridos nas escolas e CRAS, ao esta alicerada na
problematizao da sociedade atual e na busca de meios para transform-la. Alm de
contribuir para a fundamentao terica do trabalho do professor dos diversos nveis de
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ensino, criamos espaos de discusso para que alunos e profissionais da psicologia sob
nossa formao possam analisar o contexto educacional brasileiro, o cotidiano da sala de
aula e buscar, nos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural, ferramenta para superar
uma prtica psicolgica que muitas vezes no contribui para o desenvolvimento cognitivo e
emocional do aluno, pois enfatiza a patologia.
Na graduao, no Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maring,
orientamos os alunos nos estgios curriculares do 5 ano, a desenvolver prticas no
contexto educativo com fundamentos dos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural.
Temas como relao desenvolvimento e aprendizagem, formao de professores, violncia
na escola, orientao profissional, orientao sexual, trabalho coletivo, indisciplina,
avaliao psicolgica das queixas escolares so analisados com base em estudos de autores
da Escola de Vigotski, tais como Vigotski, Luria e Leontiev, assim como autores brasileiros
que pesquisaram temticas afetas a relao Psicologia e Educao a partir deste referencial
terico.
Quanto ao Programa de Mestrado em Psicologia da UEM, nossos orientandos vm
pesquisando temticas importantes no sentido de realizar enfrentamentos de concepes
hegemnicas da Psicologia calcadas na naturalizao e biologizao do desenvolvimento
humano, para serem socializadas e apropriadas tanto por profissionais da rea de educao
e reas afins como tambm por alunos da graduao e ps-graduao. Vrios temas foram
pesquisados tais como: desenvolvimento da ateno voluntria e da memria instrumental,
periodizao do desenvolvimento humano, cegueira, deficincia intelectual, avaliao
psicolgica, desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, queixas escolares,
atividade do professor, superdotao, alcoolismo entre outros assuntos.
Sabemos que este esforo deve ser incansvel diante do quadro que se apresenta em
termos de acirramento da crise econmica mundial e seus desdobramentos na vida de
milhares de indivduos expostos a condies subhumanas, porm temos procurado explorar
diversas frentes de atuao, formao de psiclogos, educadores e pesquisadores.
Como exposto no incio do texto, desde 2004 temos promovido o desenvolvimento
do Curso de Especializao em Teoria Histrico-Cultural. Vale destacar que o nico
curso no Brasil que tem a especificidade de estudos dos fundamentos tericos-
metodolgicos da Psicologia Histrico-Cultural em nvel de ps-graduao. As aulas so
ministradas utilizando como referncia textos clssicos de Marx e autores marxistas, assim
como textos elaborados por autores russos tais como Vigotski, Luria e Leontiev. Foram
formados cerca de 150 alunos no nvel latu sensu, alunos esses com formao em
Pedagogia, Psicologia, na sua maioria, mas tambm alunos da rea de Histria, Msica,
Educao Fsica, Filosofia, Matemtica, Letras, Biologia, entre outras reas. Muitos alunos
que concluram a Especializao vm de cidades da regio de Maring, mas tambm a
Especializao contribui para alunos que estavam cursando, paralelamente a estes estudos,
cursos de Mestrado e Doutorado em outras instituies no Brasil. O foco justamente
oferecer subsdios tericos sobre pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural e sua base
calcada no mtodo do materialismo histrico e dialtico.
Para finalizar, respaldando-nos na citao a seguir, consideramos que as diversas
prticas elencadas visam romper com as amarras ideolgicas da sociedade capitalista e
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procuram avanar na compreenso do objeto da psicologia o psiquismo humano pois implicam em partir do pressuposto de que,
[...] durante perodo histrico determinado no se pode dizer que a
composio das personalidades humanas represente algo homogneo,
unvoco. [...] O carter de classe, a diviso de classes presentes so responsveis pelos tipos humanos. As vrias contradies internas, as quais
se encontram nos diferentes sistemas sociais, encontram sua expresso
acabada tanto no tipo de personalidade, quanto na estrutura do psiquismo
humano de um perodo histrico determinado. (Vigotski, 1930, p. 3)
Nesse perodo, repleto de contradies, uma sociedade que j avanou o suficiente
para suprir as necessidades de sobrevivncia s pode realmente caminhar em direo
emancipao se as relaes entre homens forem transformadas. No tocante sociedade
socialista, Vigotski (1930, p. 9) se posicionava da seguinte forma:
Essa contradio geral entre o desenvolvimento das foras produtivas e a
ordem social que correspondente ao nvel de desenvolvimento das foras
sociais de produo [que j no encontra equivalncia entre foras e relaes
sociais de produo], resolve-se atravs da revoluo socialista e da
transio para uma nova ordem social, em uma nova forma de organizao
das relaes sociais.
O autor ainda elenca algumas mudanas: A coletivizao, a unificao do trabalho fsico e intelectual, uma mudana nas relaes entre os sexos, a abolio da separao entre
desenvolvimento fsico e intelectual, esses so os aspectos fundamentais da transformao
do homem (Vigotski, 1930, p. 11).
Ser que a psicologia est preparada para empreender aes capazes de promover o
desenvolvimento de um homem realmente preocupado com a coletividade? Ser que os
psiclogos, diante de tantas contradies e de um movimento que prima pela defesa de uma
psicologia que naturaliza os fenmenos humanos pelo vis biologizante, medicalizante,
amparada em avaliaes estticas, tm condies objetivas para adquirir a concepo
crtica? Essa viso, sintetizada por Meira (2000, p. 40), parte do princpio de que uma
concepo crtica quando,
[...] tem condies de transformar o imediato em mediato; negar as
aparncias sociais e as iluses ideolgicas; apanhar a totalidade do concreto
em sua mltiplas determinaes e articular essncia/aparncia, parte/todo,
singular/universal e passado/presente, compreendendo a sociedade como um
movimento de vir a ser.
No texto, tentamos trazer pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural que podem
contribuir para a efetivao de uma psicologia crtica, que, em nosso entendimento, pode
ser caracterizada como marxista; mas acreditamos que ainda h muito a fazer em prol desta
concepo. Como contido em Barroco (2007), ao assumirmos um posicionamento crtico
na Psicologia, no fazemos apologia ao pessimismo, mas nos posicionamos em favor da
humanizao do homem com e sem deficincia, em favor do desenvolvimento da
capacidade de anlise do j vivido e de prognstico sobre o devir.
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Posicionamo-nos em favor da acessibilidade escola e, sobretudo, ao conhecimento.
Pleiteamos por uma cincia que de fato se vincule rea da sade explicando como os
homens se humanizam, como as relaes sociais institudas (decorrentes das relaes com a
produo e com o mundo do trabalho) tm relao direta com a constituio e o
desenvolvimento do psiquismo.
Somos, pois, favorveis a uma psicologia que subsidie a escola e outras instituies
em uma prtica sria de ensinar a cincia, a cultura, as artes, dentre outros contedos,
firmando valores positivos para a formao do homem cultural e livre, na contramo de um
movimento mais amplo de negao do pleno desenvolvimento para grande parcela da
humanidade.
Terminamos com Kosik (1976), que no escreve sobre Vigotski nem sobre os
conceitos cientficos, mas afirma que a prxis utilitria imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condies de orientar-se no mundo, de familiarizar-
se com as coisas, de manej-las, mas no proporcionam a compreenso das coisas e da
realidade (p. 14). Desse modo, a escolarizao e o ensino dos conceitos cientficos em si no garantem essa compreenso nem o enfrentamento da alienao; mas se somados a uma
filosofia que seja arma do trabalhador para desvendar a natureza histrica dos fatos,
contribuem, sim, para a compreenso das coisas e da realidade para alm da forma
fenomnica e aparente.
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