Bamboxê Obitikô e a expansão do culto aos orixás (século ......

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  • DOI: 10.20509/TEM-1980-542X2016v223907 Tempo (Niteri, online) | Vol. 22 n. 39. p.126-153, jan-abr.,2016 | ARTIGO

    Artigo recebido em 17 de agosto de 2015 e aprovado para publicao em 13 de abril de 2016.[1]. Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Salvador Brasil. E-mail: [email protected].

    Bambox Obitik e a expanso do culto aos orixs (sculo XIX): uma rede religiosa afroatlntica

    Lisa Earl Castillo[1]

    ResumoLembrado em tradies orais na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em Lagos (frica Ocidental), o nag liberto Rodolpho Manoel Martins de Andrade (Bambox Obitik) um dos personagens histricos mais conhecidos do candombl. Entretecendo tradi-o oral e pesquisa documental, o presente texto reconstri sua trajetria de vida, desde a escravido nos ltimos anos do trfico atln-tico, sua alforria e a relao com Marcelina da Silva, ialorix do terreiro Il Ax Iy Nass Ok. A segunda parte do texto examina suas viagens, tanto a Lagos quanto a outras partes do imprio, com nfase em seu tempo na corte, onde se tornou um lder religioso conhe-cido entre a populao africana de nao mina. O texto tambm analisa seus vnculos com um conhecido morador negro do Rio de Janeiro, o alferes Candido da Fonseca Galvo, popularmente conhecido como dom Ob II, cujo pai era compadre de Marcelina da Silva.Palavras-chave: africanos libertos; religies afroatlnticas; Atlntico Negro.

    Bambox Obitik and the nineteenth-century expansion of orix worship in Brazil: case study of an afro- atlantic networkAbstractNag freedman Rodolpho Manoel Martins de Andrade (Bambox Obitik), remembered in oral traditions in Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro and Lagos, was one of candombls most renowned historical figures. Weaving oral tradition and archival research, the paper traces his path in Brazil. The first part of the paper examines his enslavement in the twilight of the Atlantic slave trade and his relationship to Marcelina da Silva, ialorix of the terreiro Il Ax Iy Nass Ok. Next, the paper addresses his travels to Lagos and different parts of Brazil, placing special emphasis on his time in Rio de Janeiro, where he gained a substantial following as a religious leader among the citys West African (Mina) population. The paper also discusses his link to the alferes (ensign) Candido da Fonseca Galvo, popularly known as dom Ob II, whose father was compadre of Marcelina da Silva.Keywords: African freedmen; Afro-Atlantic religions; Black Atlantic.

    Bambox Obitik et lexpansion du culte aux orixs au Brsil (XIXe sicle): un rseau religieux afro-atlantiqueRsumLaffranchi nag Rodolpho Manoel Martins de Andrade (Bambox Obitik), bien connu dans les traditions orales Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro et Lagos, tait une des personnes historiques plus renomms du candombl. Larticle actuel utilise la tradition orale et la recherche darchives comme la base pour une reconstruction historique de sa vie, en train de retracer son chemin de lesclavage dans les dernires annes de la traite ngrire transatlantique, sa relation avec Marcelina da Silva, prtresse du temple Il Ax Iy Nass Ok, et ses voyages Lagos et diffrentes rgions du Brsil, surtout Rio de Janeiro, o il est devenu un leader religieux entre les africains de nation mina. Larticle aborde aussi sa relation avec lalferes Candido da Fonseca Galvo, populairement connu comme dom Ob II, via son pre, qui a t li aussi a Marcelina da Silva.Mots-cls: affranchis africains au Brsil; religions afro-Atlantiques; Atlantique Noir.

    Bambox Obitik y la expansin del culto a los orichs en el Brasil (siglo XIX): una red religiosa afro-atlnticaResumenNag liberto Rodolpho Manoel Martins de Andrade (Bambox Obitik), recordado en las tradiciones orales en Bahia, Pernambuco, Ro de Janeiro y Lagos, fue uno de los histricos ms reconocidos personajes del candombl. El presente artculo, tejiendo tradiciones ora-les y investigacin de archivo, reconstruye el camino de su vida, desde la esclavitud en Baha en los aos finales de la trata de esclavos en el Atlntico y su relacin con Marcelina da Silva, ialorich de Il Ax Iy Nasso Oka. El texto tambin presta atencin a sus viajes al Lagos y a diferentes partes de Brasil, con nfasis en su tiempo en Ro de Janeiro, donde gan muchos seguidores entre a poblacin afri-cana de nacin mina. El artculo tambin analisa su relacin con el alferes Candido da Fonseca Galvo, popularmente conocido como dom Ob II, cuyo padre fue vinculado Marcelina tambin.Palabras clave: libertos africanos; las religiones afro-Atlntico; Negro Atlntico.

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    R odolfo Manoel Martins de Andrade um dos personagens mais des-tacados da histria do candombl. Babala e sacerdote de Xang, ele mais lembrado por seu nome iorub, Bambox Obitik, e consi-derado um ancestral de um dos terreiros mais antigos da Bahia, o Il Ax Iy Nass Ok, hoje popularmente conhecido como Casa Branca.2 Tambm apa-rece nas tradies orais de terreiros no Recife e no Rio de Janeiro. Nascido no reino iorub de Oy, provavelmente por volta de 1820, foi escravizado j em idade adulta e enviado para a Bahia, mas em poucos anos obteve sua liber-dade. Posteriormente, viajou para diversas provncias do ento Imprio do Brasil, ainda retornando frica. Radicou-se em Lagos, mas voltava sempre ao Brasil. Hoje, tem descendentes nos dois lados do Atlntico.

    Vale notar que o mtodo divinatrio de 16 bzios usado hoje em todo o Brasil, o erindilogun, ou jogo de bzios, frequentemente conhecido, entre os adeptos do candombl, como o sistema Bambox (Beniste, 1999, p. 13; Braga, 2011), enquanto na literatura etnogrfica o papel de Bambox Obitik no perodo de formao das religies afro-brasileiras tem sido frequentemente comentado. Em trabalho recente, apresentei as primeiras informaes histri-cas sobre sua vida, apontando para sua atuao em uma rede de libertos que se estendia da Bahia at Pernambuco, Rio de Janeiro e Lagos (Castillo, 2012). O presente trabalho traz novos dados etnogrficos e documentais que con-tribuem com nuanas importantes para a reconstruo histrica de sua his-tria de vida singular, contextualizando sua escravizao no quadro poltico da queda do imprio de Oy e do fim do trfico atlntico de escravos. O texto tambm analisa suas atividades religiosas no Rio de Janeiro, onde, nas duas ltimas dcadas do sculo XIX, Bambox Obitik atraiu uma comunidade de filhos de santo e clientes. Seu status como lder religioso nessa cidade onde os falantes de lnguas bantus eram muito mais numerosos do que os falantes de iorub demonstra a importncia de nags residentes na Bahia em promover a disseminao do culto aos orixs em outras partes do Brasil. Finalmente, este trabalho aponta para vnculos indiretos entre Bambox e um dos mais conhe-cidos personagens negros do Rio, o alferes Candido de Fonseca Galvo, cujo pai, o liberto nag Bemvindo da Fonseca Galvo, tinha laos com o Il Ax Iy Nass Ok por intermdio da ialorix Marcelina da Silva (Ob Tossi).

    Do cativeiro liberdade

    No h consenso nas tradies orais sobre as circunstncias da vinda de Bambox Bahia. Algumas dizem que ele veio como livre, enquanto outras afir-mam que era escravizado. A documentao confirma esta ltima verso. Seu senhor, Manoel Martins de Andrade, era um imigrante portugus que dividia seu tempo entre Salvador e uma propriedade rural, a fazenda Mut, no munic-pio de Jaguaripe, recncavo da Baa de Todos os Santos. Andrade se aventurava

    2 Em iorub, bamgbose significa aquele que carrega o ose, o machado de duas lminas, uma das ferramentas rituais de Xang (Lima, 1987, p. 71).

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    no trfico interno de escravos, mas ele prprio tinha um nmero relativamente pequeno de cativos. Quando morreu, em 1871, tinha apenas cinco escravos adultos. Nos anos anteriores, uns 15 outros tinham vivenciado o cativeiro sob seu domnio, sendo posteriormente vendidos a terceiros ou alforriados. Um desses foi Rodolfo Nag, batizado no final de 1850, poucos meses antes do fim da participao brasileira no comrcio atlntico de escravos.3

    Embora o desembarque de cativos africanos fosse proibido em 1831, na pr-tica a lei teve pouco efeito. Apenas provncia da Bahia chegaram mais de 60 mil africanos escravizados ao longo da dcada de 1840-1850.4 Diferentemente da regio sudoeste do Brasil, onde as redes comerciais do trfico se organiza-vam em torno dos portos da frica centro-oeste, os mercadores negreiros na Bahia tinham negcios significativos no litoral do golfo do Benim, em cidades como Uid e Lagos. Durante o trfico ilegal, a maioria dos cativos que chegava Bahia era nag (falantes de iorub), aprisionada por guerras regionais rela-cionadas com a queda do imprio de Oy. At 1850, essa nao formava trs quartos da populao africana de Salvador, e seu idioma se tornou uma ln-gua franca na cidade, usada por vrias etnias (Reis e Mamigonian, 2004, p. 80). Quando Bambox atravessou o Atlntico no poro do navio negreiro, bem provvel que muitos dos outros cativos fossem nags como ele.

    Bambox foi batizado em 26 de dezembro de 1850 na freguesia rural de Pirajuia, pertencente a Jaguaripe. O ritual aconteceu em um oratrio particu-lar, na casa do sogro de seu senhor.5 Segundo as regras brasileiras, os africanos tinham de ser batizados em at um ano aps sua chegada, o que indica que Bambox deve ter desembarcado na Bahia por volta de 1849. O registro de seu batismo no oferece muitos detalhes, descrevendo-o apenas como Rodolfo Nag, adulto, mas outros documentos sugerem que a essa altura ele tivesse 20 e poucos anos de idade.6 Junto com ele, dois outros nags, escravos do sogro, tambm receberam o sacramento. Pirajuia tinha poucos habitantes, e os escra-vos formavam uma minoria da populao. Naquele ano, por exemplo, de um total de 143 batismos realizados na freguesia, apenas 21 (15%) eram escravos, sendo a maioria desses pardos. Apenas oito eram africanos: seis nags e dois tapas (nupes).7 A fazenda Mut ocupava a ponta de uma pennsula, e, quando a mar enchia, o acesso era apenas por embarcao.