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Avatar – Descida à Terra de um ser divino. / Nome
genérico das encarnações divinas, que se aplicam,
sobretudo, no hinduísmo, às de Vixnu. /
Transformação, metamorfose de alguém ou de
alguma coisa.
Esta peça inspira-se na Gesta de Asdiwal, mito
indígena da costa canadense do Pacífico, registrado
por Franz Boas em torno de 1895. Conhecida através
de Claude Lévi-Strauss, que dela faz um minucioso
estudo.
__________________________________________
PERSONAGENS
MADRE
NORA
HOMEM
CORO
__________________________________________________________
PRÓLOGO
Rio abaixo e rio acima, a Madre e a Nora caminhavam sua tristeza,
uma ao encontro da outra, dispostas ambas a se reencontrarem
num tempo em que viviam juntas e nada lhes faltava – nem as
alegrias.
CORO – Num mesmo passo caminham / Remoendo o mesmo tempo /
Ruminando a mesma dor. / O tempo é de sofrimento /
A dor é de mal sofrer. / Palmilham campo em seco. /
Passos mortos no silêncio / Repisam chãos de penar.
/ Lá vai a Madre faminta / Lá vem a Nora a chorar. /
Rio abaixo rio acima / Vão juntas vão com ninguém. /
Chora a Madre o filho morto / Pranteia a Nora o
marido. / Maridos já não consolam / A dor de não ter
ninguém. / É viúva a Madre chorando / É viúva a Nora
que vem / Rio abaixo rio acima / Vêm juntas vão com
ninguém.
MADRE – Longo rio das minhas dores / Vivas águas de sofrer. / Chorei
um rio no começo / Chorarei um mar sem fim. / Meus
pés me levavam pra junto / De quem junto me
convém. / Juntaremos nossas dores / Juntarei ao meu
silêncio / O pranto de quem sofrendo / Chora a dor
que já chorei. / Nenhum peixe nestas águas / No rio
morto que eu sei. / Chora a Madre o tempo findo: /
Onde o filho que brotou? / Onde o filho que vingou? /
Onde o pai que semeou? / Ai dores de fim de mundo /
Ai males do meu pesar! / Nenhum braço masculino /
Nem cheiro de homem mais. / Nem amor nem
represália / Nem força nem proteção / Nem posse
nem ousadia / Nem cheiro do homem meu. / Caminha
a Madre perdida / Rio abaixo a procurar / O cheiro do
outro homem / Que gerou de longo amor. / Outra
Madre guarda o sêmen / Que não brotou nem vingou.
/ Outra Madre guarda o cheiro / Do homem que a
Madre fez. / Quero a vida do meu sangue / Quero os
tempos do prazer.
CORO – Num mesmo passo caminham / Rio abaixo rio acima / A Madre
que vem chorando / A Nora que triste vem /
Remoendo o mesmo tempo / Ruminando a mesma
dor.
NORA – Ai dores de fim de mundo / Ai males do meu pesar. / Rio
correndo vou subindo / Rio descendo vou correndo /
Pra juntar ao meu silêncio / O pranto de quem
sofrendo / Chora a dor que já chorei.
CORO – Quando elas eram felizes / Havia peixes no rio. / E caça pelas
montanhas / E homens pra sustentar / O corpo com
mil sabores / E ardores e bem-querer. / Do homem
que lhe supria / Madre pariu homem bom. / O homem
novo crescendo / Buscou leito e muito amor. / Gozou
nos tempos felizes / Partiu pras terras de além /
Levando consigo a Madre / Que nunca ousou
fecundar. / A Madre junto a seu tronco / Via partir o
homem bom. / Repartiu tristeza a gozo / Chorou feliz e
sofreu. / Agora os tempos são outros. / Não há peixe
neste rio / Não há homem no seu leito / Não há leite
no seu peito / Não há filho no seu mundo / Não há fim
pro seu caminho / Não há razão de viver. / Lá vem a
Madre descendo / Rio abaixo dor acima / Buscando a
sombra do filho / Querendo o cheiro da cria / Na
mulher que ele tomou. / La vem a Nora subindo / Rio a
cima em solidão / Buscando a dor que consola / Pois
a dor do mesmo mal. / Uma procura na filha / O filho
que a possuiu. / Outra deseja o encontro / Da
lembrança do prazer / No regaço dessa Madre / Que
gerou sem bem-querer.
Cena I
Madre e Nora encontram-se no meio do trajeto.
NORA – Mãezim: eu vim.
MADRE – Como o rio, viemos. As águas descem, mas não trazem
peixes. Ora são mansas como a frieza de nossas
almas; no outro passo se agitam como o turbilhão de
nossas tristezas. Águas vivas vão descendo para a
morte. Só trazem a morte...
NORA – E agora, mãezim?
MADRE – Eis que nos encontramos no meio do percurso. E agora
paramos, sem saber para onde seguir. As águas,
entretanto, continuam seu curso. E vão para a morte,
como nós...
NORA – Eu quis te ver, mãezim!
MADRE – Porque gerei um filho que te foi fortaleza. Porém, já não tenho
segurança.
NORA – Que será de nós?
MADRE – No solo do meu ventre germinou a semente daquele que te
fez feliz. Da minha madre nasceu o seu braço forte,
porém, o meu peito é fraco e sem vigor. Já não temos
a semente do forte, nem aquele de cuja força ele
nasceu.
NORA – Mãezim: estamos sós.
MADRE – Ao lado daquele que foi meu forte atravessei a última estação
do salmão. Juntos colhemos o fruto do mar, juntos
preparamos o inverno que havia de chegar. Então,
pensamos em ti e naquele que era a nossa semente.
E dissemos: também eles, como nós, tirarão do mar
agora a substância para os tempos maus, porque nós
lhes ensinamos a armazenar. Depois disso, subimos a
montanha, para a estação da caça. E de animais de
pelo e pena encheu-se o nosso alforje: era forte a mão
que zelava por mim. Por isso, com minhas fracas
mãos, colhi as frutas silvestres e os cocos dos altos e
as frutinhas do campo. E com ela completei aquilo que
havia de ser nossa ração nos tempos maus. E
dissemos: também eles terão feito como nós. Pois
outra vez pensamos em ti e naquele que era a nossa
semente. Porque sabíamos que a minha fortaleza
deitara no meu ventre a semente da tua fortaleza. E
quando chegou a estação do peixe candeia, o braço
forte da minha fortaleza soube apanhar do rio aquilo
que nos caberia. Então, como compete às mulheres,
desnudei meu seio e pus-me no trabalho de colher o
óleo, para o comer e para o luzir. E eu sabia que era
também o que fazias. No norte, entre nós, ou ao sul,
entre os teus, nós sabíamos que nada há de diferente.
NORA – Pensamos em ti, também, mãezim. E nele. E quando, com
seios nus, dei força a meus braços para prensar o
peixe e extrair o óleo com que acender a luz no
inverno, eu sabia que era também o que fazias. Eu e a
tua semente, que foi a minha fortaleza.
MADRE – Então vivemos até os últimos dias. Até que foram maus os
tempos. E vimos findar-se o salmão e o óleo e o peixe
candeia. E no nosso alforje já não havia nem os cocos
dos altos, nem as frutinhas do campo. E houve a
fome. Eu vi, com desespero, que com desespero
partia a minha fortaleza à procura daquilo que não
havia de encontrar. Porque um é o tempo de pescar,
outro é o tempo de caçar, e de colher os frutos.
Depois vem, ao final, o tempo do peixe candeia. Mas,
findo o trabalho de prensar o óleo, nós sabemos que
nada mais há de vir. Quando chegou o inverno, pouco
tempo durou a nossa luz. E vimos findar o peixe, a
caça e os frutos. Então sabíamos que nada mais
havia de vir. A não ser a morte. Vi partir meu braço
forte e deixei-me esperar. Sabendo que nada viria. E
compreendi que era também o que fazias. Porque no
norte, entre nós, ou no sul, entre os teus, eu sabia que
nada há de diferente. Olhei as águas do rio e soube
que corriam em vão. Quando se extinguiu a última
chama do nosso óleo, compreendi que era tempo de
sair e que ele nunca mais haveria de voltar. Nunca
mais haveria eu de conhecer o seu sorriso, quando,
ao voltar da montanha, mostrava-me os braços cheios
de animais de pele e pena. E eu corria a aquentar a
água para os seus pés cansados e para a sopa que
seu corpo faminto reclamava. Rio abaixo eu me pus
no caminho, sabendo que estava sozinha. E
compreendi que era também o que fazias rio acima. E
eis que estamos aqui, tão inúteis como as águas.
Inquietas e vivas; mas delas não se tirará alimento...
NORA – Mãezim! (Elas se abraçam em desespero).
MADRE – Quando o fraco se socorre no fraco, próximo está o fim.
NORA – Porém, estamos vivas.
Cena II
Amanhece um novo dia. Abraçadas no mesmo ponto, junto ao rio,
as mulheres vivem o seu pânico diante da fome.
MADRE – E, de repente, ficamos imóveis.
NORA – Mas o rio corre o seu rumo, inexorável...
MADRE – O rio e nós. Ontem, agitávamo-nos como as suas águas. Mas
agora permanecemos imóveis, com medo do menor
gesto. Apesar disso, seguimos nosso curso. Quando
terminará?
NORA – Mãezim: tenho medo.
MADRE – É só o que temos. E fome. Ontem, despedaçamos o último
grão que nos restava. Remoemos a última fécula
perdida nos desvãos de nossos dentes. Hoje, ainda
isso seria um banquete. Já não choraremos por muito
tempo, filha. Nós e o rio estamos vazios de alimento.
Também ele nos contempla e pergunta: de que
valerão? Suas águas correm inúteis; agitam-se
quando tocam as pedras, porque esse é o seu destino
natural. Nós também, quando tivermos de morrer...,
em vão nos agitaremos, num último estertor.
NORA – Mãezim: estou-me lembrando do teu filho... Dos braços rudes
que me apertavam com ternura, quando procurava
deitar em mim a semente do fruto que não houve...
MADRE – Sempre me lembrarei. Ele te teve nos braços, eu o acalentei
nos meus. Era forte no seu choro, ou no trincar dos
dentes no bico do meu seio... Ele era o meu fruto, a
semente da minha fortaleza.
NORA – Quem nos valerá?
MADRE – Em vão te aperto, em vão me estreitas. Procuramos – eu em
ti, tu em mim – aquilo que já não temos.
NORA – Mãezim: eu não quero morrer!
MADRE – É só o que deves. Querer morrer, para que isto termine logo.
NORA – Remoo minha amarga saliva e descubro que quero viver.
MADRE – Crês que te será possível? O rio corre para o seu fim e em
vão se agita.
NORA – Mas a árvore que nos dá sombra permanece de pé. Mesmo
que sequem e caiam suas folhas e se empobreçam
seus ramos, ela permanecerá e sobreviverá.
MADRE – Porque do fundo da terra se alimenta e das profundezas
inalcançáveis alimenta a sua seiva. Mesmo assim, até
quando?
NORA – Enquanto correr o rio a seu lado. Porque o que lhe escapa do
curso inexorável penetra na terra, encharca as
profundezas e faz reverdecer as folhas e fortalecer os
ramos. O rio é feliz porque instila no chão a seiva que
se encachoeirará no tronco desta árvore. Por que
também não somos assim? Dizes que o rio já não tem
alimento. Como? De que vive então a árvore que nos
dá sombra, forte no seu tronco, bela nos seus ramos,
rica na copa de esplendorosas folhas? Um dia ainda
dará frutos...
MADRE – Já não temos raízes. E do céu não nos cairão chuvas de
bendição.
NORA – Mãezim, eu não quero morrer. Por isso, creio. Creio que do céu
poderá vir o pássaro avatar, trazendo no bico um
ramo de vida.
MADRE – Ao norte, entre nós, ou ao sul, entre os teus, quando se
apaga, no inverno, o último lume que queima o óleo
do peixe candeia, o que resta é a fome. A morte virá
depois, cedo ou tarde, com grande sofrimento.
NORA – Mãezim, eu creio que do céu poderá vir o pássaro avatar.
MADRE – Antes, estaremos mortas, porque já não temos fortaleza. Não
há peixes no rio e ontem esmigalhamos na boca o
último grão que nos restava.
NORA – Não, não. Ele virá. Olhemos o céu. Já vês alguma coisa?
MADRE – Contemplais o vazio e acreditas nele. Com que teias teces a
tua loucura?
NORA – Mãezim, então não vês? Ergue teus olhos. Longe, mas aquém
do infinito, há um ponto, mãe! Eu sinto que é ele, mãe!
O pássaro avatar descerá sobre nossas cabeças.
Vês? Ele se move. E parece crescer! Um ponto – é
quase nada. Mas vem!
MADRE – Um quase nada bastaria... Mas já não tenho os teus olhos e,
mesmo aquém do infinito, o que vejo é o infinito.
NORA – Ele vem, mãe! É ele!
MADRE – Estás certa que é um ponto? Que se move?
NORA – Mãe: ele vem, olha! Há de trazer no bico um ramo de vida!
MADRE – Não te basta acreditar num quase nada. Olhas e já esperas
que seja tudo.
NORA – Mas agora, mesmo tu podes ver!
Cena III
No mesmo sítio em que caíram desfalecidas, as mulheres recebem
socorros do Homem, surgido ali. A Nora é a primeira a reconfortar-
se, do caldo quente que lhe oferece. Retorna a si nos braços dele.
NORA – Avatar! Eu sabia que vinhas...
HOMEM – Está quieta. Não deves desperdiçar um único suspiro, pois
quase nada te restou.
NORA – Avatar, meu destino!
HOMEM – Descansa. (Percebe a Madre que se agita). Agora é ela que
torna. Vai ser preciso pô-la tranquila.
MADRE (Voltando a si) – Então, não terminou ainda? Quando será o
último fim?
HOMEM – Paz, mulher. Não te deves inquietar. Lembra que há tempos
felizes sobre a Terra.
NORA – Mãezim: é avatar! Eu te disse que via.
MADRE – Caíste do céu, como um pássaro negro?
HOMEM – Poupa as perguntas para depois. Agora, descansa. Aproveite
a calma de estares viva.
MADRE – Pode alguém estar calmo estando em vida? Vês os meus
braços? São fracos e brutos. Foram doces nas
ternuras primeiras e no afago do que nasceu depois.
De onde agora arrancar a força para mantê-los vivos?
HOMEM – Acalma-te. Vim para ajudar.
NORA – Ela sofre. Delira na sua fraqueza.
MADRE – Ou deliras tu, na crença que te alimenta? Acaso não é isso
apenas um novo sofrimento, antes que chegue o fim?
HOMEM – Que ambas sosseguem. Nada há a temer. Quando cheguei,
receei que estivessem mortas. Mas fiquei feliz de ver
que lhes sobrara ainda um raro sopro de vida.
(Estendendo a vasilha de caldo à velha). Queres
um pouco mais? (A velha bebe receosa, em
silêncio. Depois, passa a vasilha à Nora, que a
toma com sofreguidão. No longo intervalo, eles se
examinam uns aos outros).
MADRE – E..., depois?
HOMEM – Explica o que te inquieta.
MADRE – Estamos vivas. Por quanto tempo mais? Terá valido o
alongar-se um pouco o tênue fio de vida que nos
resta? O rio corre o seu curso e não há peixes nas
suas entranhas. Na sombra desta árvore podemos
repousar mais um pouco, porém não temos seiva
dentro de nós, nem raízes para arrancá-la do chão.
Por quanto tempo ainda estaremos assim, antes que
conheçamos a escuridão?
HOMEM – De onde viestes?
MADRE – Do norte e do sul. Pelo caminho do rio, desci, sabendo que
ela subia: era a mesma a nossa desgraça. E tu?
Caíste do céu como um pássaro negro? (Ele sorri).
HOMEM – Sossega. Julgas que quando a Terra dorme também estejam
mortas as suas entranhas? A sombra que cai sobre ti
provém do fundo da Terra. Pois de lá sai a seiva que
sustenta o tronco e as folhas que se põem entre ti e o
sol. Sabes por que está viva esta árvore, quando tudo
ao redor parece morto? Porque ela conhece o
segredo dos fundos: penetra-os com suas raízes,
suga-lhe a substância e reina na sua majestade.
NORA – Não te dizia mãe? Não é apenas para a morte que caminha o
rio. Não é dele que é feito o mar? E não é no mar que
vive o salmão, que aprendemos a comer nos tempos
de fartura? E onde se esconderá o peixe candeia
durante o inverno, para que então povoe estas águas
e nos ofereça a sua carne e o óleo, antes que
cheguem os tempos piores?
MADRE – Por que te excitas tanto, mulher? Irrita-me com tua juventude
inquieta.
NORA – E tu? Queres consumir-me na tua desesperança. És velha!
MADRE – Não foi a ti que busquei, mas o cheiro de meu filho que havia
em ti. E tu, por que me procurastes?
NORA – Não foi a ti, mas a lembrança. Foi o cheiro de teu filho que
ainda havia em mim que me ordenou que te
buscasse. Mãezim!
MADRE – Basta que um pássaro recaia do céu para que te ponhas
nesse estado. Irrita-me com tua juventude inquieta.
NORA – Mas ficarás junto de mim, porque sabes que Avatar nos
ensinará o caminho para o alimento. Reclama de
estares viva porque, no fundo, é de morrer que te vem
o medo.
MADRE – Cala!
NORA – Porque te dói que eu fale. Contempla o céu, velha; nenhum
pássaro cairá para ti. (Elas dão-se conta de que o
Homem desapareceu. Sobressaltam-se com o
mesmo ímpeto).
MADRE – Mas onde está teu Avatar que nos abandona?
NORA – Avatar! (Elas caem no silêncio do medo). Foste tu! Foste tu,
velha abjeta, que o espantaste com teu medo e teu
horror. Olha-me bem: sou bela ainda. Por mim, ele
teria ficado. Velha!
MADRE – Quem, agora, nos ensinará o caminho do alimento? (Surge o
Homem, de repente, vindo do rio. Traz nas mãos
dois peixinhos ainda vivos. Elas pasmam).
HOMEM – Olhai. São tenros e novos. É preciso ir buscá-los nas tocas
mais fundas, nos cantos das águas. É lá que se
esconde a vida dos rios, nos tempos do inverno.
Cena IV
A velha dorme quietamente. A Nora e o Homem olham-se
longamente, enquanto vem a noite. É difícil romper o inquieto
silêncio.
NORA – Avatar!...
HOMEM – Por que me dás esse nome estranho?
NORA – Porque acreditei que viesses.
HOMEM – Sabes de onde vim?
NORA – Do meu destino.
HOMEM – És bela!
NORA – És sábio e manso e bom. Como a noite que vem chegando.
HOMEM – Também acreditas que venha a noite?
NORA – Como vieste.
HOMEM – Não temes?
NORA – Sinto de ti uma estranha fortaleza, que me protege.
HOMEM – Porque sabes que eu te amo.
NORA – Sentes a noite que chega? Tenho na minha pele o frescor de
seu orvalho. É bom.
HOMEM – É em ti que está o refrigério. Na tua pele vem a noite buscar
o seu frescor. Tu o destilas com o calor da tua alma
jovem e boa. És bela.
NORA – Como eu te vejo bonito na noite que chega! Nas minhas
entranhas remoem-se mil inquietudes e sei que elas
vêm de ti. Não quero estar quieta. E nem ouso mexer-
me. Ou tocar-te.
HOMEM – Vejo-te como a lua. Longínqua e próxima. Iluminas a minha
noite, porque és bela.
NORA – Ouço-te como ao rio: vem-me de ti um murmúrio constante.
Nem é preciso que te veja para saber que estás aí. E
tu me ensinas que nas tocas mais fundas escondem-
se peixes miúdos e tenros. És com como o rio.
HOMEM – Mas é em ti que encontro o refrigério. És doce como o rio. De
ti provém a minha calma desta noite.
NORA – Avatar! Tenho um grande fogo a queimar meu espírito e sei
que esse fogo é teu. Mas estremeço por fora e me
arrepio, gelada. E sei que esse frio é a tua falta.
HOMEM – No entanto, aqueces-me desde que eu te veja. A fresca lua
da noite é também o sol do meu dia. És bela é mansa
e boa.
NORA – Sabes de onde vim?
HOMEM – Do meu destino Avatar!
NORA – Avatar, meu destino!
HOMEM – Avatar, meu amor! (Eles se tocam e se entregam. E pelo
resto da noite serão só uivos e gemidos e vagos
sons de amor).
Cena V
Amanhece. A jovem e o Homem dormem num resto de abraço da
noite de amor. A velha começa a acordar.
MADRE – Filha! Filhim... (Senta-se ressequida). Que estranho silêncio
é estar vivo. O repouso não cabe mais neste corpo
seco. (Levanta-se e caminha vagamente. Depara
com o casal. Emite um grande uivo. A Nora e o
Homem acordam, em sobressalto). Já não há mais
em ti o cheiro de meu filho! Maldição para Avatar! (A
velha corre para o rio e começa a lavar-se, em
desespero).
NORA – Lavas-te de tua velhice? É o cheiro que tanto estimas.
MADRE – Recaem sobre mim as tuas imundícies. Filho! Filhim! Vês?
Sou tua mãe ainda! (Ela uiva terrivelmente).
HOMEM – Por que te desesperas? Antes, abençoa o nosso amor.
MADRE – Na calada da noite, para que eu não soubesse! Caíste do céu
para a traição! Filho! Filhim! Assassinaram-te!
NORA – Como lamenta o não poder ter sido contigo, velha! Olha para o
teu desespero e compreende. Temes que eu te
abandone, é apenas isso.
HOMEM – Mãe! Abençoa o teu novo filho.
MADRE – Que mais esperarão de mim os assassinos da minha
lembrança?
HOMEM – É a tua solidão que temes, mãe. Nós te amaremos sempre.
MADRE – Por que me tiraste das mãos da morte, se pretendias
assassinar-me? Não vês que é demasiado cruel?
HOMEM – Ouve teus gritos, mãe. É porque estás viva que os tens. Por
que julgar, na insanidade, que te assassinamos?
NORA – Deixa-a que morra, então. Já não estava morta quando partiu
ao meu encontro?
HOMEM – Não reconheço em ti tamanha impiedade.
NORA – É dela que vem. Perdoa Avatar! Mas até quando terei de
suportar seus gritos?
MADRE – A minha loucura é filha da tua loucura. Maldição!
NORA – Avatar!
MADRE – Mataste em ti o que restava de meu filho. Maldita seja a
minha solidão.
HOMEM – Olha ao teu redor e vê que estamos contigo. De que solidão
te queixas? Acalma-te e vem comer. (Ele senta-se e
tira do alforje pão e peixe. Com calma, reparte-o
em porções a cada uma das mulheres, depois de
tomar a sua. A jovem precipita-se a sentar-se ao
seu lado. A velha hesita, mas aproxima-se,
fascinada pelo pão. Até que o toma e senta-se do
outro lado do Homem. Em silêncio, eles iniciam
uma longa mastigação. As mulheres olham-se
com estranheza. O Homem sorri para elas. Nesse
clima, desenrola-se o ritual do comer. A velha vai-
se animando, a jovem descontrai-se. A velha sorri
em troca. O Homem ri. A velha e a jovem riem
também. E comem e riem, em silêncio, até o final
da cena).
Cena VI
A velha prepara o caldo e soca ao pilão. Junto ao rio, o Homem e a
jovem detêm-se em pequenos mistérios.
HOMEM – Vês? É a surpresa dos pequenos recônditos. Onde o rio
escava pequeninas grotas úmidas, eles aparecem e
vivem mesmo durante o inverno. São fungos. Como
eles, se pode preparar um excelente manjar.
NORA – E eu julgava que o rio estivesse morto por estes tempos.
HOMEM – Muita coisa se esconde sob mistérios semelhantes. Há os
pequenos peixes nas tocas profundas, há os fungos...
(Ela apanha um fungo e o contempla, extasiada).
NORA – E há nisso tudo tanta beleza! Pode-se comer isto assim? (Ela
vai levá-lo à boca, ele a detém num grito).
HOMEM – Não! Desses, não. Nem podes imaginar o veneno que trazem
escondido. Não comas nunca desses fungos. Quebra-
os, antes, para prová-los, e vê de que cor é a
pequenina seiva que deitam. Livra-te dos que a têm
amarela ou parda. São mortais. E misturam-se aos
outros, de que é branco o leite que brota de seu
âmago.
NORA – Sinto um medo terrível. Então, destes pequeninos mistérios
pode também provir a morte?
HOMEM – Porque em tudo se esconde o inimigo. É preciso reconhecê-
los. Toma este outro: é branca a seiva. Prova-o, que
tem bom sabor. (Ela apanha-o em sua mão, mas
não ousa levá-lo à boca. Olha para o Homem, com
um pavor indeciso). Temes que te faça mal?
NORA – Que estranho mago és tu, Avatar, devassador dos mistérios?
De onde vens, afinal, que à tua vontade tudo se
submete?
HOMEM – De onde vem, agora, o teu temor?
NORA – Bastaria que me ensinasses o contrário e minha morte estaria
outra vez em tuas mãos. Como tem estado a minha
vida.
HOMEM – Já não te entendo...
NORA – Entendes mais do que mo dizes. Tanto quanto conheces os
mistérios dos fungos e os esconderijos dos pequenos
peixes. Avatar: quem és?
HOMEM – Não mo perguntastes na noite em que nos amamos. E nem
nas noites que vieram depois, em que novamente o
amor tomou conta de nós. Por que te espantas agora,
justamente quando te ensino um pequeno mistério a
respeito da morte?
NORA – Tudo o que temos, tem vindo de ti e das tuas façanhas. Num
tempo em que todas as coisas morrem, pudeste
mostrar vida no fundo das coisas. De uma estação em
que os homens perecem, escapaste vivo e sem temor.
Quando quiseste, tu me arrebataste a alma e o
coração. E até o ódio velho e ressentido da Mãe foste
capaz de aplacar e transformar em calma e
consentimento. Quem és Avatar?
HOMEM – Tu me deste o nome que te convém. Pois não sou Avatar?
Vim do teu destino, como vieste do meu. Já não me
crês?
NORA – É o que mais me pergunto. E quando respondo que ainda
creio; receio perguntar por que hei de crer.
HOMEM – Já não me amas?
NORA – Conheces os mistérios de meu corpo e desvendas as
escurezas da minha alma. Tu sabes que te amo.
HOMEM – E eu? E eu? Avalias quanto te amo?
NORA – És sábio demais, és forte em demasia. Parece-me que não
precisas da fraqueza do amor. Amo-te, sim. Mas
grande é o meu receio. Porque sinto, no meu amor
por ti, um pavoroso gosto de submissão. E se eu não
te amasse, tu mo consentirias? Até onde o meu amor
é meu por ti, ou de mim, arrancado por ti?
HOMEM – Que queres que eu te ensine mais? Que nas covas fundas
dos pequenos peixes habitam cobras? E que perigoso
é enfiar-lhes as mãos nos recantos sombrios do rio?
Que os frutos daquela árvore são daninhos, mas suas
folhas alimentam o boi?
NORA – Jamais conheci este estranho pavor. E sei que ele vem de ti.
Mãezim! (Ela corre para a velha, que soca ao pilão,
como um autômato).
MADRE – Espera mais um pouco. O caldo não está pronto e falta-me
amassar o peixe. Tens fome?
NORA – Mãezim: tenho medo!
MADRE – Estás cansada. Cedo terminará o inverno.
NORA – E depois? Quando voltar o tempo do salmão, desceremos o rio
e iremos ao mar? Quem pescará para nós? Quem se
atreverá nas ondas de alto mar? Não te lembras que
somos fracas?
MADRE – Confia em Avatar.
NORA – Pois é isso o que mais temo mãe! Quem se apiedará de nós se
já não o tivermos? E que será de nós se já não o
quisermos?
MADRE – Já não sentes o mesmo amor, não é, filha?
NORA – Maior do que sempre. Mas não entendes? Estamos nas mãos
daquele a quem não conhecemos. Não sabemos
quem é, nem de onde veio. Sei que sou dele, mas não
o sinto meu.
MADRE – Que estranhos temores te perseguem! Pois não é farta a tua
mesa? E com gemidos de prazer não enche ele as
tuas noites? Em vão te inquietas. Deixa o tempo
passar.
NORA – Até quando ele nos quererá ainda? Até quando estaremos à
sua mercê?
MADRE – Para mim, é muito pouco o tempo que me resta. Quanto a ti,
creio que é um filho que te falta.
HOMEM – Avatar! Meu destino!
NORA – Avatar! Meu medo!
HOMEM – Vem. Esta noite engendrarás um novo homem.
Cena VII
É noite. A jovem e o Homem rolam o amor pelo chão, entre gemidos
e vagos sons. À parte, de pé junto à árvore, indiferente e sofredora,
a velha cantarola e resmunga.
MADRE – Quando me vi entre os braços vigorosos de meu homem,
pressenti que ele ia nascer. Meu sangue exultava.
Meus gemidos eram os gemidos do mundo, porque
dali uma nova vida haveria de vir. Enxuguei o suor de
meu amado e deixei-o que apertasse com fúria os
olhos abertos e via bater os tambores de meus peitos
em dor. Porque eu era feliz. Tinha festa nas têmporas
de meu amor. Eu queria que o mundo escutasse os
rumores que fazíamos. E por dentro de mim eu
cantava uma canção no mesmo ritmo. Minhas carnes
se dilaceravam e eu era feliz. Minhas mãos apertavam
suas duras costas, meus pés se comprimiam nos
seus. De onde estávamos eu ainda podia enxergar as
estrelas, mas eram as têmporas que eu queria ver. E
suas grandes narinas de onde saía um fogo, como
das minhas. Devorei com a minha boca a sua saliva e
suguei, por entre as pernas, tudo o que vinha dele.
Era como se todo o meu corpo fosse feito de pele e a
pele dele era a minha e a minha pele era a dele. Pelo
meu umbigo senti correr o seu suor e dei-lhe o meu da
mesma forma. Eu o envolvia e ele me envolvia a mim.
E percebi que sua vida se despojava pelas minhas
entranhas e gritei. Ele gritou também como o caçador
feliz que vê tombar, sob sua flecha, a boa caça de
pelo. Mas o fogo se acendeu outra vez no mesmo
tremor em que devia apagar-se. Um raio percorreu
meu corpo e o dele e foi como se o céu se rasgasse
por mil relâmpagos. Mas as estrelas estavam fixas no
céu e era melhor estrebuchar do que contemplá-las.
Foi meu primeiro uivo que reacendeu a chama em
mim e nele. E bebi o suor que caía dele, ele me lavou
com a sua língua carinhosa. E as minhas carnes já
não se dilaceravam porque estavam desfeitas e
contentes. O peso do meu amado era bom e eram
doces as suas rudes mãos. Eu o tinha sobre mim e
ele me tinha por debaixo dele. Por isso gritamos mil
vezes aquela noite, até que não pudemos mais. E
quando a calma nos sobreveio, percebi que já não
éramos apenas dois, porque no fundo da minha vida
uma nova vida existia desde então. E choramos,
porque estávamos contentes. E era no tempo do fim
do inverno, quando o mar se revolve com alegria e
das suas ondas surge o salmão. E as montanhas
redespertam para o verde; e a caça de pelo deixa a
sua toca para o abate. E começa o gorjeio da caça de
pena. E revive o homem na sua felicidade.
NORA – Avatar!
HOMEM – Antes que chegue o outro inverno, terás um novo homem. E
seu nome será Asdiwal, que quer dizer o Saltador de
Montanhas. Porque ele não conhecerá obstáculo e
desvendará os mistérios das profundezas. Nas ondas
de alto mar flechará o cação e a baleia. E tudo se
abaterá sob suas mãos. E não se deixará prender
pelos limites das terras, nem se contentará nos
confins de uma aldeia. Porque seu nome será falado
desde as cidades e no longínquo das selvas ecoará
sua fama. E ele será forte e belo e, tudo, não
precisarás temer.
NORA – Avatar!
MADRE – Agora é chegado o tempo de eu morrer...
Cena VIII
Nos braços da Nora, morre a Madre. O Homem, impassível,
contempla e espera.
MADRE – É a última chama do último lume. Acaba-se o óleo e com ele
o fogo...
NORA – Está quieta, mãe. Descansa. Sabes que há flores na nossa
árvore? E o rio se agita de novo num turbilhão de
peixes. Acabou-se o inverno, mãe. Findaram os dias
maus. Descansa um pouco e depois vem ver conosco
o novo tempo.
MADRE – Não haverá. Desaparecerei como o peixe candeia. Como o
salmão do mar e a caça da montanha. Já não tenho
tempo, filha. Nenhum pássaro cairá do céu para mim.
Antes disso, eu é que alçarei um longo voo.
NORA – Mãe, quando subi o rio, foi para vir ao teu encontro. Estamos
aqui, desde os tempos piores. Fica comigo. Não quero
estar só.
MADRE – Tens teu Avatar.
NORA – Avatar é meu medo. Tu o sabes. Se partires, leva-me contigo.
MADRE – Tens Asdiwal, o Saltador de Montanhas. Ele é filho do teu
medo; ele te livrará do medo.
NORA – Espera, então, por ele. Gostarás de embalá-lo nos teus braços.
Sorrirás com teu neto e lembrarás os tempos felizes.
MADRE – Filha querida: quero-te muito, mas Asdiwal não será meu
neto. Nem tu és minha filha, embora ainda me sejas a
lembrança da minha semente. Não tenho queixas: tu o
fizeste feliz, até que o perdemos. Agora segue o teu
destino, teu Avatar.
NORA – Mãe: não sejas cruel neste momento. Abençoa Asdiwal.
MADRE – Ele saltará montanhas e te livrará do medo. Não conhecerá o
gosto amargo do peixe candeia, porque no alto mar
flechará o cação e a baleia. Quando nascer, fala-lhe
de uma velha que desejou que o filho fosse como ele.
Bendito seja o filho daquela que não deu filhos a meu
filho. E lembra-lhe sempre: que ele nasceu do medo,
mas também de muito amor.
NORA – Mãe!
MADRE – Fecha os meus olhos, que nem para isso tenho mais forças.
Terminou o inverno.
NORA – Mãezim! (Ela fecha-lhe os olhos e chora. O Homem
aproxima-se para tocar o ombro da mulher
sofredora).
HOMEM – Sentiremos falta de seus últimos silêncios. E lembraremos
saudosos das suas imprecações. O rio, quando
passar por aqui, chorará por ela. E as folhas outonais
cairão sobre o solo em que morreu como se fossem
lágrimas.
NORA – Agora estamos sós.
HOMEM – Ainda há Asdiwal. Esqueces? Ele será a tua segurança,
antes que chegue um novo inverno e desde agora.
NORA – Avatar: amas-me?
HOMEM – Pertenço-te, mulher, como o rio a seu leito. Minhas noites são
as tuas noites, assim como os meus melhores dias
têm sido os teus dias. Mas tu me temerás para
sempre. Porque não sabes de onde vim, nem para
onde irei, no tempo novo. Nem o amor apagará o teu
temer. Antes se alimentará dele e só por ele se
manterá vivo. Chora, agora, a morte desta mulher.
Depois acabarão as tuas penas, ainda que me temas.
NORA – Avatar: é estranho que de ti possa me vir segurança. Como eu
te vejo bonito, no novo tempo que chega! Ouço-te
como ao rio: vem-me de ti um murmúrio constante.
Nem é preciso que te veja para saber que estás aí. E
agora te tenho também pulando nas minhas
entranhas. Asdiwal será a minha fortaleza. Hei de
amar-te em Asdiwal a vida inteira.
HOMEM – Chora a mãe que morreu. Eu estarei contigo, Avatar meu
destino!
Cena IX
É noite outonal. No mesmo ponto junto ao rio, a jovem deita-se para
as dores do parto. O Homem exulta, num contraponto de paixão.
NORA – Ai de mim! Asdiwal, que me maltratas! Despedaças-me por
dentro para vires ao mundo.
HOMEM – É Asdiwal, meu filho! Avatar, meu destino, nunca saberás o
quanto te amei! E tu, Asdiwal não podes conceber a
alegria dessa trajetória que fazes agora, ao reverso,
causando dores. Tu vens para me lembrar de outros
gritos.
NORA – Ai de mim, que hei de morrer para que nasça a minha fortaleza!
HOMEM – Lembrar-te-ás desta morte quando viveres com ele; como te
lembras ainda da vez que morremos de amor, para
que ele existisse. Vem Asdiwal!
NORA – Ele tem o tamanho do mundo e eu sou fraca. Avatar, que
estranho mago és tu, que não socorres? Tu conheces
os mistérios dos fungos e não alivias! Avatar! Asdiwal!
HOMEM – Avatar, eu me agiganto na tua fortaleza.
NORA – Rompe-me o ventre e a alma. Parece que quer vir e não quer
ao mesmo tempo.
HOMEM – Ele se fez assim mais desejado.
NORA – Nunca mais me acharão bela e boa. Maltratas-me, Asdiwal.
Pelo resto dos meus dias perseguirei tua sombra e o
teu cheiro. Mãezim, como te entendo agora! Avatar;
amas-me?
HOMEM – Tu me fascinas na tua dor e me encantarás na tua felicidade.
Abre os teus caminhos, para que Asdiwal conheça
enfim a luz. E nós nos rejubilemos com ele. (Ela grita
num esforço de expulsão. O Homem precipita-se
sobre ela). Asdiwal!
NORA – Avatar!
HOMEM – Mãezim! (Eles misturam-se em gritos de júbilo e dor).
Cena X
A mulher tem o filho nos braços, enrolado em panos. O Homem
toma-o nas mãos, contempla-o, enternecido, e entrega-o de volta à
mãe. Beija-a depois, com doçura. Põe-lhe nos ombros um alforje e,
de repente, parece chorar.
HOMEM – Agora vai. É preciso. Parte, antes que o inverno se faça
rigoroso. Toma o rumo do sul, procura os teus em tua
aldeia. Eles te receberão com festas, porque foi farta
entre eles a estação do salmão e sobeja a caça nas
montanhas. Neste inverno, o peixe candeia não dará
mais que o óleo para o lume e o calor, mas
apodrecerá nas despensas abarrotadas. Nada tens a
temer, nem por ti, nem por nosso filho. Levas em teus
braços o fruto do meu amor, que não perecerá. Vai.
NORA – Avatar: julgas que é mesmo sábio que eu parta e me aparte de
ti?
HOMEM – É o que deves fazer. Vai sem medo. Era a mim que temias.
Agora levas apenas o meu amor. Segue rio abaixo.
Haverá festas para que te recebam.
NORA – E tu?
HOMEM – Eu sigo também, nos caminhos que desconheces. Vai feliz:
guardo comigo um amor que não se acaba. Tu sabes
que eu te amo. Amas-me e sou feliz com isso. Vai.
NORA – Para nunca mais?
HOMEM – Para sempre.
NORA – Deixa-me olhar-te um pouco mais ainda. Sinto de ti uma
estranha fortaleza, que me protege.
HOMEM – Ela está em teus braços.
NORA – Nas minhas entranhas remoem-me mil inquietudes e sei que
elas vêm de ti. Não quero estar quieta. E nem ouso
mexer-me. Ou tocar-te.
HOMEM – Vejo-te como a lua. Longínqua e próxima.
NORA – És como o rio.
HOMEM – A fresca lua da noite é também o sol do meu dia. És bela e
mansa e boa.
NORA – Sabes para onde vou?
HOMEM – Para o teu destino, Avatar!
NORA – Avatar, meu amor! Há nisso tudo tanta beleza!
HOMEM – Agora é preciso que vás. Não tenhas medo. Quando te
lembrares, beija por mim Asdiwal.
NORA – Nunca lhe faltarão beijos.
HOMEM – Nem lágrimas à minha saudade. Adeus. (Ele afasta-se. Ela o
contempla).
NORA – Amor!
HOMEM – Adeus! Quando te lembrares, beija por mim Asdiwal. (Ele
some. Ela contempla feliz, o filho).
NORA – Asdiwal! (E inicia a sua caminhada).
EPÍLOGO
CORO – Rio abaixo segue a rota / do Saltador de Montanhas. / Lá vai a
jovem sofrendo / Lá vai a Madre chorando / Vai
contente soluçando / Vai chorosa bem feliz. /
Caminhos velhos pisando / Rumos novos descobrindo
/ No filho que traz ao peito. / Palmilha campos abertos
/ Que o destino lhe indicou. / Leva a dor do amor
perdido / Leva o amor do filho amado / Leva a
lembrança do rio. / Rio abaixo vai seguindo / No rumo
que leva ao mar.
FIM