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AS UNIVERSIDADES POPULARES NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO
SÉCULO XX EM PORTUGAL – O EXEMPLO DA ACADEMIA DE ESTUDOS
LIVRES
Joaquim Pintassilgo Centro de Investigação em Educação
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
1. A educação popular na transição do século XIX para o século XX
O ambiente cultural português do final do século XIX e primeiras décadas do
século XX foi propício ao desenvolvimento das preocupações com a educação popular.
A crença de raiz positivista no papel decisivo da educação e da cultura como fonte de
progresso e regeneração social, o investimento político republicano, considerado
inseparável do combate contra o analfabetismo, e o labor cultural de pendor iluminista
da maçonaria foram algumas das condições que favoreceram a afirmação de um
discurso que colocava o povo e a sua educação no centro do debate político e social. A
educação e a cultura surgiam, assim, como peças chave da formação de um cidadão
consciente e participativo e da construção de uma sociedade nova, sem lugar para a
ignorância e para os preconceitos, crença esta que se tornou uma das grandes referências
míticas desse momento histórico e cultural.
Subjacente a este debate estava, em primeiro lugar, a questão do analfabetismo.
As estatísticas publicadas na segunda metade do século XIX conduzem à sua traumática
descoberta pela minoria culta do país, ao mostrarem que a esmagadora maioria do povo
português nunca havia frequentado a escola, não sabendo ler nem escrever. O discurso
então difundido, em particular pelos republicanos, dramatiza ao limite esse problema e
pressupõe um olhar acentuadamente desvalorizador sobre a figura do analfabeto,
colocado na antecâmara da “civilização” e a quem é atribuída uma espécie de
menoridade cívica. O analfabeto, pela sua incapacidade de aceder à cultura escrita, não
estaria em condições de ser o cidadão-eleitor, consciente e participativo, almejado pela
República. Assim se explica o investimento simbólico nesse combate e o
desenvolvimento de múltiplas iniciativas no campo da alfabetização, tanto de crianças
O presente texto retoma um conjunto de ideias, resultantes de uma pesquisa sobre as universidades
populares, desenvolvida no âmbito do projecto de cooperação internacional “História da escola em
Portugal e no Brasil: circulação e apropriação de modelos culturais”, e publicadas em: Pintassilgo (2006a;
2006b; 2006c).
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como de adultos, cujo exemplo mais emblemático é constituído pelas Escolas Móveis
pelo Método de João de Deus. Assim se explica, também, a estreita articulação então
fomentada entre alfabetização e educação cívica, no âmbito de um projecto global de
formação do cidadão. A aprendizagem de competências ao nível do ler, escrever e
contar surgia em paralelo com as preocupações relativas à interiorização, por parte dos
futuros cidadãos, dos novos valores laicos e patrióticos associados ao republicanismo,
implicando, designadamente, a difusão de todo um conjunto de símbolos e rituais
cívicos alternativos aos do catolicismo (Pintassilgo, 1998).
Conheceram, igualmente, a luz do dia várias outras experiências nos terrenos da
educação popular, dinamizadas por sectores políticos e sociais muito diversificados - do
Estado à iniciativa particular, do republicanismo e da maçonaria ao anarquismo, das
associações operárias à intelectualidade - e assumindo formas muito diversas, como
creches e asilos, escolas operárias, escolas de centros republicanos, etc. (Candeias,
1981; 1985; 1987a). Refiramos, a título de exemplo, duas dessas instituições,
começando por uma das mais prestigiadas e bem sucedidas, a Voz do Operário, criada
em 1883, já depois do início da publicação da revista com o mesmo nome, por iniciativa
dos manipuladores de tabaco, que abriu a primeira escola em 1891 e, na década de 20,
já tinha mais de 70.000 sócios e sustentava ou apoiava mais de sete dezenas de escolas
de primeiras letras (Lopes, 1995; Mesquita, 1987; Tavares & Pimenta, 1987). No que
diz respeito ao carácter inovador das suas opções pedagógicas, a mais emblemática das
experiências então desenvolvidas foi a da Escola Oficina n.º 1, situada no bairro da
Graça em Lisboa e criada em 1905 por uma associação maçónica. A partir do momento
em que se passou a fazer sentir a influência de um grupo de professores libertários (em
particular de Adolfo Lima) a escola tornou-se um ex libris da chamada Educação Nova
em Portugal e lugar de experiências várias, designadamente no que diz respeito à
autonomia dos alunos - através da criação de uma associação designada por «Solidária»
-, à prática da coeducação, à concretização curricular de áreas como os trabalhos
manuais educativos, a educação física, a educação artística e as excursões pedagógicas e
à ausência de manuais, de exames, de prémios e de castigos (Candeias, 1987b; 1993;
1994).
No que diz respeito à educação permanente de adultos e à vulgarização científica
e cultural, tema central do presente texto, difundiu-se no período um importante
conjunto de instituições, vocacionadas para essa área, conhecidas por universidades
livres ou universidades populares, as mais conhecidas das quais foram as universidades
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populares fundadas, a partir de 1912, pela Renascença Portuguesa (Porto, Coimbra, Vila
Real e Póvoa do Varzim) e a Universidade Popular Portuguesa, criada em Lisboa em
1919 (Bandeira, 1994; Fernandes, 1993; 2001; Marques, 1999; Neves, 1997).
Procuraremos, aqui, reflectir, em particular, sobre o projecto educativo de uma dessas
instituições – a Academia de Estudos Livres – que surge como pioneira na assunção do
papel de universidade popular, à semelhança do que acontecia, também em França,
desde os últimos anos do século XIX. Analisaremos, previamente, o debate sobre as
universidades populares na imprensa de educação e ensino, tomando como ponto de
partida as reflexões de um dos intelectuais que mais contribuiu para a sua divulgação –
Jaime Cortesão (Fernandes, 1986; Garcia, 1987; Nóvoa, 2003; Santos, 1986; Santos,
1993). Utilizaremos como fontes principais da pesquisa as duas publicações periódicas
da Academia: os Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade Popular (1912-
1916), uma espécie de órgão da associação, e o periódico estudantil A Mocidade (1910-
1911); encontramos, em ambos os casos, abundantes informações sobre as actividades
desenvolvidas, para além da publicação de documentos internos (actas, relatórios, etc.).
O período de vida da instituição aqui em análise é o delimitado pelas datas extremas das
publicações em questão – 1910 e 1916 -, ou seja, a fase inicial e mais dinâmica de
recém instaurada República portuguesa. Utilizaremos, complementarmente, a revista A
Vida Portuguesa (1912-1915), dirigida pelo já referido Jaime Cortesão, uma das
principais fontes de informação sobre o carácter e actividades das universidades
populares.
2. O debate sobre as Universidades Populares. As reflexões de Jaime Cortesão em
«A Vida Portuguesa»
A produção intelectual portuguesa da transição do século XIX para o século XX
foi muito marcada, como já notámos, pela difusão das teses decadentistas e pela
presença dos lugares-comuns da ideologia positivista. A proclamação, em 1910, do
novel regime republicano foi acompanhada pela crença nas suas virtualidades
regeneradoras. Para um conjunto de intelectuais do período, a mudança política era, no
entanto, insuficiente. Tornava-se necessário, principalmente, fomentar o progresso por
via da educação e da cultura e contribuir para a promoção cívica do povo (Pintassilgo,
1998).
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A Renascença Portuguesa, formada em 1911, tornou-se o mais importante dos
movimentos culturais então criados e assumiu como principal finalidade a tarefa de
elaboração e difusão da cultura considerada necessária para a almejada regeneração
social. Dela fizeram parte alguns dos mais influentes intelectuais do período
subsequente, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Teixeira de Pascoais, Leonardo
Coimbra, Raúl Proença, entre muitos outros. A revista literária e artística A Águia
tornou-se, a partir de 1912, o órgão oficial do movimento (Samuel, 1990; Santos, 1990).
A partir da iniciativa de Jaime Cortesão (e também propriedade do movimento)
nasceu ainda, no mesmo ano de 1912, a revista A Vida Portuguesa de cujo programa
fazia parte todo um esforço de reflexão sobre os problemas pedagógico, religioso,
económico e social, na busca de soluções que conciliem “o espírito da pátria
portuguesa” com “o espírito moderno”. É o problema pedagógico que vai estar, na
verdade, aí em destaque, o que não deixa de ser expressão da crença, geralmente
partilhada, na regeneração por via da educação (Nóvoa, 1993).
Um dos temas principais a ser tratado, de forma recorrente, nas páginas de A
Vida Portuguesa, em particular por Jaime Cortesão, é o que se refere às Universidades
Populares. Numa sequência de nove artigos o autor reflecte sobre a noção de
Universidade Popular (nos contextos português e internacional), suas finalidades e
especificidade relativamente a outras instituições, sobre os seus destinatários e, em
geral, sobre a noção de povo, sobre as actividades a desenvolver de acordo com o seu
espírito, etc. A revista veicula, ainda, informações acerca das universidades populares
dinamizadas pela Renascença Portuguesa (Bandeira, 1994; Fernandes, 1993; Marques,
1999; Neves, 1997).
O primeiro artigo de Jaime Cortesão – num conjunto de nove – dedicado ao tema
das Universidades Populares foi publicado no n.º 3 da revista, em Novembro de 1912, e
intitulava-se: «As Universidades Populares. I – Sua missão e necessidade em Portugal».
O autor reflecte, principalmente, sobre o público das referidas instituições. Se, em
França, elas se dirigiam aos operários – ou seja, ao “Povo num sentido muito restrito” -,
em Portugal “não pode, nem, deve ser assim”. Entre nós, defende, as Universidades
Populares “têm de se dirigir ao povo num sentido muito lato e aliás mais verdadeiro”.
Isto é assim porque, por um lado, a concepção de Povo perfilhada por Cortesão abarca
“todos os portugueses a qualquer classe que pertençam” e, por outro, porque todo esse
Povo está “falho de educação”, seja por ser “completamente ignorante” ou por ter tido
“uma educação cheia de taras jesuíticas”. O primeiro grupo ainda preserva “algumas
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virtudes e qualidades essenciais”, o segundo – consubstanciado na figura do “bacharel”
– é “o mais legítimo representante da nossa decadência intelectual e moral”. Quer uns
quer outros, na opinião do autor, “desconhecem o conceito moderno de patriotismo – o
patriotismo humanitário”. Combater este estado de coisas é a missão das Universidades
Populares1.
As reflexões de Jaime Cortesão deixam bem claro, em primeiro lugar, ser esse um
projecto de integração social e cultural e, de modo algum, apesar dos discursos que
tomam o Povo como protagonista central, um projecto assente em critérios de classe. O
que se pretende é congregar os esforços de todos à volta de “um ideal colectivo e
nacional”, ainda que conciliável com uma perspectiva humanista. Em segundo lugar,
encontramos um olhar sobre o Povo marcado por alguma ambivalência: não obstante a
“ignorância” que o caracteriza, mantém algumas das virtudes da “raça”. O olhar sobre
algumas elites é marcado pelo discurso sobre a decadência proveniente da Geração de
70. Assim se compreende o papel de regeneração intelectual e moral da vida portuguesa
que a Renascença Portuguesa atribui a si própria.
No artigo «Universidades Livres, Extensões universitárias, Universidades
Populares», Jaime Cortesão dedica-se, em particular, à tentativa de clarificar esses três
conceitos, até porque já existiam nesse momento em Portugal instituições usando a
primeira e a terceira das expressões, tendo a segunda já entrado, igualmente, no debate
pedagógico. Segundo o autor, o nome Universidade Livre deve aplicar-se “a
organizações [de iniciativa particular] que têm por fim o ensino superior, o que já
demanda um público bem preparado”. As Extensões Universitárias são formadas, na sua
opinião, “dentro de cada Universidade unicamente pelos seus professores, pagos pelo
Estado; realizam cursos seguidos para todo e qualquer público”, onde se incluem
“exercícios” e “exames”, bem como a outorga de “diplomas”. Finalmente, as
Universidades Populares “pretendem realizar, mais que isso, uma obra de educação e
acção social e nacional”. A conclusão é a de que, apesar da confusão de nomes, em
Portugal “não houve ainda propriamente Universidades Livres. O que há e deve haver
são Universidades Populares”2. As anteriores categorização e caracterização são, sem
dúvida, coerentes com a centralidade do projecto de educação popular no âmbito dos
trabalhos da Renascença Portuguesa. O que se pretende, fundamentalmente, não é
1 Cortesão, J. (1912). As Universidades Populares. I – Sua missão e necessidade em Portugal. A Vida
Portuguesa..., 3, 19-20. 2 Cortesão, J. (1912). Universidades Livres, Extensões Universitárias, Universidades Populares. II. A Vida
Portuguesa..., 4, 25-26.
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educar (apenas) as elites, mas sim todo o povo, ainda que na acepção lata há pouco
referenciada.
O terceiro artigo da série - «Como as Universidades Populares começaram em
França» - faz o historial do desenvolvimento pioneiro daquelas instituições no referido
país, destacando o papel do operário tipógrafo Georges Deherme, e apresenta o seu
ambicioso programa e respectiva concretização (ainda que parcial). Apesar de
considerar ser “diferente o estado do operariado francês e do nosso”, Jaime Cortesão
encontra, mesmo assim, alguns defeitos comuns, como “a ignorância e a deseducação”,
associadas a “desvairamento, violência e fanatismo”3. Definitivamente, o Povo não
surge idealizado sob o olhar de um intelectual – como é Jaime Cortesão –, apesar de
sinceramente empenhado na educação popular.
Em «A Universidade Popular do Porto» o autor retoma o tema do público das
Universidades Populares, para recriminar “o nosso operário”, por não acorrer “em
grande número às lições da Universidade Popular”. Este texto é interessante por uma
dupla razão. Em primeiro lugar, por dar conta de quem são os participantes nas
actividades. O seu número terá sido avultado – e a documentação comprova-o -, mas
principalmente de pessoas oriundas das “classes médias” – professores, estudantes,
comerciantes, militares, empregados de comércio, etc. – segundo anota o próprio
Cortesão. A razão, acrescenta, é que falta ao nosso operariado “uma preparação
primária geral” que lhe permita tirar proveito das conferências e cursos da Universidade
Popular do Porto. Esse facto não retira o “carácter popular” à instituição, pois esses
grupos não só fazem parte do povo – ideia que, como já vimos, é assumida pelo autor -,
como “necessitam de instrução e de educação”4. Em segundo lugar, as anteriores
reflexões testemunham sobre a dificuldade que os intelectuais da «Renascença
Portuguesa» têm de atingir os sectores operários, através de uma estratégia de
vulgarização científica e cultural, apesar de ser esse um dos seus objectivos.
No artigo «A Universidade Popular e o operariado» - o sétimo da série - Jaime
Cortesão retoma o seu tema predilecto. Partindo do exemplo do único curso “que atraiu
numa enorme afluência o público operário” – as lições de Cristiano de Carvalho sobre a
Comuna de Paris (o que o autor acha compreensível, à luz do interesse que tem, para os
operários, o conhecimento de “um dos mais interessantes capítulos da questão social”) -
3 Cortesão, J. (1912). Universidades Populares. III – Como as Universidades Populares começaram em
França. A Vida Portuguesa..., 5, 33-34. 4 Cortesão, J. (1913). As Universidades Populares. IV – A Universidade Popular do Porto. A Vida
Portuguesa..., 6, 41-42.
7
o autor renova as críticas ao mesmo operariado por não ter dado a devida atenção às
outras lições – como por exemplo as de biologia – e procura aprofundar as explicações
anteriormente apresentadas.
Isto me leva a crer que uma parte do operariado não se tenha ainda convencido
da extraordinária importância que a educação haja para a solução da questão
económica, como para o seu progresso e valorização definitiva nas lutas do
futuro. Isso me leva igualmente a reflectir sobre aquilo a que se poderá chamar o
revolucionarismo providencialista... Em Portugal, em tempos de monarquia,
havia quem atribuísse à revolução republicana a vir as virtudes providencialistas
de reformar os costumes, baratear os géneros e, acho que até, endireitar a
espinhela caída. Veio a Revolução e como os povos não se transformam aí do pé
para a mão, vá de gritar traição, desenganos, desesperos e de cair agora no
defeito contrário, negar agora a parte porque lhes não deram o todo. Creio
também que haja quem revista a Revolução Social das mesmas virtudes
omnipotentes e providencialistas, acreditando que nessa palavra ou nesse facto
existam infinitos caudais de felicidade, sabedoria, liberdade e harmonia social,
que só um profundo e ainda imenso labor educativo podem dar.5
Para além de uma subtil ironia, as anteriores reflexões são de uma enorme lucidez e
expressam bem qual a alternativa que a Renascença Portuguesa procura apresentar em
face da chamada “questão social”. O autor procura desmistificar as crenças ingénuas e
messiânicas nas virtualidades transformadoras de uma qualquer revolução, seja ela a
revolução republicana do 5 de Outubro de 1910 ou a revolução social desejada pelo
movimento operário e pelos sectores anarco-sindicalistas nele predominantes à época.
Fora essa, de resto, a atitude da Renascença Portuguesa em relação à República. O mais
importante seria, após a mudança política, a transformação das consciências por via da
acção educativa e cultural, que ela se propunha realizar.
Mais uma vez, como em anteriores referências, está subjacente a estas reflexões
a ideia de que é aos intelectuais, erigindo-se ao papel de “consciência crítica” da
sociedade, conduzir os operários e todo o povo no sentido da almejada regeneração
moral e intelectual, regeneração essa – retomando, para concluir, os grandes ideais do
movimento – fundamentada no “ideal de lusitanização”, na “revelação profunda desse
espírito bem português” e, ao mesmo tempo, em “todo o movimento moderno”, ou seja
- continuando a seguir as palavras do derradeiro artigo da série -, na “larga tendência
5 Cortesão, J. (1913). A Universidade Popular e o operariado. A Vida Portuguesa..., 19, 145.
8
moderna – a que leva as nacionalidades a definirem nitidamente a sua obra civilizadora,
procurando fazer da sua acção actual um corpo vivo com raízes no passado”6.
3. A Academia de Estudos Livres e a Escola Marquês de Pombal
A Academia de Estudos Livres foi fundada em 1889. A iniciativa pertenceu à
Maçonaria, através da loja «Simpatia e União» de Lisboa. Os seus Estatutos originais
foram aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. São aí assumidos como
objectivos “desenvolver o gosto pelo estudo e pela ciência” e “proporcionar aos sócios o
conhecimento das ciências”. Tendo em vista a sua consecução, são previstas as
seguintes actividades:
A Academia promoverá conferências públicas sobre assuntos científicos
e de interesse público; fará publicações, nomeadamente dessas
conferências; manterá aulas, gabinete de leitura, biblioteca, gabinete de
física, observatório, laboratório, museus; organizará uma oficina - escola
que facilite aos investigadores os meios de trabalho mecânico e sirva
também para a reparação dos instrumentos de estudo da Academia;
facultará a quaisquer professores a abertura de cursos - livres e celebrará
exposições.7
Em 1904, por via do Alvará de 24 de Junho, são aprovados novos Estatutos, os
quais consignam a alteração da designação (através do acréscimo de um subtítulo) para
Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Os objectivos e as actividades
previstas mantêm-se, relativamente ao documento anterior8. Uma alteração importante,
datada desse mesmo ano de 1904, é a integração na Academia da preexistente Escola
Marquês de Pombal, que passa a ser considerada, pelo Regulamento Geral da mesma
escola, uma “Secção da Academia de Estudos Livres”, situada então no Alto do Pina
(um bairro popular lisboeta)9. Alguns anos após, em artigo de uma das publicações da
instituição, clarifica-se a história da escola:
6 Cortesão, J. (1914). Universidades Populares. IX – Nacionalismo e cosmopolitismo. A Vida
Portuguesa..., 22, 9. Acerca do papel social dos professores como intelectuais nesse período da vida
portuguesa, podem consultar-se os seguintes textos: Boto (2003) e Pintassilgo (1999). 7 Estatutos da Academia de Estudos Livres. Aprovados por Alvará de 10 de Setembro de 1889. Lisboa,
Tipografia Castro Irmão, 1889, p.5. 8 Academia de Estudos Livres - Universidade Popular. Novos Estatutos. Aprovados por Alvará de 24 de
Março de 1904. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904. 9 Regulamento Geral da Escola Marquês de Pombal – Sebastião José de Carvalho e Melo (Aulas
gratuitas para crianças pobres). Secção no Alto do Pina da Academia de Estudos Livres – Universidade
Popular. Lisboa, Imprensa Comercial, 1904.
9
Foi fundada em 1882 por um grupo de dedicados amigos da instrução,
sócios da loja maçónica Razão Triunfante, que por essa forma quiseram
concorrer para o derramamento da instrução popular e, ao mesmo tempo,
prestar homenagem ao grande vulto da nossa história – o Marquês de
Pombal... Inaugurou-se em 21 de Maio daquele ano na Portela de
Sacavém, com o título de Escola Marquês de Pombal – Sebastião José
de Carvalho e Melo.10
Não deixa de ser curioso o facto de ambas as entidades serem de iniciativa maçónica.
Os propósitos enunciados – e, em particular, “o derramamento da instrução popular” -
são, de resto, coerentes com o contexto doutrinário em que a escola se insere, sendo
igualmente significativo o nome da loja maçónica de onde ela emana – “razão
triunfante”. A assunção do Marquês de Pombal como seu patrono é bem sintomática da
incorporação desse vulto do absolutismo reformista – por via da sua política anti-
jesuítica - na memória da nação, tal como é reconstruída pelo republicanismo, que se vai
tornando a ideologia dominante nas lojas.
A escola começa a funcionar na Portela de Sacavém (arredores de Lisboa) com
40 crianças pobres de ambos os sexos e uma professora, sendo transferida em 1899 para
o já referido Alto do Pina. Em 1904, “quando se dissolveu o Grande Oriente de
Portugal, em que estava filiada a loja maçónica Razão Triunfante, que ainda tinha a
escola sob a sua protecção”11
, desenvolveram-se, então, negociações entre os dirigentes
de ambas as instituições que concluíram com a integração da escola na Academia,
aprovada nas respectivas assembleias gerais (8 e 9 de Setembro). O Regulamento Geral,
então aprovado, anexa igualmente ao título a expressão «Aulas gratuitas para crianças
pobres», especificando que se pretende “ministrar nesta Secção o ensino primário (1º e
2º grau), gratuito para crianças pobres de ambos os sexos, dos 6 aos 12 anos de idade”,
para além de promover “conferências e outros trabalhos educativos”. A instituição
compromete-se, ainda, a distribuir “livros e outros auxílios a alunos órfãos e de pobreza
manifestamente reconhecida”12
. As preocupações com a educação popular e o
filantropismo típico da maçonaria são uma presença visível.
O Regulamento Geral em apreciação define as aulas como “diurnas” e
manifesta, ainda, a preocupação com a necessidade de uma definição clara do tempo
10
Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história (1911). A Mocidade. Folha
quinzenal, 1 (19), 7. 11
Idem., 8. 12
Regulamento Geral da Escola Marquês de Pombal..., p.3.
10
escolar, tanto no que se refere ao calendário – fixado entre Outubro e Agosto – como ao
horário quotidiano, entre as 9h e as 16h, entrecortado por intervalos de 10m ao fim de
cada hora, “para descanso dos alunos”, e de uma paragem de 30m para uma refeição. As
aulas funcionariam “em todos os dias não declarados feriados”, sendo “as disciplinas a
ministrar... as dos programas primários oficiais”13
. Fica claro que a educação popular a
fomentar pelo movimento associativo de inspiração maçónica tem como referência o
modelo escolar de educação então em fase de implementação, designadamente no que
se refere às coordenadas espaciais e temporais do mesmo, já impregnadas de
pressupostos de natureza pedagógica. Não é, por isso, de estranhar que se pretenda
submeter os alunos a mecanismos de vigilância e de controlo disciplinar típicos do
modelo escolar:
Os alunos só podem ser admitidos nas aulas, apresentando-se decentes e
limpos; devem respeitar os professores, conservar as suas carteiras e
artigos de estudo em estado de irrepreensível asseio, não danificar estes
nem os móveis da Secção, não se ausentar sem licença dos professores,
não cometer faltas, as quais em todo o caso deverão sempre justificar
com bilhete ou carta dos pais ou tutores, frequentar com assiduidade as
aulas nos dias e horas que lhes forem marcados, apresentar-se nas aulas
munidos dos livros e de todos os artigos indicados pelos professores.14
É bem visível, neste articulado, a presença de um projecto de integração social e de
moralização dos costumes das crianças pobres a que a escola se destina. A limpeza
pessoal, o cuidado com os materiais escolares, o respeito pelos professores, a
assiduidade, são comportamentos incentivados e o não cumprimento das regras – sob a
forma de “mau comportamento, falta de assiduidade ou de aplicação” - penalizado.
O regulamento define, também, os principais rituais que deveriam pontuar a vida
da instituição, em particular a sessão solene comemorativa do aniversário da fundação
da escola (21 de Maio) e a “sessão solene de distribuição de prémios por ocasião da
abertura das aulas”. Dos prémios farão ainda parte o “quadro de honra” e os “diplomas
de mérito”, algo que será posteriormente alvo de contestação. Abre-se, finalmente, a
possibilidade, em articulação com a Academia, da criação de “aulas nocturnas para
adultos”, uma opção que marcará decisivamente a actividade de ambas as instituições,
dentro do espírito de universidade popular que passa a caracterizar a Academia15
.
13
Idem., 6. 14
Idem., 5. 15
Idem., 8-9.
11
Em 1908 a escola é transferida para a nova sede da Academia na Rua da Paz
(situada no bairro lisboeta de São Bento), passando a dispor de melhores condições de
funcionamento e de um acompanhamento mais próximo por parte da direcção da
mesma. De 40 crianças e uma professora naquele ano16
, passou-se, no ano lectivo de
1910/1911, para 137 alunos matriculados (distribuídos por 4 classes) e 4 professoras,
apoiadas ainda por um professor de ginástica e por um professor de música e canto, isto
só na Escola Marquês de Pombal, porque a Academia de Estudos Livres possuía ainda
326 alunos nas aulas nocturnas, tanto ao nível da instrução primária, como nas
disciplinas então oferecidas: português, francês, inglês, desenho, matemática elementar,
matemática financeira, economia política, contabilidade, taquigrafia, rudimentos de
música, piano, violino, harmonia e curso livre de música, para além de um curso de
admissão à Escola Normal17
.
Como vimos, o ano de 1904 ficou assinalado pela incorporação de uma escola
do ensino primário particular – que passará a ter grande visibilidade no conjunto das
suas actividades - e pela assunção do seu carácter de universidade popular – de que os
cursos nocturnos são uma das suas marcas. Esta dicotomia enriquece-a, mas transporta
também consigo alguma ambiguidade, como ulteriores discussões em assembleia geral,
a que nos reportaremos, se encarregarão de demonstrar.
No cumprimento da sua vocação a Academia de Estudos Livres vai, então,
desenvolver diversas actividades na área da vulgarização científica e cultural, as mais
características das universidades populares, delas sendo exemplos a realização de cursos
livres, conferências, visitas de estudo, etc. Em relação aos primeiros, surgem noticiados
em A Mocidade, para o período 1910-1911, entre outros, os seguintes temas: «História
Universal» (Agostinho Fortes), «História Social e Política da Península Ibérica» (José
Augusto Coelho) e «Os Lusíadas» (Barbosa de Bettencourt). As conferências foram em
grande número, destacando-se as seguintes: «Literatura portuguesa no século XIX»
(Fidelino de Figueiredo), «A educação na futura democracia» (Fidelino de Figueiredo),
«Porque precisamos saber Física» (Almeida Lima), «O que deve ser uma educação
moderna» (Reis Santos), «O céu português – lições de astronomia» (Pedro José da
Cunha) e «Unificação de Itália» (Agostinho Fortes). Para além da relevância dos temas
ligados à História e à Literatura portuguesas, por razões que se prendem com formação
cultural de cariz patriótico pretendida pelos sectores republicanos, sublinhe-se a
16
Escola Marquês de Pombal. Breves apontamentos para a sua história (1911). A Mocidade..., 1 (19), 8. 17
Academia de Estudos Livres – Ano Lectivo de 1910-1911 (1911). A Mocidade..., 1 (16), 2.
12
presença dos temas científicos, em conformidade com a ideia, muito presente nos meios
ligados à educação popular, de que é possível levar esses conhecimentos até ao povo.
As visitas de estudo e excursões constituíam uma das actividades mais
acarinhadas pela Academia. No já referido ano lectivo (1910-1911) foram visitados,
entre outros, os locais a seguir indicados: a cidade de Tomar, o Mosteiro dos Jerónimos,
o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Nacional dos Coches, o Aqueduto das
Águas Livres, uma Fábrica de Chocolate, a Vila de Sintra (numa visita guiada por um
arquitecto muito ligado às construções escolares - Adães Bermudes), a Torre de Belém,
A Figueira da Foz e o Buçaco (neste caso uma excursão no Verão) e a Estação
Elevatória de Água dos Barbadinhos. A Academia – como, de resto, todos as escolas da
época que afirmam fazer “educação moderna” – é fortemente marcada pelo seu carácter
excursionista. As saídas são muito frequentes e tanto têm como objectivo a visita a
monumentos e museus – tendo em vista o aproveitamento das potencialidades
educativos que lhe estão subjacentes -, a fábricas, para um contacto in loco com a
realidade social, ao campo ou à praia, na procura dos benefícios decorrentes de uma
relação mais próxima com a natureza e dos exercícios físicos a ela inerentes.
Foram, igualmente, realizados vários concertos de música clássica, para além de
concertos com o Quarteto Silveira Pais, o professor de música na Academia.
Encontramos aqui espelhada, de novo, a crença na possibilidade de popularizar uma arte
e uma cultura consideradas, à partida, como de carácter erudito e dirigidas a um público
mais elitista. O quotidiano da Academia e da sua escola era, ainda, pontuado pela
realização de festividades diversas, de que são exemplo a festa de aniversário da escola,
a festa evocativa do aniversário da morte de Camões (10 de Junho) ou a Festa da
Árvore, para além de outros eventos comemorativos, como o relativo à unificação
italiana ou o cortejo aos Jerónimos em homenagem a Alexandre Herculano.
4. O povo e a sua educação nas páginas de A Mocidade e dos Anais
A Mocidade inicia a sua publicação no dia 15 de Julho de 1910, apresentando-se
como folha quinzenal, periodicidade que, em geral, vai conseguir manter, se
exceptuarmos o período de férias lectivas. Originalmente surge como sendo propriedade
de um Núcleo de Instrução da Academia de Estudos Livres. O primeiro Director é Abel
Ôteda, então estudante da Academia. O derradeiro número – o n.º 20 - está datado de 8
de Julho de 1911 e com ele se afirma completar “a 2.ª série e o 1º ano de A
13
Mocidade”18
. Na verdade, não voltou a conhecer a luz do dia. A publicação cobre
praticamente um ano, coincidindo, em boa medida, com as actividades relativas ao ano
lectivo de 1910/1911 (Nóvoa, 1993). Esse é, inquestionavelmente, um ano de enorme
riqueza do ponto de vista do contexto político. A fase inicial de publicação de A
Mocidade acompanha os três últimos meses de vida da monarquia constitucional
portuguesa. O n.º 4 do jornal – que se segue à uma paragem de quase dois meses,
parcialmente coincidente com as férias escolares – tem a data de 10 de Outubro de
1910, ou seja, cinco dias após a revolução republicana do 5 de Outubro. Esse e,
particularmente, o número seguinte contêm, de resto, amplas referências à República,
efusivamente saudada, o que dá conta do ambiente político que se vivia no interior da
Academia. Todo o restante período de publicação acompanha a fase inicial – uma fase
de grande vitalidade – do novo regime.
A Mocidade é, na realidade, “um jornal de estudantes” (como se apresenta no
número inicial) e é isso mesmo que então apregoa - “A Mocidade vai falar: têm a
palavra os alunos da Academia de Estudos Livres”. Conta, no entanto, com a visível
cumplicidade da direcção da mesma, dentro do espírito do self-government (ou
«autonomia dos escolares», como preferia Adolfo Lima) que então começa a difundir-se
nos sectores pedagógicos ligados à Educação Nova. Isso é reconhecido pelos seus
responsáveis: “A Mocidade tem condições de longa vida, porque a protege a direcção
desta casa”19
. Passa a ser distribuído a todos os sócios e subscritores da Academia e
compromete-se a publicar “por acordo com a direcção, todos os avisos oficiais das
excursões, visitas, conferências e outros trabalhos da Academia, assim como dará nota
do movimento das aulas, biblioteca, etc.”20
. Essas informações relativas ao quotidiano
da instituição vão preencher, de facto, uma parte substancial do conteúdo do jornal, o
que o torna (a par de uma periodicidade que se mantém regular) uma fonte inestimável
para o conhecimento da sua actividade. O facto de ser produzido pelos estudantes da
Academia acrescenta-lhe um tom de irreverência juvenil, sem nunca assumir a forma de
crítica às opções da direcção. Muito pelo contrário, aquela “casa” (como é referida a
certa altura) e os seus directores são sempre tratados com algum carinho, que dá conta
da assunção dos valores subjacentes à identidade institucional.
18
Comemorando (1911). A Mocidade..., 1 (20), 1. 19
A nossa política (1910). A Mocidade..., 1 (1), 1. 20
Expediente (1910). A Mocidade..., 1 (1) 1.
14
No n.º 12 de A Mocidade insere-se uma Circular da Direcção da Academia,
subscrita pelos seus membros de então – entre eles, Sá Oliveira e Cardoso Gonçalves –
apelando à sua assinatura e dando conta de uma ligeira alteração do estatuto da
publicação, ao afirmar-se que a “sua propriedade pertence a esta associação”. A
Mocidade acaba por assumir, em termos práticos, o papel de órgão da Academia e da
sua escola, papel esse que, mais tarde, passará a ser desempenhado pelos Anais da
Academia de Estudos Livres (1912-1916), a que adiante nos referiremos. A finalidade
pretendida por via da cumplicidade que directores e professores mantêm face à
publicação é claramente assumida: “O fim que visamos é proporcionar aos alunos da
Academia, que são os redactores do pequeno jornal, um meio prático de se educarem e
de estudarem... Consideramo-lo, repetimos, do mais alto alcance educativo”21
. O
discurso dos estudantes afina pelo mesmo diapasão: “nós, os que fazemos este pequeno
jornal, levamos em mira, trabalhando nele, a nossa própria educação... Todos temos,
entrando nesta casa, um desejo único: instruirmo-nos, educarmo-nos”22
.
Para além desse propósito de auto-formação, diríamos hoje, a grande finalidade
que está subjacente à publicação – e à actividade da Academia em geral – é a da
“educação do povo”. Esse desiderato é proclamado de forma veemente:
A cidade já está capaz de compreender os seus deveres cívicos? Pois
bem! Abalemos para essas aldeias e para essas serras a espalhar a boa
nova. Demos aos camponeses a instrução de que tanto precisam. Vamos,
aos domingos, até os mais ínfimos lugarejos e assentemos arraiais nos
adros das suas igrejas... Ali, perante o numeroso auditório atraído pela
curiosidade, ensinemos as mais singelas verdades da ciência e as suas
aplicações vulgares. No Inverno, pelas noites tempestuosas, reunamos
essa rude gente em qualquer celeiro e, com uma simples lanterna de
projecções, recreemos-lhes o espírito, educando-lhe o cérebro... Estas
missões científicas e patrióticas... trariam sempre palavras de paz e
falariam de coisas úteis, de verdades conquistadas pelos verdadeiros
amigos do povo, os sábios... Trabalhemos pela educação do povo!23
A anterior citação é particularmente interessante em vários sentidos, a começar pelo
proselitismo que a caracteriza. Aquilo a que os jovens redactores de A Mocidade se
propõem é uma verdadeira ida ao povo. Este surge como “rude gente”, carente de
formação cívica. A difusão da instrução e da educação, na terminologia da época, é “a
boa nova” que importa espalhar por todo o lado. Assumindo-se como detentores do
21
Expediente (1911). A Mocidade..., 1 (12), 2. 22
Sociedade de Estudos Pedagógicos (1910). A Mocidade..., 1 (3), 1. 23
Exageros (1910). A Mocidade..., 1 (6), 1.
15
saber – qual vanguarda esclarecida -, aos estudantes competia “dar” ao povo a instrução
que eles estariam necessitados. As “verdades da ciência” são claramente sacralizadas,
acreditando-se na possibilidade da sua vulgarização, bem como os seus cultores, os
“sábios”, considerados os “verdadeiros amigos do povo”. Esta é, sem dúvida, uma
concepção que atribui aos intelectuais o protagonismo maior no processo de educação
popular – concepção esta que está, em geral, subjacente ao projecto das universidades
populares – e que acredita nas virtualidades formativas da ciência e da cultura letrada e
na possibilidade da sua popularização (Pita, 1989; Ribeiro, 2003). É nessa linha que se
pode compreender a importância de estratégias como a organização de conferências
eruditas sobre história e literatura ou a realização de concertos de música clássica. O
apelo final a essa elite esclarecida é mobilizador: “Trabalhemos pela educação do
povo”!
A concepção atrás referenciada surge também de forma clara num contexto em
que um grupo de alunos da Academia – a partir da iniciativa dos responsáveis pelo
jornal – decidem convidar os professores ligados à Sociedade de Estudos Pedagógicos -
que se reúnem habitualmente nas próprias instalações da Academia – para realizarem
um conjunto de conferências e cursos livres sobre assuntos de ciência e de arte,
“imitando nisso o que fazem os professores franceses nas Universidades Populares de
Paris”. Esta referência é sintomática do facto de serem as universidades populares
francesas que servem de referência à tentativa de aproximação da Academia de Estudos
Livres em relação a esse paradigma. A justificação dessa proposta – tendo por base “a
indispensável aproximação de intelectuais e trabalhadores” - é, ainda, mais
esclarecedora sobre os pressupostos que lhe estão subjacentes: “É preciso arrancar ao
seu isolamento os cultores da Ciência e da Arte. Venham até ao povo e iniciem-no nos
estudos, que há séculos eram feudo das classes privilegiadas. Pela Ciência e pela Arte!
É a divisa da Academia de Estudos Livres”24
.
No entanto, curiosamente, as referências a essa entidade mítica que é o povo
caracterizam-se por alguma ambivalência. Por um lado, o povo é valorizado, idealizado
mesmo, como quando se elogia a “inquebrantável ordem” manifestada nos “grandes
cortejos apoteóticos”, que seria uma clara “manifestação de qualidades, de tendências
fundamentais, que distinguem o povo português como uma verdadeira raça”. O novo
contexto republicano terá, até, despoletado, segundo o autor do artigo «O Povo»:
24
Sociedade de Estudos Pedagógicos (1910). A Mocidade..., 1 (5), 3.
16
[uma] fase interessante da vida da nossa gente, dando ao mundo
civilizado tantas admiráveis lições de civismo, aceitando todas as
indicações dos dirigentes, praticando até sem resistência e sem má
vontade – caso raro em gente ignorante! – as regras de higiene
aconselhadas pelos médicos – como se deu há poucos dias nesse infecto
bairro de Alfama, aquando da epidemia pestífera. Qualidades positivas
são estas, que caracterizam um grande povo, uma inconfundível raça.25
Esta citação é particularmente curiosa por conter em si, simultaneamente, os elementos
de valorização e desvalorização do povo, que dá “admiráveis lições de civismo” ao
“mundo civilizado” – ainda que a partir das indicações dos dirigentes, acolhidas sem
“resistência” nem “má vontade” -, mas, por outro lado, é retratado como “gente
ignorante” (ou “rude gente”) que habita um “infecto bairro”. O paradoxo relativamente
ao “grande povo” e à “inconfundível raça” da retórica final – bem típica duma época
que sacraliza, no âmbito do discurso patriótico, a entidade raça - é por demais evidente.
Mas outros “vícios” – a par das reclamadas virtudes - são apontados ao povo português.
“Uma das suas péssimas tendências é - o pedir... Pedir? Mendigar? Degradante situação
para um Homem”. A interpretação desse defeito vem bem na linha do discurso
produzido sobre as chamadas causas da decadência dos povos peninsulares a partir da
Geração de 70 (e, em particular, de Antero): “Junte-se o bom freire, o torvo [sic]
inquisidor e o jesuíta manhoso – e ter-se-á encontrado a razão porque Portugal se
abandalhou – perdida a integridade do carácter”. A solução é, igualmente, coerente com
o optimismo pedagógico que caracteriza o período: “A tamanho mal encontramos só um
remédio – educar o povo até à compreensão da dignidade do trabalho”26
.
É bem um projecto global de moralização dos costumes e de mudança de
mentalidades que está subjacente aos discursos impressos em A Mocidade e que tem em
vista a construção do “homem novo”, preparado para a vida na recém instaurada
República. Para isso é necessário vencer, primeiro que tudo, “o monstro – a ignorância
popular”27
.
Passando agora aos Anais da Academia de Estudos Livres - Universidade
Popular, o primeiro número está datado de Novembro e Dezembro de 1912. A sua
publicação manterá um carácter irregular, tendo cessado, com o n.º 2 da 3ª série, em
1916. Atravessava-se, então, o complexo contexto nacional e internacional marcado
25
O Povo (1910). A Mocidade..., 1, (7), 1. 26
Idem. 27
A nossa política (1910). A Mocidade..., 1 (1), 1.
17
pela entrada de Portugal na Grande Guerra e que encerra a primeira fase de vida da
República portuguesa. Ao contrário de A Mocidade, e apesar de vir preencher o espaço
por ela anteriormente ocupado, os Anais apresentam-se, logo de início, como
propriedade da Academia. A revista contém artigos sobre temáticas e práticas
educativas então consideradas relevantes ou inovadoras, tais como o combate ao
analfabetismo, a educação moral, a higiene escolar, a educação física, a educação pela
arte, as festas escolares e a formação de professores; contém, ainda, informações sobre
as actividades desenvolvidas pela Academia e informações bibliográficas (Nóvoa,
1993).
No artigo de apresentação da revista – «Ao público» – os responsáveis da
mesma afirmam taxativamente: “O alvo é - a educação do povo”28
. No texto de
divulgação duma conferência de Pedro José da Cunha sobre um tema científico - «A
lua» - assume-se o “benemérito empenho de fazer progredir a educação popular”29
. No
anúncio de um curso sobre «História universal», orientado por Agostinho Fortes, dá-se
conta da intenção de publicar na revista “extractos das lições, a fim de que fiquem
devidamente arquivados tão excelentes trabalhos de vulgarização científica”. E conclui-
se: “Reputamos os conhecimentos históricos indispensáveis para a educação do povo”30
.
Ao relatar – numa secção sobre a história da Academia - uma sessão literária dedicada a
Gil Vicente, a qual teve como conferente Teófilo Braga e que incluiu, ainda, a leitura de
textos da Farsa de Inês Pereira por alunos do então Liceu da Lapa, considera-se ter
sido aquela “a primeira vez que em Portugal se tentou a leitura duma obra prima da
nossa literatura como meio de propaganda educativa do gosto público”31
. Em artigo da
autoria de Joaquim Cardoso Gonçalves, que relata uma visita ao Museu das Janelas
Verdes (actual Museu de Arte Antiga), afirma-se: “um museu é sempre precioso
elemento de educação popular”32
. Finalmente, os Estatutos da Academia, reformulados
em 1904 – a partir de uma primeira versão de 1889 –, consideram que a mesma se
destina “em geral, a desenvolver o gosto pelo estudo, pela ciência e pela arte” e “em
especial, a proporcionar aos sócios o conhecimento das ciências e das artes”33
.
28
Ao público (1912). Anais da Academia de Estudos Livres – Universidade Popular, 1-2, 1. 29
Conferências e palestras – A lua (1912). Anais..., 1-2, 22 30
Excursões e visitas – A evolução da estatuária decorativa portuguesa (1912). Anais..., 1-2, 48. 31
Uma sessão literária (1912). Anais..., 1-2, 52. 32
Gonçalves, J. Cardoso (1913). Notas de arte – Um museu. Anais..., 4-5, 122. 33
Academia de Estudos Livres – Universidade Popular. Novos Estatutos (1904). Lisboa: Imprensa
Comercial.
18
Como nota Rogério Fernandes (1993), vemos, deste modo, “desenhar-se uma
concepção enriquecedora da educação popular” e “o contorno de uma «pedagogia»
diferenciada para os adultos”, ao mesmo tempo que se regista “uma afirmação vigorosa
do valor social da ciência e da sua difusão” (p.11). Tendo como referência o projecto de
educação popular, Marlène Neves (1997) pergunta: Trata-se de “educação do Povo,
para o Povo, ou de qualquer modalidade de domesticação” (p.2). Esta interrogação
remete-nos simultaneamente para a complexidade e para a ambiguidade, já sublinhadas,
quer da noção de povo quer da expressão educação popular. No caso em estudo fica
claro que se trata de uma criação de intelectuais de raiz iluminista que, entre o final da
monarquia e a república, investem na promoção cultural e cívica dessa entidade vaga e
transversal a que chamam povo, elevando-o “ao nível dos povos cultos”34
. Essa
promoção passava pelo acesso à cultura letrada, até aí privilégio das elites, mas que se
procurava tornar acessível a todos. De acordo com Cardoso Gonçalves, pretende-se
“chegar até o povo que já não pode frequentar as aulas, pela extensão universitária e
pelas universidades populares, por outros muitos processos de cultura”35
. Daí as
conferências sobre temas literários e científicos, as visitas a monumentos e museus, os
concertos, etc. A expressão “vulgarização científica” é, a esse respeito, esclarecedora.
Acredita-se, genuinamente, que é possível ensinar tudo a todos, como se acredita na
possibilidade de modelar o “gosto público”.
5. O carácter de Universidade Popular da Academia de Estudos Livres
No relatório da direcção relativo ao período 1912-1913 afiança-se que “a
Academia de Estudos Livres tem tido sempre em mente realizar a sua missão de
Universidade Popular”36
. Como já vimos, pelos Estatutos de 1904 essa expressão é
mesmo acrescentada à sua denominação. É o referido relatório, não obstante, que dá
conta do carácter ambivalente da instituição, decorrente da incorporação da Escola
Marquês de Pombal, considerada, a partir do mesmo ano, uma Secção da Academia de
Estudos Livres. Aí se afirma ser a essa componente “que [a Academia] dedica, neste
momento, quase exclusivamente, todas as suas atenções”. E acrescenta-se:
34
O ensino post escolar (1912). Anais..., 1-2, 10. 35
Gonçalves, J. Cardoso (1916). A questão moral (conclusão). Anais..., 2, 201. 36
Relatório da Direcção (1914). Anais..., 9-10, 298.
19
Esta parte do programa é a que mais colide com o papel de universidade
popular que a Academia deseja ter. Se atendessemos aos princípios não
deveríamos preocupar-nos com as aulas da índole das que estabelecemos.
Isto é bem sabido de todos. Mas a verdade é que para tal caminho fomos
impelidos pelas circunstâncias. E a verdade é que a Academia tem
prestado relevantes serviços com a prática dessas aulas. Parece, pois,
que, por enquanto, devemos continuar. Mais tarde, em melhor casa e
melhor sítio, remodelaremos os serviços conforme indicámos no capítulo
anterior, ficando a secção de aulas completamente separada da secção
que constituiria propriamente a UNIVERSIDADE POPULAR.37
O Parecer do Conselho Fiscal vai no mesmo sentido da assumida pela Direcção.
Aí se considera que “a Escola Marquês de Pombal foi uma pesada herança para as
condições financeiras da Academia”. No entanto, o Conselho considera que “dentro do
espírito educativo da Academia estava a missão de fornecer conhecimentos regulares de
escola aos alunos que dela carecessem e suas famílias”. Por isso, a solução terá de
passar pela aquisição de “uma casa mais ampla” e pela “separação das funções da
Academia entre aulas profissionais e cursos, e conferências de vulgarização,
constituindo propriamente a Universidade Popular”38
. Numa e noutra das vertentes, a
avaliação é muito positiva:
Realizou 12 conferências, 6 visitas de estudo, 2 sessões solenes, uma
sessão de propaganda e outra de arte, 1 concerto musical, 2 festas da
árvore, 1 festa escolar e 1 passeio fluvial...
A importância dessas matrículas para 12 disciplinas em aulas nocturnas,
avalia-se pelo número de 522 com uma frequência de 341 alunos, dos
quais 256 do sexo masculino e 85 do sexo feminino, exercendo diversas
profissões em número de 29. Além disso, a aula diurna de instrução
primária tem 114 matrículas”.39
As reflexões e informações anteriormente apresentadas mostram que os
dirigentes da Academia estavam bem cientes de qual o papel a desempenhar pelas
Universidades Populares e qual a sua especificidade. Estas tinham em vista a educação
permanente dos adultos, não a sua alfabetização nem a educação escolar dos jovens. Os
seus meios de acção eram, preferencialmente, as conferências, os cursos livres, as
visitas de estudo e a biblioteca, ou seja, a vulgarização científica e cultural, não as aulas
tradicionais. As condições do país – com uma população jovem maioritariamente não
escolarizada - forçavam, no entanto, a Academia a “concorrer para o melhoramento dos
37
Relatório da Direcção (1914). Anais..., 9-10, 300. 38
Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319. 39
Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319.
20
costumes [também] por meio do ensino, ainda aplicado à primeira infância pelos
processos modernos”40
. No caso português, como nota Marlène Neves (1997), nem
sequer há uma clara distinção conceptual entre as Universidades Livres e as
Universidades Populares.
6. As concepções pedagógicas inovadoras na óptica da Academia de Estudos Livres
Nas palavras de um dos articulistas dos Anais – o médico Francisco Morais
Manchengo – “a escola moderna tem um papel social incomparavelmente mais largo
que a escola do passado: hoje exige-se-lhe que, não só instrua os seus discípulos, como
os prepare completamente para a vida moderna”41
. O que aqui nos importa sublinhar é
que este tipo de dicotomias – no caso, “escola moderna” versus “escola do passado” –
marca alguma presença nos discursos presentes na revista, como presentes estão,
igualmente, abundantes referências a lugares-comuns e slogans do movimento de
renovação pedagógica então em fase de afirmação.
Exemplar, a esse respeito, é o relatório apresentado por Albertina dos Santos
Cordeiro, responsável pela direcção da Escola Maternal anexa à Academia de Estudos
Livres, e relativo ao ano lectivo de 1912-1913, relatório esse publicado na revista. Sobre
a organização do horário escolar afirma a autora:
O horário que organizei não se afasta do que é geralmente adoptado nos
estabelecimentos similares estrangeiros, o qual, obedecendo às mais
rigorosas prescrições higiénicas, como é confirmado pela opinião de
muitos médicos escolares, não deixa de satisfazer aos princípios duma
educação integral.42
A anterior citação não só dá conta da vontade de ter em conta as experiências
estrangeiras consideradas exemplares, mas é igualmente expressão da presença, no
discurso pedagógico, de uma fonte de legitimação médica, a par das preocupações de
tipo higienista. Para além disso, destaque-se a referência ao paradigma da educação
integral, uma presença constante no pensamento pedagógico renovador. Daí decorrem,
segundo a autora, períodos curtos de trabalho, para as disciplinas que obrigam a um
maior esforço intelectual, separados por intervalos regulares. Além disso, há uma
40
Parecer do Conselho Fiscal (1914). Anais..., 9-10, 319. 41
Manchengo, F. Morais (1912). Questões pedagógicas – Inspecção médica escolar. Anais..., 1-2, 7. 42
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 196.
21
concentração dos “exercícios que pedem mais atenção” na parte da manhã, sendo a
parte da tarde dedicada a outras actividades, tais como os trabalhos manuais, que não
representam realmente trabalho, mas antes divertimento, já que deve ser esta “a sua
principal preocupação”; o canto coral – a “vida” e a “alegria da escola”; os jogos livres
e dirigidos, no sentido de “aperfeiçoar os sentidos, desenvolver os músculos e fazer
despertar o espírito de lealdade, gratidão e amor”. Do currículo fazem ainda parte uma
iniciação à leitura, à escrita e à geografia, para além das chamadas “lições de coisas” –
expressão ambivalente que recobre um dos procedimentos mais em voga no seio das
correntes renovadoras -, a partir dos “diversos objectos que as rodeiam” e tomando
assuntos das áreas da botânica, da zoologia e da agricultura. A autora considera-as “um
dos mais interessantes ensinos das escolas maternais”43
.
Albertina Cordeiro mostra-se, ainda, em consonância com os esforços no
sentido, por um lado, da profissionalização da actividade docente e, por outro, da
valorização da educação de infância, tendências estas que caracterizam o período.
Segundo diz, cada classe está entregue a uma professora, e não a uma “servente” –
usando a terminologia de então -, pois isso seria, na sua opinião, “falsear o princípio
fundamental da escola maternal, que é a educação”. Ainda que essas funcionárias
possuam “belas qualidades pessoais, não podem, por falta da devida preparação, ser o
que nós consideramos uma educadora”. Ou seja: só pode ser boa “educadora” quem
teve uma formação especializada para desempenhar tal função, mesmo quando, no caso
da “escola maternal”, as qualidades que a definem são, segundo a autora, “a mãe boa,
terna e inteligente”, o que não deixa de nos remeter para a permanente interpenetração
entre as dimensões pessoal e profissional no que se refere à actividade docente, ainda
mais visíveis neste nível de ensino44
.
A coeducação, outra das marcas distintivas das experiências inovadoras do
período, é praticada na “escola maternal” da Academia de Estudos Livres, o que
contrasta com a timidez dos passos dados para a sua generalização, mesmo no contexto
do Portugal republicano. Segundo a directora, “a nossa escola é mista no mais amplo
sentido da palavra”, uma vez que não há separação de géneros em nenhum dos lugares
da escola nem se pretende impor às crianças qualquer concepção sobre esse tipo de
43
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 198-200. 44
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 197.
22
diferenciação. De acordo com o que se afirma, “não há rapazes nem raparigas – há
crianças”45
.
A consciência das finalidades integradoras e normalizadoras da educação infantil
está bem presente no discurso de Albertina Cordeiro:
Conquanto pareça fastidioso dizer e redizer que a escola maternal é o
conjunto de bons hábitos, é indispensável convencermo-nos de que a
criança não vai para ali para ser um pequenino e ridículo sábio – vai para
se tornar vigoroso, pela prática dos bons preceitos higiénicos, vai para
adquirir hábitos de ordem, para se disciplinar com a prática repetida de
bons hábitos materiais, para conquistar o amor ao trabalho, para saber
viver com os seus colegas, respeitar e amar seus pais e professores, para
se interessar pelas felicidades das pessoas com quem vive, tomar parte
nos seus desgostos, para auxiliar os seus semelhantes em tudo quanto
possa, para se acostumar a amar o bem e ter horror ao mal, enfim, para se
tornar forte, inteligente, bom e belo. Eis os fins essenciais da escola
maternal.46
A enfatização daquilo a que a autora chama “bons hábitos” dá bem conta da dimensão
moral dum projecto que aspira à “regeneração das crianças” pela via da educação
infantil47
. Os referidos “bons hábitos”, onde se incluem a ordem, a disciplina e o amor
ao trabalho, confirmam a sua perfeita adequação aos valores liberais do republicanismo,
mas também a sua funcionalidade no âmbito de um projecto global de governo dos
indivíduos através da construção (logo a partir do jardim de infância) da sua
subjectividade. Algumas das referências finais do texto não deixam de poder ser
articuladas com a noção de solidariedade, valor central no quadro do projecto de
construção de uma moral laica alternativa à do catolicismo. A crítica, de inspiração
“rousseauniana”, à figura do “pequenino e ridículo sábio”, remete não só para o ideal de
educação integral - tornar o jovem “forte, inteligente, bom e belo” -, mas também para o
relativo anti-intelectualismo das correntes renovadoras.
Na conclusão do seu texto, Albertina Cordeiro sublinha o carácter inovador da
experiência que dirige, ao considerar que ela evoluiu “a par das dos países que
caminham na vanguarda do ensino” e, apesar de reconhecer a influência froebeliana,
reafirma a sua originalidade e especificidade nacional, aqui em consonância com a
45
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 197. 46
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 198. 47
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 202.
23
retórica patriótica que é uma das imagens de marca do discurso pedagógico
republicano48
.
A referência, nas páginas dos Anais, a outras instituições escolares prende-se
com a crença na possibilidade de generalizar as inovações através da divulgação de
exemplos modelares (tanto de escolas como de práticas), em contraponto à crítica das
práticas consideradas negativas. Um exemplo é a sequência de dois artigos, assinados
por António Alfredo Alves, militar e professor do Instituto Feminino de Educação e
Trabalho (Odivelas), dedicada ao tema dos asilos femininos em Portugal e escrita após
visitas do autor a diversas dessas instituições. Num balanço geral, Alfredo Alves afirma
o seguinte:
A impressão que me ficou das visitas que fiz a estas casas foi a de que as
respectivas direcções pensam muito a sério em resolver o problema da
educação da mulher do povo, preparando a criança desvalida para as
lutas da vida, a fim de que no meio em que mais tarde tem de viver possa
ser um elemento de valor social e não um elemento perturbador e inútil...
Era dever de todos fazermos um pouco mais de justiça às pessoas que
dirigem estes estabelecimentos que, pelo seu carácter, pelo seu amor às
crianças desvalidas e pelo seu saber procuram por todos os modos dar
pão e abrigo à pobrezinhas bem como uma educação harmónica com o
meio em que são destinadas a viver, além de amparo e protecção à saída
da casa em que se tornaram mulheres.49
Um aspecto a sublinhar é o claro entendimento dos asilos como tendo por função a
“educação da mulher do povo” Uma dessas instituições – o Asilo do Lumiar – é
exactamente criticado por ser “antes um albergue de crianças pobres do que uma
escola”50
. Em relação ao Recolhimento de S. Pedro de Alcântara sugere-se que a
reformulação, “harmonizando-o com as indicações de uma boa e sólida educação”
comece pelo próprio nome – “recolhimento”51
.
É visível, no entanto, que a promoção social para que essa educação deve
apontar é muito relativa. Ela deve ser adequada ao meio social em que as asiladas “são
destinadas a viver”. Numa das instituições – o Asilo de Nossa Senhora da Conceição
para Crianças Abandonadas – o plano de estudos e trabalhos – considerado “moderno” -
é elogiado por ter por finalidade “preparar as pobres crianças para uma vida de trabalho
e de honestidade” e por estar em “harmonia com o lugar que as alunas naturalmente
48
Cordeiro, A. S. (1913). Relatório. Anais..., 7-8, 201. 49
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 143-144. 50
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 145. 51
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 243.
24
virão a ocupar na sociedade: boas criadas e operárias instruídas”52
. Além disso, a
finalidade de controlo social que, por essa via, se pretende atingir é uma das suas
principais motivações. A educação proporcionada pretende evitar que essas jovens se
transformem num “elemento perturbador e inútil”.
Um dos aspectos que é elogiado em algumas instituições é a qualidade dos
edifícios e dos espaços envolventes e sua adequação à função que exercem. Do Asilo D.
Pedro V diz o autor ter sido “construído expressamente para este fim, com amplas
janelas por onde a luz e o ar entram livremente”, para além de estar localizado numa
zona verde e de possuir horta e jardim53
. As preocupações, de natureza higiénica, com a
iluminação e a circulação do ar estão bem presentes, bem como o pressuposto – típico
da Educação Nova – da necessidade de contacto com a natureza, encarada como fonte
de regeneração. Encontramos ainda uma chamada de atenção para espaços – como a
horta – encarados como imprescindíveis para a prática de trabalhos manuais e para uma
aproximação maior ao ideal da educação integral. No já referido Asilo de Nossa
Senhora da Conceição, refere-se que “as alunas aprendem no jardim a observar e a
cultivar as flores, tratam de horticultura, arboricultura, criação e tratamento de animais
domésticos”54
.
O papel educativo do trabalho é bastas vezes realçado. Relativamente ao Asilo
do Lumiar, Alfredo Alves afirma, em tom crítico, que “não há propriamente ensino
doméstico” e que “não se pode dizer que haja ensino profissional”55
. Em contraponto,
no Asilo de Santo António, considerado “uma das mais belas obras educativas que nos
tempos modernos Lisboa deve à iniciativa benfazeja dos amigos das crianças pobres”,
“as alunas fazem todo o serviço da casa, tanto da cozinha como da limpeza do edifício,
refeitório, camaratas, etc.”, nenhuma saindo do estabelecimento “sem que tenha,
praticamente, conhecimento de todos os serviços domésticos”56
.
Mas, segundo o autor, o que torna este estabelecimento “modelar” e “notável”
são as suas “alegres oficinas”, que incluem o trabalho da prata e da madeira, a
cartonagem, o corte e confecção de vestidos, bordados, etc.57
. É que, para além dos
trabalhos educativos, a maioria destes asilos estão vocacionados para uma formação
profissional. No mesmo asilo existe, por exemplo, um curso de escrituração comercial.
52
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 242. 53
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 144. 54
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 242. 55
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 146. 56
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 146-147. 57
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. Anais..., 4-5, 147.
25
No Asilo de Nossa Senhora da Conceição existem cursos de contabilidade, culinária e,
curiosamente, de professoras em várias áreas (educação infantil, rendas e bordados,
dactilografia, ginástica sueca, etc.). Esta não é uma excepção, já que no Asilo da Ajuda
as alunas mais distintas são enviadas a “frequentar a Escola Normal de Lisboa”58
. Na
Casa-Mãe de Benfica, fundada por Francisco Grandela, as educandas aprendem a
trabalhar, como modistas, na fábrica do próprio fundador. Mas é a chamada “educação
doméstica” a principal área de formação da maioria destas casas. É o caso do Asilo da
Ajuda, considerado “um verdadeiro modelo em tudo que se refere ao ensino das donas
de casa”, onde tudo “está a cargo das pequenas donas de casa”. Alfredo Alves
acrescenta a seguinte curiosidade à anterior constatação no sentido de reforçar o seu
veredicto:
Um dos directores é o general Sr. Bandeira de Melo, uma alta
competência no assunto; os seus livros de cozinha e de corte publicados
com o pseudónimo de Carlos Bento da Maia dão-lhe um lugar de
destaque entre as pessoas que se têm dedicado ao ensino doméstico. Não
é porém o saber a única qualidade deste ilustre oficial, avulta nele a
paixão pela vulgarização dos conhecimentos de utilização imediata,
tornando-o assim um verdadeiro apóstolo da educação da mulher do
povo.59
O papel assumido pela educação doméstica na agenda pedagógica renovadora não deixa
de ser interessante. Por um lado, há um elemento de valorização da educação feminina,
designadamente no que se refere à “mulher do povo”; por outro, é inquestionável a
reprodução de uma divisão de trabalho que remete a mulher para as tarefas domésticas.
Para além disso, encontramos aqui um general produtor de obras da especialidade,
consideradas de “vulgarização dos conhecimentos de utilização imediata”. Esta é,
seguramente, uma das mais importantes acepções atribuídas à “educação popular” pela
elite esclarecida de então e com preocupações de natureza filantrópica e educativa.
Num artigo inserido na secção «bibliografia» e dedicado à análise da revista
Educação da Sociedade Promotora de Escolas – fundadora da emblemática Escola-
Oficina n.º 1 – critica-se, exactamente, o “fazer bem” entendido como “virtude
religiosa”, considerado prevalecente no panorama nacional, em contraponto com o
“sentimento da solidariedade humana” interpretado como um “dever cívico”. É esta
última, segundo o articulista, a atitude subjacente às actividades daquela sociedade e
58
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 247. 59
Alves, A. Alfredo (1913). Asilos femininos. II. Anais..., 7-8, 246-247.
26
daquela escola. Na recensão realça-se o facto da revista ter como uma das suas virtudes
o “revelar as aptidões singulares dos professores da Escola-Oficina n.º 1”. É ao trabalho
dos referidos professores - e ao “espírito novo” e “moderno” de que dão mostras - que é
atribuído o “triunfo incontestável” dessa escola, apresentada aqui como um exemplo a
seguir no campo renovador.
Aí está o nó da questão: a escola será o que for o mestre. Exercer o
ensino, educar, é a tarefa mais delicada e mais bela. Se o mestre observa
e se corrige, actua e se aperfeiçoa constantemente nos seus processos de
trabalho, a escola prospera, a escola exerce verdadeiramente uma acção
progressiva – a escola é um valor social. Não bastam os majestosos
edifícios e o riquíssimo material: se o mestre não for como um sacerdote,
aperfeiçoando almas, fazendo desabrochar aptidões, inibindo tendências
ruins, a escola, rica no seu aspecto, grandiosa nos seus museus,
laboratórios e oficinas, falhará miseravelmente. Ora a Escola-Oficina n.º
1 é alguém e o que é deve-o principalmente ao seu professorado. É a
revista Educação que nos revela esta verdade.60
O texto anterior é de uma enorme riqueza e articula-se com diversas questões relativas à
profissão docente. Em primeiro lugar o reiterado tratamento de “mestre”, que nos
remete tanto para as raízes simultaneamente religiosas e artesanais da figura do
professor como para a influência moral que a sua pessoa devia inspirar. Em segundo
lugar a sobrevalorização – “a escola será o que for o mestre” - e, mesmo, sacralização
do seu papel, por via do uso da metáfora do “sacerdote”, bem típicas duma época que
acredita na escola como lugar de salvação e no contributo do professor no sentido da
transformação social. Por fim, a ideia de que o processo de profissionalização da
actividade docente, para o favorecimento do qual o discurso da Educação Nova se
reveste de uma inquestionável funcionalidade, não é incompatível com a continuação do
uso de algumas das tradicionais categorias associadas à docência, como “mestre” e
“sacerdote”.
7. O debate sobre a educação moral e cívica
As páginas dos Anais (bem como as de A Mocidade) são bem a expressão de
alguns dos lugares-comuns, de raiz positivista e organicista, típicos da época. Na
habitual rubrica «Cartas insubmissas», o publicista Afonso Vargas critica a “depressão
60
Bibliografia – Educação (1913). Anais..., 4-5, 157-158.
27
moral” e o “abandalhamento cívico” que atingiriam a sociedade portuguesa de então,
tornando imperioso o “levantamento do espírito público”61
. A esse respeito, “o que
principalmente urge – na opinião do articulista - é atacar com denodo a mancha enorme
do analfabetismo nacional”, abraçar “a causa sagrada do renascimento nacional pela
educação e pelo ensino”62
e “inaugurar uma vida nova e progressiva”63
. O autor verbera
a monarquia, por nos ter deixado “nesse estado” e considera não haver justificação para
a República nos conservar nele. E antecipa em tom pessimista: “daqui a anos ou
Portugal será grande, culto e progressivo – ou não será”64
.
No já citado artigo dedicado à «inspecção médica escolar», Morais Manchengo
constata “uma degenerescência cada vez maior das raças” e considera necessário
“prevenir as decadências físicas e morais que ameaçam a vitalidade das raças”. É nas
gerações novas que “está o futuro das nacionalidades”, mas o seu estado actual inspira
“sérios cuidados”. Recorrendo à legitimidade científica corporizada no discurso médico,
o autor faz um diagnóstico arrasador: “as investigações feitas em países diversos em
centos de milhares de crianças deram unanimemente o mesmo resultado; por toda a
parte se verifica uma tendência maior ou menor para as taras mais variadas”65
. Em
artigo não assinado e tendo «A luta contra o ruído» como tema, este é considerado
como “uma das mais importantes causas de neurastenia – esse mal devastador que tanto
aflige a pobre humanidade e contribui para a sua degenerescência”66
. Torna-se
necessário, por isso, regressando a Morais Manchengo, lutar pelo “bem estar e
perfectibilidade humanas”67
e a Educação Física, cujas finalidades são por ele
analisadas noutro artigo, será, a esse propósito, um “extraordinário factor de
aperfeiçoamento das raças”68
.
É, em parte, esta constatação de uma decadência em aparência inexorável e,
simultaneamente, a crença numa possível regeneração por via da escola, que contribuem
para a centralidade que o tema da educação moral adquire nas publicações da
Academia. Cardoso Gonçalves, secretário da direcção e um dos mais visíveis
impulsionadores da Academia e da sua escola, trata do tema em diversas ocasiões. No
61
Vargas, Afonso (1912). Cartas insubmissas. Anais..., 1-2, 3. 62
Vargas, Afonso (1913). Cartas insubmissas. Anais..., 6, 161. 63
Vargas, Afonso (1912). Cartas insubmissas. Anais..., 4-5, 98. 64
Vargas, Afonso (1912). Cartas insubmissas. Anais..., 4-5, 99. 65
Manchengo, F. Morais (1912). Questões pedagógicas – Inspecção médica escolar. Anais..., 1-2, 7-8. 66
Questões pedagógicas – A luta contra o ruído (1913). Anais..., 6, 170. 67
Manchengo, F. Morais (1912). Questões pedagógicas – Inspecção médica escolar. Anais..., 1-2, 7. 68
Manchengo, F. Morais (1913). Questões pedagógicas – A finalidade em Educação Física. Anais..., 4-5,
128.
28
artigo «A moral na escola», retomado de uma comunicação apresentada em 1913 ao
Congresso do Livre Pensamento, o autor manifesta-se em prol de uma “moral laica”,
tendo por “indestrutível fundamento” o “sentimento da solidariedade”, resultado da
comunhão do homem com a “natureza” e com a “humanidade” e factor de “progresso
indefinido”69
. Numa sequência de dois artigos tendo por título «A questão moral», o
autor retoma os mesmos tópicos, considerando que o referido “progresso” transportará a
“humanidade” rumo a uma “sociedade perfeita”, à sua “idade de ouro”70
. Segundo
afirma, só o “desenvolvimento da ciência” – conduzindo à elaboração da “teoria
científica da solidariedade” – tornou possível estes desenvolvimentos71
. É nítida a
consonância destas afirmações com a luta pela afirmação, em contexto republicano, de
uma moral alternativa à moral do catolicismo mas desempenhando idêntica função
integradora.
Saídos duma revolução, os nossos antigos princípios morais sofreram um
choque rude. Ao trabalho de demolição tem de seguir-se portanto o
trabalho construtivo. E este, devendo fazer-se fora de preocupações
sectárias, políticas ou religiosas, deve procurar nortear-se pelas
necessidades da pátria. A questão moral é, entre nós, uma questão
nacional em aberto.72
Cardoso Gonçalves desenvolve, ainda, todo um conjunto de considerações tendo
em vista o ensino da moral nas escolas, o qual deve concretizar-se apenas “por
processos indirectos”73
, uma vez que o autor não acredita “na eficácia da doutrinação
directa dos princípios da solidariedade”. Segundo ele afiança - “a moral não se prega,
pratica-se”74
. Estratégia privilegiada é a que decorre da exemplaridade moral do
professor: “O exemplo do mestre tem de primar acima de tudo. O mestre deve ser um
homem de carácter, de conduta irrepreensível, justiceiro, sabendo aproveitar os instantes
mais propícios ao ensino moral”75
. Esta referência é coerente com o perfil já aqui
traçado. O entendimento do professor como educador moral torna visível a permanência
de algumas das tradicionais referências de cunho religioso, conjugadas com dimensões
de natureza profissional.
69
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 204-205. 70
Gonçalves, J. Cardoso (1915). A questão moral. Anais..., 1, 96-97. 71
Gonçalves, J. Cardoso (1915). A questão moral. Anais..., 1, 99. 72
Gonçalves, J. Cardoso (1916). A questão moral (conclusão). Anais..., 2, 203-204. 73
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 208. 74
Gonçalves, J. Cardoso (1916). A questão moral (conclusão). Anais..., 2, 201. 75
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 206.
29
São ainda propostas outras metodologias, tais como os passeios pelos campos, as
reuniões em comum, a leitura comentada de biografias de homens exemplares, o self-
government escolar (tal como é defendido, nota o autor, por António Sérgio em obra
recenseada anteriormente nos Anais), o escutismo e as festas escolares.
Cardoso Gonçalves defende “a adopção do Scoutismo nas escolas laicas”76
,
considerando-o “uma das mais geniais invenções pedagógicas dos últimos tempos”77
,
“uma escola, enfim, de civismo e de honra”, para além de “uma escola de bondade”,
através da qual se chega simultaneamente ao “cérebro” e ao “coração da criança”,
iniciando-a nos “princípios da solidariedade”, fazendo-a abominar a mentira e
conduzindo-a à prática do “bem social”78
. Cardoso Gonçalves foi, de resto, um dos
impulsionadores do movimento em Portugal, ultrapassadas as polémicas dos primeiros
tempos acerca do seu eventual carácter militarista e da sua proximidade em relação aos
batalhões escolares.
As festas escolares, por seu lado, são consideradas um “precioso recurso” –
festas da árvore, da primavera, de recepção aos novos alunos -, mas delas não devem
fazer parte “os discursos políticos, as leituras de relatórios enfadonhos, a exibição
grotesca de fardas e medalhas”, geralmente pretextos de “ostentação vaidosa” ou de
“propaganda sectária”79
, o que nos remete para uma das polémicas desencadeadas no
campo pedagógico de então entre os partidários das festas cívicas republicanas e os
defensores de festas especificamente escolares.
Nestas últimas festas tinham regularmente lugar a música, o canto coral, a
recitação e a representação dramática, já que todas essas actividades deveriam ser
atravessadas por “um acentuado cunho artístico”80
. A dimensão estética da educação
moral é algo a que o autor é constantemente sensível. A arte constitui, para ele, “o
processo prático para se chegar ao fim moral”81
, o que o conduz à seguinte exortação:
“Simplicidade e arte!... Alegria e Arte! Flores e risos! Festas de crianças e para
crianças”82
.
No caso da Academia de Estudos Livres, são muitas as festas noticiadas, de que
é exemplo a festa realizada no dia 24 de Novembro de 1913 para recepção de um
76
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 208. 77
Gonçalves, J. Cardoso (1916). A questão moral (conclusão). Anais..., 2, 203. 78
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 208. 79
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 207. 80
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 207. 81
Gonçalves, J. Cardoso (1915). A questão moral. Anais..., 1, 97. 82
Gonçalves, J. Cardoso (1913). A moral na escola. Anais..., 7-8, 207.
30
estandarte oferecido à Academia por uma comissão de alunos. É visível a consciência
da importância simbólica deste tipo de rituais para a instituição. Nessa festa discursou
uma aluna do curso de admissão à Escola Normal – Sara Correia Alves – que apela à
“regeneração da Pátria” através da “educação integral dos seus filhos” e fala da “missão
de educadores do povo” para a qual se preparavam, mas também das dificuldades do
“sacerdócio” a que aspiravam83
.
Agostinho Fortes – professor da Universidade de Lisboa e conferencista habitual
da Academia – discursou em seguida para lembrar que “é do professor que sai o
progresso” e que “a escola é verdadeiramente a oficina do futuro, onde vamos
remodelar, afeiçoar as gerações novas”, fórmulas que dão bem conta das ambição
republicana de formar o homem novo no cadinho escolar. Os jovens alunos são
comparados – numa metáfora vegetal bem típica dos “slogans” renovadores - a “tenras
vergonteas reclamando todos os nossos carinhos”. Para o conferencista, a finalidade
última da escola é “formar caracteres”. Em relação aos professores, a exortação de
Agostinho Fortes é a seguinte: “É preciso que formemos professores, orientados nos
novos processos pedagógicos, mas é preciso que lhes demos meios suficientes para a
sua sustentação e decoro”. O conferencista conclui afirmando que “a Academia de
Estudos Livres é um exemplo... Há muito que se sacrifica pela causa da educação”84
.
Os tópicos da intervenção de Agostinho Fortes acabam por constituir uma boa
súmula dos propósitos e do carácter duma Academia que se apresentava,
simultaneamente, como uma “escola moderna” e como uma Universidade Popular, em
qualquer dos casos pugnando pela “educação popular” e pela “vulgarização científica e
cultural”.
Projecto de uma elite intelectual, tendo por finalidade a educação do povo – um
povo muitas vezes idealizado -, as universidades populares, de que a Academia de
Estudos Livres foi um exemplo percursor, partiam do pressuposto de que era possível
divulgar, junto desse mesmo povo, de forma acessível, conhecimentos e competências
situadas, à partida, no âmbito da chamada cultura erudita – literatura, arte, ciência, etc. –
acreditando ser esta uma estratégia privilegiada tendo em vista a promoção cívica do
povo, retirando-o de uma espécie de menoridade cultural. Este era um projecto
tendencialmente integrador, sob a liderança esclarecida de um certo escol intelectual,
83
Festas escolares – Sessão solene para recepção dum estandarte oferecido à Academia de Estudos Livres
por uma comissão de alunos (1914). Anais..., 9-10, 282. 84
Festas escolares – Sessão solene para recepção dum estandarte oferecido à Academia de Estudos Livres
por uma comissão de alunos (1914). Anais..., 9-10, 284-285.
31
mas que esbarrou, frequentemente, na indiferença dos meios operários. Não obstante
algum idealismo, e evidentes fragilidades, as universidades populares representaram
uma das mais interessantes experiências desenvolvidas, na primeira metade do século
XX, no âmbito da educação permanente de adultos. Como exemplo de um modelo
informal de educação - assente em conferências, cursos livres, concertos, visitas de
estudo, bibliotecas, etc. -, as universidades populares continuam, de algum modo, a
inspirar projectos recentes nesse âmbito.
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