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II CONINTER Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013 AS TERRITORIALIDADES DO CANDOMBLÉ NA GRANDE VITÓRIA: PELO RESPEITO À DIVERSIDADE RELIGIOSA TANGERINO, CAMILA C. (1); CAMPOS, MARTHA M. (2). 1. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Rua Coração de Maria, nº200, apt. 402, Praia do Canto, Vitória, ES, 29055-770. [email protected] 2. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Programa de Pós- Graduação de Arquitetura e Urbanismo. Avenida Fernando Ferrari, nº 514, Campus de Goiabeiras, Vitória, ES, 29.075-910. [email protected] RESUMO O trabalho discute a diversidade de usos dos espaços na cidade e a relação que estabelecem entre si como condição de existência do ambiente urbano, considerando a religião do candomblé e as estratégias político culturais de enfrentamento para garantir sua permanência e inserção nos espaços da cidade contemporânea. Busca-se uma aproximação aos territórios e as territorialidades do candomblé na região da Grande Vitória (ES), considerados como potenciais vetores de transformação dos padrões hegemônicos de produção do espaço a partir do estímulo às vivências, deslocamentos e apropriação do espaço público específicos do candomblé e os diálogos que geram com o espaço privado. Observa-se que os cultos e rituais sagrados do candomblé vem sendo alterados ou substituídos, uma vez que encontram obstáculos para suas realizações, que necessitam de acesso as matas, cachoeiras, praias ou aos cruzamentos de vias. A pesquisa aponta uma drástica mudança da rotina desses cultos e rituais, devido principalmente ao seu deslocamento para o espaço privado do terreiro. Palavras-chave: Candomblé. Territorialidade. Cidade.

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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

AS TERRITORIALIDADES DO CANDOMBLÉ NA GRANDE VITÓRIA: PELO RESPEITO À DIVERSIDADE RELIGIOSA

TANGERINO, CAMILA C. (1); CAMPOS, MARTHA M. (2).

1. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Rua Coração de Maria, nº200, apt. 402, Praia do Canto, Vitória, ES, 29055-770.

[email protected]

2. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Programa de Pós- Graduação de Arquitetura e Urbanismo. Avenida Fernando Ferrari, nº 514,

Campus de Goiabeiras, Vitória, ES, 29.075-910. [email protected]

RESUMO

O trabalho discute a diversidade de usos dos espaços na cidade e a relação que estabelecem entre si como condição de existência do ambiente urbano, considerando a religião do candomblé e as estratégias político culturais de enfrentamento para garantir sua permanência e inserção nos espaços da cidade contemporânea. Busca-se uma aproximação aos territórios e as territorialidades do candomblé na região da Grande Vitória (ES), considerados como potenciais vetores de transformação dos padrões hegemônicos de produção do espaço a partir do estímulo às vivências, deslocamentos e apropriação do espaço público específicos do candomblé e os diálogos que geram com o espaço privado. Observa-se que os cultos e rituais sagrados do candomblé vem sendo alterados ou substituídos, uma vez que encontram obstáculos para suas realizações, que necessitam de acesso as matas, cachoeiras, praias ou aos cruzamentos de vias. A pesquisa aponta uma drástica mudança da rotina desses cultos e rituais, devido principalmente ao seu deslocamento para o espaço privado do terreiro.

Palavras-chave: Candomblé. Territorialidade. Cidade.

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I - BREVE PANORAMA DAS RELIGIÕES NO BRASIL

Os resultados do Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2011) demonstraram o crescimento

da diversidade dos grupos religiosos no Brasil. Os católicos representaram a maior proporção

da população desde o primeiro Censo, realizado em 1872, no entanto, as pesquisas mais

recentes mostram uma queda significativa no número de adeptos nas duas últimas décadas,

passando de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010. Paralelamente, os evangélicos cresceram

de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de

26,2 milhões para 42,3 milhões). Em 1991, este percentual era de 9,0% e em 1980, 6,6%. O

estado do Espírito Santo, tem a maior proporção de evangélicos do país, pesquisa apontou

que 33,1% dos capixabas são evangélicos, índice superior à média nacional, de 22,2%.

O Censo (IBGE, 2011) indicou também o aumento do total de espíritas, que passaram

de 1,3% da população (2,3 milhões) em 2000 para 2,0% em 2010 (3,8 milhões), o aumento

mais expressivo foi observado no Sudeste, cuja proporção passou de 2,0% para 3,1% entre

2000 e 2010, um aumento de mais de 1 milhão de pessoas (de 1,4 milhão em 2000 para 2,5

milhões em 2010). O estado com maior proporção de espíritas era o Rio de Janeiro (4,0%),

seguido de São Paulo (3,3%), Minas Gerais (2,1%) e Espírito Santo (1,0%). Também de

acordo com o Censo (2010), houve um aumento entre a população que se declarou sem

religião. Em 2000 eram quase 12,5 milhões (7,3%), ultrapassando os 15 milhões em 2010

(8,0%). Já os adeptos da umbanda e do candomblé mantiveram-se em 0,3% em 2010.

A partir desse dados, pode-se presumir que ocorre uma redistribuição da sociedade

em novos grupos religiosos, que esse deslocamento se dirige majoritariamente aos

segmentos evangélicos neopentecostais, representado principalmente pela Igreja Universal

do Reino de Deus (IURD). Estudiosos, como o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva

(2009), apontam e analisam as facetas dessa complexa disputa no campo religioso brasileiro

das últimas décadas. Para o autor, o grande problema está no fato de que a luta para

conquistar novos adeptos não se restringe mais a púlpitos e altares, foram agregadas as

tribunas e palanques da política e as luzes dos auditórios e palcos da mídia. E o segmento

evangélico neopentecostal, o que mais cresce no País, “(...) encontrou no ataque aos cultos

afro-brasileiros um diferencial de mercado para fazer seu proselitismo” (SILVA, V., 2009).

Pode-se identificar que a questão do racismo presente na sociedade brasileira é

reforçada pelo contexto religioso, na medida em que, como observado no Censo (IBGE,

2011), as proporções de católicos seguem uma distribuição aproximada à do conjunto da

população que se declarou do grupo de cor branca, a saber: 48,8% deles se declaram

brancos, 43,0%, pardos, 6,8%, pretos, 1,0%, amarelos e 0,3%, indígenas. Entre os espíritas,

68,7% eram brancos, percentual bem mais elevado que a participação deste grupo de cor ou

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raça no total da população (47,5%). Entre os evangélicos, a maior proporção era de pardos

(45,7%). No grupo dos sem religião, a declaração de cor mais presente também foi parda

(47,1%). E a maior representatividade de negros foi verificada na umbanda e candomblé

(21,1%).

A partir da perspectiva das religiões afro-brasileiras, trata-se de uma vitória o fato de

terem conseguido manter nos últimos anos a mesma porcentagem nas estatísticas, diante

dos abusos sofridos por algumas correntes evangélicas, devido associação do candomblé ao

mal, ao demônio, entre outras representações negativas das religiões afro-brasileiras. No

Estado da Bahia, celeiro do candomblé, a realidade é mais promissora, o projeto de

Mapeamento de Terreiros em Salvador, desenvolvido entre os anos 2006 e 2007, constatou

que os números de Terreiros na capital baiana aumentaram significativamente, conforme

demonstrado na ilustração (figura 1) a seguir.

Figura 1 - Evolução do número de Terreiros em Salvador nos anos 20, 50, 80 e 2006.

Fonte: http://www.Terreiros.ceao.ufba.br. Acesso em: maio de 2013.

II – POLÍTICAS DE VALORIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO DA CULTURA

AFRO-BRASILEIRA

A partir do governo Lula foram criadas uma série de políticas de legitimação da cultura

afro-brasileira, subsidiadas pela publicação da Cartilha de Diversidade Religiosa e Direitos

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Humanos do Programa Nacional dos Direitos Humanos, impressa no ano de 2004, cuja

Proposta 110 invoca especificamente a questão da liberdade de crença.

Em 2010, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), junto à

Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Fundação Cultural

Palmares (FCP), realizaram o Mapeamento das Comunidades Tradicionais de Terreiros das

regiões metropolitanas dos estados de Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Neste contexto, com o objetivo de mostrar a realidade dos terreiros desses estados, foi

desenvolvido o mapeamento nas capitais e regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Belém,

Recife e Porto Alegre, com levantamento das localizações, das principais atividades

comunitárias, da situação fundiária, da infraestrutura e dos aspectos socioculturais e

demográficos destas localidades. O projeto resultou de um longo processo de mobilização e

de luta dos povos de terreiro por reconhecimento e respeito às suas tradições e

ancestralidade, e dos seus direitos territoriais, sociais, culturais e econômicos. Deste modo, a

elaboração do banco de dados mencionado busca garantir subsídios para efetivação de

políticas públicas junto às comunidades de terreiros.

Importante registrar que antes do mapeamento supramencionado de 2010, no ano de

2006, as secretarias municipais da Reparação e da Habitação de Salvador, no estado da

Bahia, haviam estabelecido parceria com o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao/UFBA)

para o desenvolvimento do Projeto de Regularização Fundiária dos Terreiros de Candomblé.

O projeto pioneiro reconhecia a forte influência das religiões de matrizes africanas na cidade

de Salvador e apontava a necessidade de um mapeamento detalhado dos terreiros para a

elaboração de políticas de preservação e revitalização ambiental, cultural e religiosa.

Portela (2007) observa que a despeito do levantamento de quatro mil (4000) Terreiros

em funcionamento pela Prefeitura de Salvador, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (IPHAN), desde 1986, tombou somente cincos (5) deles. Os critérios utilizados são a

autenticidade e representatividade, no entanto, a igreja católica, com cento e sessenta e cinco

(165) templos na cidade, possui trinta e seis (36) deles tombados (PORTELA, 2007).

Nesta perspectiva, importa mencionar a relevância do tombamento dos terreiros,

visando impedir a invasão da "roça", elemento fundamental para o desenvolvimento das

práticas litúrgicas. Nos termos dos estudos de Araújo (2011), o adensamento dos espaços

urbanos, por exemplo, poderia ser controlado por meio de limitações de gabarito nas

construções dos lotes vizinhos aos terreiros e na conservação da "mata", colaborando na

manutenção do sigilo ritualístico e dos elementos sagrados (ARAUJO, 2011). O mesmo autor

considera que apesar da amplitude de abrangência contida na utilização de instrumentos da

legislação urbanística, o espaço físico do terreiro permanece como o principal elemento a ser

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preservado. Portanto, todas as imaterialidades que compõem o Axé1 do Terreiro, estariam

sujeitas a certas limitações materiais impostas pela proteção do bem.

Para alguns autores, as experiências institucionais em Salvador, sobretudo as práticas

de mapeamento e regularização fundiária, tiveram retorno significativo para o povo-de-santo

em relação a conquista de direitos, no entanto, os mais críticos reconhecem ainda que os

tombamentos provocaram antecipação do processo de especulação fundiária, além da

descaracterização dos elementos da cultura do candomblé, transformados em um novo nicho

de mercado, em pontos de comércio e turismo da capital da Bahia.

III – ESPAÇOS SAGRADOS DO CANDOMBLÉ

Denominado de ‘Ilê’, ‘Casa’, ‘Axé’ ou ‘Manso’, o Terreiro é o “fragmento mínimo

necessário à existência do candomblé no espaço urbano, território e territorialização”

(PORTELA, 2007, p.62). O terreiro é composto por barracão, quartos dos orixás,

dependências para as obrigações (cozinha, roncó, sala para jogo de búzios etc.) e pelo

espaço não sagrado para os residentes. De modo geral, os terreiros candomblé não possuem

uma arquitetura exterior de característica específica, por isso muitas vezes se confundem na

paisagem urbana com as fachadas das casas residenciais. Segundo Silva (2001), muitas

vezes são reconhecidos por referências externas comuns, tais como a bandeira branca do

Deus Tempo, normalmente situada próxima ao muro, e as folhas de mariô (palmeira), sobre

as portas e janelas, “numa espécie de cortina que protege aquele espaço de coisas negativas”

(SILVA, 2001, p.96), quartinhas (recipientes de barro) e placas de identificação.

Comparativamente, segundo entrevistas realizadas para este estudo e Silva (2001), os

espaços menos sagrados são os ambientes onde o acesso é permitido a todos, dentre eles o

mais importante é o barracão, lugar onde acontecem as festas. Os espaços mais sagrados

são os locais onde somente os iniciados têm acesso permitido. Neles estão os objetos

sagrados dos orixás, por exemplo, os quartos-de-santo em que ficam os assentamentos dos

orixás posicionados em um altar coletivo ou, dependendo do tamanho do terreiros, em quartos

separados para cada orixá. Outro espaço sagrado importante do terreiro é o roncó ou quarto

de feitura, onde são realizados os rituais mais secretos da religião, a exemplo das iniciações.

O espaço interno dos terreiros possui elementos característicos, podendo ser

observada uma certa padronização entre eles. A construção principal é o centro do conjunto,

onde se localiza o barracão ou salão de festas públicas, a clausura, a cozinha sagrada, os

principais santuários, as salas onde ficam as pessoas de alta posição, o refeitório e um

1 É uma “força sagrada”, “força espiritual”, um “fluxo cósmico”, uma “energia trocada entre corpos materiais e

imateriais”. O Axé é o princípio presente em todos os fragmentos do candomblé (PORTELA, 2007, p.80).

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vestuário para trocas dos iniciados em transe. A área externa, ou o espaço não edificado, é

chamado de “roça” e nela se cultivam os arbustos e árvores sagradas. No entanto, existem

muitos terreiros que “ocupam o espaço de uma única casa sem quintal para roça ou quartos

suficientes e os filhos da casa não deixam de considerar esse espaço como um lugar do

sagrado, mesmo que outras casas assim não o vejam” (PORTELA, 2007, p.62).

Existem ainda os locais onde são “plantados” os assentamentos de algumas

divindades que não podem ser cultuadas em locais fechados, como é o caso do exu da casa,

cujo ibá2 fica geralmente ao lado do portão principal como forma de proteção; e os deuses das

folhas ou das matas, tais como ossaim, tempo, irocô e oxóssi, celebrados ao pé de algumas

árvores ou plantas. Já obaluaiê, orixá da terra e das doenças, deve ter suas insignas

enterradas; e oxumarê, simbolizado pelo arco-íris, deve ser cultuado em um poço (SILVA,

2001).

Os mercados são os lugares onde todo o preparo das festas começa, é onde se

adquire a matéria prima para a elaboração do alimento sagrado e todos os objetos e plantas,

quando não é possível o cultivo, imprescindíveis aos rituais. O território do mercado, mesmo

estando fora dos limites do terreiro, também é sagrado, pois o dono dele é Exu, a quem se

deve pedir licença para adentrar (OMIDEWÁ, 2011).

Os tradicionais mercados das cidades brasileiras, a exemplo do Mercado da Vila

Rubim em Vitória, da Madureira no Rio de Janeiro e de São Joaquim em Salvador,

concentram a maioria da lojas que atendem ao povo-de-santo. Neles se agregam grupos

religiosos de tradição afro-brasileira, são lugares onde se divulgam festas, se trocam

informações sobre conhecimentos pertinentes ao universo do culto, cumprindo assim um

papel imprescindível no processo de socialização das pessoas que pertencem aos grupos

(MELLO; VOGEL; BARROS apud PORTELA, 2007, p.250).

Além dos rituais que ocorrem dentro dos terreiros, o povo-de-santo sai às ruas em

determinados períodos do ano para saudar e festejar o dia de cada orixá, que varia de casa

para casa. A festa mais conhecida é a de Iemanjá, onde uma multidão de adeptos,

simpatizantes e curiosos lotam as praias de todo Brasil na passagem do ano e no dia dois de

fevereiro. O espaço público da rua apropriado pelo candomblé cotidianamente é pouco visível

nas principais cidades brasileiras, com exceção de Salvador, contudo permeia e atravessa

todas elas por meio da música, dos mercados, das comidas e estátuas na praia, dos anúncios

nos pontos de ônibus, dos despachos nas esquinas e cachoeiras e nas comemorações

2 Representa o assentamento sagrado da cabeça de um individuo na cultura nago. In:

http://ocandomble.wordpress.com/. Acesso em junho de 2013.

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sincréticas de santos e orixás; porém quase não deixam rastros, são situações e

acontecimentos reinseridos na vida urbana, que se diluem e desaparecem ao olhos

desacostumados.

A Floresta do Parque Nacional da Tijuca no Rio de Janeiro, por exemplo, esconde um

universo desconhecido para a maioria dos habitantes e turistas da cidade. Entre as árvores da

floresta, frequentemente ocorrem cerimônias religiosas em que as pessoas entregam

oferendas em cachoeira, envolvidas pela música dos tambores, oferecendo seu corpo à

divindade. A área antes de ter o uso de parque foi ocupada por uma grande plantação de café

cultivada e habitada por escravos africanos e seus descendentes. Interessante notar que

essas informações não são encontradas nos roteiros turísticos convencionais e

institucionalizados pelo poder público.

Reafirma-se portanto que para a realização de muitas oferendas do candomblé (ebós)

é preciso ocupar o espaço público, em distintos processos de apropriação social dos espaços

das cidades e da natureza. Existe ainda ebó de cachoeira, rio, mar, cemitério, hospital, banco,

praça, delegacia, empresas, igreja, mato, entre outros, dependendo da finalidade de cada um.

IV - O CANDOMBLÉ NA GRANDE VITÓRIA

Segundo Maciel (1992), as revoltas escravas e os quilombos, a Insurreição dos

Escravos do Queimado, o conflito entre Peroás e Caramurus e a prática religiosa

afro-capixaba chamada Cabula, são alguns dos fatos que confirmam a característica

marcante da religiosidade no desenvolvimento da cultura afro-capixaba. A despeito do

processo de repressão, essa cultura sobrevive nos dias atuais por meio das práticas do

candomblé e da umbanda.

De acordo com Sant’Ana (2003), foi no século XIX, com a chegada significativa de

grupos jejê e nagô/ketu no Brasil, que os cultos de origem africana se reuniram em um modelo

religioso especifico, cuja organização espacial e litúrgica reconhecemos nos atuais terreiros

de candomblé. Neste período, o tráfico de escravos banto havia sido praticamente

interrompido e os nativos ou descendentes destes africanos se encontravam “mais integrados

à cultura da terra, sendo, inclusive, a principal base ancestral dos negros e mulatos aqui

nascidos” (SANT’ANA, 2013, p.4).

De acordo com os dados do Censo 2010 publicado pelo IBGE, as três grandes regiões

que Maciel, em 1992, indicou concentração da maioria da população negra do estado, hoje

correspondem também às regiões de maior número de adeptos das religiões afro-brasileiras.

O norte do estado, representado por São Mateus, por meio dos Alardos, Congos, Jongos,

Reisados, Bois e o Ticumbi; a região central, polarizada por Vitória, com seus morros e

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ocupações urbanas, onde a cultura negra sofre maiores influências externas e é manifestada

nas formas mais variadas que vão dos Congos, passando pelas escolas de samba e os

grupos de capoeira; e a região sul, centrada em Cachoeiro de Itapemirim, com seus

Mineiro-Pau, Caxambu, Bate-Flechas e Danças das Fitas (MACIEL, 1992, p.228).

Durante esta pesquisa foi identificado no município de Vitória apenas três (03) terreiros

de candomblé ativos, sendo que em um deles (em laranja na imagem abaixo) são realizados

cerimônias de umbanda e candomblé. Já na região da Grande Vitória, foi identificado

quarenta (40), dentre esses dezesseis (16) na Serra, treze (13) em Vila Velha, oito (8) em

Cariacica e três (03) em Vitória, como já mencionado.

Figura 2 - Mapeamento dos terreiros de candomblé na Grande Vitória.

Fonte: Base do Google, 2013.

Apesar dos poucos terreiros de candomblé em Vitória, os números em geral foram

surpreendentes, sobretudo devido a ausencia das religiões afro-brasileiras no cotidiano da

vida urbana da capital. Contudo, deve-se considerar, que comparada às duas mais

numerosas religiões brasileiras, a católica e a evangélica, o candomblé não possui uma

arquitetura religiosa marcante ou e um discurso proselitista nas grandes mídias para que

possa se manter visualmente em evidencia.

No contexto nacional, as religiões de umbanda e candomblé cresceram na última

década, ainda que em proporções pequenas comparadas às religiões pentecostais, porém os

índices relativos ao Espírito Santo são bem diferentes. Segundo o Censo 2010 realizado pelo

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IBGE, no estado houve uma diminuição consideravel do número de adeptos das religiões

afro-brasileiras, como exceção de poucos municípios, por exemplo a Serra, como pode ser

analisado nas tabelas e gráficos seguintes:

Figura 3 - Número de adeptos da umbanda e do candomblé entre os anos 2000-2010.

Fonte: Elaborado a partir dos dados do IBGE, 2013.

V – EXPERIMENTOS CARTOGRÁFICOS

Durante o levantamento dos terreiros existentes em Vitória, foi preciso redirecionar

para vários outros pontos da região metropolitana. Esta nova realidade que apresentada,

gerou uma série de questionamentos sobre como se dava a dinâmica de manutenção desta

prática religiosa nas cidades. Quais eram os percursos frequentes? Qual era o tamanho deste

deslocamento? Pode-se constatar, por exemplo, que o número de adeptos em certas regiões

era muito maior do que a quantidade de terreiros que a mesma possuia. Também por meio de

entrevistas se pode observar que as pessoas de um município frequentavam terreiros

localizados em outros municípios.

E onde essas pessoas compravam os materiais usados nos trabalhos e oferendas?

Era próximo às suas casas ou no mercado da Vila Rubim? E os despachos? Que locais

frequentemente eram usados? De imediato, foi constatado que as possibilidade da trama

dessa rede vai muito além dos limites geográficos.

Prossegue-se indagando: nas redondezas do barracão são estabelecidas outras

relações? Quem cuida do barracão quando o pai de santo não mora nele? Existe contato

entre o terreiro e as outras religiões nos bairros? Os vizinhos de religiões diferentes possuem

relação de respeito com os outros moradores do bairro que frequentam o terreiro? Dessa série

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de questionamentos surgiram experiências cartográficas nas quais se buscou representar o

território do candomblé sobre o ponto de vista dos entrevistados e a partir de vivências em

campo de uma das autoras deste trabalho, numa espécie de releitura do espaço.

Assim, junto às transcrições das entrevistas foram identificados alguns elementos dos

orixás dentro do território da pesquisa, ou seja, onde estão presente para os filhos de santo as

divindades e os locais onde as homenagens à elas acontecem, particularmente o espaço da

natureza dentro do território religioso. A proximidade com o litoral, com os principais cursos de

rios do estado, com as cachoeiras e com as regiões onde a mata atlântica ainda é conservada

também são constantes.

Figura 4 – Mapa dos elementos naturais de culto.

Fonte: Elaborado pelo autor, 2013.

VI - AS TERRITORIALIDADES DO CANDOMBLÉ NA GRANDE

VITÓRIA: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Francisco Ortega (2000) relembra que “a formação de identidade é um processo

público, um acontecimento no mundo. (...) O sujeito se constitui no mundo compartilhado com

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outros indivíduos” (Ortega, 2000, p.28). Portanto, se a cidade é o cenário onde a construção

do lugar público acontece e este processo está sendo reduzido, a sociabilidade

automaticamente enfraquece e os símbolos de identidade acabam por circular sempre entre

os mesmos indivíduos, empobrecendo-se.

O Espírito Santo e a região da Grande Vitória apontaram uma diminuição razoável no

número de terreiros de candomblé entre os anos 2000 e 2010, uma realidade inquietante

diante de números já muito baixos se comparados aos outros estados do Brasil. A primeira

observação plausível advém de que esta religião caminha em contra fluxo com as religiões

protestantes, contudo esse movimento ocorre em todo país. Ainda assim algumas perguntam

se impõem: quais são as características locais que permitiram a redução do número de

terreiros no Espírito Santo? A religiosidade do candomblé expressa a lógica do medo das

nossas cidades, o medo do povo-de-santo em relação aos outros e medo dos outros em

relação ao povo-de-santo é acentuado diariamente pela falta de possibilidades e espaços de

visibilidade da religião dentro do contexo da cidade de Vitória. Durante a realização deste

estudo, ficou evidente a ausência de políticas públicas contínuas e apartidárias, que

reconheçam junto da sociedade a relação das manifestações culturais e religiosas

afro-brasileiras com a história e as características da população do Espírito Santo.

Os rituais sagrados aos poucos vem sendo alterados ou substituídos, uma vez que

existe a necessidade de ir até as matas, cachoeiras, praias e encruzilhadas para a realização

desses. Esses espaços públicos não têm permitido o acesso ao povo-de-santo, e quando eles

se impõem passam por violentas ofensas. Muitos dos relatos registrados em entrevistas

durante a pesquisa mostraram uma drástica mudança da rotina desses cultos, principalmente

do deslocamento para o espaço privado do terreiro. Ou seja, apesar do espaço sagrado ainda

se extender por longos percursos da cidade, esse tem sido reduzido.

Ressalta-se o exemplo do orixá cultuado através dos elementos da natureza, que em

alguns casos é extinta, ou distante, ou poluída, ou com o seu acesso restrito, seja por

questões ideológicas ou por pertencer a uma propriedade particular. Infelizmente a situação

só confirma um processo que se reflete em toda sociedade urbana, o isolamento e a

privatização das atividades individuais e coletivas.

Um outro aspecto observado no espaço do terreiro de candomblé é a necessidade de

uma área extensa para a localização da horta, dos espaço de culto, das cozinhas e dos

quartos para os orixás, elementos básicos de sua estrutura física. Ou seja, apesar de alguns

terreiros atuais se adaptarem às dinâmicas dos micro-espaços das grandes metrópoles, a

grande maioria ainda é constantemente expelida a locais cada vez mais distantes da parte

mais adensada e infraestruturada das cidades, decorrente de um constante avanço da

especulação imobiliária sobre a terra.

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Apesar das pessimistas (ou realistas) constatações apresentadas, pode-se deduzir

que se o candomblé é atingido pelos mesmos entraves que o restante da cidade, é porque ele

está mais presente e em conexão com ela do que as aparências sugerem. Certamente, se a

malha de redes de relacionamentos, trocas e apropriações do espaço inseridas no território do

candomblé da Grande Vitória permanecem em processo de construção de novas

territorialidades, pode-se concluir que a despeito das dificuldades encontradas, são

territorialidades potentes, múltiplas e de surpreendente força de resistência.

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