AS ALEGORIAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA, PRESENTES NA ARTE DE ... · As decisões referentes ao...

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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03062 AS ALEGORIAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA, PRESENTES NA ARTE DE JEAN-BAPTISTE DEBRET: A ACLAMAÇÃO DE D. JOÃO, COMO REI DO REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES. TUTUI, Mariane Pimentel (UEM) BERTONHA, Ivone (DHI/UEM) A presente pesquisa tem como objeto analisar o pano de boca¹, pintado por Jean- Baptiste Debret, intitulado Cenário para o Bailado Histórico (Décoration du Ballet historique), que serviu de decoração ao Teatro São João, na cerimônia em homenagem à aclamação do rei D. João VI e ao casamento do príncipe D. Pedro com a arquiduquesa da Áustria, dona Leopoldina. Esta tela, de estilo neoclássico, exposta pelo artista em 1818, reproduziu uma cena alegórica inspirada na mitologia clássica greco-romana, com a finalidade de enaltecer a figura do rei, centralizada no pano de boca. Nesta obra pode-se explorar a introdução da arte neoclássica no Brasil, tendo em vista que Debret vivenciou os tempos revolucionários em Paris, onde assimilou esse modelo acadêmico, sob os rigores de seu primo Jacques-Louis David, reconhecido como o pintor da Revolução. Cabe considerar, que a vinda dos artistas precursores do neoclassicismo ao Brasil esteve associada à política estabelecida pelo Congresso de Viena (1815), na qual se consolidou a monarquia portuguesa. Neste mesmo ano, o Brasil foi elevado a reino e o Rio de Janeiro tornou-se a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, onde D. João VI foi conclamado rei, em 1818. As decisões referentes ao Congresso de Viena repercutiram nos rumos da política colonialista portuguesa, conforme sugere a passagem de um documento de Talleyrand, enviado ao ministro plenipotenciário de Portugal, Conde de Palmella.

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03062

AS ALEGORIAS DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA, PRESENTES NA

ARTE DE JEAN-BAPTISTE DEBRET: A ACLAMAÇÃO DE D. JOÃO,

COMO REI DO REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E

ALGARVES.

TUTUI, Mariane Pimentel (UEM)

BERTONHA, Ivone (DHI/UEM)

A presente pesquisa tem como objeto analisar o pano de boca¹, pintado por Jean-

Baptiste Debret, intitulado Cenário para o Bailado Histórico (Décoration du Ballet

historique), que serviu de decoração ao Teatro São João, na cerimônia em homenagem à

aclamação do rei D. João VI e ao casamento do príncipe D. Pedro com a arquiduquesa da

Áustria, dona Leopoldina.

Esta tela, de estilo neoclássico, exposta pelo artista em 1818, reproduziu uma cena

alegórica inspirada na mitologia clássica greco-romana, com a finalidade de enaltecer a

figura do rei, centralizada no pano de boca.

Nesta obra pode-se explorar a introdução da arte neoclássica no Brasil, tendo em

vista que Debret vivenciou os tempos revolucionários em Paris, onde assimilou esse

modelo acadêmico, sob os rigores de seu primo Jacques-Louis David, reconhecido como o

pintor da Revolução.

Cabe considerar, que a vinda dos artistas precursores do neoclassicismo ao Brasil

esteve associada à política estabelecida pelo Congresso de Viena (1815), na qual se

consolidou a monarquia portuguesa. Neste mesmo ano, o Brasil foi elevado a reino e o Rio

de Janeiro tornou-se a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, onde D. João

VI foi conclamado rei, em 1818.

As decisões referentes ao Congresso de Viena repercutiram nos rumos da política

colonialista portuguesa, conforme sugere a passagem de um documento de Talleyrand,

enviado ao ministro plenipotenciário de Portugal, Conde de Palmella.

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Convém a Portugal e convém mesmo à Europa toda [...] o enlace entre nossas possessões europeias e americanas [...] eu consideraria como uma fortuna que se estreitasse por todos os meios possíveis o nexo entre Portugal e o Brasil; devendo esse país, para lisonjear os seus povos, para destruir a idéia de colônia, que tanto lhes desagrada, receber o título de Reino, e o vosso soberano ser rei do Reino Unido de Portugal e do Brasil. (BANDEIRA, XEXÉO, CONDURU, 2003, p.33).

A escola neoclássica, expressiva do movimento revolucionário francês, identificava-

se com os ideais burgueses propagados pela política do Terceiro Estado, em oposição ao

Antigo Regime. O neoclassicismo extraiu do passado greco-romano uma representação

ética de comportamento:

“que o colocava como herdeiro – fantasiosamente ou não, pouco importa – de uma

longa tradição republicana igualitária”. (NAVES, 1996, p.71).

O neoclassicismo foi destacado com a tela O Juramento dos Horácios2, elaborada

por Jacques-Louis David, primo e tutor de Debret, durante sua segunda estadia na

Academia de França, em Roma, cidade considerada naquela época a Meca dos artistas e da

intelectualidade europeia. Exposta em Paris em 1784, esta obra que consagrou David como

pintor da Revolução, também contou com a participação de Debret.

O Juramento dos Horácios, 1785 – Jacques – Louis David.3

3

Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, a arte neoclássica expressa o período

revolucionário, “como um conjunto de valores sociais e políticos. Era a simplicidade, a

nobreza, o espírito cívico, das antigas repúblicas; era a austeridade espartana, a dedicação

até o sacrifício dos heróis romanos”. (CARVALHO, 1990, p.11).

Rafael Bladé, em La estética de la Revolución4, reitera a presença desses valores, ao

considerar O Juramento dos Horácios uma exaltação à virtude cívica e uma justificação

dos sacrifícios a serem enfrentados a favor da pátria, segundo ele, próximos à mesma linha

seguida por Rousseau n’O Contrato Social. (BLADÉ, 2008, p.99).

Distantes das influências do barroco e das imposições do Antigo Regime, pensadores

e artistas buscaram inspirações nos conceitos clássicos, presentes nos documentos, na

história, na literatura, nas peças de arte, na arquitetura, associando-os ao relevo e ao clima

de sua origem.

Lílian Moritz Schwarcz, em O Sol do Brasil, conclui que a pintura histórica

neoclássica não se limitava à forma estética, ela se construía por meio de um diálogo com a

literatura e a filosofia iluminista e almejava um papel equivalente. (SCHWARCZ, 2008, p.

91).

Na França, Debret, formado nesses padrões como pintor de história, manteve-se

próximo ao seleto grupo de artistas, que exaltaram em suas telas o período revolucionário

e, posteriormente, as campanhas militares das conquistas do Império de Napoleão.

Sob a tutela de David, Debret encontrou oportunidades de formação acadêmica e de

experiências no ateliê desse mestre, movimentado pela produção de obras encomendadas.

A ascendência de David sobre o jovem pintor foi identificada por Naves (1996, p.47 – 48)

na obra Regulus voltando a Cartago, autoria de Debret, 1791.

Na concepção do crítico de arte Ernst Gombrich, a associação da arte neoclássica à

Revolução Francesa estabeleceu-se com base no resgate da tradição política e artística

greco-romana, porque

“os homens da Revolução gostavam de se considerar cidadãos livres de uma Atenas ressurgida”, e o modelo, em consonância com a arte grega, voltava-se para a descrição moral e também física dessa nova humanidade cidadã. A preocupação em modelar os músculos e tendões do corpo, evocar exemplos heróicos da Antiguidade, mesmo assim, garantir a simplicidade da obra, eliminando todos os detalhes desnecessários, era o ideal de tais artistas. (SCHWARCZ, 2008, p.57).

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Enquanto Rousseau e Voltaire alteraram a concepção histórica de uma época, o

mundo das artes contemporâneo a Debret, não ficou isento dessas mudanças que se

tornaram universais. Um novo conceitual foi extraído da “Antiguidade e até mesmo do

passado medieval [que] ofereciam modelos de virtù, e, assim como os filósofos, os pintores

buscavam temas e conceitos abstratos para explorar questões de apego político e social”.

(SCHWARCZ, 2008, p.86).

Ou seja, foi um modelo artístico vinculado à expressão política de um momento

histórico, que se originou ligado à nação e ao Estado. Durante o período revolucionário a

expressão da arte neoclássica apresenta-se na forma abstrata, por meio das figuras

mitológicas greco-romanas, presentes nas artes, na literatura e na história. Na época

posterior, na França, este mesmo estilo artístico torna-se realista, ao exaltar Napoleão

Bonaparte, liderando as campanhas militares na ampliação do seu Império.

Debret permaneceu fiel a este estilo que, no decorrer do processo revolucionário

separou-se, paulatinamente, dos mitos greco-romanos, para representar os fatos marcantes

da atualidade francesa. Por exemplo, A morte de Marat (1793) e o Retrato de Maria

Antonieta indo para o cadafalso (1793) são obras de David típicas da queda do Antigo

Regime, período em que este artista conquistou importante ascensão política entre os

jacobinos.

Na época do império napoleônico, destacam-se na pintura neoclássica cenas

inspiradas nas campanhas militares do expansionismo francês na Europa. Arte e política

amalgamaram-se na expressão da ideologia do Estado Imperialista, enaltecendo batalhas

com a figura de Napoleão no centro das telas.

Com a queda do Império em 1814, a volta dos Bourbons e o exílio do mestre David

na Bélgica, artistas e intelectuais bonapartistas encontraram-se desprestigiados, faltavam-

lhes patrocinadores e encomendas para a sua arte, nas corte europeias. Entre os membros

dirigentes do Instituto de França – centro da propaganda política de Napoleão – eclodiu um

embate com as autoridades inglesas, que exigiam a devolução das obras de arte trazidas da

Itália para o Museu do Louvre, durante as conquistas napoleônicas. Joachim Lebreton,

Secretário Perpétuo da Quarta Classe do Instituto de França e administrador do Louvre

desde 1798, assistente de Vivant Denon, enfrentou Lorde Elgin e o Duque de Wellington

com o seguinte discurso:

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Com efeito, para evitar aquilo que poderia parecer ser-nos pessoal, e reduzindo-nos a um só fato, não foram os franceses que arrancaram aos pedaços as esculturas de Fídias dos monumentos de Atenas e transformaram em ruínas os pórticos dos templos violados. (DIAS, 2006, p. 311).

Fragilizados nesse ambiente revanchista, os antigos participantes da corte

napoleônica buscaram novos locais para se estabelecer fora da França e mesmo da

Europa, distantes da interferência de conflitos dessa natureza.

Elaine Dias menciona que, em carta de 03 de outubro de 1815 enviada aos

diplomatas portugueses, Lebreton manifestava sua intenção de desenvolver um projeto

voltado aos ofícios no reino português americano. Segundo ela, o remetente revelava que,

naquele momento, ocorria a formação de correntes emigratórias que deixavam a França

em direção aos Estados Unidos, ao Novo Reino dos Países Baixos e a Alemanha. Ao

mesmo tempo, salientava a existência de obstáculos à emigração para os países

americanos de colonização espanhola, “em conseqüência das ‘possessões’ e ‘agitações’

que conturbam esses países”. (DIAS, 2006, p. 306).

Apesar dos conhecimentos fragmentados do Novo Mundo, propagados pela literatura

de viagens, o único reino europeu que abrigava uma monarquia nos trópicos tornou-se

um atrativo interessante para esses grupos franceses, politicamente coagidos em sua terra.

Atentamente, seus líderes acompanhavam a política diplomática do poderoso ministro de

D. João, Antônio de Araújo de Azevedo, Conde da Barca.

Este antigo simpatizante da política francesa, desde julho de 1814, empenhou-se em

renovar as relações diplomáticas e comerciais coma França, com o propósito de equilibrar

a forte influência inglesa, que abarrotava com seus produtos os mercados brasileiros. Essa

medida abriu perspectiva para os grupos pressionados pela nova ordem política em sua

terra de origem.

Considerando a elevação do Brasil a Reino Unido, Portugal e Algarves (1815),

Lebreton, no mesmo documento, destacou as condições oferecidas por esse novo reino

aos oficiais e artesãos especializados, dispostos a contribuir com o progresso que na

França se perdia.

A influência exercida pelo naturalista Alexander Von Humboldt, que em 1811 em

Paris, divulgava sua obra Essai Politique sur le Royaume de la Nouvelle, também

contribuiu para que esse grupo dirigisse seus projetos para o Novo Mundo. Tal obra

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focalizava uma bem sucedida experiência dos ofícios, realizada pela Academia de Nobles

Artes, fundada no México em 1783.

Debret, em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, também referiu-se às

aproximações da diplomacia portuguesa na Europa com líderes do Instituto de França,

diretamente pressionados pela nova ordem política. D. Pedro de Menezes, o Barão de

Marialva, nomeado em 1815,

Ministro plenipotenciário junto à corte de França em Paris, aí organizou um círculo íntimo de homens extremamente notáveis pelos seus conhecimentos e cultura. Entre estes se encontrava o Barão de Humboldt, um dos membros do Instituto de França, que, em 1815, lhe inspiraram o desejo de fundar no Rio de Janeiro uma academia real de belas artes. Daí nossa expedição artística dirigida pelo senhor Lebreton, então secretário perpétuo da classe de belas artes do Instituto de França. (DEBRET, 1975, p. 246).

Com o objetivo de estabelecer na capital do Novo Reino uma Academia de Ciências,

Artes e Ofícios, foi providenciada a vinda de um grupo seletivo de artistas, artesãos,

assistentes e familiares liderados por Lebreton. A vinda deste grupo teve origem numa

negociação entre Lebreton e diplomatas portugueses, com apoio de Antônio de Araújo

Azevedo, Conde da Barca5. Em 25 de março de 1816, no veleiro Calphe, cerca de

quarenta pessoas chegaram ao Brasil. Entre elas, estavam Jean-Baptiste Debret (1768-

1848), pintor de história; Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830), pintor de paisagem;

Auguste Henry Victor Grandjean de Montigny (1776- 1850), arquiteto; Auguste Marie

Taunay (1768- 1824), escultor; Charles Simon Pradier (1786-1848), gravador. Em 1817,

os irmãos Marc e Zépherin Ferrez associaram-se ao grupo, o primeiro como escultor e o

segundo como escultor e gravador de medalhas.

A chegada dos portadores de “civilização” na cidade do Rio de Janeiro, sede do

Império, em condições físicas mais próximas a uma vila colonial foi interrompida por uma

sequência de fatos inesperados.

Este momento coincidiu com a morte de D. Maria I, cuja substituição no trono

deveria ser realizada após o período de luto oficial.

A sucessão não se concretizou, conforme a previsão normal, em razão da

instabilidade do Reino, neste momento, atingido por conflitos decorrentes da disputa por

parte da nobreza lusa pelos melhores cargos, por gastos militares e pelas pesadas taxas

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decorrentes do reaparelhamento do Estado. Porém, nenhum obstáculo foi maior do que a

eclosão, em Pernambuco, de um movimento que ameaçava romper com a monarquia e

estabelecer uma república. Isto dividiu o país e interrompeu o encaminhamento dos

cerimoniais para a coroação do rei e os festejos do casamento do príncipe herdeiro, já

oficializado na corte austríaca.

As principais informações desse importante movimento com proposta republicana

concentram-se em Notas Dominicais, de Louis-François de Tollenare, que desembarcou

em 1817, em Recife, como comerciante de algodão. Esse viajante francês acompanhou

diretamente o movimento, liderado pelos clérigos, que, como “professores ilustrados do

Seminário”6 tinham tido um papel “na formação de uma inquieta juventude liberal”.

(VIANA, 1999, P. 280).

O movimento pernambucano de oposição à monarquia devia-se também ao fato de

que, nas províncias do Norte e Nordeste, segundo Schwarcz, as principais mercadorias das

praças de comércio locais tinham sido atingidas por uma recessão.

[...] quando se combinavam dois fatores deletérios: a continuada queda no preço do açúcar e do algodão com a alta constante dos preços dos escravos. Como se isso não fosse suficiente, o ambiente tornava-se ainda pior diante da má fama do governador, cantada em prosa e verso. (SCHWARCZ, 2008, p.216).

Estabelecendo temporariamente um governo republicano em Recife e colocando em

risco um tradicional e importante núcleo de produção da economia, esse movimento

motivou a mobilização das forças armadas do Império concentradas na Bahia e no Rio de

Janeiro. As tropas do governo imperial, deslocadas da Bahia, desembarcadas em Recife,

desencadearam uma repressão exemplar, imprimindo registros políticos e simbólicos de

sua presença, sobre uma liderança despreparada e dispersa. Soldados membros do

regimento de Recife participantes do movimento revolucionário foram perdoados, mas

obrigados a assistirem desarmados cerimoniais de execuções de companheiros. Em

seguida, sem nenhum aviso, foram embarcados para o Sul para defender interesses da

monarquia na Província Cisplatina. Tais ordens partiram do general Luiz Rego, nomeado

governador por D. João, com a finalidade de restabelecer a ordem na Província de

Pernambuco. (TOLLENARE, 1908, p. 535).

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Esse radicalismo e essa mobilização de milhares de soldados, mais do que reprimir

um movimento, já fragilizado e disperso, foram demonstração de força da monarquia em

face de ameaças internas e externas. Ou seja, tinham como fim a garantia da ordem e da

unidade do Império.

Paralelamente a essas medidas de força, a monarquia recebia apoio político de

lideranças e seguimentos de comerciantes estabelecidos no Rio de Janeiro, fiéis aliados da

base política joanina desde a vinda da corte. Com a elevação do Brasil a reino Unido, a

cidade do Rio de Janeiro, privilegiada com investimentos desde a chegada da corte, ganhou

o status de capital do único reino europeu na América, rodeado de repúblicas em conflitos

permanentes.

Os decretos de fevereiro de 1818 oficializaram o final das perseguições aos rebeldes,

buscando minimizar a revolta e na sequencia encerrá-la no silêncio.

Estabelecida a ordem social, assegurada a integridade do território e o apoio da

liderança de um forte núcleo de comerciantes do Rio de Janeiro, estavam dadas as bases

para o estabelecimento dos vínculos entre os reinos do império, a ser efetivado com a

coroação de D. João VI. Esta condição eliminou do Brasil a idéia de colônia, conforme

anúncio do Conde de Palmella: “que tanto lhes desagrada, [recebeu] o título de Reino, e o

vosso soberano [passou a] ser rei do reino Unido de Portugal e do Brasil”. (BANDEIRA,

XEXÉO, CONDURU, 2003, p.33).

A sucessão dinástica também foi assegurada com a realização do casamento de D.

Pedro com a Arquiduquesa da Áustria, Dona Leopoldina, filha de Francisco I. Tal aliança

promovida pelo Marquez de Marialva uniu a dinastia dos Braganças a uma das mais

tradicionais e poderosas cortes estrangeiras. Ao som do repique dos sinos, a princesa

desembarcou, em 1817 no Rio de Janeiro, acompanhada dos componentes da Missão

Científica, constituída de médicos, biólogos, botânicos, pintores e músicos.

Abriu-se, portanto, a esperada oportunidade para a coroação do rei, evento inédito no

Brasil, a ser comemorado com grandes festejos nas ruas e espaços públicos da capital,

financiados em boa parte pelos homens de negócios da corte.

Os renomados artistas franceses, Debret, Grandjean de Montigny, Taunay e os

irmãos Ferrez, não perderam a oportunidade para demonstrar sua criatividade na produção

de artifícios ornamentais, com objetivo de que os cerimoniais da coroação do rei e do

casamento do príncipe projetassem a monarquia no melhor estilo artístico.

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A participação nas decorações públicas revelava a vulnerabilidade da situação em

que se encontravam os membros da Missão Francesa, desde que chegaram ao Brasil, em

1816.

O projeto de criação de uma Escola de Ciências, Artes e Ofícios, razão da vinda desses artistas franceses ao Rio de Janeiro, foi prejudicado não só pela instabilidade política decorrente da elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves, mas principalmente pela morte, em 1817, do ministro conde da Barca, idealizador dos projetos da Missão. A Escola foi inaugurada somente em 1826 como Academia Imperial das Belas-Artes, instituição onde Debret foi professor de pintura histórica até 1831, ano em que retornou à França. (DIAS, 2004, pgs. 25-26).

Quando se deflagraram os festejos comemorativos do Império iniciados em 13 de

maio de 1818, com a aclamação de rei, D. João, o momento era decisivo para os artistas

franceses.

“O Rio de Janeiro jamais conhecera pompa semelhante, com Debret e Montigny

esmerando-se em conceder à decadente corte portuguesa um ar solene e engrandecedor”.

(TREVISAN, 2009).

O teatro distinguia-se como um local específico para as manifestações de caráter

político e as representações exerciam o mesmo papel de cerimonial da corte.

Nos informa Maria Beatriz Nizza da Silva que “o Real Teatro acomodava na plateia 1020 pessoas, tendo ainda 112 camarotes divididos em quatro ordens” [...] Já Vanda L. B. Freire fala que a capacidade do teatro era de 1220 pessoas. (BARRA, 2009, p. 102).

Os camarotes eram reservados para a família real, a nobreza e os demais presentes se

acomodavam indistintamente na plateia, tornando assim o teatro um recinto de reunião

social, por excelência.

Alegorias da arte neoclássica prevaleciam nas apresentações, com valorizações sobre

personagens mitológicos da antiguidade clássica, com a finalidade de exaltar nas figuras

soberanas o belo, a moral e as virtudes. As peças de teatro, no início do século XIX, já

apresentavam influências do neoclassicismo.

Era recorrente, nessas peças o uso de divindades da Antiguidade Greco-Romana, alegorias (como o Gênio Tutelar, a Discórdia, a Fortuna e a

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Fama), a personificação de pátrias, virtudes e vícios; que, transportando para um mundo metafísico acontecimentos da vida da Corte como os casamentos, nascimentos, coroações e mesmo os problemas de Estado e as guerras, ensinavam que há uma ordem dos acontecimentos que independem da vontade e dos desejos dos homens. Ao mesmo tempo em que se criava uma versão oficial dos acontecimentos, evitando outras. (BARRA, 2009, p. 98).

Como experiente pintor de história, Debret aproximou-se da corte antecipando-se nas

decorações dos ritos oficiais tradicionalmente realizados no Teatro Real São João (atual

Teatro João Caetano), inaugurado em 1813, no Largo do Rocio, no Rio de Janeiro.

Segundo Barra:

“O Real Teatro São João foi construído a partir de uma sociedade por ações constituída pelos homens de negócios do Rio de Janeiro, em terreno doado por Fernando José de Almeida, tomando como modelo o Real Teatro S. Carlos de Lisboa que, por sua vez, era já uma cópia do Teatro São Carlos de Nápolis”. (BARRA, 2007, p. 102).

Nessas ocasiões, o artista atuava como poeta, pintor e mestre de bailados, ao elaborar

“cenários de elogios” ao rei e, nesses papéis, os recursos abstratos referentes ao início da

arte neoclássica, inspirados na mitologia greco-romana, prestavam-se para enaltecer um

momento histórico adverso ao da sua ascensão, a do período revolucionário em França,

intensamente vivenciado por Debret.

Nesses cerimoniais, marcados pela presença de monarcas em posturas solenes, o

pintor de história também exerceu, durante sete anos, a função de cenógrafo, responsável

pela elaboração de decorações para uma platéia, tradicionalmente habituada no Brasil a

ritos religiosos.

A programação do Teatro São João, no dia 13 de maio de 1818, foi especialmente

dedicada à homenagem ao aniversário de D. João, sua aclamação à sucessão do trono, ao

desembarque da Princesa Leopoldina no Rio de Janeiro e ao seu casamento com o príncipe

D. Pedro.

O espetáculo teve início com a encenação do drama O Himeneu, peça composta em

quatro atos, que tecia elogios à monarquia, simbolizados pelos seguintes personagens da

alegoria clássica: Himeneu, Jove, Juno, Lísia, Gênio Tutelar, Mercúrio, Íris, Cupido,

Momo, Discórdia, Tempo, Netuno, Anfritite, além de ninfas e gênios.

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No final da apresentação, o espetáculo culminou com a descida no palco do pano de

boca, intitulando-se Bailado Histórico, de autoria de Jean-Baptiste Debret. A tela se

destacava pelo aspecto apoteótico com que simbolizava os valores daquele momento

histórico do domínio imperial português.

Decoração do Bailado Histórico7

Nesta obra, a aclamação de D. João VI foi representada por meio de uma cena

alegórica, abrangendo a totalidade da tela, num caráter atemporal, onde se destacavam

deuses da mitologia grega que contracenavam com figuras simbólicas do Império.

Alegorias da arte neoclássica, retomadas de figuras da mitologia da Antiguidade clássica,

foram recursos harmoniosamente utilizados, com a finalidade de exaltar na figura soberana

exemplos de virtude.

No plano superior, cercado pelas nuvens e protegido por mitos alegóricos retirados da

tradição clássica, D. João é a única figura reconhecida, que aparece no centro da tela.

Destacando-se sobre um pedestal, ostentava a coroa e as cores das vestes que simbolizam a

monarquia portuguesa.

Logo abaixo, sobressaem três figuras alegóricas, representando os reinos de Portugal,

Brasil e Algarves sob seu domínio e, abaixo destas, figurando a sucessão no trono,

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Himeneu e Amor sustentam os retratos do príncipe e da princesa. Entrelaçavam as iniciais

dos recém-casados, formando um monograma sobre o altar de Himeneu, o deus dos

casamentos.

Debret narra esta cena, em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, nos seguintes

termos:

A cena se passava sob a abóbada etérea onde a reunião dos deuses outorgava honras de apoteose a esse episódio histórico. O mar formava o horizonte, justificando assim a chegada de Netuno com o pavilhão do Reino Unido; do outro lado Vênus, na sua concha marinha puxada por dois cisnes guiados por Cupido, conduzia as Graças, sustentando os escudos unidos e coroados das duas nações recém-aliadas. Delfins móveis circulavam entre os diversos planos do mar, parando no último quadro para formar um caminho praticável às dançarinas que deviam levar suas oferendas ao pé do altar do Himeneu pintado no pano de fundo do palco. [...] Concomitantemente nuvens isoladas suportavam Gênios animados dessas mesmas nações e povoavam toda a parte alta do quadro aéreo, inteiramente pintado em transparente, até o primeiro plano do teatro. (DEBRET, 1989, pág. 249).

Sérgio Hamilton da Silva Barra, que realizou uma análise aprofundada sobre este

período histórico e o significado da figura dos monarcas representados nas obras de arte,

cita:

Era comum em muitas peças a utilização do retrato dos soberanos como forma de representá-los. O retrato fazia parte do enredo, e aparecia de forma a enaltecer alguma característica do soberano que se pretendia ressaltar na ocasião da representação (bondade, afabilidade, magnanimidade). (BARRA, 2009, p. 99).

Esta obra de arte que retrata D. João brilhando no Olimpo, como um rei, mesclado a

uma figura religiosa, atinge na pintura uma aparência mística. Antecipava, para a real

descendência dos Bourbon e Bragança, um momento histórico promissor para a sucessão

do trono. A hegemonia da monarquia foi irreversível, adotada como regime político desde

a Independência até 1889.

“Aplausos prolongados ao aparecer pela última vez o pano de boca, no fim da

representação, completaram esse dia de triunfo.” (DEBRET, 1989, p. 275).

O pano de boca, O Bailado Histórico, conferiu ao pintor de história o contrato de

cenógrafo da corte, que se estendeu por sete anos, até a volta desse artista para a França.

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Notas:

1- Era uma tela pintada que separava nos teatros o palco da plateia.

2- Esse trabalho conferiu a David o segundo prêmio do concurso de seleção de

pensionistas para a Academia Francesa em Roma, patrocinada pelo Estado francês.

3- O Juramento dos Horácios, 1785 – Jacques–Louis David.

http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Juramento_dos_Horácios Acesso em: 26 de agosto de

2011.

4- Segundo o autor, David “Se convirtió prácticamente em el artista oficial de la

República, incluso ostento um escaño de diputado y voto a favor de la ejecución de

Luis XVI, El patrono de El juramento de los Horacios”. In Revista Historia Y Vida,

Barcelona, nº480, páginas 99 a 102, março de 2008.

5- Marialva, Barca e Humboldt seriam, portanto, figuras centrais na criação e composição

do projeto de ensino artístico, cujo fator principal era o desenvolvimento dos Ofícios

(DIAS, Elaine. 2006 p. 304).

6- Seminário de Olinda fundado em 1800, pelo Bispo D. José Joaquim da Cunha de

Azeredo Coutinho. Essa instituição educacional seguiu os pressupostos da reforma da

Universidade de Coimbra, com os estatutos aprovados em 1772, na administração

pombalina. Era um plano educacional inovador na colônia, prevendo para o segundo

grau cursos de humanidades, de lógica, de matemática e de ética. Havia uma cadeira

dedicada à filosofia natural e uma aula de desenho. Ver: Gilberto Luiz Alves. O

pensamento burguês do seminário de Olinda (1800-1836). Ibitinga (SP):

Humanidades 1993.

7- TREVISAN, Ricardo Anderson, A Construção visual da monarquia brasileira: análise

de quatro obras de Jean-Baptiste Debret. http://www.dezenovevinte.net/obras/obras jbd

art.htm. Acesso em: 29 de julho de 2011.

REFERÊNCIAS

ALVES, Gilberto Luiz. O pensamento burguês do seminário de Olinda (1800-1836).

Ibitinga (SP): Humanidades 1993.

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ARAÚJO, Ana Cristina. Retrato de um jovem genial.in Revista de História da Biblioteca

Nacional, Rio de Janeiro, nº24, setembro de 2007.

BANDEIRA, Júlio; XEXÉO, Pedro Martins Caldas; CONDURU, Roberto, A missão

Francesa, Rio de Janeiro, Sextante, 2003, p.33.

BARRA, Sérgio Hamilton da Silva. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro no

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