Art Ed62 Licia Beltrao

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Lícia Maria Freire Beltrão** “Para que serve a escrita, quando você ainda não sabe ler/escrever?” Senti-me atraída, certa feita, por tal pergunta que também funcionava como título de um artigo produzido por Mayrink- Sabinson (1990, p.21) e publicado na revista Leitura: teoria & prática. Reconhecida a opacidade das funções que a escrita serve ao mundo letrado, e das muitas funções que ultrapassam a experiência infantil, a pesquisadora revela sua intenção: refletir sobre os usos e funções atribuídos à escrita por uma criança, no período que vai de 1 a 4 anos , e sobre o papel do adulto letrado na constituição desses usos e funções. A leitura que fiz cumpriria seu ob-  jetivo únic o, acomp anhar o raciocínio da autora para com ela responder à pergunta formulada, não fosse a revelação com que prosseguiu: “Tra- ta-se da minha própria filha, Lia, uma criança de classe média, filha de pais professores universitá- rios, uma criança que convive de maneira intensa com leitores e escritores, livros e material escrito e de escrita o mais variado”. A partir daquele instante, todas as demais informações contidas no artigo se tornariam secundárias. Isso por que aquela atitude da pesquisadora se apresentava para mim como a possibilidade concreta de uma cenas e usos, das 12 às 10* * A transgressão consciente, visando a efeitos de sentido, tomou como base a referência coloquial que se faz a horas. A declaração, portanto, corresponde no uso formal a: cenas e usos, das 12h às 22 h. Para fins de publicação, o texto original, que compõe a pesquisa A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível, sofreu adaptações. ** Doutora em Educação. Professora FACED/UFBA. [email protected] Presente! revista de educação 43 set/nov 2008

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  • Lcia Maria Freire Beltro**

    Para que serve a escrita, quando voc ainda no sabe ler/escrever? Senti-me atrada, certa feita, por tal pergunta que tambm funcionava como ttulo de um artigo produzido por Mayrink-Sabinson (1990, p.21) e publicado na revista Leitura: teoria & prtica.

    Reconhecida a opacidade das funes que a escrita serve ao mundo letrado, e das muitas funes que ultrapassam a experincia infantil, a pesquisadora revela sua inteno: refletir sobre os usos e funes atribudos escrita por uma criana, no perodo que vai de 1 a 4 anos, e sobre o papel do adulto letrado na constituio desses

    usos e funes. A leitura que fiz cumpriria seu ob-jetivo nico, acompanhar o raciocnio da autora para com ela responder pergunta formulada, no fosse a revelao com que prosseguiu: Tra-ta-se da minha prpria filha, Lia, uma criana de classe mdia, filha de pais professores universit-rios, uma criana que convive de maneira intensa com leitores e escritores, livros e material escrito e de escrita o mais variado. A partir daquele instante, todas as demais informaes contidas no artigo se tornariam secundrias. Isso por que aquela atitude da pesquisadora se apresentava para mim como a possibilidade concreta de uma

    cenas e usos, das 12 s 10*

    * A transgresso consciente, visando a efeitos de sentido, tomou como base a referncia coloquial que se faz a horas. A declarao, portanto, corresponde no uso formal a: cenas e usos, das 12h s 22 h. Para fins de publicao, o texto original, que compe a pesquisa A escrita do outro: anncios de uma alegria possvel, sofreu adaptaes.

    ** Doutora em Educao. Professora FACED/UFBA. [email protected]

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  • ! O X da questo

    relao dialgica, famlia/escola, necessria para que se ampliassem os estudos sobre a escrita esco-lar, considerando-se os momentos em que o estu-dante se encontrasse distante da escola, ocupado com seus afazeres, com suas circunstncias, com seu viver. Seriam esses momentos fecundos para se perguntar: O estudante escreve, quando est em outros espaos? O que escreve? O que no es-creve? Ocupa-se com a escrita como prtica social? A que condiciona a escrita? Que lies aprendidas, reaprendidas, experimentadas em casa, se podem articular com as lies escolares?

    Motivada pela constatao, repeti o critrio de Maryrink-Sabinson com relao escolha da autora das escritas que seriam estudadas, mas com propsitos diferentes: acompanhar o seu envolvimento com a escrita, para alm dos muros da escola, considerando intenes, usos pessoais, gneros e tipos textuais de maior evidncia, os conhecimentos revelados nas produes, enfim, questes do afeto e da cognio. Do perodo em que esteve nas classes da Educao Infantil (1993-1996) at 2003, quando cursava a 6a srie do Ensino Fundamental, fiz a recolha das pro-dues de Fernanda - minha filha - e as mantive no meu arquivo de textos. Para a pesquisa, A escrita do outro: anncios de alegria possvel1, destaquei, intencionalmente, os textos nascidos com vocao para provocar discusses e anunciar estudos que ampliem compreenses, suscitem mais questes sobre a produo textual do ponto de vista pedaggico.

    Na expectativa de favorecer o estudo analti-co das escritas, organizei cada uma de per se, revi as condies de produo, convoquei tericos que colaborassem comigo na produo de leitura e de sentidos. Quanto estratgia de construo, optei por forjar a minha interlocuo com a esco-la, do lugar de me e de profissional da rea de educao e linguagem, considerando um gnero textual que peculiar escola: o comunicado, vez que, mesmo abarcando caractersticas tpicas de escrita para interlocutor definido, a sua via de

    acesso quase sempre nica. Transita da escola em direo famlia, talvez pouco da famlia em direo escola. Esse tipo de situao denota que a escola sempre se sente autorizada a enviar comunicados famlia. A famlia, modo geral, acata, mas no estabelece o jogo interlocutivo possvel. Assim, o mesmo discurso que, na situ-ao comunicativa, se definiria como polmico, pode-se instituir como discurso autoritrio.

    As questes da escrita, a meu ver, somente avanaro medida que toda a comunidade que a escola congrega assumir papis e funes cujo objetivo particular e peculiar de cada um concor-ra para um objetivo comum: a emancipao de todos, do estudante, sobretudo, e a preservao de sua subjetividade.

    Passemos, ento, aos comunicados.

    Comunicado 01

    Senhora Escola:

    A experincia que tive com Fernanda, h poucos dias, se repetiu. No jogo interlocutivo, me mostrou exatamente o que aprendi com Brando (2001). O texto produzido, ligado a uma situao material concreta, atendeu sua demanda na-quele contexto em que o telefone, mais uma vez, funcionava como seu adversrio direto. Como tinha algo a dizer e a quem dizer, no adiou: dividiu comigo, seu outro, o que encenara no espao do texto, constituindo a relao dialgica requerida. Como se v, est bem afinada com o uso social da escrita e com a noo de que a linguagem uma forma de interao.

    Aproveitando exatamente essa noo, no perdi a oportunidade de lhe explicar sobre a legitimidade da sua reivindicao e de comentar sobre a possibilidade de brincarmos com a pala-vra dever, considerando principalmente umas idias que colhi da escritora Ana Maria Machado. Assim, em lugar de me dizer meu dever de hoje ..., diria: O meu direito de hoje .... Tenho

    1Pesquisa produzida no PPGE - FACED/UFBA - para obteno do ttulo de doutor, sob orientao da Professora Mary de Andrade Arapiraca, em 2006.

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  • pensado muito na simetria entre a semntica e questes conceituais que governam a educao da escrita na contemporaneidade.

    Como dessa vez, alm de valorizar a atitude, no que tem de importante e de educativo para ns duas, valorizei especificidades da escrita, gostaria de partilh-las com essa comunidade. Nesse sentido, considerei os efeitos do sistema de conhecimento lingstico acionado, enfatizando o que V. Sa. bem sabe: sem os demais sistemas de conhecimento, o enciclopdico e o interacional, no se produzem sentidos. Recorri, para tanto, s orientaes propostas pela Coordenadora Peda-ggica a respeito do processo de alfabetizao, no tpico em que estabelece diferenas entre o estudo da lngua e o estudo sobre a lngua, a partir do que chamou de gramtica de uso, com base nos conceitos formulados por Chomsky sobre competncia, definida como o conjunto de regras que permitem engendrar frases e desempenho lingstico, como o uso das regras numa situao de comunicao definida, para no divergir do que nos foi proposto.

    Fiquei deveras admirada com o que constatei no uso funcional da lngua. Como pode ler na produo (imagem 1), Fernanda j revela algum conhecimento consciente a respeito da semntica

    da lngua que usa. Sei que no conhece aspetos da morfologia e da sintaxe, como conceitos e classificaes. Intuitivamente, entretanto, sabe tudo. Sabe tanto que usou, na produo anterior, pronomes, verbos, locuo verbal, substantivos, adjetivo, em posies sintticas adequadas. Nes-ta, repetiu algumas das classes, variou o tipo de uma classe, o pronome, e manteve tambm as idias coerentes e coesas. Observei que usou, com preciso, um sinal de pontuao e omitiu um outro. Como leitora cmplice, emprestei ao texto a entonao requerida. A escrita ortogrfica anunciou expectativas positivas. Penso que, na continuidade, acabar compreendendo que, em se tratando da escrita, a substncia fnica no se transforma em substncia grfica de modo dire-to, automtico. Se sua curiosidade sobre ques-tes ortogrficas for estimulada e transformada em objeto de discusso, certamente chegar concluso de que a escrita no uma traduo regular e biunvoca de sons em letras e que no preciso escrever como se fala para se ler como se escreve. Inserida nessa comunidade de escrita, ento, poder coletivamente construir conheci-mentos e participar da partilha dos construtos individuais, na perspectiva do que Magda Soares e ngela Kleiman propem sobre o alfabetizar letrando. Ainda assim, fico apreensiva quanto a reaes de quem no compreende ou rejeita essa concepo. Em comunidades prximas, j constatei pessoas confundindo diferenas com deficincias. Ento, um tal de se falar em difi-culdade ortogrfica de estudantes que no com-pletaram sequer um ano de experincia com a escrita... A propsito, gostei muito da explicao que nos foi dada pela Coordenadora Pedaggica a respeito da diferena entre a idade cronolgica dos estudantes e a idade real de experincia com a escrita ortogrfica. Isso, a meu ver, fortalece a poltica desenvolvida nessa comunidade, pois cada estudante ter o direito de ser reconhecido como portador de duas idades.

    Espero que esse assunto, o carter social da lngua e sua importncia nas relaes humanas, alm das questes da escrita ortogrfica, no deixem de motivar debates nessa comunidade. Creio que, com a sensibilidade que lhe tpica, haver de compreender minha quase insistncia.

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    imagem 1

  • A propsito, a comunidade poderia privar do dilogo com Magda Soares (1985). Sem dvidas, ela lhe dir:

    [...] Sendo a lngua o principal instrumento de ensino e de aprendizagem, na escola, em todas as matrias e em todas as atividades, a compreenso dessas relaes e de suas implicaes para a comunicao pedaggica imprescindvel a todos os professores e, tambm, a todos os especialistas que atuam na instituio (diretores, supervisores, orientadores). [...] No ensino da Geografia, da Histria, das Cincias, da Matemtica, a questo lingstica fundamental, sobretudo em seus aspectos semnticos e nas relaes entre linguagem e pensamento [...] fundamental que os professores compreendam que ensinar por meio da lngua e, principalmente, ensinar a lngua so tarefas no s tcnicas, mas tambm polticas. [...].

    Poderia privar tambm do dilogo com Artur Gomes de Morais (1998), em Ortografia: ensinar e aprender, e com Dino Preti (1997), em Socio-lingstica: os nveis de fala. Eles colaboraram muito com a produo deste comunicado. Per-mitiram-me at parafrasear algumas idias.

    Na expectativa de que idias do comunicado sejam proveitosas, subscrevo-me. Antes, porm, devo-lhe desculpas pela extenso da escrita. Mas, como do conhecimento de V. Sa., certos assuntos tendem a render um pouco mais sob o olhar de quem os valoriza. Quem considera a escrita um produto raso, linear e esttico, vai in-vestir em reflexes sobre os aspetos referidos?

    Comunicado 02

    Senhora Escola:

    Parece que a discusso suscitada na ltima reunio de pais e mestres procedia. No que Fernanda j assimilou o uso da escrita no sen-tido objetivo proposto nos diversos exerccios de compreenso de texto? Para ilustrar o que comunico, envio (imagens 2 e 3) as escritas que me apresentou h poucos dias, enquanto, mais uma vez, tratava, por telefone, de questes profissionais.

    Como bem pde observar, concluiu o texto citando as opes que possibilitavam minha resposta: sim/no, seguidas de parnteses. A estratgia, agora ampliada, impe que esteja portando, alm do papel, lpis ou caneta para as assinalaes. A propsito, lamentei a omisso do talvez, ainda que desconfie da razo: V. Sa. ainda no o tolera circulando entre o sim e o no. ( tudo isso, um pouco disso ou nada disso?).

    Voltando ao texto, sei que observou outras aprendizagens significativas sobre ortografia e pontuao, principalmente. A caligrafia, se observada, revela a maturidade dos ms-culos das mos, lhe permitindo imprimir s letras um traado diferente. Em um ano de

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    imagem 2 imagem 3

  • experincias com a escrita, diferenas! Posso festejar: mo, razo e corao em pleno de-senvolvimento!

    No sei como essa comunidade reage a constataes como as feitas. Caso denote qualquer interesse por tratar a escrita escolar do ponto de vista investigativo, procurando responder, entre possveis questes, at que ponto as prprias prticas de escrita escolar influenciam a produo dos estudantes, auto-rizo a utilizao da escrita de Fernanda como constituinte de um corpus. Sendo esse o inte-resse, sugiro que se inclua, no projeto, um pro-cedimento com o qual se estudem as escritas nas diferentes sincronias que equivalham aos diferentes seriados pelos quais os estudantes passam. Sugiro tambm que, com freqncia regular, os resultados da investigao sejam levados comunidade para estudo, conforme os critrios por ela estabelecidos e que sejam usados como suporte para definio de progra-mas, produo de atividades de aprendizagem e ensino, nas quais se incluam a reescrita do texto, ou seja, a produo progressiva de ver-ses, visando verso mais significativa para o estudante-autor. Sugiro ainda que constem da investigao dados referentes escrita dos adultos que compem a comunidade, sem que a escolha se concentre exclusivamente na escrita dos professores. Nesse sentido, convm lembrar palavras de Serres (1990):

    Quem no pode, quem jamais pde inventar um teorema, um protocolo, uma experincia; quem no sabe, quem jamais soube escrever um poema, um roteiro, uma novela, pode e sabe, de todo modo, explicar, comentar sobre o j produzido.

    A propsito dos professores, a investiga-o, a meu ver, deve contemplar dois objeti-vos: identificar o tempo fsico ocupado pelo professor para escrever sobre o que estudou da escrita dos estudantes (no confundir com o que corrigiu) e observar o que fala um corpo paralisado, durante e aps o tempo fsico ocu-pado com o estudo da escrita dos estudantes. Os resultados podem orientar decises. Tenho conhecimento de que professores corrigem,

    mas no estudam, mais de 900 produes textuais, por unidade letiva, em curtssimo prazo. Finalmente, sugiro que a comunidade investigue os gneros textuais historicamente adotados por V. Sa, j que foram gerados nessa instncia discursiva, somente por um motivo: o paradoxo que se estabelece entre o valor que V. Sa. atribui criatividade, s vezes lhe fazendo quase uma apologia, e a facilidade com que permite circular, no seu ambiente, escritas destitudas desse requisito, quase anacrnicas, como a caderneta escolar, cuja variante, dirio de classe, pouco se renovou; o boletim de no-tas, que continua bicolor, e as apostilas, a que chamam, atualmente, de mdulo.

    Caso queira conversar com os que se en-volvem com investigaes relativas escrita, procure por Meserani (1995), Smolka e Ges (1995), Koch (1997), Abaurre, Fiad e Mayrink-Sa-binson (1997), Brando (1995), Kramer (2000), Ruiz (2001), Soares (1981), Britto (1997), entre outros. Sei, por experincia, que cada um ter contribuies importantes para dar (ou para vender).

    Na expectativa de que as sugestes sejam compreendidas como minha inconteste vonta-de de colaborar com V. Sa. na reflexo sobre a escrita como objeto da sua prtica, subscrevo-me, lembrando que, para Auroux (1998), ela foi considerada o primeiro suporte que permitiu fala humana subsistir sem a presena de som emissor e, conforme Lajolo (1993), ela foi eleita, pelo mundo ocidental, mais que o desenho, a oralidade ou o gesto, como linguagem que cimenta a cidadania.

    Comunicado 03

    Senhora Escola:

    Surpreendi Fernanda produzindo um texto-cartaz com todos os recursos disponveis no computador para lhe imprimir a visibilidade desejada. Trouxe-me inquietao o que o texto dizia para qualquer um que o lesse. Para mim, portanto. porta do seu quarto, em horrios imprevisveis e na seqncia somente prevista por ela, l estavam (imagem 4):

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  • A propsito dos efeitos de sentido desse texto-cartaz, me antecipo para dizer que no recebi de V. Sa. comunicado sobre programas que inclussem escritas de adolescer. Recebi um programa especfico sobre as cantigas, orienta-do por Cantigas de Adolescer, produo de Elias Jos (1992, p.14). Muito bem-vindas por sinal. Quando li o poema Invaso proibida, fiz inevi-tveis transferncias, por razes que podem ser identificadas com uma rpida leitura:

    Que ningum invadameu quarto,minha toca,meu esconderijo,meu caramujo,que eu viro fera.Se minha me bater na porta,eu no abro.Se meu pai bater na porta, eu no abro.Irmo, se bater,eu mato.No abro pra ningum... ou melhor...pensando bem...se ele batesse...Quase abri a portas do sustode pensar.

    O nascimento do texto-cartaz possibilitou quase que concomitantemente o nascimento de outros textos, acolhidos pela agenda-dirio, pela agenda-fechada (trancada com cadeado), pela capa de cadernos e pelo caderno de bilhe-tes. Em paralelo, foi instituda a caixa coletora de bilhetes, recadinhos e cartas. Pois . Na tela do computador, Orkut, MSN, e-mail, Mirc, ICQ e Skype. No papel de diferentes estampas, letras coloridas, cintilantes, pulantes.

    As escritas, que por hora continuam invadin-do seu quarto, diferentes daquelas que desinibi-damente se aproximavam de mim, esto prontas para regular minhas atitudes, disciplinar nossa relao. Chegou, para ela, o tempo de sussurrar o que no est podendo escrever com rudo e escrever em solido o que no est podendo falar. Assistindo cena, a emoo terminou vindo na frente. Tive a impresso de que no haveria teoria que me ajudasse a suportar saber que a sua escrita assumira o lugar do poder. Do poder dizer; do poder desenhar fronteiras; do poder impor limites; do poder regular; do poder permitir; do poder silenciar; do poder-poder. Privada da incondicional liberdade de ouvir as vozes acomodadas nas linhas de tantos papis, me consolei com palavras vocacionadas para a escrita de um artigo-catarse: Escrever - uma das armas de minha filha.

    As escritas de Zagury (1996) sobre adolescen-tes reorganizaram a emoo. Compreendi que no havia tanto a temer: as atitudes, j previstas, eram casos de pura adolescncia. O recolhimen-to, essencial para lidar com a ebulio interna, foi respeitado. A famlia passou a conviver ci-vilizadamente com No incomode; de modo simptico com Bata na porta antes de entrar e, alegremente, com Entre vontade. As escritas, de todos os tipos e jeitos, continuaram favoritas no registro de contradies, inseguranas, me-dos, desejos, fragilidades, onipotncia, angstias, dificuldades, raivas, ameaas, questionamentos, insatisfaes, dores, alegrias, exageros, carncias, descobertas, excitaes, xitos, promessas, per-das, decepo, afeto.

    Com o tempo, Entre vontade passou a ser exposta com maior freqncia. Isso me permitiu avaliar a quantidade de amizades guardadas

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    imagem 4

  • ali naquela cerca, seu grau de importncia, e conviver com escritas em abundncia. Apesar disso, confesso que no as li. Quando chamada a ouvir algumas escolhidas, identifiquei emoes contraditrias, vontades demonstradas em hipr-boles, independncia intelectual se esboando, preocupao com questes sociais, medo de derrotas e a celebrao da amizade, um singelo ensaio potico.

    Muito embora as estratgias com que me entreguei ao jogo interlocutivo promovido por Fernanda possam satisfazer a compreenso dessa comunidade, se faz necessrio sublinhar, com o apoio de Orlandi (1999), a fora coercitiva das palavras usadas, o assujeitamento a que me submeti, enfim, a inexistncia de neutralidade naquela relao comunicativa entre ns, filha e me. Concordando com Bourdieu (1996), seria ingnuo pensar em trocas lingsticas isentas de poder e considerar que as produes lingsticas somente podem ser analisadas em mercados lingsticos alheios quele.

    Com expectativas de que V. Sa. discuta sobre as escritas do adolescer com essa comunidade, sobre as relaes de poder que exercem, subs-crevo-me.

    Comunicado 04

    Senhora Escola:

    Muito embora no tenha recebido resposta dos comunicados que lhe tenho enviado, acredito que no se recusar a faz-lo. Sei, por experin-cia, que, em breve, me dar o retorno desejado. Pressinto que me confessar o nmero de mes que j se manifestou fazendo comunicados simi-lares aos enviados por mim.

    Com expectativas dos bons sons e longos ecos que sero produzidos, subscrevo-me.

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