Arquivos do Mal (mal de arquivo) - Maria Angélica Melendi (Piti)

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Arquivos do Mal / Mal de Arquivo www.rosangelarenno.com.br . MELENDI, Maria Angélica. “Arquivos do mal – mal de arquivo”. In Suplemento Literário n. 66. Belo Horizonte: dez. 2000, p.22-30. In Revista Studium n. 11, 2003. www.iar.studium.unicamp.br Arquivos do Mal - Mal de Arquivo / María Angélica Melendi ... o Mal de Arquivo lembra sem dúvida um sintoma, um sofrimento, uma paixão: o arquivo do mal, mas também aquilo que arruina, deporta ou arrasta inclusive o princípio do arquivo, a saber: o mal radical. Derrida 1 ... porque el olvido es una de las formas de la memoria, su vago sótano. Borges 2 I Em 2 de outubro de 1992, no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Complexo Penitenciário do Carandiru, São Paulo, SP, uma briga entre dois presos — por causa de um varal de roupas — gerou uma revolta que atraiu a Policia Militar ao presídio. O resultado dessa intervenção foi o massacre de 111 detentos, que deixou ainda um saldo de 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais. As imagens dos corpos nus, estendidos nos caixões de zinco, com um número pintado — a modo de identificação — sobre a pele, persistem na memória de quem as viu estampadas sob as manchetes dos jornais. Inaugurado por volta de 1911, como uma unidade modelar, o Complexo do Carandiru compõe-se hoje de quatro unidades autônomas: o Centro de Triagem, a Penitenciária Feminina, a Casa de Detenção (onde aconteceu o massacre) e a Penitenciária do Estado. Nesta última, encontra-se a Academia Penitenciária do Estado de São Paulo (ACADEPEN) e nela, o Museu Penitenciário Paulista. O Governo do estado de São Paulo prometeu desativar o Complexo do Carandiru. Até hoje não foi tomada nenhuma medida nesse sentido. 1

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Sobre o trabalho da artista brasileira Rosangela Rennó

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    . Melendi, Maria Anglica. Arquivos do mal mal de arquivo. In Suplemento Literrio n. 66. Belo Horizonte: dez. 2000, p.22-30. In Revista Studium n. 11, 2003. www.iar.studium.unicamp.br

    Arquivos do Mal - Mal de Arquivo / Mara Anglica Melendi

    ... o Mal de Arquivo lembra sem dvida um sintoma, um sofrimento, uma paixo: o arquivo do mal, mas tambm aquilo que arruina, deporta ou arrasta inclusive o princpio do arquivo, a saber: o mal radical.Derrida1

    ... porque el olvido es una de las formas de la memoria, su vago stano.Borges2

    I

    Em 2 de outubro de 1992, no Pavilho 9 da Casa de Deteno do Complexo

    Penitencirio do Carandiru, So Paulo, SP, uma briga entre dois presos por causa

    de um varal de roupas gerou uma revolta que atraiu a Policia Militar ao presdio.

    O resultado dessa interveno foi o massacre de 111 detentos, que deixou ainda um

    saldo de 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais.

    As imagens dos corpos nus, estendidos nos caixes de zinco, com um nmero

    pintado a modo de identificao sobre a pele, persistem na memria de quem as

    viu estampadas sob as manchetes dos jornais.

    Inaugurado por volta de 1911, como uma unidade modelar, o Complexo do Carandiru

    compe-se hoje de quatro unidades autnomas: o Centro de Triagem, a Penitenciria

    Feminina, a Casa de Deteno (onde aconteceu o massacre) e a Penitenciria do

    Estado. Nesta ltima, encontra-se a Academia Penitenciria do Estado de So Paulo

    (ACADEPEN) e nela, o Museu Penitencirio Paulista. O Governo do estado de So

    Paulo prometeu desativar o Complexo do Carandiru. At hoje no foi tomada nenhuma

    medida nesse sentido.

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    II

    Em 1995, Rosngela Renn soube da existncia de uma grande quantidade de

    negativos fotogrficos de vidro na Academia Penitenciria do Estado. Em maio desse

    ano, a artista solicitou permisso para ter acesso a esse arquivo com o objetivo de

    restaurar, organizar e, mais tarde, utilizar as imagens desses negativos no seu trabalho.

    Num primeiro momento, a solicitao foi negada em base a uma regulamentao

    que protege a identidade dos detentos e das suas famlias durante um perodo de

    cem anos. Renn, porem, conseguiu a autorizao em fevereiro de 1996, depois de

    descobrir que algumas dessas imagens tinham sido publicadas num tratado sobre

    criminologia.

    Sem nenhum critrio de organizao nem de preservao, quase 15.000 negativos

    de vidro estavam amontoados em caixas de papelo, nos pores da ACADEPEN.

    Danificados pelo tempo e pela umidade, os restos do arquivo tinham permanecido

    inacessveis, esquecidos por mais de meio sculo. Com a colaborao da FUNARTE,

    a USP e Associao de Arquivistas Brasileiros, Renn instalou um estdio na

    ACADEPEN, onde limpou, restaurou e catalogou os negativos.

    A maior parte das imagens eram fotos identificatrias rosto de frente e perfil e

    signalticas nus de corpo inteiro, frente, perfil e costas , havia tambm umas

    3.000 fotos de tatuagens, marcas e cicatrizes, algumas fotos de doenas e anomalias

    e 30 fotos de cabeas de costas.

    As fotografias preto-&-branco eram usadas para ilustrar as fichas pessoais dos

    internos da penitenciria. O levantamento fotogrfico que se estendeu entre 1920

    e 1940, no setor de Psiquiatria e Criminologia da Penitenciria do Estado de So

    Paulo, pretendia identificar os prisioneiros por nmero, caractersticas fsicas (feies,

    cor da pele, altura, peso e deformidades corporais) e marcas (tatuagens e cicatrizes

    propositais ou acidentais). O Dr. Jos de Moraes Mello, mdico responsvel pela

    operao, no deixou nenhuma documentao sobre algum uso ulterior do arquivo.

    No h registro do nome do fotgrafo.

    III

    Desde 1992, Rosngela Renn seleciona e organiza o Arquivo Universal, constitudo

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    por textos de jornais que narram histrias ordinrias sobre gente e fotografia3. Da

    coluna social pgina policial, o Arquivo Universal compe-se de textos em que a

    imagem fotogrfica se torna prova, fetiche, objeto de desejo, lembrana, testemunho.

    No acervo textual do Arquivo Universal, as imagens fotogrficas esto nomeadas ou

    descritas. Assim, um arquivo de imagens sem imagens.

    (Ontem, na casa de M., o funcionrio levou meia hora com perguntas do

    tipo: Quanto ganham as pessoas que vivem aqui? Que igreja freqentam?

    Que lngua falam? Tem banheiro na casa? M., de 25 anos, lembra-se de

    que, na ltima vez, ele e sua famlia foram recenseados por avio. Sem

    exageros. Na poca do regime racista, o nmero de habitantes do distrito

    negro era conhecido somente por meio de fotografias areas: contavam-

    se as casas e multiplicava-se o seu total por quatro, nmero presumvel de

    membros de uma famlia.)

    O Arquivo Universal um arquivo virtual no qual os textos so includos depois de

    serem lapidados pela eliminao de nomes, lugares e datas. Um arquivo de imagens

    escritas, no qual a identidade dos sujeitos mutilada pela maiscula seguida do

    ponto. A indeterminao do sujeito refora e acentua uma falsa objetividade. O

    anonimato da situao tambm a chancela da sua extenso. No Arquivo Universal,

    todos somos assassinos, todos somos cmplices mas todos, tambm, somos vtimas.

    (A Funai vai exigir na Justia que a empresa E. indenize a ndia Y., de 15

    anos, violentada e engravidada em agosto passado por tcnicos que

    faziam prospeo na reserva indgena. Os funcionrios da Funai ficaram

    revoltados com o descaso da empresa, que enviou apenas uma relao de

    nomes, sem fotografias, dos tcnicos que trabalhavam na rea, naquela

    poca, para que a adolescente identificasse os autores do crime. Y.

    surda-muda e deficiente mental.)

    A maneira como eu lido com o texto exatamente como fao com uma foto. Sinto que

    o texto determina uma potncia imagtica muito grande como informao descritiva

    que a foto no da4, declara a artista. Os relatos do Arquivo Universal histrias

    ordinrias sobre gente e fotografia , so irrelevantes, falidos, fragmentrios. Como a

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    nossa memria, o Arquivo prolifera a partir dessas irrelevncias, dessas falhas, desses

    fragmentos.

    IV

    A instalao Vulgo definida pela autora como um dilogo visual entre fotografias do

    Museu Penitencirio Paulista e textos do Arquivo Universal. Os 11 textos selecionados

    apontam para a perversidade de um poder exercido a partir do exerccio do olhar. As

    grandes fotos, laminadas como espelhos negros, focalizam as cabeas dos detentos:

    9 de costas e 3 de frente. Nestas ltimas os olhos dos detentos esto fechados ou

    voltados para o cho. Numa delas, o nmero identificatrio do preso est aderido na

    testa.

    Os crnios raspados exibem o claro desenho do redemoinho, apenas colorido pela

    artista em tons avermelhados, rosas, salmo. Uma espcie de maquiagem ertica

    estende uma mscara sobre a pele para despertar o calor do sangue, para lembrar

    que, detrs da superfcie plana da fotografia, h um rosto. Como no avesso de um trs

    por quatro, as cabeas, de costas (os olhos baixos), parecem evitar o reconhecimento.

    E no entanto, sabemos que ao olhar aguado do amor ou do dio nada escapa.

    Como no reconhecer no odiado, no amado, a nuca, a testa, o nascimento do cabelo,

    aquele redemoinho. Mas no de amor nem de dio que se trata. Trata-se de cincias

    classificatrias e identificatrias: as fotos da ACADEPEN parecem ter obedecido a uma

    suposta tentativa de estudo fisionmico ou frenolgico. No havendo um redemoinho

    igual a outro, esses poderiam constituir-se como trao definitrio de uma identidade

    individual.

    O olhar carcerrio, que intenta atribuir sentidos e criar categorias, fragmenta, retalha e

    classifica os indivduos. Os condenados da sociedade, a ral, humilhados pelo duplo

    peso do crime e da culpa, oferecem, mirada do outro, a nuca vulnervel, quase

    espera da lmina do carrasco. Separadas do corpo, estranhamente annimas e, ao

    mesmo tempo, familiares, as cabeas ostentam, no desenho espiralado, o punctum

    da imagem e do indivduo. No foi uma faca de guilhotina que decepou as cabeas,

    mas uma cmara fotogrfica. Atravs da objetiva da mquina, o poder multiplica seu

    olhar identificador e o lana, como uma rede, sobre os indivduos. Tudo indicio, tudo

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    ndice.

    Renn aponta que o fato de fotografar os redemoinhos seria talvez o pice da idia

    de panptico. Invisvel, o poder submete aos dominados a uma visibilidade total. No

    basta o 3x4, no basta o perfil nem as digitais. O indivduo fragmentado atravs do

    registro de suas mnimas particularidades, que so exibidas e vasculhadas como se a

    partir delas fosse possvel detectar as pulses mais ntimas e secretas. As fotos das

    cabeas dos presos do arquivo do Carandiru so annimas. O que pretendia ser um

    ndice de identificao - o redemoinho avermelhado - um sintoma do extravio da

    pulso identificatria. O fracasso da tentativa de categorizao torna-se evidente: o

    lugar onde o pensamento positivista queria achar semelhanas, apresenta-se como

    uma soma infinita de diferenas.

    O que est em jogo, novamente, a rasura do conceito de identidade. O trabalho da

    artista deixa evidente o fracasso de qualquer tentativa de identificao. Uma sensao

    de vertigem, sinala Renn, porque na busca dos dados que definam o Outro, o que

    se encontra uma falta, um vazio, uma falha amnsica que impede nomear. Entre o

    registro obsessivo das particularidades operado atravs do olho da cmara e o registro

    das narrativas menores do Arquivo Universal, sempre h algo que se perde, sempre h

    algo que escapa, escamoteado nos interstcios que proliferam interminavelmente.

    V

    Renn, como Barthes, sabe que as fotos so signos que no prosperam bem,

    que coalham como o leite. Seja o que for o que ela d a ver e qualquer que seja

    a maneira, uma foto sempre invisvel: no ela o que vemos5. A dificuldade de

    acomodar a vista fotografia provem da aderncia do referente, ao funcionar como

    uma janela ou um espelho, a fotografia desaparece.

    Rosngela Renn prope-se a liberar a fotografia dessa sina e, mediante uma dupla

    operao, consegue barrar a onipresena do referente. Por um lado, a artista elabora o

    Arquivo Universal, onde s cabem referentes; por outro, apropria-se de fotografias que

    retrabalha at o limite da visibilidade, seja por obliterao, eliminao de contrastes,

    fragmentao ou descontextualizao e recontextualizao.

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    Os textos so lidos num continuum temporal. As fotografias no ilustram a escrita.

    A escrita no legenda da foto. Nosso hbito cultural leva-nos a buscar uma

    legenda que no aparece (afinal, quem so essas pessoas?) e umas fotos que no

    existem (como reconhecer os culpados sem as fotos? como recensear atravs de

    fotografias?). Aparentemente, no existe uma relao entre as duas categorias, mas,

    na arte, as conexes entre a linguagem e a imagem apresentam-se infinitas. Ao

    confrontar, num mesmo espao, imagens e textos, Renn abre uma srie de relaes

    que nunca esto explcitas.

    Imagens escritas, os textos visuais interagem com a imagem debilitada da fotografia.

    O referente - o sujeito - quase barrado pela indefinio da imagem e pela ausncia

    de legendas. O sujeito - o referente - desidentificado. Afinal, quem so esses

    homens? Por qu esto de costas? Por qu de olhos fechados? O referente - o

    sujeito - barrado pela inicial enigmtica. Afinal, quem M.? Quem a ndia Y.?

    Esse referente, porm, resgatado e restaurado pela dupla exposio - da foto e dos

    textos.

    Para Foucault, imagem e texto

    so irredutveis uma ao outro; por mais que se diga o que se

    v, o que se v no se aloja jamais no que se diz, e por mais

    que se faa ver o que se est dizendo por imagens, metforas,

    comparaes o lugar onde estas resplandecem no aquele

    que os olhos descortinam, mas aquele que as sucesses da

    sintaxe definem.6

    Textos e imagens associados interagem, nunca plenos, nunca finitos, nunca totais,

    porque o que se v no se aloja mais no que se diz...

    VI

    Com um gesto retrico, Freud se inquieta, no comeo do captulo VI de O Malestar

    na Cultura, por gastar imprensa, impresso, tinta e papel, mobilizar uma pesada

    mquina arquivstica, para contar histrias que todo mundo conhece7. Em vrios

    lugares de sua obra, Borges, aparentemente, se lastima de agregar infinita serie

    um smbolo mais. Rosngela Renn acredita que h fotografias demais no mundo

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    e, em conseqncia, s re-fotografa imagens de fotografias. (En abyme, o referente

    da fotografia uma fotografia...) Mas a pesar da retrica e do gesto, cada velha

    fotografia refotografada constitui-se numa nova fotografia, num novo arquivo, num

    smbolo mais a se inserir na infinita srie.

    A posteriori, a imagem refotografada se demostra plena de sentidos, e aponta para

    um universo significativo do qual sempre esteve afastada. Destinadas desde sempre

    invisibilidade, produzidas para serem arquivadas e logo esquecidas, as imagens do

    Carandiru, alcanam finalmente a visibilidade no campo da arte.

    As fotos olvidadas as fotos identificatrias abandonadas no arquivo penal e

    os relatos banais so resgatados como provas da amnsia social porque Renn

    est interessada nos restos da cultura, nos rastros da memria, naquilo que foi

    postergado, esquecido ou eliminado na hora de se narrar a histria oficial.

    Amnsia, repete a artista, no esquecimento. Amnsia: perda de memria, total ou

    parcial. O termo mdico aponta para um apagamento das lembranas. Esquece-

    se que alguma coisa foi esquecida. Amnsia social, amnsia coletiva, como definiu

    Heinrich Boll a relao da Alemanha do ps-guerra com seu passado nazista. Em

    algum momento, alguma coisa foi irremediavelmente extraviada; as fotos e os textos

    que a artista arquiva no resgatam a memria mas testemunham o esquecimento.

    VII.

    Em Mal de Arquivo, Jacques Derrida prope-se distinguir o arquivo de aquilo ao

    que foi reduzido: a experincia da memria e o retorno origem, o arcaico e o

    arqueolgico, a lembrana ou a escavao, resumindo: busca do tempo perdido8.

    Todo arquivo pressupe inscries, marcas, impresses, assim como a decodificao

    das inscries e das marcas e o armazenamento e a preservao das impresses.

    Todo arquivo pressupe, tambm, um lugar de consignao um lugar de reunio

    dos signos, e uma tcnica de repetio.

    Um mal radical parece estar agindo desde sempre no trabalho de custdia e

    interpretao dos arquivos e na relao que mantemos com eles, nos modos de

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    lembrar, memorizar e monumentalizar, na necessidade de registrar tudo, sem resto,

    sem perda. Mas a censura e a represso trabalham para destruir o arquivo, antes

    mesmo de t-lo produzido. Pulses de morte, precipitam o arquivo no olvido, na

    amnsia, na aniquilao da memria, na erradicao da verdade. Porque o arquivo

    no ser jamais a memria nem a anamnese em sua experincia espontnea, viva

    e interior. O arquivo tem lugar em (o) lugar do desfalecimento originrio e estrutural

    dessa memria.9

    Assim, o arquivo da ACADEPEN, arquivo de marcas, de inscries, de impresses,

    arquivo de corpos escritos, descritos e desenhados, arquivo do mal, devorado pela

    umidade e pelo tempo, desvenda, nesse desfalecimento, uma acumulao de arquivos

    estratificados. Camada sob camada, o olhar de Renn, expe as cicatrizes de feridas

    que o sistema intentou escamotear, mas que permaneceram abertas nas matrizes

    abandonadas. Sob essas cicatrizes, a travs dessas cicatrizes, a artista, como uma

    arqueloga, nos permite entrever a possibilidade abissal de infinitas escavaes.

    Dominada pelo arquivo, pelo mal de arquivo, a artista no tem descanso, porque

    est, interminavelmente, dedicada a procurar e instaurar o arquivo ali, onde ele se

    escapa, ali, onde algo nele se anarquiva. Ao restaurar o arquivo, Renn restaura,

    tambm, a certeza de que o arquivo est irremediavelmente perdido. Extraviado

    na sucesso de cpias, o arquivo ilegvel porque todas as claves para sua leitura

    foram apagadas. Um arquivo intil, mesmo se lido atravs da memria dos arquivos

    de Lombroso ou de Lacassagne. Um arquivo intil, mas dominado por uma espera

    infinita, desproporcionada, sempre pendente, uma espera sem horizonte de espera, a

    impacincia absoluta de um desejo de memria.

    O que Renn pde recuperar so apenas as falhas, os vazios, os fragmentos desse

    desejo de memria. Com esses restos, a artista monta um outro arquivo, que estava

    latente no primeiro, num dos seus substratos. As imagens do novo arquivo corpos

    nus, marcas, tatuagens, feridas; braos, mos, pernas, ps, torsos, cabeas ,

    pertencem agora ao arquivo da arte, potencializadas pela beleza do belo, no so

    seno memrias da morte. O ltimo captulo da vida dos homens infames.

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    VIII

    Em portugus, o substantivo vulgo quer dizer povo, populacho, tropa, multido,

    plebe, ral. Mas tambm se utiliza para designar o apelido, aquele nome outro que

    a famlia, a crnica popular, o grupo social ou mesmo a imprensa costumam colar,

    sobre o nome prprio. Ao nomear uma instalao que exibe fotos de supostos

    delinqentes, a palavra vulgo multiplica seus sentidos. O vulgo, um sobre-nome,

    um nome metonmico, as vezes, rasura a inscrio do registro civil e recoloca o

    renomeado no elenco da infmia; Jack, the Ripper, Landr, o Vampiro de Dusserdolf,

    El Pibe Cabeza, o Bandido da Luz Vermelha, El ngel de la Muerte, o Motoboy.

    Contra a parede, fotos de seres annimos, sem rosto, desidentificados; sobre a

    parede textos sobre seres annimos, sem nome, desidentificados. O vulgo, o povo, a

    plebe, a ral.

    Por outro lado, vulgo, em latim, um verbo cujo significado propagar, divulgar.

    Sendo a arte um dos modos de reflexionar sobre a vida, a condio para a

    experincia artstica a capacidade que a obra tem de convocar ao espectador para

    essa reflexo. Na galeria, imagens e textos deixam vislumbrar, atravs das frestas e

    dos intervalos, a promessa de uma totalidade que resista a irreversvel fragmentao

    da experincia contempornea. Na galeria, Vulgo propaga e divulga a possibilidade

    de se inscrever, de se escrever e de se imprimir uma outra histria, a histria dos

    vencidos. Uma histria que vem resistindo, entre os arquivos do mal e o mal do

    arquivo, amnsia e invisibilidade.

    IX

    Para Hal Foster, a questo poltica, na arte ocidental da contemporaneidade, poderia

    ser apreendida apenas atravs de prticas de resistncia ou de interferncia. Se

    a vanguarda, transgressora da cultura oficial de uma sociedade erudita, se ops,

    originalmente, academia, a arte crtica ou de resistncia concebida como oposta

    cultura moderna oficial, tanto na forma dos veculos de massa quanto na de um

    modernismo recuperado (a arte moderna dos museus)10. Por outro lado, o colapso

    da representao - hoje em dia no pode haver nenhuma representao simples da

    realidade, da histria, da poltica, da sociedade: todas elas s podem ser constitudas

    textualmente11- desvela os contedos ideolgicos implcitos nas falcias das imagens

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    positivas.

    Ao se apropriar das imagens do arquivo de um Museu Penitencirio, ao exibir essas

    imagens junto dos textos do Arquivo Universal, Renn est conectando o enterrado,

    o no sincrnico, o menor s prticas artsticas da contemporaneidade. O Museu e

    o Arquivo, como repositrios de uma certa memria, so desmascarados, ao serem

    confrontados com a banalidade trgica dos relatos do Arquivo Universal.

    A tarefa em que Rosngela Renn est empenhada a restaurao do sentido

    no contemplou nunca a evocao do massacre de 1992, porm, cada instalao

    com as fotos do arquivo do Carandiru no cessa de reencenar a chacina.. Como se

    essa estivesse latente, como se cada disparo da polcia j estivesse anunciado nos

    disparos da cmara do fotgrafo desconhecido que, mais de cinqenta anos atrs,

    tirou as fotos.

    A arte de Renn no se ope ao sistema - a histria ensinou que tarefa inglria

    - , porm, agindo efetivamente desde os stios privilegiados do sistema, deixa ver

    obliquamente, infra-levemente, no a perversidade desse sistema, mas, como quer

    Paulo Herkenhoff, um dos mapas de sua sombra.

    NOTAS

    1 Derrida, Jacques. Mal de Archivo. . Uma impresin freudiana. Madrid: Trotta,1997.s/n

    2 Borges, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emece, 1976. p.1017

    3 Renn, Rosngela. Rosngela Renn. So Paulo: Edusp,1997. p.159.

    4 Renn, Rosngela. Rosngela Renn. So Paulo: Edusp,1997.p.159.

    5 Barthes, Roland. A cmara clara. Trad. Jlio Castan Guimares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.16..

    6 Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1981. p.25.

    7 Cf. Derrida, Jacques. Mal de Archivo. . Uma impresin freudiana. Madrid: Trotta,1997. p.16.

    8 Cf.Derrida, Jacques. Mal de Archivo. . Uma impresin freudiana. Madrid: Trotta,1997.s.n.

    9 Derrida, Jacques. Mal de Archivo. . Uma impresin freudiana. Madrid: Trotta,1997.p.19

    10 Foster, Hal. Recodificao.. So Paulo: Casa Editora Paulista, 1996. p.200.

    11 Foster, Hal. Recodificao.. So Paulo: Casa Editora Paulista, 1996. p.200.