Apratiamento

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O HOMEM; AS VIAGENS O homem, bicho da Terra tão pequeno chateia-se na Terra Lugar de muita miséria e pouca diversão. Faz um foguete, uma cápsula, um módulo toca para a Lua desce cauteloso na Lua pisa na Lua planta bandeirola na Lua experimenta a Lua civiliza a Lua coloniza a Lua humaniza a Lua. Lua Humanizada: tão igual à Terra. O homem chateia-se na Lua. Vamos para Marte - ordena a suas máquinas. Elas obedecem, o homem desce em Marte pisa em Marte experimenta coloniza civiliza humaniza Marte com engenho e arte. Marte humanizado, que lugar quadrado. Vamos a outra parte? Claro - diz o engenho sofisticado e dócil. Vamos a Vênus. O homem põe o pé em Vênus vê o visto - e isto? idem idem idem O homem funde a cuca se não for a Júpiter proclamar justiça junto com injustiça repetir a fossa repetir o inquieto repetitório Outros planetas restam para outras colônias. O espaço todo vira Terra-a-terra.

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Artigo sobre o não estar em casa em lugar nenhum, tendo como base a filosofia de Heidegger

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O HOMEM; AS VIAGENS

O homem, bicho da Terra tão pequeno chateia-se na Terra Lugar de muita miséria e pouca diversão. Faz um foguete, uma cápsula, um módulo toca para a Lua desce cauteloso na Lua pisa na Lua planta bandeirola na Lua experimenta a Lua civiliza a Lua coloniza a Lua humaniza a Lua. Lua Humanizada: tão igual à Terra. O homem chateia-se na Lua. Vamos para Marte - ordena a suas máquinas. Elas obedecem, o homem desce em Marte pisa em Marte experimenta coloniza civiliza humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado. Vamos a outra parte? Claro - diz o engenho sofisticado e dócil. Vamos a Vênus. O homem põe o pé em Vênus vê o visto - e isto? idem idem idem

O homem funde a cuca se não for a Júpiter proclamar justiça junto com injustiça repetir a fossa repetir o inquieto repetitório

Outros planetas restam para outras colônias. O espaço todo vira Terra-a-terra. O homem Chega ao sol ou dá uma volta só para tever? Não vê que ele inventa roupa insiderável de viver no Sol. Põe o pé e: eas que chato é o Sol, falso touro espanhol domado.

Restam outros sistemas fora do solar a col- Onizar. Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?) a difícil, dangerosíssima viagem de si a si mesmo: pôr o pé no chão Do seu coração experimentar colonizar civilizar humanizar o homem descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de con-viver

“O homem, bicho da Terra tão pequenochateia-se na Terralugar de muita miséria e pouca diversão”

Os primeiros versos desse poema em tudo impressionante deixam de pronto duas

coisas muito claras: o homem pertence à Terra e ele chateia-se nela. O homem tem sua

origem na Terra. Ele é um bicho da Terra. Com isso temos de dizer que entre ele e a

Terra há um copertença. Do mesmo modo que ele, por ter sua origem na Terra, pertence

a ela; ela, enquanto nascedouro do homem, pertence a ele. Ainda assim, a Terra não se

mostra o melhor lugar possível para o bicho homem, pois ele se chateia nela. Os

motivos para a chateação são também aí revelados: a Terra é “lugar de muita miséria e

pouca diversão”. Entendamos a palavra miséria em seu sentido mais lato e originário de

desgraça, desventura, infortúnio. O sentido de pobreza que essa palavra costuma tomar

é derivado. Diversão apresenta-se como oposta à miséria, portanto, graça, ventura,

fortuna e, também, riqueza. Devemos ter bem claro que tanto a terra enquanto lugar de

chateação, quanto de miséria e pouca diversão dizem respeito ao homem que não apenas

se chateia nela, mas que também a vê como lugar de muita miséria e pouca diversão: o

homem tão pequeno.

O homem tão pequeno, bicho da Terra, chateia-se na terra por ela ser um lugar

de muita miséria e pouca diversão. A pequenez desse homem pode ser compreendida de

dois modos interligados: ele é pequeno, pois é insignificante ante a própria Terra; ele é

pequeno, pois ante a miséria, ele apenas se chateia. Para tal homem, tão pequeno diante

da Terra, o único remédio é a diversão. Diversão é o que afasta, o que é diferente1.

Quem busca diversão, busca afastar-se, ser diferente. Mas afastar-se de quê? Ser

diferente de quê? Diversão é entendida como o remédio para o homem tão pequeno,

bicho da Terra, que se chateia na Terra. Portanto é o remédio para a chateação, não para

a miséria. A miséria ainda há. E continua havendo. A diversão afasta o homem do lugar

de muita miséria, a Terra; a diversão apresenta um lugar diferente daquela Terra.

Movido pela necessidade de diversão, de afastamento da Terra com suas misérias, o

homem “toca para Lua”. A ida para a lua representa o não querer ser o “bicho da Terra

tão pequeno”. Se não em se tornando num outro, então em se mudando da Terra. É o

que ele faz. Entretanto, na Lua, após “humanizar a Lua”, ela ganha as feições da Terra

que motivaram a viagem, “muita miséria e pouca diversão”, já que agora ela está “tão

igual à Terra”, em conseqüência, “o homem chateia-se na Lua”. Repete-se na Lua a

mesma chateação da Terra. Novamente o homem busca diversão. Agora parte ele para

marte, e o poeta revela que para isso, ele “ordena a suas máquinas”. Vemos que as

máquinas do homem estão a serviço do afastamento do Lugar de muita miséria que é a

Terra e do lugar de muita miséria em que a Lua se tornou.

Os artifícios puramente humanos, as máquinas, servem ao propósito da diversão.

O termo “máquinas” usado por Drummond não se entende a não ser como o conjunto de

desenvolvimento técnico-científico possibilitador de uma viajem ao espaço. Esse

conjunto é o produto final de uma evolução das ciências. No final dessa evolução,

podemos retroceder e entendê-la melhor desde seu fim buscando identificar em seus

momentos preparatórios o traço da intenção que ora se mostra de modo mais claro.

Apenas no fim podem-se descobrir as intenções de tal projeto científico, pois aí o seu

“passado foi como uma ‘strada / Iluminada pela frente, quando / O carro com lanternas

vira a curva / Do caminho e já a noite é toda humana” 2. A partir de nosso ponto,

podemos ver que o determinante oculto desde sempre das ciências é a diversão, a fuga

para a lua, ou para qualquer lugar onde não haja miséria e onde haja sim muita diversão.

A ciência em tentar descobrir o que somos tira o foco do que realmente somos, tal como

a religião que retira de nós nosso caráter sagrado ao delega-lo a um caminho que tem de

ser percorrido até um ponto este sim sagrado.

tudo o que afasta é diversão

ciência, filosofia , arte são diversões.1 HOUAISS, Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 1.0, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.: do v.lat. divertère 'afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir'; 2 PESSOA, FERNANDO, Obra Poética. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995.

Alexander, 10/04/10,
Mudar a terra, ciência; mudar-se da terra, ciência ao máximo.
Alexander, 10/04/10,
Disse anteriormente ainda haver miséria. Atentar a isso.