Anne Buttimer

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ARTIGOS 4 ISSN 2238-0205 Geograficidade | v.5, n.1, Verão 2015 TRADUÇÃO LAR, HORIZONTES DE ALCANCE E O SENTIDO DE LUGAR 1 Home, reach, and the sense of place Anne Buttimer 2 1 Tradução do texto “Home, Reach, and the Sense of Place”, publicado na coletânea The Human Experience of Space and Place (Nova York: St. Martin’s Press, 1980. p.166-187), edi- tada por Anne Buttimer e David Seamon. Traduzido por Letícia Pádua. 2 Professora Emérita de Geografia, University College Dublin (desde 2003). School of Geography, Planning & Environmental Policy, Newman Building Belfield Dublin 4. Irlanda. Resumo O lugar é construído, significado, recomposto e criado pelas pessoas que nele vivem. Mas é impossível desconsiderar a ação de agentes externos, sobretudo no que concerne as ações de planejamento, frequentemente liderada por agente públicos que obedecem normas e critérios universais, ignorando o conhecimento e as especificidades que só as pessoas do lugar podem conhecer. Assim, a partir de sua experiência pessoal, Anne Buttimer traça um vibrante e intricado relato que nos esclarece questões conceituais centrais sobre nossas relações com o lugar e com a comunidade. A autora explora um dos mais fortes paradoxos da relação homem-lugar, demonstrando o conforto e as limitações do lugar e, ao mesmo tempo, a busca pelo desafio e pelas potencialidades dos horizontes de alcance, que projetam nossos desejos e anseios ao nos lançarmos no mundo. Publicado originalmente em 1978 e reeditado em 1980, o texto emerge de uma das mais ricas décadas para a discussão do lugar enquanto essência fundamental para a geografia humanista e para a compreensão da geografia que produzimos enquanto experienciamos o mundo. Palavras-Chave: “De dentro”. “De fora”. Comunidade. Centramento Abstract Place is built, meant, rejoined and created by the people who live in it. But it is impossible to dismiss the action of external agents, especially regarding the planning actions, often led by public agents who often abide to universal rules and criteria, ignoring local knowledge and specifics that only the insiders know. Using her personal experience as background, Anne Buttimer paints a vibrant and intricate account that lights up the central conceptual issues about our relationship with the place and community. The author explores one of the strongest paradoxes of man-place relationship, showing the comfort and limits of place and, at the same time, the search for the challenge and the potential of horizons of reach, projecting our desires and hopes to launch us on the world. Originally published in 1978 and reissued in 1980, the text emerges from one of the richest decades to the discussion of the place as a fundamental essence for humanist geography and the understanding of the geography we produce as we experience the world. Keywords: Insider. Outsider. Community. Centering

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LAR, HORIZONTES DE ALCANCE E O SENTIDO DE LUGAR

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    LAR, HORIZONTES DE ALCANCE E O SENTIDO DE LUGAR1Home, reach, and the sense of place

    Anne Buttimer2

    1 Traduo do texto Home, Reach, and the Sense of Place, publicado na coletnea The Human Experience of Space and Place (Nova York: St. Martins Press, 1980. p.166-187), edi-tada por Anne Buttimer e David Seamon. Traduzido por Letcia Pdua.

    2 ProfessoraEmritadeGeografia,UniversityCollegeDublin(desde2003). SchoolofGeography,Planning&EnvironmentalPolicy,NewmanBuildingBelfieldDublin4.Irlanda.

    Resumo

    Olugarconstrudo,significado,recompostoecriadopelaspessoasque nele vivem. Mas impossvel desconsiderar a ao de agentes externos, sobretudo no que concerne as aes de planejamento, frequentemente liderada por agente pblicos que obedecem normas ecritriosuniversais,ignorandooconhecimentoeasespecificidadesque s as pessoas do lugar podem conhecer. Assim, a partir de sua experincia pessoal, Anne Buttimer traa um vibrante e intricado relato que nos esclarece questes conceituais centrais sobre nossas relaes com o lugar e com a comunidade. A autora explora um dos mais fortes paradoxos da relao homem-lugar, demonstrando o conforto eas limitaesdo lugare,aomesmotempo,abuscapelodesafioepelas potencialidades dos horizontes de alcance, que projetam nossos desejos e anseios ao nos lanarmos no mundo. Publicado originalmente em 1978 e reeditado em 1980, o texto emerge de uma das mais ricas dcadas para a discusso do lugar enquanto essncia fundamental paraageografiahumanistaeparaacompreensodageografiaqueproduzimos enquanto experienciamos o mundo.

    Palavras-Chave: De dentro. De fora. Comunidade. Centramento

    Abstract

    Placeisbuilt,meant,rejoinedandcreatedbythepeoplewholiveinit.

    Butitisimpossibletodismisstheactionofexternalagents,especially

    regardingtheplanningactions,oftenledbypublicagentswhooften

    abide to universal rules and criteria, ignoring local knowledge and

    specifics thatonly the insidersknow.Usingherpersonalexperience

    as background, Anne Buttimer paints a vibrant and intricate account

    thatlightsupthecentralconceptualissuesaboutourrelationshipwith

    theplaceandcommunity.Theauthorexploresoneof thestrongest

    paradoxesofman-placerelationship,showingthecomfortandlimits

    of place and, at the same time, the search for the challenge and the

    potential of horizons of reach, projecting our desires and hopes to

    launchuson theworld.Originallypublished in 1978and reissued in

    1980, the text emerges from one of the richest decades to the discussion

    of theplaceasa fundamentalessence forhumanistgeographyand

    theunderstandingofthegeographyweproduceasweexperiencethe

    world.

    Keywords:Insider.Outsider.Community.Centering

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    Estrada de terra, leve-me para casaPara o lugar

    Que perteno

    John Denver

    Muito da poesia e msica modernas so perpassadas por tributos

    emocionalmentecarregadossobreosignificadodelugar.Anostalgia

    por algum estado real ou imaginrio de harmonia e equilbrio

    experimentado em ambientes rurais assombra a vtima de um meio

    urbano instvel e fragmentado. Como muitos que procuram a sorte em

    meio sluzesdaBroadwayqueansiavaporumacabanasimplesperto

    de um riacho ondulante na volta para casa, suponho que algum possa

    dizer Voc nunca d valor ao que tem, at perder. Msicas patriticas

    sobreaterraeasflorestasnataisqueconstruramoespritodenao

    em pases europeus foram frequentemente escritas nas cidades da

    Amrica do Norte e Austrlia. E hoje, medida que a singularidade

    dos lugares torna-se mais e mais ameaada pela superficialidade

    homogeneizante da comercializao e da arquitetura padronizada,

    muitas pessoas anseiam pelo seu hembygd e smultronstlle3.

    fascinante reparar quando e como, durante a histria recente, esta

    noo de lugar emergiu como um forte tema na literatura, poltica e

    msica popular. O registro sincroniza razoavelmente bem com perodos

    de mudana relativamente abrupta tanto no ambiente social como no

    fsico, ou no plano das ideias. A literatura romntica sobre lugar do

    finaldosculodezoitoeinciododezenove,porexemplo,corresponde

    aproximadamentecomareaocontraavisonewtonianademundo.

    3 N. da T.: Literalmente, em sueco, Herdade e local favorito. O hembygd est relaciona-do herana, ou legado advindo, geralmente, de uma propriedade rural grande, como uma fazenda.

    Pareciaescandalosoimporumagradecientfica Natureza reduzir

    a beleza, melodia e fragrncia estril mtrica da matemtica ou da

    fsica.

    Quando os sistemas de transporte e a industrializao comearam a

    romper as antigas harmonias das paisagens camponesas, novamente

    o protesto foi verbalizado na linguagem de lugar. A urbanizao trouxe

    sua prpria onda de rebelio contra as mudanas abruptas: o antigo

    mosaico de distritos artesos, mercados abertos e vilas burguesas

    comeou a ser distorcido e desmantelado medida que o antigo

    equilbrio cultural e econmico abriu caminho para o novo dentro da

    prpria cidade. As tarefas domsticas da vida citadina residencial,

    cerimonial, governamental e religiosa cederam para a crescente

    importncia das funes para construo de imprios, por exemplo

    comrcio,finanaseindstria. No agitado entusiasmo pelo incio da

    industrializao era muito mais importante expandir os horizontes

    de acesso aos mercados e ao mercado consumidor do que procurar seriamente fazer da cidade um lar.

    Asmigraestransatlnticasnofinaldosculodezenoveeinciodovinte marcaram outra poderosa fonte de lamento e entendimento no significadodelugar.Osmigranteseuropeusfrequentementecantavamlouvores de seus lugares natais. queles para os quais a viagem rumo

    ao oeste era definitiva, o anseio pelo lar resultou em uma virtual

    enxurrada de sentimentos sobre lugares e suas identidades. Muitos

    grupos de fato tentaram encarnar suas imagens de lar no apenas

    na vida social e poltica, mas tambm em suas escolhas de trabalho,

    vidaepadresdelazer.Mesmohoje,bairrosLitleItaly,Bohemias

    eBlarneyStoneIrishdecidadesamericanasaindaexpemfachadas

    to autnticas que o visitante europeu lembrado do tempo de seus

    avs.

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    Mudando as abordagens do lugar

    Qualquer que seja sua fonte de explicao, esta literatura sobre o sentido de lugar revela vrios temas consistentemente recorrentes. Parece que a sensao das pessoas tanto com relao identidade cultural quanto pessoal est intimamente ligada com a identidade de lugar. A perda do lar ou a perda de seu lugar frequentemente podem acionar uma crise de identidade. Em seu A Potica do Espao, o filsofodosculovinteBachelard(1958)asseveraquearelaoentrelugar e personalidade to ntima que para entender a si mesmo a topoanlise a explorao da auto-identidade por meio do lugar pode produzir discernimentos mais frutferos do que a psicanlise. Existem muitas dimenses de significados atribudos ao lugar: simblico,emocional, cultural, poltico e biolgico. As pessoas no tm apenas concepes intelectuais, imaginrias e simblicas do lugar, mas tambm associaes pessoais e sociais com redes baseadas nos lugares de interao e ligao. Como outros membros da biosfera, os homens tambm demonstram padres marcados de territorialidade. Quando os valores fundamentais associados com qualquer um destes nveis de experincia so ameaados, ento podem explodir protestos sobre osignificadodelugar.Nopareceserumpontocrucialconsiderarseestes valores so conscientemente articulados em termos legais ou comportamentais. Na realidade, eles frequentemente no so levados conscincia at que sejam ameaados: normalmente, so parte do tecido da vida cotidiana e suas presumidas rotinas.

    Entretanto, isso no sugere que as ideias sobre lugar no sejam significativas. Na realidade, o Zeitgeist4 fundamental ou viso de mundo em qualquer ponto da histria que pode ser explcita em

    4 N. daT.:Termo criado porHerder, autor do romantismo alemo, que significa algocomo esprito de poca ou esprito do tempo.

    ideiascientficasoufilosficas sobreespao, tempoenaturezaestimplicitamente presente tambm nas concepes sobre o lugar. especialmente neste nvel que o sculo vinte trouxe reaes e conhecimento sem precedentes.O choque ps-newtoniano tinhaacabado: a cincia e a racionalidade haviam triunfado sobre outras alternativas competitivas. Foi tomado como certo que pases e lugares deveriam ser planejados dentro de um horizonte socioespacial mais amplo. A depresso mundial e a guerra justificaram convices administrativas de que no se deveria confiar s pessoas e seus lugares natais a continuidade do modo tradicional. Uma antiga ideia estoica de que a ordem racional deveria ser imposta sobre a natureza e a sociedade tornou-se um sonho aparentemente vivel em funo dos desenvolvimentoscientficosetecnolgicos.

    medida que a distncia entre os lugares encolheu em funo dos sistemas de transporte e comunicao, o aumento da mobilidade das pessoas, dos empregos e de exrcitos continuou a nivelar a diferena entre lugares; foi naturalmente no contexto urbano que a questo da identidade local tornou-se politicamente articulada. Exemplos prototpicos do choque cultural baseado-em-lugar so os guetos tnicos do incio do sculo vinte na Amrica do Norte. Na Europa, vertiam migrantes de origem rural dentro das cidades industriais de Nova Inglaterra, Chicago e na costa oeste, todas vidas para manter algum senso de identidade cultural e familiar enquanto se juntam filadoempregosemqualificao.Estesbolsesdeassentamentodeimigrantes de primeira gerao rapidamente assumiram um carter tnico distinto. Usualmente circunscritos tanto pelos marcos fsicos quanto pelas leis de zoneamento e pelo preconceito, eles demonstram uma coeso interna que lembra, de vrias maneiras, os distritos da classe-trabalhadora nas cidades europeias. Cientistas sociais tornaram-se fascinados pela ordem social dos assentamentos

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    precrios: notaram o entrelaamento dos arranjos sociais e espaciais e modospelosquaisasformasexternasdapaisagemrefletemasvisesde mundo e padres de comportamento de seus habitantes. Em confiana,defato,asAutoridadesMunicipaisdeChicagoaceitaramarecomendao para a criao de fronteiras administrativas delimitadas por estes socilogos da comunidade: limites que ainda persistem apesardaslidamudanademogrficaecultural.Afaltadeencaixeentre os planos de regionalizao administrativa e o carter social de reas locais permanece como problema constante no que tange identidade do lugar.

    Antes da segunda guerra mundial a maior parte do que foi escrito sobrelugarhaviasidoconstrudonostermosdeummundonewtoniano:o espao como recipiente para pessoas e atividades, na realidade, domnios circunscritos pela autoridade poltica e administrativa. A noo de lugar ainda era muito respeitvel: crvel para aqueles que viviam nele assim como para aqueles que procuravam planej-lo. O lugar serviu como modelo para o reassentamento das minorias depois da primeira guerra: os limites da linguagem e o nacionalismo entendido como bsico e inquestionvel (DOMINIAN, 1917). Lugar tambm era um conceito plausvel para dois movimentos chave de planejamento dos anos 1920: o movimento Cidade Jardim na Inglaterra (HOWARD, 1897) e o famoso Plano regional para Nova York e seus Entornos nos EUA (HAIG, 1927; 1929).

    Foi s depois da segunda guerra mundial que comeou a se expressar na cincia aplicada o impacto total de uma emergente viso mundo einsteiniana e suas reverberaes nas caractersticas dos lugares. O planejamento econmico nacional e multinacional tornou-se um imperativo moral: fronteiras polticas foram desmanchadas e recombinadas de vrios modos; buscaram-se vantagens comparativas na produo e entrega; foram desenhados e otimizados programas

    espaciais e estruturais para maximizar a eficincia e a interao.Parecia que o cu era o limite nas vantagens das economias de escala eaglomerao.Amaioriadestesmovimentosprovocousignificativasreaes populares. Talvez a mais notvel seja o modo pelo qual esteretipos nacionais persistiram, por exemplo, entre os pases membros da Comunidade Econmica Europeia, apesar das enormes mudanas em seus padres reais de interao e troca. Mas foi no mundo urbano especialmente que o antigo refro da identidade do lugar assumiu as formas mais dramticas.

    Os programas de renovao urbana, particularmente no Reino Unido e Estados Unidos, quase sempre encontraram seus primeiros alvos em reas de assentamentos precrios perto dos antigos centros das cidades vtimas do sucesso do Distrito Central de Negcios como polo dominante dentro da cidade-imprio que esqueceu suas responsabilidades do servio domstico. As retroescavadeiras pouco respeitavam esses limites invisveis de smbolos sagrados do espao social. (Claro que alguns resistiram: emGlasgow hoje, vrios anosdepois da primeira escavadeira ter chegado, pubs e igrejas se mantm como mesetas sobre uma paisagem arrasada at o limite da insipidez isolados de sua clientela cujas casas um dia j estiveram em torno deles).

    Quando os cientistas sociais se envolveram como consultores tanto para os planos de redesenvolvimento ou para a sua avaliao, eles usualmente traziam os modelos antigos da identidade de lugar que foi tentado e testado nos anos vinte e trinta. Mitos de comunidade e territorialidade gozaram de uma longa popularidade. Parecia ideologicamente desejvel para muitas autoridades polticas patrocinar tais pesquisas orientada-para-pessoas. A maioria de sua literatura tomou forma de uma autpsia ps-moderna luto pela perdadolarmuitotardiaoutalvezmuitoseguraparainfluenciar

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    a marcha-para-adiante do planejamento para o desenvolvimento urbano e regional.

    No entanto, o que emergiu para muitos dos autores e pblico de tais estudos foi a forte convico de que h um contraste fundamental entre os modos de experincia do lugar do de dentro5 e os modos convencionais dos de fora de descrev-las. O espao vivido e o tempo vivido foram pobremente e apenas parcialmente representados via modelos disciplinares do espao e tempo representacionais. Para muitos pesquisadores srios o caminho est em explorar os mundos vividos das pessoas no lugar.

    Filsofos crticos acusaram aqueles que aceitaram tal abordagem existencial de terem sido vtimas da manipulao de interesses ideolgicosegerenciais(ADORNO,1973).Notou-seque,debaixodojargo da autenticidade espreitava uma tcita apologia pobreza, injustia e alienao. As descries romnticas da vida do bairro podem, de fato, inadvertidamente terem servido para perpetuar mitos como a cultura da pobreza ou para trivializar a perspectiva do de dentro de recusar a articular isso em uma linguagem que poderia revelar a extenso da injustia estrutural construda na vida poltica e econmica contempornea. Aqui talvez se encontre uma pista bsica para o impasse: a linguagem usada para descrever as perspectivas dos residentes sobre o lugar ainda, em geral, a linguagem de um mundo newtonianopessoas,atividades,ecoisascontidasdentrodolugarao passo que a linguagem usada para planejar os horizontes econmico e tecnolgico do lugar tem sido profundamente influenciada pelasconcepes einsteinianas do espao, tempo e processo topolgicos. Falar de de dentro e de fora, lugar versus organizao espao-

    5 N. da T.: Usamos de dentro para traduzir insider e de fora para traduzir outsider. Os de dentro so pessoas que esto no lugar, na comunidade, algo como pessoa ntima, no caso, a pessoa DO lugar. Os de fora, por sua vez, so os estrangeiros, forasteiros ou migrantes.

    temporal e outros dualismos deste tipo pode servir razoavelmente bem para descrever o registro histrico. Mas para fazer justia aos interesses fundamentais da vida que podem ser evocados pela questo da identidade de lugar atual, a pessoa precisa esquadrinhar um nvel mais profundo de significado para, com sorte, encontrar algunsdenominadores comuns para um dilogo entre aqueles que querem viver nos lugares e aqueles que querem planeja-los.

    Lar e horizontes de alcance

    Eu sugiro que pensemos sobre lugares no contexto de dois movimentos recprocos que podem ser observados entre a maior parte das formas vivas: como inspirar e expirar, a maioria das formas de vida precisa de um lar e horizonte de alcance orientado para fora daquele lar. A reciprocidade vivida de descanso e movimento, territrio e horizontes de alcance, segurana e aventura, servio domstico e pecuria, criao de comunidades e organizao social estas experincias podem ser universais entre os habitantes do Planeta Terra. Quer a pessoa pense no nvel das prprias ideias, ou das redes sociais, ou de algum cotidiano domstico, pode ser uma maneira pela qual a pessoa mea um estudo de reciprocidade do lar e dos horizontes de alcance em todos eles. Para qualquer indivduo o lar e o horizonte de alcance do pensamento e imaginao podem ser bastantedistintosdolaredoshorizontesdealcancedesuasfiliaessociais, que podem novamente ser distintos da real localizao fsica ou do lar e dos horizontes de alcance fsicos (ROSE, 1977). Estas distines no so apenas abstraes: se eles forem de fato mapeados dentro do horizonte temporal do espao-vivido de qualquer indivduo ou grupo eles poderiam fornecer algumas pistas dentro das quais se constitui a identidade de lugar. Se todos os trs so sincronizados ou

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    harmonizados, ento a pessoa pode falar de centramento e admitir a hiptese de que o sentido de lugar de um indivduo uma funo do quo bem este lugar um centro de interesse da vida do indivduo. Tomado em um sentido mais geral, a questo se torna quantos dos interesses na vida dos locais pode ser centrada em torno disso e quantas delas tm seu lar em outro canto?

    Este processo de centramento no de modo algum idntico noo de centralizao concentrao nodal racional e planejada de poder e energia social. Ao contrrio, centramento sugere um processo contnuo de vida a inspirao e o trazer para casa que a recproca da expirao e a busca pelo horizonte. A diferena essencial entre centralizao e centramento pode, de fato, simbolizar a diferena da linguagem da viso dos de dentro e dos de fora sobre o lugar. Por exemplo, as palavras usadas para descrever lugares vistos externamente, pelos de fora, so substantivos artefatos como setorimobilirio,usodaterra,fluxodeatividade,fronteiraspolticas.A partir de uma perspectiva nacional, uma pessoa pode falar de centraliza-los ou descentraliza-los. Ao contrrio, o centramento um processoessencialmentecriativodasprpriaspessoas.Ossignificadosde lugar para aqueles que vivem nele tm mais a ver com a vida e os afazeres cotidianos do que com o pensamento.

    Para discutir lugar, temos que congelar um processo, que dinmico, em um momento imaginrio, com o objetivo de fazer uma imagem esttica. O observador que explora o lugar fala da casa, ao passo que o residente daquele lugar vive o processo de habitar. O observador mede e mapeia atividades sistmicas e redes sociais e infere algo, dentro de seu horizonte de alcance, sobre o mundo do nativo, ao passo que a experincia do horizonte de alcance do morador pode ser um movimento to fundamental na existncia cotidiana que usualmente no se pensa nele. Um dos primeiros passos a serem realizados na

    tentativa de resolver a diviso entre os mundos dos de dentro e dos de fora, ento, estender nosso substantivo convencional ou figuradelinguagemdemodoaacomodarosverboseprocessosde linguagens da experincia vivida.

    A armadilha do de fora, para exagerar um pouco, aquela que a pessoa olha para os lugares como eles so, a partir de um horizonte abstrato. Ele ou ela tenta ler os textos das paisagens e comportamentos manifestos na linguagemfiguradadosmapas emodelos e , destemodo, inevitavelmente atrado para encontrar no lugar o que ele ou ela pretende encontrar nele. A armadilha do de dentro, por outro lado, da pessoa viver nos lugares e estar to imersa nas particularidades da vida e aes cotidianas que ele ou ela pode no ver nenhum sentido em questionar o que dado como certo ou em ver o lar em seu contexto espacial ou social mais amplo. Tanto para o de dentro quanto para o de fora, talvezomaiordesafio sejapedaggico: umchamadoconscincia daquelas ideias e prticas comuns e cotidianas dentro do mundo pessoal e ento ir alm delas no sentido de um dilogo mais razovel e mutualmente respeitoso.

    O gegrafo, entre todas as pessoas, deve considerar atraente tal desafio pedaggico. Ao passo que a maioria dos nossos modelosdisciplinares impulsionou a postura do observador dos lugares, ns todos, em algum lugar e em algum tempo, somos de dentro. No seria um objetivo vlido, ento, examinar nossas prprias experincias em vrios lugares e usar isso como um campo de teste para as nossas generalizaes e tambm nossos esforos para alcanar melhor comunicao ao longo desta ciso? Antes de uma pessoa encarar questes da poltica de planejamento, me parece que seria vital entender os processos fundamentais da vida que esto em jogo e que so vulnerveis a mudanas na identidade fsica e poltica de lugar. A questodadescentralizao,porexemplo,podeserredefinidacomo

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    um problema que requer um esforo para revitalizar as energias de reas locais desde as razes de grama ao mesmo tempo em que a pessoa estuda a viabilidade de projetos de redistribuio impostos de cima para baixo.

    Experincias no lugar

    Norestantedesteensaioofereoalgumasreflexesequestesqueemergem de esforos exploratrios para entender o significado dolugar em minha prpria experincia assim como na de outros grupos. O objetivo no criar um modelo a ser testado ou a soluo para todos os problemas, mas sim, a histria de uma jornada pela ruptura que a maioria de ns confronta (ou ignora) quando falamos de pessoas e lugares. De certo modo, apenas um tipo de dever de casa que qualquer estudioso que acredita na objetividade deveria estar disposto a enfrentar: desenterrar o elemento subjetivo e reconhecer suas influncias.

    Estou certa que, por exemplo, muitas das atitudes que eu trago para aminhageografiaecertamentemeucinismosobreoplanejamentoburocrtico feito de cima para baixo, derivam de minhas experincias de infncia na Irlanda (Figura 1). difcil, para mim, encontrar palavras paradescreveroqueaexperinciadevivernaIrlandaaindasignifica.evocada uma experincia completa do meio: lembro-me da sensao da grama nos ps descalos, os cheiros e sons das vrias estaes, os lugares e tempos em que eu conheci amigos nas caminhadas, a decadnciadiriaeofluxodahoradaordenha, refeies, leiturasepensamentos, dormidas e despertares. A maioria destas experincias no conscientemente processada na minha mente por isso que to difcil encontrar palavras porque este lugar viabiliza a mente e o corao,corpoeesprito,imaginaoevontadedeficarharmonizado

    e criativo. At agora, a racionalizao tpica de Mansholt6 no

    interrompeu o tecido de nossa paisagem local ou a previsibilidade das

    intruses snicas e outras ao longo do dia; de algum modo viver ali

    proporciona pessoaumaafinaocomoritmodaluzedaescurido

    na natureza, calor e frio, semeadura e colheita (Figura 2).

    Agora, como gegrafa, eu poderia provavelmente contar quais

    tipos de solo existem l, qual deveria ser o sistema de rotao de

    culturas, o custo tempo-distncia para os mercados e assim por diante,

    mas mesmo quanto eu tiver terminado a rodada das interpretaes

    geogrficas ainda sentiria que criei apenas uma figura opaca

    insuficienteparalhescontarseoslimitesadministrativo/econmico/

    poltico do lugar deveriam ser revistos ou quais campos de interesse

    6 N. da T.: foi o presidente da Comisso Europeia na dcada de 1960, que criou a Poltica Comum para a Agricultura no continente a longo prazo, conhecida como o Programa da Agricultura dos anos 1980. Mansholt previu que se aproximava o limite da capacida-de de incentivo estatal para a agricultura e que deveria se reduzir a produo agrcola naEuropafrenteumaeminentecrisedesuperproduo.Assim,aconselhouofimdaspequenas propriedades, a aposentadoria precoce de agricultores e a limitao tcnica das propriedades de acordo com um critrio de viabilidade que envolvi a comparao com a renda mdia urbana da regio.

    Figura 1 Lenville, Co. Cork, Irlanda.

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    da vida humana deveriam ser deixados de fora de nosso juzo ou arrogados pelas autoridades nacional ou regionais. Talvez aqui eu esteja envolta na armadilha dos de dentro? Experincias em vrios outros ambientes, no entanto, tm me convencido que as solues para muitos problemas regionais que tm sido descobertas por meio de tentativas e erros ao longo de geraes, podem ainda ser mais racionais que aquelas concebidas pelos servidores pblicos urbanos e forasteiros. A experincia tambm sugere que qualquer soluo que as pessoas no considerem ser sua ideia ser ressentida, evitada ou consideradaridculaaolongodotempo.Afinadacomoeueracomummundo rural relativamente estvel com seus lugares presumidos para tudo, a paisagem urbana da Amrica do Norte pareceu a primeira vista, carecer de identidade (Figura 3). O subrbio especialmenteparecia um grande e expandido lugar nenhum, sem-lugar, de concreto e plstico (Figura 4).Mesmonos distritos universitrios, apessoa procurava em vo por um caf na calada pelo tipo de caf na calada em que pudesse se demorar por horas: ao invs disso, a pessoa encontrava as lanchonetes que se orgulhavam delas mesmas por terem retorno rpido de rendimentos (Figura 5). No demorou muito para descobrir o quanto pode ser falso julgar um livro pela capa: muitas dessas inclassificveis lanchonetes de hambrgueres eram

    significativos ndulos no espao social de um adolescente ou um

    motorista de caminho.

    Muitas pessoas, para as quais parece que os horizontes de alcance

    mais importante do que o cotidiano domstico, os lugares podem ser

    simples pontos de acesso em uma superfcie topolgica. Eventualmente,

    a monotonia ou discordncia arquitetnica dentro do espao fsico

    de qualquer um pode ser o resultado de coincidncias mais do que

    design: cada componente parte de uma ligao espacial e o centro

    Figura 2 Lenville, Co. Cork, Irlanda.

    Figura 3 Centro de Toronto

    Fonte: Cortesia do Dr. Hans Aldskogius, Uppsala.

    Figura 4 Suburbio, regio de Chicago

    Fonte: Cortesia do Dr. Torsten hages-trnd, Lund.

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    de cada um est em uma sede nacional ou multinacional. Como as coisas voeventualmentesecombinardentrodeummeiogeogrficoparticular, portanto, bastante acidental tanto para aquele que o desenha quanto para aqueles que iro usa-lo (Figura 6). Os arranha-cus, aeroportos, rodovias, e outros componentes estereotipados das paisagens modernas no so eles smbolos de uma civilizao que tem endeusado o horizonte de alcance e escarnecido do lar (Figura 7)? Ou as feridas abertas das paisagens mineradas ou industriais, no so

    a recusa da ceifagem de uma civilizao intoxicada com a hbris de Prometeu (Figura 8)?

    Estilos de vida e Lugar

    difcil para um nativo da Irlanda rural tomar uma atitude de relativismo cultural a respeito das paisagens dos horizontes de alcance sem-lugar(RELPH,1976;CLAY,1974).

    Figura 5 Rua principal do Mac Donalds, Worcester (ou qual-quer lugar)

    Fonte: Cortesia de Rudi Hartmann, Worces-ter, USA.

    Figura 6 Cidade Bran-ca (Discothque), Rota 9, Massachus-sets, USA

    Fonte: Cortesia de Rudi Hartmann, Worces-ter, USA.

    Figura 7 Rodovia de acesso ao centro de Minneapolis

    Fonte: Cortesia do Dr. Hans Aldskogius

    Figura 8 OPEN_PIT Mina, Minnesota

    Fonte: Cortesia do Dr. Hans Aldskogius.

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    Isso no apenas por causa da esttica ou de uma sobrecarga sensorial; ao contrrio, deriva de uma nusea sobre os valores que fazem mquinas, commodities, movimentos e a habilidade de vender mais importantes que encontros humanos ou do que deixar a natureza ter algum espao para respirar. ainda duro ser sinceramente a favor dos movimentos de restaurao em partes das cidades se o objetivo simplesmente reconstituir um museu para o benefcio da indstria do turismo ou para salvar as conscincias de sociedades que foram pisoteadas na histria: o estilo de vida associado com o lugar que ainda muito mais importante para mim do que suas formas externas. (Figura 9).

    A lugarizao de objetos e atividades dentro do espao interior tambm foi algo surpreendente para algum socializado dentro de um lar irlands rural. Por causa da nfase americana no consumismo, tornou-se no apenas elegante, mas tambm lucrativo, desenhar espaos interiores de maneira a apelar aos potenciais compradores. A proxmica e a territorialidade dentro e fora do lar tendem a se tornar pontos de pesquisa academicamente interessantes em perodos de claustrofobia coletiva ou comprometimento poltico para a expanso do Lebensraum7 como no final dos anos 1960 dos dois lados doAtlntico. Foi na Alemanha que o campo especial de Brolandschaft8 apareceu primeiro promessa de mobilirio desenhado com base cientfica,acsticaeestticademodoafacilitaraeficinciatimadotrabalho. Na maioria das nossas sociedades urbanas desenvolvidas

    7 Comumente traduzido como espao vital, ou seja, o espao necessrio para a so-brevivncia, manuteno e expanso de uma sociedade, um conceito difundido na cinciageogrficaporFriederichRatzel,

    8 Literalmente, paisagem-escritrio, refere-se a um tipo de design de escritrios cria-donaAlemanhanosanos1950queenfatizavaespaosabertos,comboailuminaoeplantas, melhorando a qualidade do ambiente de trabalho.

    o que traz lucro o apelo a certo limiar de massagem de ego da mdia seja em termos de lucro comercial seja um consenso ideolgico.

    Talvez a ideologia aplicada nos limites comerciais de estudos de territorialidade tenha ofuscado os assuntos mais profundos. Norberg-Shulz (1971), em seu lcido livro sobre arquitetura, destaca oqueestenvolvidonofazerdoespaoarquitetnicoumreflexodoespao existencial. Eu sou, claro, incrdula de que todos os aspectos significativos da existncia possam ser prontamente traduzidos nolugar em termos arquitetnicos, mas isso realmente no parece ser o pontomaisimportante.Oproblemafilosficoepragmticocrucialestem qual papel potencial permitido aos moradores terem qualquer palpite criativo no desenho dos lugares.

    Olhando para trs, eu suspeito que minha deciso de aceitar um convite para me juntar a um time de especialistas em uma crtica aos padres de planejamento no Reino Unido provavelmente provenha de um ressentimento emocional contra os modos pelos quais bem intencionados tecnocratas e planejadores pareciam, na realidade, estarem matando lugares por meio de seus esforos para renova-los (Figuras 10 e 11). Foi este ressentimento somado esperana de poderia

    Figura 9 Velha Montreal

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    haver algum espao para a razo no mundo altamente racional do planejamento liberal,muitomaisqueacuriosidade intelectualsobreageografiaaplicada,queme motivou a investigar os mundos da experincia vivida das famlias da classe trabalhadora. Equipada com as linguagens analtica e terica das cincias sociais por um lado e profundamente consciente do quo traumtico uma mudana de lar pode ser, senti que poderia talvez exercer um papel de mediadora entre os de dentro e os de fora neste contexto (BUTTIMER, 1972 e 1980).

    Os detalhes deste estudo so talvez menos interessantes que o conhecimento que a reflexo posterior produziu a respeito de suas foras e limitaes. Havia vrias maneiras pelas quais os usos dos modelos atuais me impediram de deixar os moradores articularem suas prprias verses da situao ou de comunicar diretamente para as prprias autoridades planejadoras. De um ponto de vista analtico, tambm havia vrias dimenses faltando: anlises de percepes, comportamento, territorialidade e atitudes de forma transversal em um ponto

    no tempo no me permitem ter suficientemente emconta a dimenso temporal. Estava claro que aqueles hbitos e preferncias que tinham razes mais profundas nas memrias das pessoas tambm era aquelas mais provveis de sobreviver e muitas daquelas no eram realmente planejveis. Este tambm era um estudo antropocntrico: mesmo o ambiente era definido emtermos humanos (forma arquitetnica, acesso ao horizonte, limites funcionais, etc.) e foi dada ateno insuficienteparaoambientefsicoreal.

    Masmaissignificativamente,emretrospecto,oestudono era um interpretao objetiva. Apesar dos moradores falarem sobre as razes do lar e sentido de lugar, escutei estas palavras por meio dos filtros de minhaprpria experincia. Lar para mim deveria idealmente ter aquelas qualidades de meu prprio lar tranquilidade, odores, espaciosidade, fluxo rtmico de luz e sombra,inverno e primavera. Essas donas-de-casa deGlasgowteriam provavelmente se sentido desconfortveis em tal meio. Para elas o barulho e alvoroo da vida das ruas, o apito regular da fbrica e dos trens, uma luta de gangue ocasional e uma partida de futebol estes provavelmente teriam sido mais importantes do que a presena de vacas epssaros(Figuras12e13).

    Consciente do modo como modelos disciplinares e a suaprpriasocializaopodeminfluenciaraabordagemdo estudo do lugar, tenho tentado ao longo dos ltimos anos, desenvolver um mtodo para investigar minha prpria experincia de lar e chegar nos dois meios contrastantes onde passo a maior parte do meu

    Figura 10 Antes da renovao emGlasgowGorbals(c.1965),Esccia

    Figura 11 DepoisdarenovaoemGlasgowGorbals(Hu-tchesontown,c.1970).

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    tempo: a casa em Glenville e um apartamento na rua principal em Worcester, Massachusetts (Figura 14). O intuito era permanecer omais objetiva possvel dentro de minha prpria experincia e por meio do compartilhamento de um relato com aqueles que vivem no mesmo prdio para chegar a alguma concluso sobre o mundo dos de dentro ali.

    Este estudo no foi um sucesso absoluto. Primeiro, de uma perspectiva analtica, era virtualmente impossvel juntar dados das

    vrias categorias relevantes do ambiente que fossem, de algum modo, comparveis ou facilmente relatveis sobre a experincia humana do meio. Segundo, apesar de um bom nmero de meus colegas moradores serem idosos e aposentados, eles raramente haviam pensado sobre o lugar. Para eles, os processos de lar e os horizontes de alcance tinham primariamente um sentido social: telefone, taxi e correspondncia os mantinham felizes e envolvidos com suas redes no-baseadas-no-lugar. Havia apenas um pequeno conjunto de atividades que poderiam ser afetadas pelos ambiente fsico local: esperar o nibus, fazer compras, igreja, biblioteca. Eles tornaram-se muito melhor adaptados ao lugar-sem-lugaridade e ao individualismo do que eu. Isto provavelmente prototpicodocomplexodeapartamentosqueficaemumaviapblicaprincipal dentro de uma cidade contempornea.

    Figura 12 Lar em Drumchapel, Glas-gow

    Figura 13 Lar em Cork Rural

    Figura 14 Prdionaruaprincipal,1039,Worcester,Massachussetts,USA

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    Ainda assim, quando ns investigamos as razes de nossas reclamaes recorrentes e sentimentos de inquietao, descobrimos alguns denominadores comuns da preocupao entre os guardies do nosso meio imediato. O maior deles era o senhorio9, nas mos do qual est todo o discernimento sobre detalhes como eletricidade, gs, gua, encanamento e proteo de vndalos. Na maior parte do tempo ele era inacessvel, mesmo por telefone. Outros guardies de nosso ambiente imediato, como a polcia e os bombeiros, eram igualmente imprevisveis em termo de acesso tempo-distncia. A maior parte do que realmente estava dentro da zona imediata do horizonte de alcance existia em funo do interesse remoto em considerar que nossa rua no era mera passagem. Mas mais seriamente, nos foi

    negada a oportunidade de expressar qualquer responsabilidade para

    a manuteno no nosso lugar ou para criar ali qualquer sentido de

    comunidade por meio do compartilhamento mtuo. Ns ramos

    forados a adotar uma atitude de sobrevivncia como indivduos e

    pensvamos apenas em nosso prprio horizonte de alcance social

    forando o embotamento de nossas sensibilidades para outras

    dimenses do horizonte de alcance dentro de nossa prpria experincia

    de ser sensvel quelas dos outros. difcil pensar sobre a cidade como

    um todo ou engajar-se na vida pblica se o gnero de vida cotidiano

    da pessoa tornar-se to preocupado com a sobrevivncia individual.

    Talvez esta seja a mais sria consequncia de longo prazo da falncia

    do lugar: no negada sociedade como um todo um precioso dado

    que apenas indivduos in situ podem contribuir, se a pessoa no pode

    praticar o dar-e-receber em sua rotina cotidiana normal? O relato

    de Jane Jacobs (1961) para a Rua Hudson sugeria que isso de fato

    9 N. da T.: Em ingls, landlord, tem sentido que pode ser duplo em portugus se apli-ca ao dono de uma propriedade que est alugada e tambm pessoa que faz a manu-teno constante e cotidiana dos imveis de um prdio, como um zelador.

    verdade. Um estudo exploratrio sobre padres criminais ao longo da

    Rua Principal sugere uma correspondncia espacial entre a incidncia

    de crimes e a presena dos donos. Isso provavelmente ecoa o trabalho

    Espao Defensvel deOscar Newman (1973) que argumenta que

    atividades diuturnas de base local podem ser melhores prevenes do

    crime do que a vigilncia policial.

    Uma educao no lugar

    Considerar o fracasso do lugar e suas consequncias para a vida pessoal e comunitria como resultado de decises fascistas de centralizar tudo, pode criar uma retrica atraente, mas no fornece as explicaes mais teis em longo prazo. Ao invs disso, pode ser pedagogicamente mais provocativo e praticamente mais exequvel desenhar exerccios que podem ajudar de dentro em seus meios cotidianos a tornarem-se mais conscientes das implicaes, em longo prazo, de um estilo de vida individualista e fragmentado, para a qualidade de suas prprias vidas e o carter geral de seus ambientes de moradia e trabalho. Tais esforos de conscientizao sero de pouco proveito, no entanto, se no houver uma tentativa simultnea por parte dos interesses gerenciais de se educarem: separar o vis subjetivo e o papel limitado de tomada de deciso por qualquer razo almejar o bem do todo. Um gegrafo, sensvel s experincias de lugar dos de dentro e dos de fora, e ciente das reciprocidades do lar e dos horizontes de alcance dentro de sua prpria experincia de vida, pode certamente oferecer alguma ajuda no tal empreendimento pedaggico (SEAMON, 1979).

    Retornando para o meu lugar-lar na Irlanda agora eu sinto mais intensamente o tipo de educao necessria. H necessidade de uma atitude contnua de autoconscincia que ajudaria as pessoas a acessar osignificadodeseushorizontesdealcancevastamenteexpandidos.

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    As antigas regras sobre servio domstico podem ser apropriadas em alguns mbitos, mas eles so desesperadamente inadequados em outros. O que parece tecnologicamente desejvel em alguns mbitos pode ser social e ecologicamente desastrosos em outras reas. Permitam-me ilustrar.

    Muitos dos primeiros lderes do desenvolvimento agrcola irlands vieram de fazendas como a da minha infncia, onde o sucesso na vida demandava um empreendimento independente e trabalho duro. As barreiras a superar na esteira da Segunda Guerra Mundial eram aquelas das condies clssicas da agricultura da Europa Ocidental: por exemplo,aineficinciadaproduo,datecnologiaedosfertilizantes;

    flutuao nos mercados produtivos; tamanho ou nvel inadequado

    de especializao para permitir economias de escala. Tendo sofrido

    estas restries em sua juventude e tendo aprendido os valores do

    auto-sacrifcio e esforo inflexvel, estes fazendeiros naturalmente

    construram uma utopia em termos de racionalidade econmica. O

    melhor servio que eles podiam prestar sociedade era trabalhar para um plano de desenvolvimento nacional da agricultura que permitiria a todos os fazendeiros serem livres de amarras.

    Os ltimos vinte e cinco anos viram mudanas dramticas: leiterias locais foram racionalizadas, mercados e feiras regionalizados, os horizontes de transporte expandidos e o preo das commodities garantido. As crianas no andam mais para a escola. Cada empreendedor individual e sua famlia tornaram-se mais emancipados das limitaes anteriores, no entanto, eles tambm foram privados das antigas oportunidades de contribuir para um sentido coletivo de lugar. Um saco de bnos misturadas a agora tenso familiar entre a racionalidade e a razo se espalhou por cada aspecto da vida local. Muitos moradores alegram-se pelo desaparecimento de escravido e da pobreza, mas outros imaginam porque uma pessoa no v mais

    muitas caractersticas locais ou ouve algum famoso contador de histrias, a no ser na TV.

    Para traduzir a histria na linguagem do lar e dos horizontes de alcance, uma pessoa pode dizer que os horizontes de alcance tecnolgico e econmico expandiram-se to rapidamente e to individualmente que a pessoa no consegue mais encontrar suporte ou centramento nas antigas concepes de lugar-comum do horizonte de alcance compartilhado. Mesmo dentro da vida familiar h, frequentemente, dissonncias entre a capacidade dos horizontes de alcance de alguns membros e uma crescente distncia social entre vizinhos. A partir de um ponto de vista ecolgico, h tambm pouca reflexo sobre as

    consequncias, em longo prazo, da crescente dependncia da comida

    desupermercado,fertilizantesartificiaiseproduoemlarga-escala

    para mercados distantes. Sacos plsticos, recipientes de lata e garrafas vazias esto se tornando monstruosidades no entorno de muitos lares.

    Se algumperguntasse qual o sentido e potencial significado dolugar aqui, ou em lugares similares, a pessoas precisariam redefiniro que comunidade e lugar. A pessoa tem que pensar os dois em

    termos dinmicos, como horizontes de processos bsicos de vida

    mais que como artefatos ou substantivos. A criao da comunidade

    no pode hoje se basear em sustentculos antigos como o limitador

    compartilhamentoderecursoseoconfrontounidodealgunsdesafios

    comunsnoperododacolheita.Hoje,nossodesafiocomumainda

    mais implcito que explcito de um tipo diferente: as consequncias

    psicolgicas e emocionais de gneros de vida fragmentados justapostos no espao fsico, mas estranhos no espao social. A catlise para a criao de comunidades na Irlanda rural ainda sobrevive: times de futebol, jornais locais, ocasies comuns de orao e recreao. O pub onipresente ainda fornece as bases para o contato entre pessoas e nutre o senso de identidade local.

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    A rastejante paralisia que vive o rural irlands compartilhada com muitas regies similares na Europa Ocidental do ponto de vista do lugar a penetrao geral da poltica eurocrtica na agricultura que estimula no apenas escndalos ecolgicos e sociais na especulao de terras, mas tambm preenche o rural como uma classe motorizada de interesses desenvolvimentista, buscando alistar cada famlia individual em redes de controle-remoto de consumismo. Pelo sotaque, humor e msica, ainda possvel diferenciar corkonianos dos homens de Kerry10. Em termos geogrficos amplos, no entanto, h poucadiferena.

    A identidade e sade pessoais requerem um processo contnuo de centramento a reciprocidade entre habitar e alcanar que podem encontrar suas expresses simblicas externas no sentido de lugar ou na identidade regional. Esforos de descentralizao vindos de cima precisam se dar conta dessa caracterstica principal das experincias vividas, tanto para indivduos quanto para a sociedade. Se existe uma necessidade de consultores, seria nos esforos de planejamento para tomar conhecimento de suas pressuposies sobre as relaes entre pessoas e lugares. Ultimamente, os projetos de centralizao podem apenas tocar nas externalidades da vida local; a eficcia, em longoprazo, destes planos depende do re-despertar de energias criativas nas comunidades locais.

    Um estilo de vida vivel para as reas locais no pode prender-se em velhosconceitosnewtonianosdecomunidadeeregio,ouadotarumaatitude de gueto competindo contra a organizao espacial nacional e

    10 N.daT.:CorkeKerrysocondadosvizinhosnosudoestedaIrlanda.OscorkonianospessoasnascidasemCorkeapopulaodeKerrysoconhecidosporseusotaqueespecficoemfunodaresistncia localpela lngua irlandesa,emcontraposioaodomnio do ingls. No entanto, em funo de diferenas histricas de ocupao e en-volvimento com a guerra civil e com o IRA Exrcito Republicano Irlands guardam pequenas diferenas culturais e de vocabulrio.

    social. Um estilo de vida comunitrio orientado para a autoeducao a respeito dos horizontes de alcance das pessoas, em constante transformao, atividades sistmicas e tecnologia, seria uma catlise poderosa para desenvolver hbitos cvicos de compartilhamento e descoberta do quanto a sade e a felicidade de indivduos e comunidades pode ser aumentada apenas permitindo que as pessoas contribuam com o todo.

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    SubmetidoemDezembrode2014.AprovadoemJaneirode2015.

    Sem ttulo