Angela Regina Binda Da Silva de Jesus

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  UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CEN TRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E N ATURAIS DEPARTAMENTO DE L ÍNG UAS E L ETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO E M LETRAS ANGELA REGINA BINDA DA SILVA DE JESUS ENTRE O SIM E O NÃO, O SOL E A INDIFERENÇ A: MEURSAULT, O HERÓI ABSURDO EM L´ÉTRANGER DE ALBER T CAMUS VITÓRIA 2010

Transcript of Angela Regina Binda Da Silva de Jesus

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE LNGUAS E LETRAS PROGRAMA D E PS-GRADUAO EM LETRAS

ANGELA REGINA BINDA DA SILVA DE JESUS

ENTRE O S IM E O NO, O SOL E A INDIFEREN A: MEURSAULT, O HERI ABSURDO EM LTRANGER DE ALBER T CAMUS

VITRIA 2010

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ANGELA REGINA BINDA DA SILVA DE JESUS

ENTRE O S IM E O NO, O SOL E A INDIFEREN A: MEURSAULT, O HERI ABSURDO EM LTRANGER DE ALBER T CAMUS

Dissertao de Concl uso do Cur so de PsGraduao strictu sensu em Estudos Literrios apresentada Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Estudos Literrios, sob orientao do prof. Pedro Jos Mascarello Bi sch.

VITRIA 2010

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Dados Inter nacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

J58e

Jesus, Angel a Regina Binda da Sil va de, 1981Entre o sim e o no, o so l e a indiferena : Meursault, o heri absurdo em L'tranger de Albert Camus / Angel a Regina Binda da Silva de Jesus. 2010. 122 f. Orientador: Pedro Jos Mascarello Bi sch. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito Santo, Centro d e Cincias Humanas e Natur ais. 1. Camus, Al bert, 1913-1960. L'tranger - Crtica e interpretao. 2. Absurdo na literatura. 3. Linguagem. I. Bi sch, Pedro Jos Mascarello. II. Uni versidade Federal do Espri to Santo. Centro de Ci ncias Humanas e Natur ais. III. Ttulo. CDU: 82

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ANGELA REGINA BINDA DA SILVA DE JESUS

ENTRE O S IM E O NO, O SOL E A INDIFEREN A: MEURSAULT, O HERI ABSURDO EM LTRANGER DE ALBER T CAMUS

Dissertao de Concluso do Curso de Ps-Graduao strictu sensu em Estudos Literrios apresentada Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do ttul o de Mestre em Estudos Li terrios.

Aprovada em 17 de maro de 2010.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________ __________________ Prof. Dr. Pedro Jos Mascar ello Bisch (UFES) (Orientador)

_______________________________________________________ Profa. Dra. Olga Maria Machado Carlo s de Souza S oubbotnik (UFES)

____________________________ ___________________________ Profa. Dra. Maria Elizabeth de S Cunha Pi nheiro (UFES)

_______________________________________________________ Prof. Dr. Wilberth Clayton Ferreira Salgueiro (Membro suplente interno)

_______________________________________________________ Profa. Dra. Mariza Silva de Mor aes (Membro suplente externo)

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A vocs que me acompanharam com o silncio enquanto eu pesquisava. A vocs que vou chamar sempre de meus

meninos : meu esposo Gilberto e meu filho Artur.

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AGRADECIMENTOS

Agradeo ao meu orientador, professor Pedro Jos Mascarello Bisch, por todo empenho, sabedori a, compreenso e, aci ma de tudo, exi gncia. Agradeo ainda, por tornar minha pesquisa bibliogrfica (em regra, tarefa solitria) mais amena e focada.

Ao meu marido Gilberto e ao meu filho Artur, parceiros de todos os momentos, por tanto amor e entendi mento.

Aos professores do Mestrado que dividiram sem egosmo os seus conhecimentos durante as aul as ministradas.

Acima de tudo a Deus, pela graa da garra que me faz querer pesquisar sempre mais.

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Entrego a obra feita, fica a memria de tudo o que foi lido e relido, escrito e reescrito, sabido quase de cor. De cor, palavra que vem de corao. To do corao, que me apanho a escrever como o autor, misturando as ideias com o estilo e reparando que por vezes j no sei se estou a citar ou salmodear, to grande foi a empatia sentida e consentida. Hlder Ribeiro

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa revelar os principais pontos do pensamento camusiano acerca do absurdo da vida humana, suscitados pelo estudo da obra Ltranger. Atravs da vida de Meursault, prope-se analisar as relaes indiferentes que o personagem mantm com a me, namorada e mundo, assim como os aspectos do absurdo que esto presentes em sua rotina, no crime que comete sem razo aparente, no seu julgamento e na sua priso. Procura analisar a linguagem clara e objetiva utilizada por Camus na obra Ltranger, fator essencial para transmitir ao leitor o absurdo da vida humana em que seu personagem se locomove. Trata ainda da revolta, resultado da vivncia absurda da vida humana e dos reflexos da vida de Camus em suas obras, fatores essenciais para uma melhor compreenso da literatura deste autor.

Palavras-chave: Camus. Ltranger. Meursault. Absurdo. Revolta.

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RSUM

L'objectif de cette recherche est de mettre en lumire les principaux points de la pense camusienne au sujet de la vie humaine, points suiscits dans l'tude de l' uvre L'tranger. En examinant la vie du personnage Meursault, on se propose d'analyser les relations indiffrentes qu'il entretient avec sa mre, sa petite amie et avec le monde ainsi que les aspects de l'absurde qui sont prsents dans son quotidien, dans le crime que comet le personnage sans aucune raison apparente, dans son procs et dans son emprisonnement. Attention est donne dans ce travail l'analyse du langage clair et objectif utilis dans l' uvre en question par Camus. Ce facteur est trs important pour transmettre au lecteur l'absurdit de la vie humaine dans laquelle les personnages se dplacent. Cette recherche montre encore la question de la rvolte, rsultat de lexprience absurde de vie humain et des reflets de la vie de Camus dans ses uvres, facteurs essentiels pour une

meilleure comprhension de la littrature de cet auteur .

Mots-cls: Camus. L' tranger. Meursault. Absurde. Rvolte.

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SUMRIO

1 INTRODUO.................. ......................................................................................11

2 CAMUS: FATOS DE UMA VIDA CORRELATA S SUAS OBRAS......................19 2.1 A ALMA AQUECID A PELO SOL F ELIZ DA ARGLIA.... .................. ..................28

3 CONSIDERAES SOBRE NIILISMO E ABSURDO....... ....................................36

4 MEURSAULT, UM ESTRANGEIRO AO MUNDO QUE O RODEIA ............. ........ 48 4.1 AS RESPOSTAS DE UM HOMEM INDIFERENTE.............................................54 4.2 AS NECESSIDADES BSICAS NO CO MANDO DA VIDA POR MEURSAULT.59 5 FIM DO EQUILBRIO: ASPECTOS DO ABSURDO NO ASSASSINATO, JULGAMENTO E CONDENA O DE MEURSAULT..............................................62 5.1 A INOCNCIA DE UM R U NO INOCE NTADO.......... .....................................67 5.2 PENSAMENTOS DE HO MEM LIVRE E D E PRISIONEIRO............ ....................74 5.3 DEFESA E ACUSAO NO JRI POP ULAR DE MEURS AULT........................76 5.4 A RECUSA E XPLCITA A DEUS POR MEURSAULT.........................................82

6 A REVOLTA COMO EVASO AO ABSURDO............. .........................................87

7 A SIMPLICIDADE DO EST ILO: LINGUAGEM E NARRATIVA EM LTRANGER................... .........................................................................................95 7.1 UMA HIST RIA NARRADA ATRAVS DOS OLHOS DE MEURSAULT............97 7.2 OS PERSONAGEN S SECUNDRIOS D E LTRANGER................................104 7.3 REFERNCIAS TEMPORAIS E GEOGRF ICAS NA NARRATIVA.................112

8 CONLCUSO............ ...........................................................................................116

9 REFERNCIAS...................... ...............................................................................120

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1 INTRODUOOs clssicos so aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: Estou relendo... e nunca Estou lendo... . talo Calvino

Por que as obras de Camus impressionam tanto seus leitores? Por que mesmo com o passar do tempo, elas so fontes de pesquisas para tantos estudiosos? Quando respondemos a estas perguntas, estamos tambm justificando a escolha de Ltranger como centro desta dissertao de mestrado. E as razes so inmeras. No somente porque Camus desperta at hoje o interesse da crtica literria por seu estilo simples e genial, mas tambm porque soube contribuir grandemente para o homem do seu tempo defendendo a liberdade individual e uma vida sem mentiras e de ajuda mtua. O autor de Ltranger sempre recusou a violncia e o dio, era apegado sua terra natal, acreditava no homem e deixou uma lio profunda em suas obras: mesmo que o mundo seja um lugar incompreensvel, a natureza, o sol e o mar valem o esforo de no desistir da vida. Para Hlder Ribeiro (1996, p.38), Camus foi to importante porque viveu e representou todos os nossos

dilaceramentos, as nossas confuses, os nossos sonhos e nostalgias, afastou sem cessar o desespero sem destruir a esperana. Vicente Barreto tambm escreve sobre a importncia da obra de Camus:A importncia da obra camusiana na hora presente transborda o interesse literrio e insere-se no cerne da discusso sobre o destino do homem na segunda metade do sculo XX. Os estudos que foram, so e ainda por muito tempo sero escritos sobre Camus testemunham a presena de suas idias [...] Para a busca de seu destino e o reencontro de sua vocao, o homem ocidental dever conhecer a obra camusiana. O pensamento de Albert Camus representa para as geraes atuais uma fonte da qual podero tirar ricos ensinamentos para a ao (1997, p.7).

O primeiro contato do leitor com Ltranger vem quase sempre acompanhado de estranheza e desconforto, sensaes causadas pela indiferena do protagonista Meursault diante da morte de sua me e aliadas falta de sentimentos aparentes no convvio com as pessoas que o cercam. Estes aspectos da obra so certamente os motivos que primeiro despertaram nossa ateno para esta pesquisa. A partir de uma leitura atenta da obra Ltranger surgem alguns questionamentos: Quem este homem que no chora no enterro de sua me? Por que Meursault to indiferente

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s situaes que vive? At que ponto vida e obra de Camus se misturam? Por que o personagem comete um crime aparentemente sem razo? O interesse deste trabalho est justamente em responder a essas e outras questes, analisando e evidenciando os vrios aspectos do absurdo da vida humana, ilustrados atravs do modo de vida do personagem Meursault, suas relaes interpessoais e sua reao diante de um mundo incompreensvel. Diferentemente de muitas pesquisas j feitas sobre as obras de Camus, no temos o propsito de discutir a fundo e detalhadamente tais questes sob um ponto de vista filosfico e sim poder utilizar-se delas para sustentar a maneira de encarar a literatura promovida por Camus.

Pesquisar um dos autores mais importantes do sculo XX ao mesmo tempo uma tarefa simples e complexa. Simples devido quantidade de estudos j feitos sobre as obras de Albert Camus, e complexa devido sensibilidade necessria para delimitao e escolha do material a ser utilizado na pesquisa. importante ressaltar que escolhemos ler em francs no somente Ltranger, mas todas as obras de Camus que se fazem importantes para enriquecer este estudo. Dessas obras (devidamente citadas na bibliografia desta pesqui sa), retiramos algumas importantes citaes para suportar nossas anlises. Optamos ainda pelas citaes originais em francs das obras utilizadas com o objetivo de aproximar esta pesquisa o mximo possvel das ideias do escritor sem eventuai s distores de traduo. Recorremos traduo para o por tugus das ci taes em original nas notas de rodap do trabalho.

De extrema importncia foi o embasamento terico que suporta esta pesquisa, alcanado atravs da unio de vozes de grandes estudiosos nacionais e internacionais que aqui deixamos falar. Elegemos como essenciais os autores Pierre Louis Rey, Bernard Pingaud e Brian T. Fitch, que se destacam por tratarem dos principais temas da obra Ltranger de forma clara e relevante. Seus pensamentos aparecem nesta dissertao de mestrado em forma de citaes diretas e indiretas com o intuito de engrandec -la. Os crticos brasileiros tambm fazem parte do nosso trabalho com o objetivo de melhor se compreender vida e obra de Camus. Fazemos ainda uso das contribuies de Vicente Barreto, Hlder Ribeiro e Marcelo Alves, autores que do um suporte terico valioso a esta pesqui sa.

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Esta dissertao pretende ser um convite s ideias de Camus, que uniu perfeitamente fico e filosofia em suas obras como uma maneira de enfatizar os problemas polticos e sociais do mundo, bem como as aspiraes e frustraes humanas. do estudo dessas ideias (especialmente sob uma perspectiva literria) que este trabalho se ocupa. Mais especificamente do absurdo da vida humana representado de uma forma clara por Camus atravs do personagem Meursault. Vicente Barreto destaca que Camus se utilizou essencialmente da fico para expressar a relao absur da entre o home m e os mecani smos sociais, como se essa fico fosse um supor te concreto do pensame nto abstrato (1997, p.143 -144).

Camus dividiu Ltranger em duas partes. A primeira descreve a vivncia do personagem Meursault submerso em uma rotina constituda por atos simples e repetitivos. Sem emoes aparentes, Meursault enterra sua me que vivia em um asilo, comea um relacionamento com uma antiga datilgrafa do escritrio onde trabalhava, e mantm contato com seu vizinho Raymond (fato que ter como consequncia o assassinato de um rabe). O personagem indiferente s coisas que o cercam e coloca todas as suas experincias em um mesmo nvel de significao. O equilbrio dessa vida aptica quebrado no fim da primeira parte quando Meur sault assassina um rabe apar entemente se m razo. Na segunda par te de Ltranger, Meursault narra seu processo de instruo, seu julgamento, e a maneira indiferente em que ele se comporta frente a essas situaes. O personagem ainda dedica sua narrativa sua rotina na priso, aos pensamentos de homem livre que ele tem diante da dificuldade de se acostumar com a vida de prisioneiro e fatos como a falta de sono (ou o excesso dele) e a nica visita que recebeu da namorada Marie.

Meursault est entre o sim e o no proposto no ttulo desta dissertao, primeiro porque parte integrante e indissocivel da literatura de C amus que constantemente situa seus personagens entre os dois extremos. De certa forma, as obras de Camus podem ser consideradas como uma argumentao engenhosa sobre os aspectos opostos da vida. Se por um lado ele foi um escritor que afirmou sua solidariedade para com sua poca, por outro lado denunciou os principais problemas polticos e sociais de seu tempo. Essa relao entre os extremos, o constante sim e no, avesso e direito, refletida em Meursault. O personagem central de Ltranger se

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apega aos ensinamentos de sua me, mas no exterioriza sentimentos por ela. Ama a natureza e se sente feliz em unio com ela, mas justifica o assassinato que comete dizendo que matou por causa do sol. Tem como virtude primeira o amor sua terra e a fidelidade a si prprio, mas vive frente a um mundo mvel, incoerente, que prioriza muitas vezes a manipulao das pessoas, a mentira e as emoes mesmo que fal sas. Tudo se resume e m uma contradio.

Outros dois aspectos ainda fazem de Meursault um personagem entre o sim e o no. O primeiro est diretamente relacionado com a forma como o personage m responde e reage a qualquer situao ao seu redor: sempre margem das questes. Sua fala na maioria das vezes composta de respostas como: talvez , tanto faz , ou isto no quer dizer nada . Essas palavras podem ser lidas quando, por exemplo, Marie pergunta se Meursault quer se casar com ela ou quando o patro do personagem lhe oferece uma oportunidade melhor de trabalho. O outro aspecto diz respeito revolta silenciosa que sai de dentro do personagem e culmina em um no a tudo em que ele no acredita. O personagem expressa esse no quando, por exemplo, se recusa a fazer parte do que seria o jogo de menti ras no seu julgamento ou quando no chora no enterro de sua me. Por que chorar se ele estava com calor e cansado? Este no implcito ao que Meursault se mostra contra, , na verdade, um sim a tudo em que ele acredita. Dizer no mentira dizer sim ao que este home m absurdo e apai xonado pela natureza almeja: a justia.

O primeiro captulo, introduo desta pesquisa (pp.11/18), destaca a importncia de estudar-se Camus, a relevncia e as contribuies deste autor para o mundo, assim como o embasamento terico utilizado. No segundo captulo, Camus: fatos de uma vida correlata s suas obras (pp.19/35), fazemos um breve esboo da vida do escritor sem o propsito de realizarmos um levantamento biogrfico, mas o de ressaltarmos os reflexos de sua vida em seus trabalhos. A infncia pobre de Camus um ponto importante para a compreenso de sua obra, assim como os momentos polticos pelos quais passou e a amizade com Sartre (mais o rompimento da mesma). Neste captulo, grande contribuio terica vem da obra de Ronald Aronson intitulada de Camus e Sartre: o polmico fim de uma amizade ps-guerra, traduzida e publicada no Brasil em 2007. A segunda parte deste captulo alude importncia do sol, presena constante a aquecer as cenas de Ltranger, Noces,

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Lenvers et lendroit e Lt. Para Meursault, em Ltranger, o mundo incompreensvel e absurdo, mas cheio de sol, elemento ambguo que representa ao mesmo tempo motivo de prazer e sofrimento. O sol por muitas vezes considerado o centro das obras de Camus. Este fato, pois, est diretamente ligado infncia do escritor que conviveu com a natureza exuberante da Arglia, pas da frica em que nasceu.

O absurdo o tema que articula toda a obra de Camus. Considerado como uma tenso entre o homem e o mundo, o absurdo revelado quando este homem busca respostas e constata a impotncia de responder s mesmas. a este tema que dedicamos o terceiro captulo desta pesquisa Consideraes sobre niilismo e absurdo (pp.36/47). Entendemos a necessidade de uma abordagem terica a respeito do conceito do absurdo presente em Ltranger e em outras obras de Camus, possvel influncia do filsofo alemo Nietzsche. Segundo Roberto de Paula Leite:Em tudo o que escreve [Camus] deixou transluzir sua dolorosa viso, em que o homem procura substituir-se a Deus, fundar seu prprio cosmos a fim de que o paraso seja encontrado aqui mesmo. Da a indisfarvel admirao por Nietzsche, o qual fora o primeiro a abordar tal temtica (1963, p.10).

A anlise deste captulo se d apoiada principalmente na obra de Camus Le Mythe de Sisyphe, que considerada como um exame minucioso sobre o absurdo, sentimento de que o escritor se utiliza para compor Meursault. A ausncia total de esperana, lamento e resignao so alguns dos aspectos do absurdo que geralmente causam reaes de repulsa no leitor. Como homem absurdo, Meursault extrai deste tipo de pessimismo a lucidez diante das experincias do mundo e do prprio homem. Para nosso suporte terico a respeito dos principais pontos que unem Camus a Nietzsche, recorremos obra de Marcelo Alves, Camus: entre o sim e o no a Nietzsche (2001).

Em sua obra Le Mythe de Sisyphe (1942a, p.106), Camus escreveu: [...] les dernires pages dun livre sont dj dans les premires.1 Dessa forma, ele abre Ltranger (1942b, p.9) com uma frase que causa impacto: Aujourdhui, maman est1

[...] as ltimas pginas de um livro j esto nas primeiras (2008, p.26).

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morte.2 E desde a primeira pgina da sua mais conhecida obra, expe de forma explcita a incoerncia da vida humana e como Meursault, seu personagem principal, se locomove e vive essa incoerncia. , pois, focado em Meursault que o captulo quatro Meursault, um estrangeiro ao mundo que o rodeia (pp.48/61) est. Para a compreenso da obra estudada, torna-se essencial a anlise do personagem principal de Ltranger, que um convite feito por Camus a uma reflexo sobre a condio mortal do homem.

Baseada esta pesquisa tambm nos atos de Meursault, analisamos valores como a honestidade, as aspiraes materiais e seu modo de agir descontextual izado da sociedade, que o v como um estrangeiro. Analisamos ainda o modo de vida simples que o personagem leva, composto apenas de necessidades bsicas como comer, fumar e dormir. Ressaltamos, ainda, suas respostas indiferentes, a ausncia de emoes aparentes e o tdio que so elementos do cotidiano absurdo. Para dar suporte nossa anlise, utilizamos as falas do prprio personagem, ilustrao essencial a este captulo.

O quinto captulo desta pesquisa, Fim do equilbrio: aspectos do absurdo no assassinato, julgamento e condenao de Meursault (pp. 62/86), est dedicado anlise da cena do crime que Meursault comete sem razo e depois, maneira indiferente que ele se comporta na priso e em seu prprio julgamento. Aborda as reflexes de Meursault enquanto preso e a tnue linha que separa seus pensamentos de homem livre e de prisioneiro. Ressalta ainda a recusa a Deus aparentemente mais explcita no perodo da deteno do personagem. O assassinato que Meursault comete em uma praia o ponto de partida para nossa anlise neste captulo. Esta fatalidade est narrada no final do captulo seis da primeira parte de Ltranger e marca uma mudana abrupta na vida de Meursault e no contedo da obra de Camus. Se antes do crime o personagem vivia uma vida pacata, com emprego fixo e opes de lazer como ir ao cinema e tomar banho de mar, depois do assassinato estar preso, privado da natureza e sujeito s leis da sociedade, que no lhe perdoar. A anlise empreendida busca, pois, verificar, as consequnci as deste crime na vida do personagem. Para tal anlise, este captulo2

Hoje, mame morreu . (2005b, p.7).

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est focado na segunda parte da obra Ltranger, que se ocupa em narrar o processo de instruo, o comportamento na priso e julgamento do personagem. Camus expe crtica da sociedade um homem honesto, cuja pureza escapa s tradies da mor al vigente. Meursault ir se comportar em seu prprio julgamento da mesma maneira que se comporta em sua vida: de forma simples e como mero expectador . Com o propsito de ilustrar as anlises deste captulo, citamos direta e indiretamente al gumas partes da obr a pesquisada.

Segundo Camus, uma vez que o homem esteja vivendo a condio absurda da vida, ele no acredita na salvao pelo divino e descarta o suicdio como resoluo ao impasse vivido. Diante dessa condio e privado de esperana, necessrio revoltar-se. O sexto captulo desta pesquisa, A revolta como evaso ao absurdo (pp. 87/94), est focado na revolta, que considerada a nica maneira de evaso ao absurdo. Procuramos identificar e analisar as caractersticas da revolta metafsica e histrica de acordo com as ideias de Camus. A primeira considerada uma revolta mais ampla, pois roga ao divino ordem diante do caos do mundo. A segunda - a revolta histrica - contesta as regras de submisso impostas pelos prprios homens. A partir desse prisma, analisamos a revolta do personagem Meursault que consiste em no se submeter s mscaras e mentiras impostas pela sociedade. Essa ltima revolta permite que ele seja lcido diante de um mundo desordenado, o que justifica, dentre outras coisas, sua relutncia em no mentir nem mesmo para se favorecer em seu julgamento. Nosso aporte terico nos leva leitura de Lhomme rvolt, a mais polmica obra de Camus que foi publicada em 1951. Esclarecemos que, de acordo com Camus, a revolta tem um carter profundamente positivo porque aspira justia e nega a violncia. Portanto, no pode ser confundida com uma forma de revoluo. De uma maneira breve, tratamos da revolta do personagem Caligula (na obra homnima) e do Dr. Rieux na obra La Peste.

No stimo captulo, A simplicidade do estilo: linguagem e narrativa em Ltranger (pp. 95/115), pesquisamos a tcnica narrativa de Camus e a presena do absurdo na sua linguagem, fatores esses que deram s suas obras caractersticas nicas. Camus torna, primeira vista, a leitura de Ltranger fcil, pois se utiliza de frases curtas e objetivas para compor seu enredo. Alm disso, o vocabulrio utilizado pelo escritor tambm simples, forma de representar a fala do seu personagem-narrador

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que transmite ao leitor a histria vista atravs de seus olhos e contada de acordo com seu ponto de vista. Com esse estilo, Camus deixa claros em uma histria onde tudo enxuto e nada parece sobrar, os principais aspectos do absurdo - tema relativamente complexo. tambm dessa forma simples que Meursault se relaciona com amigos, namorada e a sociedade que o cerca. Suas relaes com as pessoas ao seu redor so desprovidas de sentimentos e aparente importncia. Os personagens envolvidos no seu processo de instruo e em seu julgamento no tm nomes e refletem a pouca importncia que o personagem-narrador lhes atribui. Por fim, uma parte deste captulo dedicada falta de linearidade na sequncia dos fatos narrados por Meursault; alm disso, trata o captulo da ausncia de marcas de referncias geogr ficas no texto.

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2 CAMUS: FATOS DE UM A VIDA CORRELATA S SUAS OBRAS[...] parmi mes nombreuses faiblesses, na jamais figur le dfaut le plus rpandu parmi nous, je veux dire lenvie, vritable cancer des socits et des doctrines. Le mrite de cette heureuse immunit ne me revient pas. Je la dois aux miens, dabord, qui manquaient de presque tout et nenviaient peu prs rien. Par son seul silence, sa reserve, sa fiert naturelle et sobre, cette famille, qui ne savait mme pas lire, ma donn alors mes plus hautes leons, qui durent toujours. Albert Camus

As obras de Camus sempre estiveram associadas sua infncia, famlia, poltica e ao seu grito de justia por um mundo melhor e menos violento. Vicente Barreto (1991, p.13) escreve que:Talvez um dos pontos mais interessantes da personalidade de Camus tenha sido essa dependncia entre a obra e a vida do escritor. A sua vida intelectual nasce de suas primeiras experincias, sentindo-se em algumas de suas obras, principalmente nas primeiras, a necessidade de escrever aquilo que realmente estava sendo vivido e pensado.

Conhecer o contexto histrico e poltico no qual Camus esteve i nserido de extrema importncia para a compreenso do que ele escreveu. Sua amizade com Sartre e depois o rompimento deles tambm fato importante na vida de Camus. De acordo com Aronson (2007, p.380): O talento deles era to grande, sua imerso em sua poca era to profunda, seu engajamento poltico to forte, que chegou alternativa de Camus ou Sar tre .

Literatura, filosofia e poltica so partes indissociveis das obras de Camus, que denunciava o absurdo de sua era, as guerras e desordens que assolaram o tempo em que el e viveu. Camus soube co mo inserir em suas obr as de u ma maneira sria e respeitada os problemas dos homens e as reaes diante de tais problemas. o prprio escritor que explica seu plano de trabalho e os principais temas abordados em suas obras. Camus compe o ciclo do absurdo ou da negao com trs formas: romanesca com a obra Ltranger, dramtica com Caligula e Malentendu e a forma ideolgica com a obra Le Mythe de Sisyphe. O ciclo denominado positivo ou ciclo da revolta expresso tambm por essas trs formas e as seguintes obras: romanesca, com La peste, dramtica com Ltat de Sige e Les Justes e ideolgica com

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Lhomme Rvolt. Camus ainda previa um terceiro ciclo que era o do amor (2008, p.8).

Nascido em 1913 em uma fazenda perto de Mondovi, na Arglia, Camus viveu uma infncia extremamente pobre. Sua me, uma faxineira e seu pai, um soldado morto em 1914 durante a Primeira Guerra Mundial. A famlia passou a morar com a rgida av e um tio tanoeiro. Camus tinha um irmo que era um pouco mais velho do que ele. Na escola primria, Camus encontrou um professor que se interessava por ele conseguindo-lhe uma bolsa de estudos no Ginsio de Argel. Depois, foi Jean Grenier, poeta, ensasta e professor do Ginsio que viu e acreditou no talento do jovem Camus incentivando-o a escrever. Jean Grenier tornava-se o eterno mestre de Camus, e seu aluno, mais tarde j reconhecido pelo brilhantismo de seus livros, lhe dedicaria a obra Lenvers et lendroit e Lhomme rvolt. Dessa infncia simples, Camus tiraria os primeiros ensinamentos que marcariam profundamente suas obras. A misria no trouxe para o escritor traos de amargura ou tristeza. Ao contrrio, deu a Camus uma percepo que o acompanharia por suas obras: deve-se ser lcido e amar a vida apesar das imperfeies do mundo.

Aos dezesseis anos Camus teria seus primeiros ataques de tuberculose, doena que ele controlaria por toda sua vida. Segundo Hlder Ribeiro (1996, p.20): Esta doena estar onipresente na sua vida, como o ocupante estrangeiro ou a fadiga fsica, ditatorial como o nazismo ou a prescrio mdica . Camus ainda se afastaria do futebol, uma das grandes paixes de sua vida. O escritor declara no prefcio de Lenvers et lendroit (1937, p.8) que a doena o fez conhecer o medo e o desnimo, mas nunca a amargura. Camus ainda se refere sua doena como tempos de verdadeiro desespero que destruram tudo nele, menos a vontade de viver. Segundo Brian T. Fitch (1972, p.134), a descoberta da tuberculose quando Camus ainda era jovem e o horror s mortes causadas pelos conflitos ao seu redor, esto presentes em Ltranger atravs das mortes que conduzem a histria. Diante do medo da doena e conscincia da mortalidade, surge o amor vida e a lucidez diante do mundo. O sentimento do absurdo comea a ser moldado e far parte das obras de Camus. Frente a todos os problemas, porm, o escritor constata que ainda h a solidariedade humana , a natureza que bela e a paixo sem fim pela vida.

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Em 1934 Camus casa-se com Simone Hi, mas a separao acontece dois anos depois. Em 1935, engaja-se no Partido Comunista enquanto sobrevive com seus mdicos salrios exercendo funes de funcionrio de servio de metereologia, vendedor de acessrios de automveis, empregado no escritrio de um corretor martimo e funcionrio da Prefeitura. Escreve sua tese para di plomao em Filosofia, fato que desperta em Camus as primeiras preocupaes filosficas e leituras de Pascal, Kierkgaard, Malraux e Gide. Camus funda o Thtre du Travail e posteriormente trabalha no jornal Alger Rpublicain. O rompimento com o Partido Comunista acontece em 1937.

Camus publica Lenvers et lendroit em 1937 (escreve-o aos 22 anos) e coloca na obra toda a natureza que fez parte de sua vida de menino pobre. O autor descreve nessa obra provavelmente o ambiente em que viveu os seus primeiros anos. No ensaio intitulado de Entre le oui et le non, h muitas semelhanas com fatos da vida do escritor e os personagens da histria so diretamente associados com os familiares de Camus e ainda com ele prprio. Camus conta a histria de um menino que vivia em meio extrema pobreza. Ao perder o pai na guerra, me e filho mudam-se para a casa da av que era descrita como rgida e dominadora e considerada o oposto de sua me: doce e sempre calada. No prefcio dessa obra, escreve que deve o mrito de ser imune inveja sua famlia, que mesmo apesar de tudo faltar, no invejava quase nada. Camus prossegue: [...] cette famille, qui ne savait mme pas lire, ma donn alors mes plus hautes leons, qui durent toujours (1937, p.7).3

A misria serviu como uma escola para Camus. Desde novo ele pde constatar a necessidade da criao de novos valores para um mundo mais justo. Segue dizendo no prefcio de Lenvers et lendroit (1937, p.8) as lies que tirou de sua infncia: La pauvret telle que je lai vcue ne ma donc pas enseign le ressentiment, mais une certaine fidlit, au contr aire, et la tnacit muette. 4 Esse universo cheio de luz

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[...] Esta famlia, que no sabia nem mesmo ler, deu-me, ento, minhas mais elevadas lies, que perduram at hoje (2007, p.19). 4 A pobreza, tal como a vivi, no me ensinou, portanto, o ressentimento, mas, ao contrrio, uma certa fidelidade, e a tenacidade muda (2007, p.23).

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e completo com cenas de uma infncia pobre, porm alegre, viria a aparecer posteriormente em Ltranger e Le premier homme .

Com o fechamento do jornal em que trabalhava, e com suas constantes campanhas para denunciar a misria dos muulmanos, Camus obrigado a deixar a Arglia e refugiar-se em Paris em 1940, mesmo ano que se casa com Francine Faure. Ltranger publicado em 1942 e Camus descobre a fama da noite para o dia aos trinta anos de idade.

Camus engaja-se no ativismo da Resistncia durante a Segunda Guerra Mundial e colabora com a misso de jornalista no jornal clandestino Combat trabalhando trancado a portas de ferro e com armas bem perto. A ocupao dos alemes na Frana acabou por criar um grupo de resistncia formado por intelectuais da poca, que entendiam que a melhor forma de resistir aos ataques dos nazistas era colaborando para a Resistncia. Em junho de 1943, Camus encontra-se pela

primeira vez com Sartre na pr estria da pea dele, Les Mouches, e apresenta-se. De acordo com Ronald Aronson (2007, p.23), seu romance, O Estrangeiro,

publicado um ano antes, fora uma sensao literria e seu ensaio filosfico, O Mito de Ssifo havia aparecido seis meses antes .

A amizade entre Camus e Sartre foi de grande importncia tanto para o escritor quanto para o filsofo. Os jovens escritores (Sartre era oito anos mais velho que Camus) j haviam lido livros um do outro antes mesmo de se conhecer em. A resenha de Camus sobre La nause foi elogiosa. Ambos se viram influenciados pelo modo de pensar de um e de outro, apesar de Camus no aceitar a idia de que ele seria um discpulo de Sartre. Camus, que estava engajado na poltica h alguns anos, liderou o novato Sartre . (ARONSON, 2007, p.46). Aronson ainda ressalta: Enquanto a poltica parecia to natural para Camus, para Sartre ela era coisa de outro mundo . (2007, p.53).

O existencialismo tornou-se uma febre cultural no perodo ps-guerra e enquanto Camus recusava o rtulo de existencialista, Sartre aproveitava para lanar algumas novas ideias relacionadas ao tema. Camus acreditava em um mundo absurdo, mas supunha que o existencialismo era uma filosofia completa, uma viso do mundo com

23

ideias cuja importncia reconhecia, mas no partilhava completamente. Segundo Aronson (2007, p. 91):Camus fazia tudo para evitar ser visto como satlite de Sartre. Mas, conforme os dois iam se tornando o assunto de Paris e de toda a Frana, essa percepo crescia, e Camus sentiu que tinha que se definir por contraste em relao a Sartre.

O perodo ps-guerra foi de extrema importncia para a vida profissional de Camus. Aps o fi m dos anos de guer ra, os intelectuais da F rana procuravam por bons livros e Camus e Sartre foram beneficiados pela possvel falta de concorrentes. Alguns dos colegas de pr ofisso tinham se engajado na luta contra os alemes e se tor nado prisioneiros de guerra ou morrido. Outros se recusavam a escrever. Camus desenvolvia um corpo significativo de escritos nesse meio tempo que seria lido por pessoas famintas por cultura. Juntamente com seu amigo Sartre, eles seriam considerados os maiores intelectuais do ps-guerra.

La Peste, romance que trata de uma epidemia de peste na cidade de Oran (na costa argelina) publicado em 1947. Camus transmite para a obra a determinao de fazer o que deve ser feito frente a uma ameaa total. O generoso trabalho do Dr. Rieux em conjunto com outros personagens da obra uma mostra do engajamento por exigncia da situao de caos generalizado, mesmo que eles tenham que se submeter a certos riscos. A obra uma alegoria ao nazismo e, por extenso, a todo regime totalitrio. O prprio autor admitia que o contedo evidente fosse a resistncia europia a Hitler.

Camus passaria a repudiar o comunismo e qualquer forma de violncia que este pudesse gerar, enquanto Sartre seria completamente atrado pelo comunismo e aceitaria a violncia como uma possvel soluo guerra e opresso humana. A violncia para Camus era sempre injustificvel. Ele enfatizava que a poltica deveria ter no seu centro a moralidade. Enquanto Camus havia devotado todas as energias a escrever contra a violncia, Sartre vinha gradualmente a abraando,

especialmente a violncia revolucionria (ARONSON, 2007, p.221) .

24

As diferenas polticas entre Camus e Sartre ganhavam propores cada vez maiores uma vez que Sartre considerava o comunismo como o caminho para a mudana e Camus recusava essa idia. Aronson analisa que: No final, Camus e Sartre romperam no apenas porque foram para lados opostos, mas porque cada um se tornou um lder moral e intelectual de seu prprio lado (2007, p.12).

A afinidade literria e filosfica que unia Camus e Sartre foi rompida por ideias polticas que iam para lados opostos e o elo final da corrente que sustentava uma amizade de quase dez anos foi rompido publicamente de uma forma severa aps a publicao de Lhomme rvolt em 1951.

Camus esperou em vo por uma resenha positiva de Sartre. Evitando critic-lo, Sartre hesitou em escrever sobre o livro. Mesmo sem a opinio de Sartre a princpio, Lhomme rvolt vingou e Camus se orgulharia de seu prprio ato de coragem poltica at sua morte. A obra que daria fim amizade entre Camus e Sartre uma bem articulada exposio sobre as mazelas da revoluo atravs dos tempos contemporneos. De acordo com Aronson (2007, p.196): O homem revoltado apareceu como uma descrio do que Camus via como a doena civilizatria que levava as pessoas a abraarem o comunismo . E ainda: A agenda anticomunista de Camus enviesou e modelou O homem revoltado (2007, p.206).

Algum tempo depois da publicao de Lhomme rvolt, Sartre pediu a um voluntrio da revista que era tambm seu seguidor (conhecido por Jeanson) que fizesse a crtica do livro de Camus. A amizade entre Sartre e Camus impedia que comentrios contra o livro fossem feitos por ele prprio. Sartre, porm, j havia deixado claro que no havia gostado da obra e no concordava com as ideias de Camus. A famosa revista Les temps modernes, de cuja direo Sartre participava, vivia um impasse de como lidar com a crtica de Lhomme rvolt. Ao escrever a resenha crtica, Jeanson teria que preservar a amizade de Sartre com Camus e ao mesmo tempo criticar um livro cuja poltica ele detestava e cujo autor tinha uma filosofia que ele rejeitava . Isso tornava a tarefa de Jeanson impossvel . (ARONSON, 2007, p.234) uma misso

25

A resenha de vinte e uma pginas de Jeanson foi violenta. Camus foi ironizado. O desdm de Sartre por no ter feito a crtica ao livro foi tomada por Camus como uma ruptura entre eles. A resposta de Camus veio em dezessete pginas e, de uma forma rude, Camus dirige-se ao diretor da revista, no mencionando o nome de Jeanson sequer uma vez. Os esforos para manter a amizade estava m terminados e Sartre responde a Camus de forma grosseira. O tom que comea a resposta de Sartre no manti do durante o resto das pginas:Meu caro Camus: Nossa amizade no era fcil, mas sentirei falta dela. Se voc a encerra hoje, isso significa, sem dvida, que ela tinha que acabar. Muitas coisas nos juntavam, poucas nos separavam. Mas ainda assim essas poucas eram demasiadas [...] (SARTRE, apud ARONSON, 2007, p.11).

Sartre cruelmente castiga Camus e aos olhos de um pblico sedento, detalha as fraquezas do ex -amigo:Sartre ento destrata publicamente Camus nos termos mais pessoais. Engenhosa e maliciosamente, ele explica o anticomunismo de Camus como uma fuga ao crescimento pessoal e uma recusa a viver completamente no mutante e exigente mundo real. Calculadamente incontido, Sartre executa uma performance espantosa e perturbadora. Violenta alm da medida, a resposta de Sartre no se justificava por nada do que ocorrera antes. (ARONSON, 2007, p. 248)

Sartre termina sua crtica deixando a revista Les temps modernes disposio para uma possvel rplica de Camus, mas deixa claro que no falar mais no assunto. Camus tambm se cala e vive seu perodo mais sufocado de inspirao. O sentimento de dor e desavena de Camus veio tona pela experincia de humilhao pblica que ele havia passado: [...] no h duvida de como afetou intensamente Camus. Calou-o. Foi uma nuvem que pairou sobre ele durante seus ltimos anos (ARONSON , 2007, p.17).

Camus voltou a brilhar em 1956 quando produziu uma obra-prima: La Chute. A obra tem como personagem central um homem chamado Clemence, que em um bar, passa seus dias a contar suas histrias para os estrangeiros. Em menos de dois meses o livro vendeu cento e vinte e cinco mil exemplares e um ano depois Camus recebia o prmio Nobel de Literatura. Mais uma vez o escritor tratou dos problemas humanos frente ao mundo. Para Barreto, Camus trata da ambiguidade humana na

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obra: se o homem ambguo e sabe disso, ele v seus semelhantes como v a si prprio (1991, p.164) . Camus escreveu em Lhomme rvolt (1951, p.448): Un personnage nest jamais le romancier qui la cr. Il y a des chances, cependant, pour que le romancier soit tous ses personages la fois.5 Dessa forma, importante ressaltar alguns fatos que aproximam o escritor do personagem principal de Ltranger, obra em que esta pesquisa est centrada. Camus publicou Ltranger em 1942 e compe o enredo do romance com muitos fatos que se confundem com sua prpria vida. Assim como o escritor, o personagem principal de Ltranger era jovem. Apesar de no haver indicaes precisas na obra da idade de Meursault, supe-se a juventude do personagem quando o diretor do asilo em que sua me estava abrigada diz: Vous navez pas vous justifier, mon cher enfant (1942b, p.11).6

Ou ainda quando seu

patro lhe oferece uma nova oportunidade de emprego argumentando: Vous tes jeune, et il me semble que cest une vie qui doit vous plaire (1942b, p.66). 7 Outro indicativo de que Meursault era jovem dado pelo prprio personagem que na priso diz que tanto fazia morrer aos trinta ou aos setenta anos (1942b, p.171). Considerando a publicao de Ltranger em 1942, Camus e Meursault tinham provavelmente idades prximas.

Outras semelhanas ainda ligam o criador, com sua criao. Meursault vive no mesmo bairro que Camus morou com sua me em sua infncia. De acordo com Pierre Louis Rey (1981, p.28), Camus y a vcu avec sa mre partir de 1914, au 93 de la rue de Lyon (actuelle rue Belouizdad), et il a jou au football sur les terrains vagues du Champ de Manoeuvres.8 O Campo das Manobras e a Rua de Lyon fazem parte das poucas referncias geogrficas usadas em Ltranger. Ainda como Camus, Meursault era provavelmente rfo de pai. Analisando essa relao entre Camus e Meursault, Rey (1981, p.28) afirma que tanto Meursault quanto Camus tiveram que interromper seus estudos. O personagem, por razes desconhecidas -

5

Um personagem, nunca o romancista que o criou. No entanto, o romancista pode eventualmente ser ao mesmo tempo todos os seus personagens (2005a, p.54). 6 No tem de justificar-se, meu filho (2005b, p. 8) 7 Voc novo e acho que essa vida lhe agradaria (2005b, p.45). 8 Camus deve ter vivido com a me depois de 1914, na rua de Lyon, 93 (atual rua Belouizdad), e jogou futebol em terrenos baldios do Campo da Manobras (REY, Pierre Louis, 1981, p.28, traduo nossa).

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talvez materiais - e o escritor, por causa dos problemas de sade. Bernard Pingaud (1992, p. 141) ainda analisa outra semelhana da obra Ltranger com a vida de Camus: Catherine Camus, me do escritor, fala pouco como a me do personagem. Alm disso, a comunicao entre me e filho escassa no romance e Meursault declara que sua me h muito tempo j no tinha assunto para conversar com ele (1942b, p.73).

Brian T. Fitch (1972, p.25) analisa os reflexos da vida de Camus que possivelmente poderiam justificar a falta de ambio do personagem quando este recusa um emprego melhor oferecido por seu patro: Cette absence de toute ambition correspond labandon d une semblable motivation de carrire un moment dans l a vie de Camus lors de sa nomination comme professeur au Collge de Sidi BelAbbs.9

Apesar de decises aparentemente idnticas

a recusa dos novos

empregos

o escritor e seu personagem foram levados a caminhos distintos. Fitch

nota que Camus recusou o emprego porque sempre soube evitar uma vida rotineira, aspecto muito diferente do seu personagem que o fez por falta de ambio.

Camus nos deixou obras nas quais vida e fico esto misturadas, porm, longe de ter como objetivo primeiro a relao entre alguns dos seus personagens e seus familiares ou com ele mesmo, o autor se utilizou dessas semelhanas para analisar e escrever sobre a estranheza do homem frente a um mundo incompreensvel, mas que ao mes mo tempo fraternal e cheio de sol.

At sua morte, Camus desejou que os r abes argelinos fossem tr atados como iguais e ele pronunciava sua voz corajosa pelo enfrentamento desse problema. J estava morto quando a independnci a argelina foi finalmente declarada em julho de 1962. Outras importantes publicaes de Camus so: Noces (1939), Lt (1954), Le Malentendu (pea teatral de 1944), Caligula (pea teatral de 1945), Ltat de Sige (pea teatral de 1948), Les Justes (pea teatral de 1950), Lexil et Le Royaume (1957), La mort heureuse (obra publicada em 1971). Em 1942 Camus publicava o ensaio Le Mythe de Sisyphe, obra considerada essencial para esta pesquisa, em

9

Esta ausncia de qualquer ambio corresponde ao abandono de semelhante motivao da carreira em um momento da vida de Camus por ocasio de sua nomeao como professor na Faculdade de Sidi Bel Abbes (FITCH, Brian T, 1972, p.25, traduo nossa).

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cujas pginas Camus explica vrias questes filosficas que ilustrariam suas obras at o fim de sua vida. O absurdo, por exemplo, tomado na obra como ponto de partida da vida do home m vivido pelo personagem Meursault em Ltranger.

Um acidente de carro tirava a vida de Camus em quatro de janeiro de 1960. Dentro de sua maleta, os rascunhos da obra ainda inacabada que Camus trabalhava na poca: Le premier homme. Sua morte chocou Paris, Argel e uma grande parte do mundo. Camus no terminaria seu projeto e no escreveria mais sobre o sistema poltico de opresso da poca. Suas obras, porm, continuariam a serem lidas pelo mundo exercendo influncia por toda uma gerao. De acordo com Hlder Ribeiro (1996, p.39): A histria no pra com esta morte, as suas obras continuam a finalidade que ele se tinha fixado: tornar a justia imaginvel e a felicidade possvel .

2.1 A alma aquecida pelo sol feliz da Arglia

Camus amava a vida e amava o sol da Arglia, pas onde nasceu situado no norte da frica. Disse no ensaio Lt Alger publicado em Noces (1939, p.23): Ce quon peut aimer Alger, cest ce dont tout le monde vit: la mer au tournant de chaque rue, un certain poids de soleil, la beaut de la race.10

E ainda exaltou

inmeras vezes as belezas naturais da capital Argel em Lt (1954, p.870): Devant la mer noye, je marchais, jattendai s, dans cet Alger de dcembre qui restait pour moi la ville des ts. 11 Camus transferiu para as pgi nas de suas obras toda a energia vibrante desse sol para ser admirado por seus personagens e leitores. Em Ltranger, por exemplo, Meursault rodeado pelo sol que aquece seus passos por toda a narrativa.

no prefcio de Lenvers et lendroit que Camus explica que sua admirao pelo sol comeou ainda em sua infncia de menino pobre: [...] je fus plac mi-distance de la misre et du soleil. La misre mempcha de croire que tout est bien sous le soleil

10

O que se pode amar em Argel aquilo de que todos vivem: o mar, visto em cada esquina de rua, um certo peso de sol, a beleza da raa (1950, p.23). 11 Diante do mar afogado, eu caminhava e esperava nessa Argel que continuava sendo para mim a cidade dos veres (1979, p.113).

29

et dans lhistoire; le soleil mapprit que lhistoire nest pas tout. E ainda completa: [...] en Afrique, la mer et le soleil ne cotent ri en (1937, p.6).12

O excesso de bens naturai s da Arglia foi sempre motivo de grande felicidade para a vida pobre de Camus quando criana. De obra em obra, o escritor deu ao sol um lugar de destaque que influencia seus personagens, da mesma forma que ele prprio fora influenciado pelo brilho do sol na infncia simples que teve. A pobreza em que Ca mus esteve i nserido enquanto cri ana considerada aos seus ol hos tanto como uma privao quanto como uma recompensa. Apesar de ter vivido uma infncia simples, dividindo uma pequena casa com a av, o tio, a me e o irmo em Belcourt, bairro pobre de Argel, Camus era rico de todos os bens terrestres e deixa claro no ensaio Lironie em Lenvers et lendroit que a natureza acima de tudo o bastava: Aprs tout, le soleil nous chauffe quand m me les os (1937, p.55). 13

O sol que est presente em Ltranger o mesmo que fez parte da infncia pobre de Camus iluminando-a. Camus justifica no prefcio de Lenvers et lendroit (1937, p.6) que qualquer ressentimento de sua poca de criana pobre fora apagado pelo belo calor que reinou sobre sua infncia. atravs de um dos personagens dessa obra que Camus resume sua l igao com o sol :De mme que jai mis longtemps comprendre mon attachement et mon amour pour le monde de pauvret o sest passe mon enfance, cest maintenant seulement que jentrevois la leon du soleil et des pays qui 14 mont vu natre (1937, p.38).

Camus coloca o sol no centro de sua obra Ltranger e expe do comeo ao fim a natureza e seus elementos como o mar e a terra. Segundo Hlder Ribeiro (1996, p.104), O sol e a gua parecem ser ainda, para Meursault de Ltranger os nicos elementos onde se encontra a si mesmo, o acordo profundo do homem com a natureza, onde se sente verdadeiramente viver . Apesar de ser indiferente s

12

[...] fui colocado a meio caminho entre a misria e o sol. A misria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na histria; o sol ensinou-me que a histria no tudo . [...] na frica, o sol e o mar nada custam (2007, p.18). 13 O sol nos aquece os ossos, apesar de tudo (2007, p.55). 14 Assim como levei muito tempo para compreender minha ligao e meu amor pelo mundo da pobreza em que minha infncia se passou, somente agora percebo a lio do sol e dos lugares que me viram nascer (2007, p.88).

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principais regras impostas pela sociedade, Meursault vive em harmonia com a natureza.

Hlder Ribeiro escreve (1996, p.227): Para os cristos, a natur eza criao. A al ma humana de uma ordem diferente da ordem natural. O homem chamado a colaborar com o criador para transformar e dominar a natureza . Nas obras de Camus, porm, o homem pertence mesma ordem que a natureza. parte integrante dela, contemplando-a e unindo-se a ela. Meursault, em Ltranger, movimenta-se na natureza que o cerca e identifica-se com ela. Essa identificao corporal com a natur eza o bastante par a que ele seja feliz.

Para Bernard Pingaud (1992, p.31): Le soleil, comme la mer, signifie la vie

mais

une vie lucide .15 Eis o objetivo do homem absurdo: ser lcido at o fim juntamente com a natureza. O absurdo da vida de Meursault vem sempre acompanhad o com o prazer que o sol oferece. O sol, o mar, e o verde so motivos de felicidade para o homem absurdo que precisa viver o presente sem se refugiar na esperana ou no divino. Para ele, no h salvao. Sua felicidade est em seu presente. Fazer parte da natureza e viver como se o homem fosse uma extenso dela uma forma de felicidade neste mundo.

Nas obras de Camus o mundo tem como alma a natureza. Convm que ela seja compartilhada com o homem absurdo como fonte de felicidade. As limitaes da vida humana so to reais quanto a presena do sol queimando a pele. Como nica testemunha e ao mesmo tempo motivo do assassinato do rabe est o sol que iluminou a vida de Meursault em Ltranger. A privao desse contato direto com a natureza durante a priso ser mais um castigo a que Meursault ter de acostumarse.

A natureza , para Meursault, uma parte integrante da intensidade de suas percepes sensoriais. O personagem se entrega ao sol e ao mar e sua vida caracterizada como absurda sempre acompanhada por sensaes da natureza que podem l he dar prazer, como o morno sol no rosto e a areia quente, ou desprazer15

O sol, como o mar, significa a vida traduo nossa).

porm uma vida lcida (PINGAUD, Bernard, 1992, p.31,

31

como o calor do sol que tira sua ateno. Ao encontr ar Marie, uma antiga datilgrafa do escritrio no centro de lazer do porto, Meursault se diverte com ela sob o brilho do sol que aquece suas brincadeiras. nesse universo de natureza que Meursault encontra as mais fortes alegrias: Il faisait bon et, comme en plaisantant, jai laiss aller ma tte en arrire et je lai pousse sur son ventre. Elle na rien dit et je suis rest ainsi. Javais tout le ciel dans les yeux et il tait bleu et dor (1942, p.32).16

Tambm motivo de prazer observar os cargueiros e o brilho do sol do seu escritrio que fica diante do mar (1942b, p.42).

O personagem principal de Ltranger se sente muito bem quando, ao terminar de tomar banho de mar com Marie, cai sobre a areia quente da praia afundando seu rosto na mesma. Essa unio de Meursault com a natureza faz com que ele se sinta parte dela. De mesma forma, o narrador de Noces (1939, p.57) tem uma sensao parecida e diz:Sur le rivage cest la chute dans le sable, abandonn au monde, rentr dans ma pesanteur de chair et dos, abruti de soleil, avec, de loin en loin, un regard pour mes bras o les flaques de peau sche dcouvrent, avec le glissement de leau, le duvet blond et la poussire de sel. 17

A unio da vida absurda de Meursault com a natureza e principalmente com o sol e o mar durante a narrativa de Ltranger acontece ora com momentos fraternais e ora como agravante dos acontecimentos. Quando os amigos Meursault e Raymond reencontram os rabes com quem Raymond havia brigado, Meursault ressalta a presena do sol naquela cena: [...] il ny a plus eu que le soleil et ce silence [...] (1942b, p.87).18

diante desse sol, e tambm pressionado por ele, que Meursault

comete um crime. Ainda bem longe do rabe que mataria, Meursault hesita em dar meia volta porque alega que: [...] une plage vibrante de soleil se pressait derrire moi (1942b, p.91).19

Ele lembra ainda que esse sol que lhe doa a testa, era o

mesmo do dia em que enterrara sua me, fazendo estremecer a paisagem e16

O tempo estava bom e, de brincadeira, deixei cair a cabea para trs e encostei-a na sua barriga. No reclamou e eu fiquei assim. Tinha o cu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado (2005b, p.23). 17 Na praia, a queda na areia, abandonado ao mundo, uma vez mais de volta a meu peso de carne e osso, embrutecido de sol, lanando de longe em longe um olhar para os meus braos, onde as poas de pele seca deixam a descoberto, medida que a gua escorre, a penugem loura e a poeira de sal (1950, p.10). 18 S havia o sol e este silncio (2005b, p. 59). 19 [...] atrs de mim comprimia-se toda uma praia vibrante de sol (2005b, p.62).

32

acompanhando -o: Au-dessus des collines qui sparent Marengo de la mer (1942b, p.22).20

Meursault ainda ressalta que se no fosse por sua me, ele no

poderia sentir o prazer daquele momento em que tudo se compl etava: o sol , o cu, o cheiro de sal e o campo (1942b, p.22).

Ao sol que aquece tanto o corao de Meursault, como a obra de Camus foi atribuda a culpa pelo assassinato de um rabe. O primeiro movimento (inconsequente) que Meursault fez diante da situao tensa em que se encontrava com o rabe foi justamente para se livrar do sol que o incomodava. O passo dado frente desenca deou a reao do outr o homem, que , como defesa, exibiu sua faca ao sol e foi morto com cinco tiros instantes depois. Em seu julgamento, Meursault questionado por que havia atirado naquele homem: Jai dit rapidement, en mlant un peu les mots et en me rendant compte de mon ridicule que ctait cause du soleil (1942b, p. 156).21

De acordo com Pierre Louis Rey (1981, p.57), o sol se manifesta por sua violncia ao longo da histria: Cette harmonie entre larme et lastre contient en germe le moment fatal.22

No dia do enterro da me de Meursault, o sol assume toda sua

violncia e faz do cortejo um momento desagradvel. O personagem fala sobre o sol naquele dia: Aujourdhui, le soleil dbordant qui faisait tressaillir le paysage le rendait inhumain et dprimant (1942b, p.27), insoutemable (1942b, p.28)24 23

e Lclat du ciel tait25

. Ou ainda: Le soleil avait fait clater le goudron.

Para o velho Sr. Prez, frgil companheiro da me de Meursault no asilo, o sol tambm era um inimigo, pois se mostrava muito forte naquele dia do enterro podendo causar uma insolao.

A incapacidade de Meursault de expressar seus sentimentos no se aplica s suas impresses sobre o sol que esto presentes na obra medida em que ele vai20 21

Por cima das colinas que separam Marengo do mar (2005b, p.16). Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridculo, que fora por causa do sol (2005b, p. 107). 22 "Essa harmonia entre a arma e o astro contm as sementes do momento fatal" (REY, Pierre Louis, 1981, p.57, traduo nossa). 23 Hoje, o sol transbordante, que fazia estremecer a paisagem, tornava-a deprimente e desumana (2005b, p.19). 24 O brilho do cu era insuportvel (2005b, p.20). 25 O sol derretera o asfalto (2005b, p.20).

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narrando sua histria. O personagem usa as seguintes expresses para descrever o sol: [...] le jour tait compltement lev (1942b, p.22)29 26

, Le soleil tait mont un28

peu plus dans le ciel [...] (p. 23)27, ou Le ciel tait dj plein de soleil (p.26) [...]le soleil dbordant [...] (p. 27).

,

Ao sair de casa para passear na praia,

Meursault personifica a figura do sol e intensifica sua fora dizendo: [ ] le jour, dj tout plein de soleil, ma frapp comme une gifle (p.75). 30 O sol, que tem lugar central em Ltranger, causa um grande impacto na vida do personagem principal tirando-lhe a ateno sobre as coisas e mesmo contribuindo para seu cansao contnuo. Segundo Vi cente Barreto (1991, p.148):A presena do sol nas obras de Camus coloca os personagens, como o caso de Meursault, vivendo a regularidade e o morno tdio da vida nos lugares ensolarados. Vemos o escorregar contnuo no tempo dos dias lindos e da beleza que chega a inibir o homem.

Se por um lado o sol foi o motivo do infeliz destino de Meursault, por outro ele que d um tom mais suave e otimista ao personagem. O aspecto ambivalente que o sol representa na narrativa, o mesmo que a pobreza de Camus representava quando ele era criana: apesar de uma vida de privaes, a prpria simplicidade de sua infncia unida natureza o fazia feliz.

em seu ensaio literrio La mort dans l'me em Lenvers et lendroit que Camus mais uma vez aponta a importncia do sol em sua vida e sua obra (1937, p. 38): Aprs lblouissement des heures pleines de soleil, le soir vient, dans le dcor splendide que lui font lor du couchant et le noir des cyprs.31

em Noces e Lt, obras da juventude de Camus, que o narrador celebra a alegria de viver com mais entusiasmo diante da natureza que cerca os homens, entregando-se de corpo e alma aos lugares que visita e descreve. Como ser infeliz diante de uma natureza to exuberante? Como no celebrar a unio do homem com o sol e o mar? Camus exps no ttulo de Noces (Npcias) a idia de felicidade e26 27

[...] o sol tinha nascido (2005b, p.16). O sol estava um pouco mais alto [...] (2005b, p.16). 28 O cu j estava cheio de sol (2005b, p.18). 29 [...]o sol transbordante[... ] (2005b, p.19). 30 [...] o dia, j cheio de sol, atingiu-me como uma bofetada (2005b, p.51). 31 Depois do deslumbramento das horas cheias de sol, vem o deslumbramento do entardecer, no cenrio esplndido que nele faz ouro do pr-do-sol e negro dos ciprestes (2007, p. 87).

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unio do homem com a natureza, que abordaria nas pginas dessa obra. O narrador descreve pequenas alegrias proporcionadas pelo sol e pelo mar como um presente da terra aos seus habitantes e celebra as npcias do homem com a natureza: [...] nous talons tous lheureuse lassitude dun jour de noces avec le monde (1939, p.58).32

E adiante reitera: [...] cette odeur consacre les noces de lhomme et de l

aterre (1939, p. 76). 33

Cada detalhe da natureza descrita por Camus em suas obras o suficiente para encher os personagens de amor pela vida e fazer transbordar seus coraes. No primeiro ensaio da obra Noces, intitulado de Noces Tipasa (1950, p.11) o narrador celebra com mais intensidade essa alegri a frente natur eza, seu amor pela terra e o seu orgulho por poder se unir a ela:Jaime cette vie avec abandon et veux en parler avec libert: elle me donne lorgueil de ma condition dhomme. Pourtant, on me la souvent dit: il ny a pas de quoi tre fier. Si, il y a de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au got de sel et limmense dcor o la tendresse et la gloire se rencontrent dans le jaune et le bleu (1939, p. 58). 34

O ideal para Camus, em Noces e Lt, estar sempre aberto e unido natureza que rodeia o homem, e atravs desta unio, tentar reduzir a distncia que existe entre o ser humano e o mundo. Para isso, o narrador se deixa levar pelas menores sensaes provocadas pelo sol ou pelo mar. Segue-se o exemplo contido em Noces (1939, p.57):Ici mme, je sais que jamais je ne mapprocherai assez du monde. Il me faut tre nu et puis plonger dans la mer, encore tout parfum des essences de la terre, laver celles-ci dans celle-l, et nouer sur ma peau letreinte pour 35 laquelle soupirent lvres lvres depuis si longtemps la terre et la mer.

32

[...] todos ostentamos a bem-aventurada lassido de um dia de npcias com o mundo (1950, p.11). 33 [...] esse odor consagra as npcias do homem e da terra (1950, p. 36). 34 Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: d-me o orgulho de minha condio de homem. No entanto, j me foi dito vrias vezes: no h nenhum motivo para ser orgulhoso. Mas creio que h muitos: este sol, este mar, meu corao saltando da juventude, meu corpo com sabor de sal e o imenso cenrio onde a ternura e a glria se reencontram no amarelo e azul (1950, p. 11). 35 Mesmo aqui, sei que jamais me aproximarei suficientemente do mundo. preciso que eu fique nu e, depois, mergulhe no mar e que, ainda perfumado de essncias da terra, possa lav-las nas guas desse mesmo mar, estreitando em meu corpo o abrao pelo qual suspiram, lbio a lbio, h to longo tempo, a terra e o mar (1950, p.10).

35

O vero para Camus definitivamente uma poca feliz na qual o homem pode contemplar a natureza com mais fora. Em Lt, o narrador partilha o que o leitor j percebera explicitamente tambm em Ltranger: Au milieu de lhiver, japprenais enfin quil y avait en moi un t invincible (1954, p.874).36

Meursault consegue

mesmo preso e beira da morte, contemplar o cu e se sentir parte da natureza. Para ele, deve-se admirar a beleza que h no mundo, uma vez que fora deste nada mais resta. Para um condenado morte como Meursault, resta apenas viver suas ltimas horas feliz e em comunho co m a natureza.

36

Em pleno inverno, aprendia por fim que existia em meu ser um vero invencvel (1979, p.120).

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3 CONSIDER AES SOB RE NIILISMO E ABSURDOLe sentiment de labsurdit au dtour de nimporte quelle rue peut frapper la face de nimporte quelle homme. Albert Camus

A palavra niilismo deriva do termo latim nihil e significa nada. As primeiras ocorrncias do termo acontecer am na Revoluo Francesa e eram usadas para descrever os grupos de pessoas que no estavam nem a favor nem contra a Revoluo. O niilismo considerado um fenmeno histrico e na literatura contempornea tem como um dos seus aspectos a morte do sentido. Rossano Pecoraro (2007, p.7) define o niilismo como:A falta de finalidade, de resposta ao porqu. Os valores tradicionais depreciam-se; princpios e critrios absolutos dissolvem-se. A bssola que outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas e das iluses, da substituio frentica das rotas, explodiu em nossas mos. A vertigem subverte pensamento e ao. Filosofia, arte, poltica, moral; a cultura, a sociedade, as crenas, as instituies, tudo sacudido, posto radicalmente em discusso. A superfcie, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais est despedaada e torna-se difcil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro.

O niilismo tambm conhecido como outros termos que possuem caractersticas, ideias e impresses fortemente ligadas a ele como: pessimismo, mal do sculo e absurdo. Todas essas experincias possuem o desejo de clareza diante de um mundo ininteligvel e procuram respostas existncia humana. Camus explica em Lhomme rvolt que: Le nihiliste nest pas celui qui ne croit rien, mais celui qui ne croit pas ce qui est (1951, p.479).37

Foi com o sentimento do absurdo que Camus moldou Meursault, o protagonista de Ltranger. O personagem locomove-se no absurdo proposto por Camus e extrai dele aspectos que lhe conferem um distanciamento da sociedade que o v como um estrangeiro. Seu modo de agir e sua honestidade vm de encontro ao padro de comportamento que essa sociedade geralmente exige. O crime que o personagem comete fica em segundo plano e Meursault ser julgado no s pelo tribunal, mas

37

O niilista no aquele que no cr em nada, mas o que no cr no que existe (2005a, p. 91).

37

com crticas pelas pessoas que o cercam e que o acusam de no ter chorado no enterro de sua me.

Le Mythe de Sisyphe foi publicada em 1942 e considerada a obra de maior densidad e filosfica de Camus. Nela, o escritor expe seus pensamentos sobre o absurdo da vida humana e outros temas correlatos como o suicdio, a negao de Deus e a lucidez humana. Com a publicao de Ltranger, os leitores de Camus veriam suas consideraes acerca do absurdo refletidas em Meursault, personagem central da obra.

Muitas so as explicaes de Camus em Le Mythe de Sisyphe para descrever o absurdo. De acordo com o escritor (1942a, p.101), [...] dans un univers soudain priv dillusions et de lumires, lhomme se sent un tranger [...] ce divorce entre lhomme et sa vie, lacteur et son dcor, cest proprement le sentiment de labsurdit.38

O absurdo no pode ser considerado como uma criao mental ou

uma realidade fsica, mas sim como a procura do homem por respostas. O absurdo ainda pode ser considerado o vazio de um mundo que no tem como responder as perguntas do homem. Camus acrescenta que o absurdo cest ce divorce entre lesprit qui dsire et le monde qui doit [...] (1942a, p.135). 39

Com uma linguagem clara, Camus ainda explica o absurdo como sendo: [...] la confrontation de cet irrationnel et de ce dsir perdu de clart dont lappel rsonne au plus profond de lhomme (1942a, p.113).40

Esse confronto entre o homem e o

mundo revelado na vida de Meursault atravs de sua total indiferena s coisas, falta de motivos para seus atos e o estado de inrcia em que se encontra. Essa indiferena que acompanha Meursault durante toda a narrao de Ltranger uma caracterstica marcante do homem absurdo que Camus pretendeu demonstrar: o personagem nada explica, nem resolve, mas apenas sente e descreve as coisas tais quais elas so.

38

[...] num universo repentinamente privado de iluses e de luzes, o homem se sente um estrangeiro [...] esse divrcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenrio propriamente o sentimento do absurdo (2008, p.20). 39 [...] o divrcio entre o esprito que deseja e o mundo que o decepciona (2008, p.62). 40 [...] o confronto entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem (2008, p. 35).

38

Para Camus (2008, p.41), so necessrios trs fatores para se dar fim lgica de uma existncia: o irracional, a nostalgia humana e o absurdo. O fim dessa lgica vivida por uma pessoa que se depara com o absurdo no , porm, o suicdio. A morte, que iminente aos homens, acaba com o absurdo, uma vez que no h esse sentimento sem o desenrolar da vivncia humana. O absurdo como conceito depende tanto do homem, como do mundo e considerado a relao e consequent emente o eterno confronto entre ambos. Se o homem chega concluso, portanto, de que sua vida no vale mais a pena ser vivida, chega tambm concluso de que no vale a pena viver no absurdo. Manter-se lcido at o fim como fez Meursault mesmo diante de sua pena de morte caracterstica do absurdo.

Outra caracterstica do homem absurdo presente em Le Mythe de Sisyphe que ele no abre espao para a esperana: recusa-se, alis, a aceit-la. Quando o homem descobre sua vida tomada e abalada pelo absurdo, descobre tambm que a nica verdade a morte. Refugiar-se no divino significa saltar para fora do absurdo atravs de uma esperana. A sua nica liberdade, ento, a de existir. Quando o homem absurdo percebe que estava vinculado a iluses, ele se desprende da trava que o prendia e a sim livre para gozar a vida sem esperanas. Em Le Mythe de Sisyphe (1942a, p.141), Camus declara: Labsurde mclaire sur ce point: il ny a pas de lendemain. Voici dsormais la raison de ma libert profonde.41

Meursault

apega-se natureza, ao sol e aos banhos de mar com sua namorada Marie, por exemplo, como uma forma de saborear sua liberdade. Camus que resume essa liberdade (1942a, p.149): Assur de sa libert terme, de sa rvolte sans avenir et de sa consci ence prissable, il poursuit son aventure dans le temps de sa vie. 42

De acordo com Camus o homem absurdo vive margem de Deus. Ele centrado na razo lcida e no h nada mais alm dessa razo. Para Camus, o homem o prprio centro de sua vida e nela depositada a fora de viver com toda intensidade. Apesar da conscincia de que a morte certa, o homem absurdo se recusa a

41

O absurdo me esclarece o seguinte ponto: no h amanh. Essa , a partir de ento, a razo da minha liberdade profunda (2008, p.70). 42 Seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua conscincia perecvel, prossegue sua aventura no tempo de sua vida (2008, p. 79).

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morrer. Ele quer viver o mximo possvel sua vida em comunho com a natureza. Hlder Ribeiro analisa esse aspect o do absurdo (1996, p. 101) :Se o sentimento religioso propriamente dito no tem lugar na sua obra, ao contrrio, o sentimento do sagrado intenso. Nada mais comovedor do que esta consagrao do homem no que ele tem de frgil e perecvel, do seu entusiasmo pelo amor e pela vida condenada ao fracasso, da sua comunho com as grandes foras da natureza, como o mar.

Se por um lado o absurdo mostra ao homem que todas as experincias so indiferentes, por outro, ele o leva a viver o maior nmero possvel de experincias atravs da nica liberdade que o seu corao pode realmente aceitar e sentir: a liberdade de exi stir. De acordo com Camus (1942a, p.144): Sentir sa vie, sa rvolte, sa libert, et le plus possible, cest vivre et plus possible.43 Esse o motivo pelo qual o homem absurdo recusa o suicdio: ele j conquistou a liberdade e o suicdio seria a recusa da sua prpria vida. Camus abre suas pginas de Le Mythe de Sisyphe com essa questo. O escritor considera o suicdio uma questo filosfica realmente sria porque o homem deve julgar se a vida vale a pena ser vivida ou no (1942a, p.99).

Consciente de sua liberdade, o homem passa a ser dono do seu prprio mundo e tem como sua nica certeza a morte. Diante desse mundo desmoronado de sentido, o homem absurdo aceita a vida e dela extrai suas foras recusando-se esperana. Camus nos revela, porm, que essa ausncia de esperana no tem nenhuma ligao com o desespero, da mesma forma que essa recusa contnua do homem absurdo no significa renncia (1942a, p. 121).

Uma vez que o homem absurdo precisa extrair o mximo possvel da liberdade de existir e sabe que essa liberdade s tem sentido em relao ao seu fim certo (a morte), ele precisa ento viver o mximo possvel, recusando a prpria morte em forma de suicdio. O homem absurdo no acredita no sentido profundo das coisas, por isso o que importa no viver cada dia melhor, e sim viver mais. Para existir, basta estar, ver, ouvir, pensar e falar, pois estas so manifestaes da existncia. A vida de Meursault constituda de uma srie de experincias ora baseadas apenas43

Sentir o mximo possvel sua vida, sua revolta, sua liberdade viver o mximo possvel (2008, p.74).

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no existir, e ora baseadas no viver. O personagem existe quando narra sua rotina que consiste apenas em satisfazer as necessidades bsicas de um ser humano: ele se alimenta, dorme e fuma. Seu trabalho no lhe desperta interesse e sua vida uma sequncia de experincias sem escolhas. Ele no se importa, por exemplo, quando seu patro lhe faz uma proposta de emprego e responde que tanto fazia casar-se ou no com sua na morada. Observa-se, porm, que Meur sault vive quando est em unio com a natureza, respeitando-a e contemplando-a. Ele se entrega natureza por inteiro e reconhece que com ela o homem pode viver uma aliana completa.

Camus diz em Le Mythe de Sisyphe (1942a, p.145): Le prsent et la succession des prsents devant une me sans cesse consciente, cest lidal de lhomme absurde . 44 Para o homem absurdo, todas as experincias so equi valentes, mas conveniente que se viva a maior quantidade possvel dessas experincias uma vez que a morte certa e no existe uma fora superior. Considerando que o homem absurdo no se importa com o futuro e est privado do eterno com a morte certa e a omisso de uma fora superior, resta-lhe agarrar-se ao tempo presente para viver essas experincias. Em seus exemplos de homem absurdo, Camus recusa eterno, Deus, a imortalidade e a esperana (RIBEIRO, 1996, p.192) . o

Foi com Nietzsche que a r eflexo filosfica do termo niilismo alcanou seu gr au mais elevado, fazendo dele o maior terico desta orientao. Percoraro (2007, p. 26) ressalta : Incendiar ideias, valores e espritos. Provocar uma impetuosa acelerao do movimento niilista por ele prprio descrito, diagnosticado. O impacto de Ni etzsche na filosofia e na literatura do comeo do sculo XX vi olento .

Camus esteve ligado s ideias do filsofo alemo Nietzsche que o influenciou em alguns pontos de seu pensamento. De acordo com Marcelo Alves (2001, p.23): Entre os muitos pensador es e literatos franceses que tm parte do seu vigor crtico e criador excitado por Nietzsche, encontra-se Albert Camus . Faz-se, ento, importante ressaltar algumas similaridades entre o pensamento de Camus e Nietzsche acerca do heri e pessimismo trgico. Tanto Camus quanto Nietzsche44

O presente e a sucesso de presentes diante de uma alma permanentemente consciente, eis o ideal do homem absurdo (2008, p.75).

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negavam um sentido superior que pudesse organizar o mundo e ser justo com os homens. Alm disso, afirmavam o amor pela vida que deve ser conduzida sem lamento ou resignao. A lucidez do homem diante de sua vivncia faz-se imprescindvel assim como a recusa a qualquer forma de evaso para os problemas da existncia. Esse sim incondicional vida caracterstica do pessimismo trgico e representa para Nietzsche e parca Camus um sinal de vitalidade e fora do homem que vive essa condio. Hlder Ribeiro observa: A obra de Camus emocionante pelo seu ar saudvel, pela vontade de vi ver apesar de tudo [...] (1996, p.111) .

Marcelo Alves (2001, p. 36) nota que o homem que precisa de algum tipo de fuga para suportar a existncia diante deste mundo d valor a Deus como uma forma de escape diante da dor de viver. Essa fuga recusa a lucidez e ameni za a dor de existir. Como consequncia, esse homem despreza essa vida em detrimento da outra. Ao contrrio deste, h, porm, o tipo de homem que d valor e significado prpria existncia. Permanece lcido e lutando at o fim mesmo sem esperanas de qualquer fuga da realidade. Diz um sim pleno vida por amor a ela. Este heri o pessimista trgico que nega a negao da vida e lcido diante de todos os problemas da existncia humana devido ao seu amor fati.

Para Alves (2001, p.38), Camus exalta a natureza, sobretudo atravs de Noces, de uma maneira fundamental mente nietzschiana :Como deixar de perceber um tom dionisaco nessas imagens de conciliao entre homem e natureza? A evocao da primavera como elemento de embriaguez natural, que dilui a medida, rompe com a individuao e promove a re-unio dos seres; os deuses que falam de dentro da natureza para o homem que no lhe ope resistncia [...] tudo isto faz pensar em grande medida no fenmeno dionisaco tal como Nietzsche o concebe (2001, p. 39).

A conscincia de Meursault o ope ao mundo, transformando-o em um estrangeiro. Porm, sua unio com a natureza, o dilogo amoroso que ele trava com o mundo e sua lucidez diante de sua condio o caracteriza como um heri trgico. Heri esse que ama sem limites a natureza e consciente que essa natureza por fim aniquilar o homem. A natureza reconhecida, ento, como possibilidade de vida e como limite dessa mesma vida. Hlder Ribeiro (1996, p.90) ressalta que: [...] esse amor fati que no sim vida inclui a prpria morte, de modo que chega a cham-lo de

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morte feliz , provm em parte de Nietzsche. Assim se forma uma filosofia trgica [...] .

Alguns personagens de Camus agem de acordo com o que prega Zaratustra, personagem central da obra de Nietzsche Assim falou Zaratustra. Em Noces e Ltranger, por exemplo, o homem fiel terra assim como Zaratustra clama aos seus discpulos que sejam. Com grandiosos discursos ele clama por fidelidade terra e despreza quem acredita em qual quer fora superior como esper ana por uma vida melhor: Exorto-vos meus irmos, a permanecer fiis terra e a no acreditar em quem vos fala de esperanas supraterr estres (2000, p.26). Zaratustra continua:Meus irmos, permanecei fiis terra como todo o poder da nossa virtude. Sirvam ao sentido da terra o vosso amor dadivoso e o vosso conhecimento [...]. No deixeis a vossa virtude fugir das coisas terrestres e adjar contra as paredes eternas. Ai! Tem havido sempre tanta virtude extraviada! Restitu, como eu, terra a virtude extraviada. Sim; restitu-a ao corpo e vida, para que d terra o seu sentido, um sentido humano (NIETZSCHE, 2000, p.77).

Zaratustra recusa uma fora superior e da mesma forma age o Dr. Rieux diante de uma epidemia na obra La Peste. Meursault, tambm, se nega a receber o capelo para pedir perdo antes de sua morte permanecendo lcido at o fim. Zaratustra diz: Amo os que no procuram por detrs das estrelas uma razo para sucumbir [...] mas se sacrificam pela terra [...] (2000, p. 27). Para Zaratustra preciso ser fiel terra, e dar vida entre os homens um sentido humano:Enfermos e decrpitos foram os que menosprezaram o corpo e a terra, os que inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; mas at esses doces e lgubres venenos foram buscar no corpo e na terra! Queriam fugir da misria, e as estrelas estavam demasiado longe para eles. Ento suspiraram: Oh! se houvesse caminhos celestes para alcanar outra vida e outra felicidade! E inventaram os seus artifcios e as suas beberagens sangrentas. E julgaram-se arrebatados para longe do seu corpo e desta terra, os ingratos! A quem deviam, porm, o seu espasmo e o deleite do seu arroubamento? Ao seu corpo e a esta terra (NIETZSCHE, 2000, p.42).

Meursault em Ltranger tambm recusa essa felicidade divina a que Zaratustra se refere como forma de esperana. Nota-se que prefere a terra e o prprio homem a Deus. Reconhece o absurdo da vida humana, mas otimista quanto ao homem. Prefere ser consciente quanto morte, aceitando-a e gozando a vida. Diz sim vida

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e a aceita na ntegra para poder ser livre. Assim como Zaratustra, Meursault no tenta resolver essa tenso entre vida e morte buscando esperana alm desta existncia. Tanto Meursault em Ltranger e Patrice Mersault em La Mort heureuse fazem da sua l ucidez motivo para gozar a vida e acei tarem a morte. Meursault feliz com a natureza e perto de sua morte afirma mais uma vez sua unio com o mundo. Em La Mort heureuse, Patrice Mersault deseja morrer de olhos abertos e ser lcido at o fim. Ambos so ento considerados heroicamente lcidos. Ainda em La Peste, o Dr. Rieux um homem lcido mesmo diante do caos de uma epidemia. Ele no se resigna diante de tantas mor tes nem maldiz a vida. Une-se a outros voluntrios para salvar homens que sofrem. Para Marcelo Alves, o Dr. Rieux vive entre o sim e o no porque ao mesmo tempo em que aceita o peso de sua exi stncia no se esqui vando da sua condio humana, tambm no deseja aumentar o mal do mundo (2001, p. 101). Trata-se de um sim e no semelhante ao de Meursault. O personagem profere seu no quando se recusa a mentir para aumentar a injustia do mundo e seu sim se mostrando lcido quanto sua condi o absurda at bem perto de sua mor te.

Camus insere em sua obra Lhomme rvolt (publicada em 1951) um estudo intitulado de Nietzsche et le nihilisme. Alves explica que uma leitura atenciosa ao captulo expe ao leitor o alcance da influncia de Nietzsche na obra camusiana, e por extenso preciso fazer um esforo para precisar o ponto exato onde acontece a ruptura entre as duas vises (2001, p.112).

Camus uniu as obras Ltranger, Le Mythe de Sisyphe e Caligula pelos laos do absurdo. Caligula foi a primeira pea de teatro escrita por Camus e foi representada pela primeira vez em 1945. A pea gira em torno do imperador romano que depois de sofrer pela morte de sua irm e tambm amante, constata uma triste verdade: Les hommes meurent et ils ne sont pas heureux (1958, p.26).45

A morte de sua

irm marca o incio da clarividncia que levar tambm o imperador morte. Caligula lanado ento ao absurdo quando conclui que o mundo como est feito insuportvel. Quer viver sem mscaras e fora das mentiras da humanidade. Depois de conquistar sua lucidez, o personagem condena tanto os homens por viverem na mentira como os deuses porque so as prprias mentiras. Por ser fiel a si mesmo,

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Os homens morrem e no so felizes (196-, p.19).

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Caligula indiferente a todos os homens. De acordo com Vicente Barreto (1991, p.177), Caligula, ao destruir os homens e coisas que o cercavam estava na verdade destruindo-se. O caminho errado foi a sua falta de f na humanidade, necessria para conservar a f em si mesmo .

Caligula deixa de ser um imperador bom e justo para se tornar um homem insano e torturador. Ele quer ser livre a qualquer custo e para isso no analisa o que certo ou errado, bom ou ruim e coloca-se fora das regras vigentes. O imperador quer mostrar o vazio que nivela todas as coisas e atravs do poder da sua liberdade assusta os que o rodeiam. Caligula quebra todos os limites e espalha uma onda de horror fazendo o povo pagar com a prpria vida pela busca da sua liberdade sem limites. Marcelo Alves (2001, p.65) explica que: Em suma, Caligula exerce, atravs de seu poder, uma liberdade sem limites, para assim tornar possvel situaes que at ento eram tidas como impossveis . Ele quer punir a mentira com a morte. Sua paixo de viver leva-o fria da destruio movido pelo pensamento de que a verdadeira utilidade do poder dar ao homem o impossvel. Diante da morte de quem amou e, sobretudo porque nada pde fazer, o imperador revolta-se contra a morte decidindo matar.

Como deseja a verdade, Caligula vive consciente do absurdo da vida humana e ao mesmo tempo se revolta contra essa verdade desejando o impossvel. Caligula lgico at o fim e deixa claro que se no h um sentido maior para a existncia humana, o ser humano no deve se evadir para o divino ou mesmo mascarar a dura verdade de uma morte certa e uma vida sem sentido. Ao saber que um plano estava sendo traado com o objetivo de mat-lo, o imperador chama um dos envolvidos e no o pune porque o mesmo confessa o desejo de destru-lo com palavras verdadeiras (1958, p.108).

Um outro aspecto do absurdo manifestado por Caligula o nivelamento de todas as coisas. Considerando que o homem absurdo no ressalta uma coisa mais do que a outra, ele diz: Tout est sur le mme pied: la grandeur de Rome et tes crises

45

darthritisme (1958, p.32). 46 Caligula enfim morto pelo seu povo e sabe que essa morte sela seu fracasso diante da existncia. Aps assassinar sua fiel companheira Cesnia, Caligula compreende que a morte no soluciona os problemas da humanidade. Levado pouco a pouco demncia por suas ideias de destruio, o personagem proclama diante do espel ho:Limpossible! Je lai cherch aux limites du monde, aux confins de moimme [...] je tends mes mains et cest toi que je rencontre, toujours toi en face de moi, et je suis pour toi plein de haine. Je nai pas pris la voie quil 47 fallait, je naboutis rien. Ma libert nest pas la bonne (1958, p.150).

Camus tratou do absurdo em suas obras no como uma corrente filosfica a ser seguida, mas com ideias claras que levam o leitor a reflexes sobr e a vida humana e a incoerncia da mes ma atravs de seus per sonagens.

Sisyphe, personagem da mitologia grega, condenado pelos deuses a empurrar uma rocha at o alto da montanha para depois solt-la. Esse castigo foi atribudo a ele porque os deuses pensaram que no haveria trabalho pior do que um esforo intil e sem esperana (1942a, p.195). Camus considera esse mito trgico porque o personagem consciente: O serait en effet sa peine, si chaque pas lespoir de russir le soutenait? (1942a, p.196). 48

Depois de todo seu esforo para empurrar a pedra at o cume, Sisyphe atinge sua meta, porm, v seu trabalho desfeito com a queda. Ter que rolar essa pedra novamente e v-la cair enquanto ele viver. Ao contrrio de sofrimento e resignao, Sisyphe a figura do homem absurdo que aceita seu destino. Ele ignora os deuses, ama a vida e recusa a evadir-se do absurdo pelo suicdio. O preo que tem a pagar por sua paixo pela vida. Ele no deseja uma outra vida ou tem esperana a cada vez que rola sua pedra. consciente enquanto trabalha e v sua pedra cair. Essa conscincia que ele tem do prprio castigo, torna-o superior sua prpria pena. a prpria clarividncia que d a Sisyphe sua vitria em vez de tormento. A felicidade silenciosa de Sisyphe foi conquistada atravs de sua lucidez e aceitao do seu46 47

Est tudo no mesmo p: a grandeza de Roma e as tuas crises de artritismo (196-, p.25). O impossvel! Procurei-o nos limites do mundo, nos confins de mim mesmo [...] estendo as minhas mos e a ti que encontro, sempre a ti diante de mim, e eis-me sempre cheio de dio diante de ti. No escolhi o bom caminho. No consegui nada. A minha liberdade no boa (196-, p.137). 48 O que seria a sua pena se a esperana de triunfar o sustentasse a cada passo? (2008, p.139).

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destino. Esse destino para ele uma questo terrestre, tratada entre homens. Para Sisyphe, no h destino superior. Mesmo vivendo no absurdo e condenado por sua desobedi ncia aos deuses, ele consegue viver integralmente a vida. Ribeiro analisa que O absurdo no autoriza a esperana mas tambm no legitima o desesper o (1996, p.246).

Assim como Sisyphe, Meursault um heri trgico. Ele lcido, ama a natureza e recusa-se a acreditar no divino. O pessimismo que Meursault viver no o levar resignao ou ao lamento, mas sim lucidez diante do absurdo de suas experincias com o mundo. De acordo com Marcelo Alves (2001, p.36), esse sim incondicional vida, [...] sim ao combate mesmo sem esperana de venc-lo, mas lutando at o fim como se fosse possvel, por amor prpria luta, entendida como exerccio de plenitude de vida este o heri, o pessimista trgico .

Meursault aceitar pagar pelo crime que cometeu sem resignao e de uma forma lcida. Sua coragem o levar a enfrentar seu castigo com conscincia. O

personagem feliz com sua vida, com a namorada Marie e principalmente unido natureza que o cerca. Ele desfruta do sol e do mar antes de ser preso, contenta-se na priso com um pedao de jornal velho e acostuma-se com a ausncia do cigarro. o prprio autor que pergunta aos seus leitores em Le Mythe de Sisyphe (1942a, p.149): Quest-ce em effet que lhomme absurde?.49

E se encarrega de

responder: Celui qui, sans le nier, ne fait rien pour lternel. 50 Sisyphe e Meursault vivem o presente sem esperana de uma vida melhor, no negam seus destinos e nada fazem par a mud-lo.

Camus considera o absurdo da vida humana no como o fim, mas como o comeo. atravs da constatao do absur do que o homem, consciente de suas limitaes e lcido diante do mal do mundo, poder ser feliz. Em outras palavras, os homens podem ser felizes a partir do momento que aceitam sua condio de homem mortal e vivam essa condi o sem resignao.

49 50

O que , de fato, o homem absurdo? (2008, p.79). Aquele que, sem neg-lo, nada faz pelo eterno (2008, p.79).

47

Sisyphe e Meursault extraem de suas experincias com o mundo o mximo de prazer apesar de sua lucidez quanto ao destino cer to: a morte. So consci entes para aceitar a morte, mas querem viver. Dizem um sim pleno vida, e no morte como forma de enfrent-la e viverem mais. Por outro lado dizem sim morte, e a aceitam enquanto limite da experincia humana. Sisyphe e Meursault vivem ento entre o sim e o no e so mais fortes do que a prpria condio de homens. Camus termina Le Mythe de Sisyphe lembrando que: Il faut imaginer Sisyphe heureux (1942a, p.198). 51

51

preciso imaginar Ssifo feliz (2008, p.141).

48

4 MEURSAULT, UM ESTRANGEIRO AO MUNDO QUE O R ODEIA.[...] dans notre socit, tout homme qui ne pleure pas lenterrement de sa mre risque dtre condamn mort [...]. Albert Camus

Camus utilizou-se da fico para demonstrar atravs dos seus personagens o absurdo vivido pelo homem e a incoerncia da vida humana. O ttulo de sua obra mais conhecida, Ltranger, refere-se ao personagem principal da narrativa, Meursault, que considerado um estrangeiro devido ao seu comportamento indiferente frente ao mundo em que vi ve.

Meursault no vivencia momentos de grandes desgostos ou de alegria, no tem um amor exaltado e no chora no enterro de sua me. Ele ainda no d mostras de qualquer interesse intelectual, poltico ou artstico. Suas distraes so

insignificantes como ler algum pedao de jornal velho em seu quarto e na priso ou ficar na varanda de sua casa vendo a movimentao das pessoas na rua. A forma honesta e indiferente de ser de Meursault e sua incapacidade de exteriorizar seus sentimentos fazem dele um estrangeiro em uma sociedade que o julg