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Rio de Janeiro: Simes Editora, 1969, pp. 19-23.

A Crtica e os RodapsHaver porventura hbito mais grotesco do que este, to comum entre nossos crticos, de inaugurarem os seus rodaps com uma introduo em que, pretendendo dar a sua posio, no vo alm de uma srie de consideraes mais ou menos ocas e de algumas barretadas platia? Onde as tomadas de posio, as afirmaes doutrinrias, as classificaes dos problemas? Alis, no este o costume apenas que preciso argir, tratando-se do problema da crtica no Brasil. a prpria instituio do rodap, que condenvel por todos os aspectos como um dos responsveis pelo atraso ou, por que no dizer, pela inexistncia da crtica literria entre ns. O rodap envolve o indivduo que o enche de uma aurola de falso prestgio, geralmente mais condicionado pelo jornal onde aparece, do que pelo valor intrnseco do mesmo. Vrias razes militam contra o rodap. Em primeiro lugar, a questo do tempo. materialmente impossvel, nas atuais condies de publicidade, que um homem se mantenha em dia com o movimento editorial, por dever ser uma espcie de termmetro do mesmo, conservando, por outro lado, o seu esprito ao nvel da cultura da poca, para que possa ser um intrprete seguro e um julgador imparcial. A crtica de contemporneos j por si implica uma srie de condies de ordem moral equilbrio interior, pureza de intenes, fidelidade a certos princpios, honestidade de meios sem as quais o crtico no passa de um fraseador vulgar. Tendo, portanto, diante de si esta imensa dificuldade, o crtico do rodap, por outro lado, no poder fugir ao dever de aperfeioar constantemente o seu preparo bsico, o que s consegue com a leitura e o estudo ininterruptos, e ainda por cima, ter de enfrentar os montes de obras que lhe batem porta a cada correio, s o selecionamento das quais lhe tomar boa parte do tempo. V-se, pois, que tarefa sobre-humana ler sistematicamente o que se publica, afim de dar, cada semana, uma smula do movimento geral ou um estudo sucinto sobre um livro ou autor. No poder fugir da reportagem, da embromao, ou do lero-lero para encher papel, em torno ou a propsito do livro, muitas vezes nada tendo que ver com ele. geralmente, o espetculo que oferecem os crticos de rodap. Mas o rodap entre ns ainda culpado de outros pecados. Raros sero os que resistam tentao do pedantismo, do dogmatismo, da compenetrao, raros os que no se deixam desequilibrar. A crtica de rodap estraga a melhor vocao crtica. No vou a ponto de pretender que se acabem os rodaps. O que me parece aconselhvel que no se lhes d a importncia exagerada que tem no Brasil. Compenetremo-nos de que j passou o tempo em que o velho Sainte-Beuve podia semanalmente produzir os seus maravilhosos folhetins, coisa alis que lhe exigia, como se sabe, uma dedicao exclusiva e absorvente, sete horas de leituras dirias, durante sete dias da semana. E mais era Sainte-Beuve... Estas e outras reflexes me tem vindo mente ao observar certos hbitos da vida literria americana. Dentre os fatos que me chamaram at hoje a ateno, avulta um que me parece dos mais auspiciosos: a existncia de uma slida crtica literria que, a meu ver, o mais elevado e melhor aspecto desta rica literatura. Este meu ponto de vista, alis, tem tido a aprovao de muitos escritores, alguns deles grandes crticos, aos quais o tenho referido. Realizando esse magnfico trabalho, original e profundo, os

2crticos americanos deste sculo compreendem perfeitamente aquela palavra de Paul Elmer More, para o qual no poderia haver literatura americana antes de existir a crtica americana. Tese aplicvel inteiramente ao Brasil. J se podem considerar definitivas as conquistas da crtica americana, no s no que diz respeito a um corpo de doutrinas e padres, como s obras-mestras que tem produzido. Com os elementos de que disponho, espero poder algum dia comentar mais de espao, entre ns, alguns dos seus feitios mais interessantes, lamentado hoje apenas o fato de que ela se reduza, aos nossos olhos, ao fossilssimo Menken, quando, sem abandonar os antigos, a est viva uma equipe de primeira categoria de crticos, Krutch, Burke, Blackmur, Tate, Ransom, Kazin, Barzum, Trilling, Mathiessen, Hicks, Rahv, Philips, Schuster, e muitos outros, sem falar nos dois mestres, Eliot e o velho Richards, iniciadores de uma ala do movimento moderno da crtica anglo-americana. J atingiu altitude tal esse movimento, que j hoje impossvel a um crtico ficar realmente altura do seu mister sem se assenhorar das idias e mtodos da moderna crtica de lngua inglesa. Do contrrio, ficar como a maioria dos nossos: em pleno impressionismo crtico. Pior do que isto: em pleno comentarismo crtico. Era a que desejava chegar, pois me parece que esse estado resulta do hbito de reduzir a crtica quela que se faz nos rodaps. O que me afigura inadivel entre ns, a destruio do mito do rodap. Enquanto considerarmos o rodap a ltima palavra em crtica, jamais teremos crtica literria, e ipso facto literatura. Os rodaps no merecem o respeito e a venerao de que so cercados, o prestgio que se lhes espreita. No devem ser vistos seno como meros registros de livros, sem nenhum valor de julgamento, nem para o bem nem para o mal. Para que se sinta o vazio dos rodaps, basta que procuremos neles o critrio que os norteia, o padro de valores, suas diretivas e normas de interpretao. No Brasil, dificilmente encontraremos mais de m rodap que possa expor esse corpo doutrinrio, e que no se resuma no critrio do "gostei" ou "no gostei". Para que, portanto, dar-lhes importncia, sabendo que so feitos sobre a perna? Lembremo-nos de que seus autores no se dedicam somente a eles, exercendo ao contrrio meia dzia de atividades, e que, portanto, no tem tempo para estudar e medit-los. A propsito disto que desejo citar o exemplo da vida literria americana. Ela faz uma distino bem ntida entre crtica e review de livros, entre crtica e reportagem, crnica, registro. Esta distino que seria necessrio introduzir no Brasil. Um rodap no crtica, mas simples registro ou revista de livros. No existe, geralmente, o hbito do rodap na Amrica. Mas as sees de registro de livros, de todos os jornais e revistas, no so consideradas sees de crtica, mas de review, e os seus autores no so tidos como crticos. Alm disso, nenhum grande crtico americano assina uma seo permanente, diria, semanal ou mesmo mensal de crtica. Um dos mais jovens dizia-me h pouco ser-lhe impossvel faz-lo, e citava-me o exemplo de um artigo de dez pginas datilografadas que escrevera sobre Henry James, para o nmero comemorativo de certa revista, o qual lhe levara dois meses de trabalho, entre pesquisa e redao. Com tal mtodo, como se dedicar a uma seo peridica de crtica? Estas, os verdadeiros crticos deixam de bom grado para os reprteres de livros, os Clifton Fadman, John Chamberlain e todos os outros que enchem os suplementos literrios dos jornais com as suas notcias de livros, mais ou menos encomendadas e controladas pelas casas editoras. No quer dizer que um bom crtico esteja inibido de publicar um artigo de crtica em um peridico qualquer. E o fazem com certeza, mas ocasionalmente, sem a obrigao regular de uma seo permanente. Por outro lado, um reviewer tambm no estar na impossibilidade de fazer um trabalho crtico. Alguns h que so mesmo dotados de certos recursos crticos, e se o quiserem podero fazer crtica, se se dedicarem ao estudo. No, porm, nas suas sees de registro. E o que se d com eles que ningum os leva a srio, o review j os tendo desmoralizado aos olhos dos homens de letras de responsabilidade, e criado neles um hbito de acanalhao, de s encarar a literatura com um esprito de facilidade e mercantilismo. A grande crtica, inclusive de contemporneos, se exerce nos livros, nas boas revistas literrias, em estudos srios, amplos, assentados. desta maneira que est sendo construda a crtica americana. Confundindo crtica com rodap e a prova disto que os seus autores os publicam depois em livro tais como apareceram nos jornais, sem nenhuma modificao, como obras definitivas de crtica - , teremos sempre uma crtica aleatria, inconsistente, sem padres nem guias, condicionada impresso pessoal, s flutuaes dos motivos e objetivos pessoais do autor, ao seu carter, s circunstncias do ambiente em que ele se move, s imposies de natureza extraliterria, poltica ou social. o nosso triste caso. Nova York, 13-6-1943

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Rio de Janeiro, 1953, Editora A Noite, pp. I-XXIII.

CORRENTES CRUZADAS (Questes de Literatura) Introduo Dos meados de 1948 em diante, at os dias em que sai a lume este livro - meados de 1953, - todos os domingos, sem interrupo, no "Suplemento Literrio", do "Dirio de Notcias", apareceu, e continua, uma seo intitulada Correntes Cruzadas, de autoria do presente escritor. Este volume enfeixa uma seleo daquelas crnicas,ao lado de meia dzia de pginas outras aparecidas em publicaes e ocasies diversas. No uma seo de crtica literria, o registro (review) de livros, o comentrio margem ou a propsito de livros publicados. s vezes ela fez crtica, outras nela referiram-se livros para corroborar com obras autorizadas opinies expedidas por seu signatrio ou ento como simples noticirio, para corresponder gentileza de autores ou editores que ocasionalmente lhe ofertaram livros. De modo geral, a coluna uma seo livre, assinada por um livre-atirador, um isolado, um individualista, absolutamente sem compromissos nem com pessoas, nem com grupos, nem com partidos, nem com pases. S com a Literatura tem compromissos, e para o estudo do fato literrio julga lcito e obrigatrio utilizarem-se todas as contribuies, venham de onde vierem, de qualquer setor do mundo intelectual, sem distino de nacionalidade, pois a literatura comparada lhe ensinou a encarar o fenmeno literrio e artstico de uma perspectiva supra-nacional. uma seo de debates de idias literrias, e, mais que isso, de provocaes a debates, no bom sentido. O seu autor acredita na fecundidade do debate e da controvrsia, infelizmente, entre ns, transformados em polmica pessoal. Demais disso, cuida que fundamental o trabalho doutrinrio e terico, o desbravamento dos problemas de princpio e mtodo, sem o que no lograremos, no Brasil, jamais sair da fase do empirismo e da improvisao. Tem bem presente no esprito o caso do Renascimento, cujo vasto debate terico deu lugar admirvel ecloso de obras-primas de todos os gneros. H muito tempo com o esprito inteiramente voltado para o estudo e a meditao dos problemas gerais da Literatura, da crtica, de teoria literria, em uma palavra, de Filosofia da Literatura, acredita-se

4mais do que com o direito, com o dever de concorrer para a agitao e a divulgao de idias e informaes que foi acumulando em anos e anos de estudo e observao de nossas deficincias e virtudes, e tambm de anos de experincia no contacto vivido com grandes centros intelectuais e universitrios norte-americanos. uma contribuio para o esclarecimento de um problema da nossa cultura, to srio e importante quanto os que mais o forem. Disse um crtico americano, Paul Elmer More, por volta de 1900, que no teriam os americanos literatura enquanto no se firmasse em slidas bases a crtica americana. E a crtica se ergueu na Amrica, e est talvez mais florescente e original do que em qualquer outro pas, para o que foi extraordinariamente fecundo o debate agudo entre humanistas, esteticistas, impressionistas, eruditos universitrios, marxistas e outros crticos de orientao social. Na Inglaterra, a crtica nasceu, por assim dizer, da controvrsia entre escolas e correntes como se pode depreender dos dois belos volumes de ensaios crticos editados por Gregory Smith (Elizabethan Critical Essays). A controvrsia fecunda e arejante, contanto que colocada acima da retaliao pessoal e do deboche. A propsito, vale insistir em que nada h de pessoal nas opinies que sustenta sobre a crtica, em que pese descrena que tal declarao desperta em nosso meio, onde tudo se leva para esse terreno e onde para tudo se procuram explicaes vis e subalternas; e em que pese aos que fazem fora para enterrar na cabea imaginrias carapuas. S interessam mentalidades, hbitos, mtodos. J tempo de estabelecer-se um debate sobre o problema da crtica, mormente tendo ns chegado, nesse como em muitos outros temas intelectuais, a um perodo de completa estagnao, decorrente em parte de que nos conformamos com a repetio de mtodos vigentes, e h muito esgotados, e com a falta de esprito de renovao. Sobretudo, essa estagnao proveio de no se ter tratado de frente, corajosamente,do problema crtico entre ns, dos mtodos e hbitos de nossa crtica, apontando suas deficincias e necessidades. O clima do elogio sempre cercou os crticos, no receio natural das represlias e da irritao dos distribuidores da glria, proprietrios do assunto. E o nervosismo e o pnico so uma prova de que a crtica da crtica, to necessria embora, sempre arriscada e difcil e de que os crticos so mais do que quaisquer outros suscetveis crtica. Mas esse apenas um aspecto local do problema, um dentre muitos. Esse trabalho denota, primeiramente, um temperamento, uma vocao, uma dedicao, uma propenso especial de esprito. E, a quem o interprete com olhos de ver, traduz uma determinada formao e orientao intelectual, uma perspectiva esttica, uma concepo catlica e anti-naturalista da vida e da Literatura que sublinham toda essa atividade. As Correntes Cruzadas so uma seo, pois, onde tem cabido tudo. Inclusive, s vezes, crtica. Mas no de crtica militante de livros, seu autor no se sentindo com capacidade, nem julgando, j agora, possvel, a crtica militante e jornalstica de livros, nos moldes tradicionais entre ns. *** A persistncia com que vem aparecendo a seo Correntes Cruzadas s causa espcie aos que desconhecem as reservas de f, vontade e entusiasmo de seu autor, sua capacidade de sustentar as idias em que acredita. Sobretudo, sua f na Literatura. Essas idias, elas, tem sustentado de maneira positiva, por vezes com desagrado de alguns. Mas tem-no feito sem dogmatismo, e, mormente, sem deliberada truculncia ou provocao. Sua atitude antes a de um afirmativo, de algum que tem o hbito da ctedra e o gosto da funo de ensinar, no a quem j sabe, porm aos que desejam aprender; e de quem h muito j se desvestiu das hesitaes e dvidas naturais adolescncia, e, sabendo onde est e o que pretende, abomina os trajetos ziguezagueantes e os vais-e-vens. *** O tempo, cristalizando as caractersticas da seo, deu-lhe autoridade e ressonncia. O debate, que inaugurou entre ns, em torno de algumas idias fundamentais, debate que prosseguir com a conscincia da prestao de um servio til, foi estimulado pela persuaso de serem pertinentes os pontos de vista reivindicados. Vrios sinais o comprovam: de um

5lado, uma vaga e insegura, no convencida e no convincente, reao de alguns expressa s vezes apenas nas entrelinhas. Adeptos de velhos conceitos empedernidos, mas geralmente acatados, sentiram-se, em face do trabalho revisionistas nela empreendido, na necessidade de justificar-se, desconfiados de que tais postulados foram abalados ou postos em dvida. Muitos, para combater as novas doutrinas, foram por elas atrados e conquistados ou forados a tomar conhecimento de suas teses, e, ainda outros, a tomar posio, por vez primeira, diante dos problemas e idias nela colocados. Esses os sintomas negativos. Mas, h ainda a convico de que tais noes constituem a vanguarda do pensamento da poca, a vertente ascensional, correspondente a uma aspirao generalizada das geraes novas, como o prova o fato de que h coincidncias de idias, no particular da renovao dos mtodos crticos, em vrios pases do mundo, inclusive no Brasil. H, portanto, oportunidade para um recenseamento de algumas das idias fundamentais que a seo das Correntes Cruzadas introduziu ou reps no debate literrio entre ns, ao longo dos cinco anos de sua apario. *** 1 - A primeira idia a da necessidade de criao de uma conscincia crtica para a nossa literatura, que venha corrigir a atitude acrtica e emprica, segundo a qual a literatura um produto exclusivo das foras inconscientes, telricas, selvagens, virgens, primitivas, expresso do gnio local, indisciplinado, original. Contra o mito do autoctonismo absoluto, da originalidade incondicional, apresentamos a noo da tradio vlida, do passado til, no com esprito de oposio ou de dilema, porm como corretivo, pois s da fuso dos dois - o gnio local e a tradio - que possvel a produo de uma literatura madura e consciente, no simplesmente emprica. 2 - Essa conscincia crtica s se cria pelo estudo superior e sistemtico de letras, estudo universitrio, em que pese nossa descrena, de origem romntica, na viabilidade e eficincia do aprendizado de letras. Os fatos que nos mostra a histria literria e a experincia estrangeira convencem que Literatura se ensina e aprende. Esse estudo sistemtico desenvolver a crtica sobre bases cientficas e filosficas, acentuando o papel da teoria e dos princpios, pois sem uma concepo geral da Literatura v qualquer procura de mtodo crtico. E crtica assim concebida e desenvolvida cabe uma funo norteadora de disciplina do esprito e da Literatura, proporcionando, direta e indiretamente, a formao de um clima de auto-crtica nos autores e de gosto policiado e exigente no pblico. O instrumento dessa reforma de conceitos e mtodos de trabalho intelectual ter de ser o ensino superior de letras ministrado nas Faculdades de Filosofia e Letras. Criando melhores professores de letras e investigadores literrios, estes, por sua vez, melhoraro o ensino de letras no curso secundrio. Da sairo melhores poetas, melhores romancistas, melhores crticos,melhores pesquisadores e trabalhadores intelectuais. No sero mais diletantes, autodidatas os homens de letras. A questo fundamental brasileira de mtodo. H um mtodo, que aperfeioar nossa qualidade de trabalhadores, seja no terreno mecnico, seja no intelectual. Improvisadores e curiosos, temos as intuies das coisas. Falecem-nos os "knowhow" de tudo, descura-se o aspecto de "craftmanship", de artesanato de quanto se faz. E a tese no desmentida, ao contrrio confirmada, pelas tentativas isoladas, mesmo brilhantes, que se perderam em meio desordem geral. 3 - Disso decorre a reconsiderao dos problemas tcnicos da poesia, da fico e do drama, (V. sobretudo pgs. 76,80, 224, 305) com a reabilitao, em novos moldes, da velha retrica. E decorre tambm uma exigncia de especializao por parte da crtica, inclusive em face dos prprios gneros literrios, em lugar do antigo enciclopedismo crtico. *** 4 - A defesa da perspectiva esttico-literrio na apreciao da literatura contra o predomnio do mtodo histrico. Isso no significa, todavia, o abandono das contribuies histricas, mas apenas a colocao do mtodo histrico no seu devido lugar, que no , na considerao da literatura, o primeiro. A crtica , acima e antes de tudo, crtica-potica, no

6sentido aristotlico, e a histria s vale na medida em que um auxiliar na compreenso da obra, um meio e no um fim, e um meio til s vezes, por vezes perturbador, e nem sempre indispensvel. Para a "nova crtica", o movimento de mbito universal que forma hoje a tendncia dominante, o que importa, sobretudo, a obra, o texto, e na anlise do texto - de poesia ou de prosa - se especializam as vrias escolas, buscando o difcil ncleo, o intrnseco, que forma a essncia esttica da obra de arte literria. Aos mtodos de anlise extrnseca, ela ajunta e sobrepe os mtodos de anlise intrnseca. Essa viso esttica da Literatura foi muito bem definida por um grande medievalista portugus, Rodrigues Lapa, em suas Lies de Literatura Portuguesa (poca Medieval, 2 edio, pg. 95): "A deficincia da grande filloga (D. Carolina Micaelis) est justamente na anlise esttica do produto literrio. Possivelmente o imenso volume de seu saber histrico e filolgico marcou nela, como natural, a delicadeza da sensibilidade artstica. Prova desta incapacidade esttica est na sua incompreenso de Ferno Lopes (...). Quer isto dizer que vai sendo tempo de considerar os nossos trovadores como artistas e no ver apenas nas suas cantigas pasto filolgico." *** 5 - O alargamento das influncias estrangeiras em nosso pas, pondo-se trmo ao monoplio e ao imperialismo cultural, e abrindo-se janelas para os vrios quadrantes do horizonte. A cultura supra-nacional, no pertence a este ou aquele pas. E toda contribuio vlida til e fecundante. S assim, lograremos a maturidade e a autonomia intelectuais: pela explorao de todas as sementes que nos possam oferecer os povos ricos de experincia. O amor da cultura no implica o reconhecimento de superioridade ou primazias de povos. Mas a aceitao das correntes cruzadas supra-nacionais, que formam a unidade da cultura, essa nao acima das naes. Quem conhece o autor deste sabe que ele no um admirador cego e passivo dos Estados Unidos, sua opinio pessimista j tendo sido mais de uma vez exposta de pblico. No se peja ele de sua formao sobretudo francesa e sua fidelidade cultura catlica, sorvida por intermdio do grande rio gauls. Mas, doutro lado, julga-se com suficiente independncia de esprito para saber distinguir aquilo que na influncia francesa nefasto ou est errado, mormente para diferenar o que a verdadeira e melhor tradio francesa do pechisbeque que seus importadores, por clculo, vesguice ou comodismo mental, fazem passar por boa mercadoria, com nenhum outro intuito seno o de tirar disso o mximo partido. E, " va sans dire", essa independncia conserva-lhe o juzo claro para enxergar o que h de progressista em outras plagas, especialmente o que h de fecundo para ns em abrirmos as janelas a todas as influncias. No tem culpa que muitos, por acanhamento provinciano, sejam impermeveis a outros ares, numa adorao imutvel, sentimental e acientfica do que chamam a "tradio francesa". O preconceito anti-americano, em particular, muito comum em certos intelectuais que, por maiores que sejam as provas, simplesmente no tomam conhecimento da Amrica, a despeito de, no mnimo, ela ser hoje o mais srio e mais importante centro de estudos do mundo. 6 - A descentralizao intelectual, conforme com a nossa realidade, que de base regional. Corresponde isso tambm a uma valorizao da vida intelectual das provncias, absorvidas, anuladas pela Metrpole, que constitui o polo de atrao permanente, concentrando os recursos e os postos de direo intelectual. 7 - Importando sobretudo "nova crtica" a literatura, o exerccio literrio constitui atividade autnoma em relao s outras, maxim a poltica, sendo esprias as formas de literatura de participao ("engage"), pois o escritor s deve fidelidade sua obra, sua vocao, sua arte. No escapa a ningum, todavia, a posio, quase diria ridcula, ao menos sem sentido, dos que se esforam por manter-se fiis Literatura nesse momento no Brasil. Nunca foi a atmosfera to pouco propcia ao exerccio das letras puras. O desprestgio da inteligncia desinteressada mostra como no h lugar na sociedade profundamente materializada de nossos dias seno para o combatente poltico. A inteligncia tem que ser subordinada aos interesses da luta, e a literatura no tem valor seno como veculo de outros valores. Parece

7que revivemos a poca das lutas de religio, quando a literatura servia de veculo da catequese ou da reconquista religiosa. Apenas, agora, diferente o senhor. A participao, ou "engagement", para usar a palavra em voga, faz-se em benefcio de ideais partidrios, nesse mundo separado, com duas faces polticas em antagonismo, tal qual aqueloutro em que duas metades de colorido religioso dividiam a cristandade outrora unificada. *** A Literatura qua Literatura, em si mesma, parece no interessar ao homem atual, tremendamente solicitado pelos partidos da hora. Nossa poca dilemtica dilacera-lhe a alma, obrigando-o a tomar partido por um dos lados, como se a estivesse a soluo de seus problemas ntimos, a resposta ao enigma de seu destino. As palavras de ordem e os "slogans" partidrios pretendem substituir a meditao das grandes obras-primas do passado. Esquecemos que lucramos muito mais no caminho da perfeio com dois trechos do Hamlet ou dos Pensamentos de Pascal, e que os problemas humanos so problemas sobretudo espirituais, s no homem encontrando a almejada pacificao. Em todas as pocas houve quem se batesse pelos problemas de justia, e essa luta legtima. Mas o problema da justia no pode ser enquadrado no plano do econmico somente. de ordem moral e espiritual, o econmico e o poltico dele dependendo estritamente. *** O desprestgio da Literatura neste instante bem reflete a desordem reinante nos espritos, a subverso de valores, a confuso de planos que caracteriza a poca, situao ainda agravada em nosso meio pelas deficincias que nos so peculiares no terreno educacional. O fato que ela interessa atualmente pela possvel mensagem de carter poltico ou social que porventura encerre. Os escritores procuram, para mostrar-se altura do tempo, infiltrar essa mensagem na obra que produzem. Os crticos contentam-se com realar, o mais dos casos, o aspecto ou a inteno poltica, consciente ou latente, da obra ou figura que examinam. A Literatura como arte, essa no vale a pena de ser encarada. No se leva em considerao. Nem h muito a quem lhe ocorra que existe nela esse aspecto esttico. *** Seria incorrer numa estultcia proclamar a morte da Literatura, j que, para veicular propaganda, se substituem facilmente por outros novos, mais convinhveis s exigncias da ao, aqueles gneros literrios tradicionais que fizeram as delcias de nossos antepassados. prefervel aquilatar o valor da poca por sua predileo pela reportagem e pela novela radiofnica, enquanto deixa cair no olvido formas ilustres de fico e poesia, qui a prpria poesia. Porventura o pragmatismo da ao ou o interesse da massa constituiro o padro da civilizao futura, na qual no mais haver para certas coisas "inteis",certas atividades desinteressadas? *** 8 - Duas tendncias chocam-se nos dias correntes, no tocante conceituao da crtica: de um lado, o velho impressionismo, em suas formas artsticas e seus espcimes bastardos (v. pgs. 162 e 341 deste livro): do outro lado, as tendncias ao estabelecimento de critrios crticos de cunho objetivo, critrios "cientficos". *** "E erro ainda tem sido a tendncia a considerar sinnimos cientfico e experimental, a despeito de que a experimentao no passa de um dos processos pelos quais a cincia progride".

8A afirmao acima, devida a um dos colaboradores do excelente livro Philosophy in American Education, pode maravilha aplicar-se s tentativas at hoje surgidas de estabelecimento de um mtodo cientfico para a crtica literria. O defeito de todas elas foi querer transferir para a crtica os critrios e mtodos de outras disciplinas e cincias, maxim, modernamente, aps os progressos das cincias fsicas e biolgicas. Taine, Brunetire, Hennequin, Silvio Romero inspiraram-se nos dados e na terminologia das cincias biolgicas que informar os seus sistemas apriorsticos de crtica "soi disant" cientfica, mas que s tinha de cientfica o jargo e a pseudo-armadura dentro da qual enquadrava a produo literria. Outros, nos sculos XIX e XX, foram buscar Sociologia a orientao para interpretar a Literatura, e, particularmente, depois que os alemes, Herder frente, marcaram o desabrochar do Romantismo pela preocupao com as origens nacionais, o estudo e interpretao da Literatura passou a fazer-se em relao estreita com o ambiente histrico e nacional. Taine, ainda, inspirado em Sainte Beuve e Hegel, codificou as leis da crtica histrica, resumidas na famosa frmula do meio, raa e momento. Outras frmulas "cientficas" vieram vindo do sculo XIX para os nossos dias, acompanhando o fluxo e refluxo das ondas cientficas. Surgiu a Psicologia, e atrs dela as diversas escolas psicanalticas aplicando mtodos e interpretaes prprios ao estudo literrio. Desde que a arte seria um mecanismo de compensao pelo qual o artista escapa da fantasia introvertida (Freud), a interpretao literria deveria buscar os diversos meios de expresso da libido sexual e penetrar no inconsciente para encontrar-lhe as razes profundas. Da Jung, psicanalista heterodoxo, estabeleceu a sua teoria do inconsciente coletivo e das imagens arqutipos, como fonte da produo artstica. *** Tudo isso est fora da Literatura propriamente dita. Historicistas, psiclogos, socilogos, biologistas, marxistas (estes ltimos, apenas uma variante do historicismo, vem na Literatura um reflexo da luta de classe, para eles, o fato essencial da histria, determinado pelas foras econmicas), todas essas escolas crticas, surgidas em reao ao impressionismo subjetivista, consideram a obra literria somente como o resultado de certas foras naturais, e seu interesse dirige-se apenas para o fato (fatualismo ou fenomenalismo), isto , o documento histrico, sociolgico ou psicolgico, a ser verificado, descrito e rotulado. Mergulha at Bacon a linha filosfica inspiradora de tais teorias e da metodologia "cientfica" delas resultante como tcnicas de abordagem do fenmeno literrio. *** Evidentemente, o ideal da crtica ser tanto quanto possvel cientfica. Mas o erro de qualquer daquelas orientaes foi tentar aplicar crtica da Literatura os mtodos prprios de cincias cujo objeto no era o fato literrio. Cada cincia cria seu prprio mtodo de acordo com o seu objeto. Para desenvolver-se um mtodo cientfico de aplicao Literatura h que procurar subordin-lo s determinaes do fato literrio, objeto peculiar da crtica literria. A crtica jamais ser uma cincia, mas poder absorver cada vez mais o esprito cientfico, realizando dentro em seus domnios as revolues metodolgicas e cientficas, que lograram outras disciplinas. Para evitar o equvoco que ser sempre vantajoso no falar em crtica cientfica (quer inspirada na Biologia, na Psicologia, quer na Matemtica), mas simplesmente em crtica. At hoje no atingiu o estudo da Literatura o estgio de disciplina autnoma, a que poderemos um dia chama verdadeiramente crtica, e que ser "a cincia da Literatura", dos alemes. *** O grande mestre da crtica literria cientfica Aristteles, que deixou na Potica as normas para o assunto. O primeiro passo a correta observao do fato literrio, na sua intimidade, ou intrnseco do fato literrio; a anlise de seus elementos (com todos os recursos

9disponveis), a descrio e classificao desses elementos,isolados ou combinados; o estudo de seus processos de produo e recepo, e, por ltimo, o julgamento de seu valor. Sem julgamento no h crtica, e nisso a crtica distingue-se da cincia. Mas para julgar, o crtico necessita de um corpo de critrios ou padres objetivos, o que faz que a crtica no possa ser verdadeiramente crtica enquanto permanecer no plano impressionista, incompatvel com o juzo de valor, pois o impressionismo subjetivista e relativista na sua fidelidade impresso sensvel, emoo. Esse subjetivismo, que deve ser afastado no exame do objeto, aplicando-se todas as tcnicas e formas de conhecimento que possam pr em relvo o que houver de significativo no fato. Por outro lado, a terminologia crtica ser escoimada dos sentidos ambguos, no esforo de torn-la cada vez mais exata, precisa e unvoca, sem contedo emocional, exclamatrio, puramente subjetivo. Impe-se o estabelecimento de um vocabulrio crtico internacional, indispensvel ao desenvolvimento da crtica como cincia. Portanto nada que no seja estritamente observado e que no se apie em severa verificao deve ser considerado no exame do fenmeno literrio. *** A crtica cientfica (empregando com a devida ressalva essa expresso equvoca e cheia de conotaes perturbadoras) aquela que, relacionando, como todo conhecimento, o esprito ao ser e realidade, numa adequao entre o esprito e as coisas sensveis, procura examinar a sua estrutura intrnseca, o especfico, o individual, a matria, que constitui o fato literrio. Seu mtodo o indutivo, como ensinou Aristteles, pela observao do dado literrio fundamental. Mas que tenha as caractersticas, as propriedades adequadas s do objeto a ser estudado, e no qualidades emprestadas de disciplinas de objeto heterogneo. Ou a crtica literria desenvolve mtodos peculiares ao seu objeto de estudo, mtodos estticos ou literrios, ou ento ficar sempre merc das tentativas de aplicao de mtodos estranhos natureza do fenmeno estudado - mtodos da Sociologia, das cincias naturais, da Matemtica. O mtodo da crtica literria ser literrio, esttico, "potico", ou jamais a crtica ser cientfica, isto , crtica, mas uma epi-disciplina, dependente das variaes de moda das cincias s quais buscar por emprstimo seus mtodos. *** 9 - Todavia, ao advogar o estabelecimento de padres objetivos, "cientficos", de anlise e apreciao da obra literria, no se quer incorrer no vcio que caracterizou os estudos literrios do sculo XIX aos nossos dias, e que foi rotulado como o "positivismo em Scholarship"(v. pgs. 101, 213, 317, 322 e outras deste livro). Esse vcio determinou um conflito entre a crtica e a erudio, de profundos prejuzos nos estudos literrios. Ao reagir contra o exagero do eruditismo em "scholarship" literrio, no se deseja proclamar a desvalia da erudio, mas coloc-la no seu lugar, a servio do estudo literrio, iluminada pela crtica, e no como um fim em si mesma, e substituindo, com seu aparato mecnico, o trabalho crtico. Por fora do positivismo metodolgico, nos estudos sistemticos de letras, segundo os critrios inspirados em Kant, Lessing, Herder, etc., produziu-se, maxim nos meios universitrios, uma exacerbao da erudio em detrimento da crtica, responsvel por um amontoado de mediocridades e futilidades sadas dos prelos universitrios. Para se ter boa idia do assunto, consulte-se a excelente obra de Martin Schutze, Academic Illusions, (Chicago, 1933), um dentre os muitos trabalhos suscitados pela polmica em torno do tema. Mas o problema foi muito bem resumido por Fidelino Figueiredo no seguinte trecho: "A Crtica literria ou, na designao alem, a cincia da Literatura (Literaturwissenschaft) no poderia eximir-se a tal renovao. Chegara a extrema decadncia: metodizao de curiosidades pequenas, recuperao do anedtico singular da vida dos autores, da histria externa das obras, pesquisa e recolha de tudo que precedeu criao. E uma curiosidade aplicvel indiferentemente ao timo e ao pssimo. O melhor da crtica do fim do Sculo XIX foi feito com sacrifcio das obras aos autores: Shakespeare, o homem mal identificado, em vez de seu teatro; Balzac, o homem da bata branca, da bengala mgica e dos amores ocultos com

10"l'trangre", em vez da Comdie Humaine; a nevrose revolucionria de Dostoiewsky em vez das intimidades humanas do seu romance...Era como vegetao teimosa e rasteira, sombra de grandes rvores. E sem chegar a nenhuma concluso geral, alm do amontoamento de livros sobre livros, cujo contedo era insusceptvel de assimilao no esprito sob forma de idias. No se chegava a concluso nenhuma, porque h dois mistrios insondveis na cincia da literatura o da criao pelo artista e o da recepo pelo pblico ou da ressonncia no meio ledor. Um sculo de erudio no nos legava nenhum dado positivo sobre tais mistrios. Tudo o que o mtodo histrico poderia produzir na cincia da literatura j estava realizado: os grandes monumentos da erudio que constituem ttulos de glria do sculo. E tudo que o impressionismo esttico nos poderia oferecer, j no-lo havia legado: as obras dos altos crticos criadores. Umas e outras se completavam, mas todas se detinham no limiar do incognoscvel, guardado por aqueles dois cerberos..." Fidelino Figueiredo, "Rumos novos da cincia da literatura", Boletins da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, n 7, Universidade de So Paulo. *** 10 - O mtodo ideal em crtica literria o integral, que hoje est sendo propugnado pelas correntes e figuras mais avanadas em todo o mundo. A propsito, veja-se um comentrio s pginas 233 deste livro sobre o estudo de Manfred Kridl, "The Integral Method of Literary Scholarship", publicado em Comparative Literature, Vol. III N 1. A crtica s alcanar seu objetivo de uma completa compreenso da obra de arte quando utilizar tudo o que estiver ao alcance para essa finalidade. Nada pior em crtica do que a unilateralidade de mtodo ou o mtodo nico. A obra literria polimorfa e no ser bem vista enquanto encarada por uma s face do prisma. O conjunto de perspectivas que oferece oportunidade para uma viso total. H obras que se deixam ver melhor de determinado ngulo de viso e mediante certas tcnicas de abordagem. Ao passo que outras escondem seus segredos se no colocadas sob a luz de refletores apropriados. O erro da crtica de orientao sociolgica determinista foi acreditar na explicao gentica exclusiva do meio, da raa e do momento. Sabemos quo superada est a teoria de Taine e dos crticos que nele se inspiraram. Os fatores extrnsecos no tm o monoplio da formao artstica, nem mesmo a importncia que se lhes atribuiu. Podem estar ou no presentes na gnese da obra e no satisfazem de todo quando pretendem explicar a natureza do produto esttico. Por si no passam, quando esto presentes, de meros elementos condicionantes, incapazes de esgotarem o mistrio da criao artstica. Em igual situao est o fator psicolgico. Como se pode estudar num livro recente, Taste and Criticism in the Eighteenth Century (Londres, 1952), o sculo XVIII, ao reintroduzir na explicao da poesia, noes como a de sentimento, de paixo, de entusiasmo, de gnio, de imaginao, legaria ao Ocidente um corpo de doutrinas estticas e literrias que teria imensa fortuna em todo o perodo de tempo que se lhe seguiu at nossos dias. Doutrinas estas que formariam o sistema de idias romntico e que, por assim dizer, monopolizariam a mente dos crticos, a elas consciente ou inconscientemente subordinados. Ao reagir contra o primado das regras, que fra um dos cnones do neoclassicismo, como a noo da imitao fra outro, o romantismo forou a mo na estimao do princpio pessoal da inspirao, do gosto, do temperamento individual, do gnio, da emoo, qualidades estas a que se passou a responsabilizar por toda a criao artstica. Um passo apenas e cairamos em outro monismo interpretativo: o da obra atravs do homem, que redundaria, pela mo mgica de um Sainte Beuve, no estudo do homem artista graas a tudo que a isso se prestasse, inclusive s vezes a obra. De estudo da literatura na obra, a crtica resultou em biografia dos autores, em retrato psicolgico dos escritores, para o que podia tambm, caso fosse til, utilizar-se a obra, simples documento ilustrativo de uma vida. Inverteu-se a ordem do estudo literrio: em vez da obra atravs do autor, chegou-se ao autor por intermdio da obra. Como se, afinal de contas, o que devesse interessar acima de tudo ao estudo literrio, crtica, no fosse a obra, o documento literrio por excelncia, cuja autoria um simples acidente, nem sempre interessante ou til interpretao, s vezes at

11prejudicial muitas vezes ignorada sem que se perca qualquer parcela do interesse e valor esttico da obra. Em todos esses casos o que ressalta o prejuzo monista na explicao literria. Todos esses "approaches" ao fato literrio podem prestar servios contanto que no elevados em absolutos e nicos meios de penetrao das obras literrias. A tendncia no momento para uma viso total, que conduza a interpretao, atravs de toda a soma de elementos, para o ncleo intrnseco da obra. No se conformar o olho crtico em deter-se na superfcie, na camada externa, nos elementos extra-literrios propriamente, mas descobrir os fatores intrnsecos do "valor" esttico-literrio. O ideal crtico ver a obra em globo, merc de um mtodo integral, que use os mtodos de investigao extrnsecos e os intrnsecos ou ergocntricos; os genticos, - psicolgico, sociolgico, histrico, cultural, - mas tambm os literrios. Mas sem predomnio de um deles. No passado os mtodos extrnsecos tiveram a preferncia. Do comeo do sculo presente datam os esforos dos crticos no sentido de desenvolver os mtodos literrios ou ergocntricos. Pelo fato de haverem os outros monopolizado os estudos literrios, poder parecer que os atuais propugnadores de mtodos literrios estejam advogando um novo monismo crtico. Nada mais falso. E nada menos fecundo do que substituir um por outro monismo. O que se pretende aquilo muito bem definido por Manfred Kridl:um mtodo que seja "integral", isto , que abrace tudo o que existe na obra de arte, e "literrio",isto, que estude todos os elementos dentro dos limites da obra, de um ponto de vista literrio. E que, assim, consiga conciliar vrias perspectivas com a tcnica do "close reading", "close scrutiny of style", "close verbal analysis", "detailed study of actual words on the page", o princpio bsico do moderno mtodo crtico. *** 11 - Tal colocao do problema crtico pe em relvo a necessidade de uma reao contra a preocupao biogrfica em crtica to larga e to devastadora entre ns, onde, como bem acentua Afonso Arinos de Melo Franco, a biografia monopoliza as atenes dos crticos e historiadores literrios (V. pgs. 91, 122, 125 e outras). 12 - exacerbao do positivismo na metodologia literria correspondeu um divrcio entre a crtica e a erudio. Em quem estuda a literatura do passado, o ideal realmente adotar uma atitude em que a crtica e a histria literria se fundam numa s perspectiva, isto , em que as questes sejam encaradas ao mesmo tempo como questes de fato e questes de valor. O comum, porm, existncia de um conflito desesperado entre a crtica e a histria literria, com o predomnio absoluto do critrio histrico em detrimento do critrio crtico. E chegou-se, atravs desse divrcio, a um prejuzo da crtica, da avaliao esttica, pois a histria literria deixou que a preocupao histrica se exagerasse custa da preocupao literria, a ponto de se tornar, por influncia alis da atmosfera espiritual do sculo XIX, mera histria social da Literatura ou ento srie de ensaios biogrficos de escritores em ordem cronolgica. Mas esse conflito entre a crtica e a histria literria tem outra conseqncia igualmente funesta: o desprezo dos historiadores e eruditos literrios pela literatura viva, contempornea. Em geral, erudio literria confunde-se com Literatura passada. o que caracteriza a Literatura acadmica, o esprito acadmico em Literatura. Aqui o conflito tem sido quase insolvel; quem se dedica a estudar a Literatura desse ponto de vista arrima-se a essa espcie de horror ao vivo, denotando por ele uma incompreenso total e um desprezo absoluto. O esprito especializa-se no sentido do morto, do que consagrado pelo tempo. H nessa mentalidade uma evidente deficincia de formao do esprito literrio e da capacidade crtica, pois a crtica e o estudo literrio devem visar primordialmente ao contemporneo, cuja compreenso e interpretao o estudo do passado h que auxiliar. Revela-se uma verdadeira deformao do esprito literrio quando o interesse se detm h meio sculo do observador, que s tem capacidade e gosto pelo antigo. uma doena do esprito a erudio pura e simples, desacompanhada da crtica. E doena no menos grave a preocupao dominante com o passado literrio, sem estar equilibrada pela compreenso do presente. Ambos os casos decorrem de perniciosa formao literria e crtica. De m definio dos problemas tericos da Literatura.

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*** 13 - Entre os espritos mais conscientes e lcidos das ltimas geraes brasileiras, e entre representantes mais ntegros da mocidade, lavra hoje um descontentamento em relao aos hbitos vigentes entre ns quanto ao exerccio das letras. Por toda a parte, sente-se reao contra aquelas normas e costumes. Tal reao encontra eco no esforo de alguns por uma moralizao de nossos costumes intelectuais. A Literatura no Brasil sempre viveu presa a um dilema entre a vida literria e a obra literria, de funestas conseqncias para o valor de nossa Literatura e fonte de inferioridade para os nossos hbitos intelectuais. Disse Oscar Wilde certa feita a Andr Gide que havia dado a sua obra somente o seu talento, enquanto pusera "todo o meu gnio em minha vida". Esta frase parece que pode ser tomada como uma definio de toda a Literatura brasileira. Os homens de letras no Brasil gastam o que possam ter de gnio na sua vida, dedicando s obras apenas um pouco de talento. Da esta concluso geral que se reduz da observao de nossa histria literria: no Brasil, a vida literria mais importante do que a Literatura. A vida literria suplanta as obras. Enquanto a Literatura brasileira denota grande pobreza em obras, muito rica em figuras de homens curiosos, de homens de esprito, numa palavra, em vidas. E a vida que se desenvolve em torno da Literatura de fato muito mais interessante, de modo geral, do que importantes as obras. *** Talvez por uma questo de temperamento racial no temos as qualidades intelectuais e psicolgicas para nos dedicar produo de grandes obras. Talvez ainda no estejamos maduros, ainda no tenhamos atingido a maioridade mental. Com certeza. O fato que a nossa produo ainda episdica, inconsistente, fluda. Ainda muito pobre. Ainda no desenvolveu um sentido de universalidade que a far ouvida e admirada no estrangeiro. Naturalmente, falando-se de maneira geral, sem querer argumentar com excees. Ressalvando-se um ou dois exemplos, raros tm sido os nossos homens de letras que tiveram a capacidade de ser fiis vocao, e se dedicaram de corpo e alma, a vida toda, construo de uma obra. No temos essa pertincia, essa constncia, essa fidelidade, que fazem as grandes obras. Tudo o que produzimos apressado, fragmentrio, margem. A Literatura brasileira uma Literatura marginal. Os escritores brasileiros so homens marginais. No possvel em poucas palavras dizer se um fenmeno causa ou conseqncia do outro. Isso merece e exige estudo mais amplo. Mas o fato que a pobreza em obras contrasta gritantemente com a intensidade da vida que se vive, da vida literria no Brasil. Ser um livro muito pitoresco, divertido, muito mais interessante do que as nossas maudas histrias literrias. Brito Broca tem-nos dado alguns fragmentos dessa histria que est obrigado a dar-nos. *** Ao invs de se propor uma obra de criao, o escritor brasileiro prefere viver literariamente. Dispersa a sua atividade, a sua capacidade, o seu gnio, nas rodas, nos corrilhos, nas disputas, nas intrigas. As lutas entre as vrias capelinhas uma delcia. Uma antologia de epigramas trocados entre os vrios escritores e grupinhos, e de suas intrigas, faria o encanto dos amantes da stira. Seria talvez mais genial do que a sua prpria poesia. O regime tem seu lado divertidssimo, quando no ridculo. Mas tem tambm o seu lado negativo. Os escritores esterilizam-se, dispersam-se, estragam-se. Criam um complexo de medo uns dos outros. E a produo literria se empobrece, pois muitos talentos legtimos no se prestam a tomar parte nessa comdia. Recolhem-se num canto, desanimam, perdem o

13estmulo. Enquanto triunfa a mediocridade dos protegidos pelos poderosos, debaixo de sua fronde. *** No so poucas as ms conseqncias do fato de darem os escritores maior dedicao vida literria do que prpria Literatura. J no se fala na pobreza de obras de valor, na fraqueza de nossa Literatura, fato mais que bvio. A intriga, as lutas, a corrida s posies, tudo o que constitui a chamada "comdia literria", enfraquece a capacidade dos escritores, tolhe-os, limita-os, tira-lhes qualquer interesse humano e universal. Mas esse hbito de dar maior importncia vida literria tem ainda outra conseqncia, alm desse enfraquecimento da produo. que a vida literria nem sempre muito limpa. O que domina a intriga, o esprito de capela, as rivalidades, as competies mesquinhas, as ambies pessoais. De maneira geral o personalismo. Tudo gira em torno de pessoas. Da glorificao de uns. Da destruio de outros. Raramente a sinceridade o mvel das atividades. Na maioria dos casos no o interesse geral, coletivo, do pas ou da sua Literatura, que predomina. Um dos vcios mais graves da nossa vida literria a tendncia que tm os escritores a no se limitarem s Literatura. Fazer Literatura antes o veculo para alcanar posies na administrao pblica, na vida social ou poltica. a tendncia ao expoente. No se compreende porque se critica tanto o medalho. Pois no h tipo mais representativo do homem de letras brasileiro do que o medalho. o indivduo que, depois de conquistar certa fama e prestgio pela publicao de meia dzia de livros, passa a ser figura indispensvel nas saudaes de banquetes ou ofcios fnebres, nas comemoraes patriticas ou sociais. Tornase membro de todas as sociedades recreativas e beneficentes. uma figura. A literatura fica para trs, esquecida. Serviu apenas de canal ou instrumento de acesso. Temos s pencas os exemplos no Brasil de escritores que se perderam por falta de fidelidade vocao intelectual. Por no saberem resistir s solicitaes do brilhantismo social, do poderio poltico ou administrativo; e porque no tinham vocao para isto, degeneraram, comearam a fazer tolices. Enquanto intelectuais, foram respeitadssimos; fazendo-se polticos, reformadores, chefes de cls, servidores de causa, as crticas surgiram,na maioria justas. Esta a tendncia natural do homem de letras no Brasil. A literatura apenas escada para alcanar a posio. E nem sempre essa conquista se faz por meios decentes e honestos. Nem sempre conservando pura a conscincia e imaculada a pena, e independente em face aos poderosos do momento. Tudo isto que fez a Literatura muito desmoralizada no Brasil. Ningum acredita mais nela. Sempre houve entre o nosso povo uma tendncia para respeitar a Literatura e os homens de letras, certa boa vontade para com eles. Pode-se falar mesmo em certo respeito nato no brasileiro pelo intelectual. Mas de algum tempo a esta parte vm sendo Literatura e intelectuais desacreditados. H uma queixa constante entre ns: porque existe tal divrcio entre Literatura e povo, porque no se lem os nossos livros. Uma das razes dever ser esta: o povo no acredita mais em intelectual brasileiro. Literato hoje palavra de significado pejorativo, quase sinnimo de cafajeste. O povo cansou de suportar o intelectual. Cansou de lhe dar regalias, de lhe conceder certas licenas e privilgios, s para que ele pudesse viver a vida a seu modo, a boa vida, a bomia, o montparnassismo. Cansou de malazartismo. Cansou da literatice dos nossos literatos, e da sua mentalidade de aldeia. A preocupao dos nossos escritores de fazer Literatura, de viver literariamente. Da que a nossa Literatura seja to pobre, e que no oferea interesse maior aos estrangeiros. O fato este: ns nos queixamos de que os outros no conhecem as nossas obras, e acusamos a barreira lingstica. A verdade que a lngua no foi obstculo para os russos serem universalmente conhecidos. Quando h fora real, todas as barreiras so derrubadas. Devemos antes fazer um auto-exame e compreender que nada temos que possa realmente impor-se ateno. E nada possuiremos enquanto nos esgotarmos no personalismo, na literatice de caf, no malazartismo, no cafajestismo. Mesmo do cafajestismo dos que o praticam com ares de trapista.

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*** 14 - mister falar claro e francamente, embora sabendo a quanto nos arriscamos. Certa feita, aludiu Alcntara Silveira ao solilquio em que acaba sempre o intelectual brasileiro, a falar de coisas que ningum ouve ou a que no se d ateno, fenmeno bem tpico do nosso estado primrio de civilizao, misto de gelia e cortia, como diz muito bem. E sugere o cultivo de um pessimismo fecundo, melhor chamado talvez dinmico, resultante da crena na possibilidade de supresso desse estado de coisas atravs da indicao dos erros, do combate e da resistncia. claro que, como adverte o articulista, a prtica desse pessimismo, longe de ser cmoda e fcil (ao contrrio do conformismo ufanista), rdua e difcil, exigindo repdio s facilidades que nos rodeiam e coragem de mexer numa situao que a maioria, inconscientemente, tudo faz por prolongar. Realmente, nada mais bem observado. O autor deste, uma vez, convencido da mesma necessidade de reao, props, a formao de um "partido dos homens desagradveis", aos quais incumbiria dizer verdades que habitualmente no se gosta de ouvir e que, no entanto, se impem. O brasileiro est visceralmente e secularmente habituado ao ufanismo. O nosso primeiro cronista foi o av dos ufanistas ao dar conta ao rei de Portugal das belezas da terra descoberta. esta uma das linhas do nosso iderio nacional, se formos um dia fazer um levantamento das idias-foras de nossa civilizao e de nossa vida espiritual. De sorte que ir ao arrepio da corrente encontrar toda a espcie de resistncia, de oposio, de condenao. desafiar a tolerncia, condenar-se a rprobo de um crime inafianvel. Jamais conseguir o perdo. Por isso, -lhe necessrio coragem quele que se abalanar a ingressar no partido dos desagradveis. Coragem de sacrifcio, de renncia s vantagens da glria, da fama, do cartaz, da aceitao pelo oficialismo intelectual. Os prprios amigos lhes exprobaro a maluquice, no lhe apoiaro a atitude. Procuraro afast-lo do mau caminho, justamente receosos quanto ao seu futuro. muito mais fcil e lucrativa a posio de conformismo, de aceitao passiva ou de encolhimento, ou ainda de no-pronunciamento. O perigo est em dizer-se em voz alta, em expor as chagas. As teorias dominantes so as do - -ruim-mas-nosso, aqui-s-isso- possvel, tem-sido-sempre-assim-para-que-mudar. As nossas figuras mais representativas so as que melhor refletiram tais defeitos, defeitos endeusados, apontados como normas e modelos a seguir e imitar. Um Machado de Assis que se fez pelo esforo, que adquiriu cultura pela pacincia e o estudo, lutando contra todos os empecilhos que o meio lhe ps no caminho, ser sempre antiptico maioria. Os que mais apreciamos so os gnios nativos, que abandonaram a escola cedo, no pressuposto de que ela coibia os impulsos naturais e ofuscava a originalidade. Toda hora lemos endeusamento de tipos ou fatos dessa ordem, a ignorncia e a originalidade espontnea colocados acima de qualquer outra norma de apreciao e julgamento dos homens. *** Quem quer que se arrogue a funo de dizer coisas experimentar logo a reao. Conhecer os olhares de constrangimento, os sussurros significativos, os risinhos de mofa, os silncios reticenciosos, por vezes as reaes desabridas, os castigos exemplares e as advertncias caridosas. Ver relaes esfriarem, sentir a boicotagem silenciosa ou pblica, viver sempre margem. Leiam-se, por exemplo, os ensaios de Tito Lvio de Castro, um desses marginais que tiveram a ousadia de "falar". Crtica, s toleramos sob a forma da piada e da anedota. A anlise sria, causticante, mesmo com pretenso construtiva, essa jamais encontrar seno resistncia e azedume. E quem se der ao seu uso no evitar a sorte dos rprobos, dos prias, ser tido como insocivel, merece o destino dos encarcerados ou enclausurados, pois a tanto equivale a segregao que experimentam. No mnimo, ser um solitrio. Ao livre-atirador corresponde sempre um isolado. Nenhuma batata lhe caber no acerto final, porquanto nenhuma vitria vencer. um contra. Um desmancha-prazeres. No ecoa as louvaes aos deuses da hora, tambm no lhe recebe as benesses. Restar-lhe- quando muito a satisfao da conscincia e da inteligncia. E certo respeito.

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*** Em todos os nossos campos de atividade intelectual, impe-se essa atitude de inconformismo e revisionismo desassombrados, de permanente exame de conscincia. Em vez de nos orgulharmos, de nos ufanarmos, de nutrirmo-nos de iluses e falcias, procurando fingir ou mentir a ns prprios, na construo nunca terminada do castelo de areia do faz-deconta nacional, seria mais avisado falssemos francamente, desagradavelmente, tomando conscincia de nossas fraquezas. Ainda no tivemos entre ns uma gerao correspondente gerao americana de aps a guerra de 1914, que procedeu mais severa crtica dos Estados Unidos, na fico, na poesia, no ensaio, e que, tendo dado as costas ao pas, teve depois a coragem de a ele voltar - "Exile's Return" - para reconhecer afinal que a ptria podia ser vivida. Na intimidade, temos a franqueza de falar de nossos defeitos. Por que no faz-lo em pblico? *** Essa a inteno do autor destas notas no tocante Literatura, crtica, ao exerccio da profisso intelectual. Sua preocupao com a reforma dos mtodos crticos e a moralizao dos hbitos intelectuais remonta aos anos de sua adolescncia, quando ainda inseguros os lineamentos de suas concepes ou intuitivos apenas os juzos que formava acerca desse problema. Mais tarde, com uma viagem aos Estados Unidos, quando lhe foi proporcionado um contacto prolongado com os meios universitrios e intelectuais (1942-1947), seus pontos de vista se reafirmaram e clarificaram, tendo, em trabalhos de ento e publicados no Brasil, refletido tais orientaes, hoje reiteradas nos ensaios aqui compendiados. *** Uma acusao sria tem sido proferida contra o autor do presente volume: a de que, em sua atividade nas Correntes Cruzadas, no sai do terreno da teoria para o da prtica crtica. Reiterou-a, emprestando-lhe o brilho de sua inteligncia sedutora, o Sr. Afonso Arinos de Melo Franco, em momento severo: quando da argio de sua tese para o concurso de Literatura do Colgio Pedro II. Era como um bicho de seda encerrado em seu casulo. Em vez de contemplar as guas do rio, que se atirasse nelas. No se confinasse crtica da crtica, aplicasse sua instrumentao crtica das obras de arte. Talvez haja lugar aqui para mais uma nota pessimista, ou ao menos de humildade: nossa incompetncia para realizar-nos, para concretizar aquilo que idealizamos ou visualizamos. Falecem-nos as disciplinas, os recursos, mesmo quando no ignoramos onde esto. As geraes como a de quem aqui escreve, comprometidas por graves deficincias de formao e falta de orientao, agravados tais defeitos pelas circunstncias locais, natural que se vejam peadas no realizar a operao de passagem dos princpios bsicos e dos planos tericos para o campo da prtica. Alm disso, h que deixar espao para a atividade - oportuna e necessria - dos que tm preferncia pelas questes de princpio e mtodo. uma tarefa que se impe no Brasil, e justo que nela se especialize quem de vocao e gosto, numa diviso nacional de trabalhos. No h mal nenhum em que algum faa a crtica dos padres vigentes e aponte novos caminhos, a outrem deixando a complementao do esforo na prtica. Se nada mais fizer do que essa contribuio ao debate revisionista e clarificador de normas e rumos, confessa-se seu autor bem compensado com o papel de agente catalizador. Sua contribuio ficar como uma ponte para a imperiosa reforma de mtodos crticos. Rio de Janeiro, maio de 1953.

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Rio de Janeiro, Edies Tempo Brasileiro, 1963, pp. 27-30.

A COMDIA DA VIDA LITERRIAA vida literria , no Brasil, muito mais importante do que a prpria literatura. este um dos fatores de pobreza de nossas letras, do escasso nmero de obras de importncia e de figuras literrias de primeira plana. A superficialidade a regra em nossos livros e em nossos homens de letras. Raros os que alcanam um nvel de profundidade e de essencialidade. Isso porque nos gastamos, desperdiamos nossas energias em preocupaes bem diversas da produo de verdadeira literatura. Uma dessas preocupaes a da glria em vida. J se disse de algum que teve tanta glria em vida que a esgotou nada lhe sobrando para depois de morto. So os vrios processos e tticas de administrao da glria que constituem um dos muitos meios de esgotamento dos escritores entre ns. O fenmeno por demais conhecido: escritores que, em vida, desfrutaram de rumorosa nomeada e domnio sbre a opinio do pblico e dos confrades e que dles hoje ningum quase desconfia da existncia. Gastaram-se na vida literria, atiraram fora nas disputas de rodinhas e nas lutas pelo domnio da opinio tudo o que poderia ter sido empregado na construo de obras srias. Pela notoridade efmera queimaram toda a lenha que trouxeram. Mas a notoridade feminina: com freqncia varia de nimo e de senhor. Nada mais divertido do que observar a comdia da vida literria no Brasil. A felicidade que o pblico no toma conhecimento dela, seno a literatura j estaria h muito desmoralizada, pois dificilmente saberia ele distinguir literatura de vida literria e verificar que esta no passa de explorao daquela em proveito de meia dzia de sabidos. Alis, j de se atribuir muito do desprestgio de que a literatura vtima nos ltimos tempos nos leitores ao fato de que afinal se vai tomando conhecimento fora dos meios literrios, dos processos e artimanhas dos aproveitadores da literatura. Nesse particular, como em muitos outros para o bem e para o mal, devemos enormemente Frana. No h nmero de peridico francs, imagem dos quais so feitos os nossos em sua maioria, que no estampe uma reportagem ou uma entrevista a propsito desse ou daquele aspecto da vida particular ou das intimidades de determinado escritor. A preocupao com a obra de somenos e descresce dia a dia. Em vez da obra a vida dos autores. Em vez da literatura, o extra-literrio. Em lugar da literatura a histria literria. E foi isso que Renan quis

17dizer quando afirmou que cada vez mais a histria da literatura iria substituindo a leitura das obras. E a crtica foi-se aos poucos transformando em biografia ou interpretao do homem e da poca, deixando de lado aquilo que deve ser sua primordial finalidade - a obra, sua anlise, interpretao, julgamento. Que interesse tem para a literatura que o poeta fulano haja completado anos ou tenha ido veranear em Petrpolis e o romancista sicrano em Caxambu. Apenas para ele, para o bom funcionamento de seu fgado, que o fato tem importncia. E para a alegria de seus amigos. A no ser que da resulte uma obra fundamental que venha enriquecer nosso patrimnio literrio. De outro modo, isso tem tanta importncia quanto a ida para uma estao de repouso de um fiscal de consumo ou um amanuense, e, no entanto, ningum disso toma conhecimento nem se anunciam esses acontecimentos. Mas de certos literatos qualquer que seja o seu movimento, l vem a notcia que os amigos dos suplementos e dos jornais literrios no esquecem. H nomes que aparecem inexoravelmente todos os domingos nos rgos literrios. E s vezes com os retratos. uma estratgia cansativa de meter pelos olhos a glria de um personagem. um processo que est intimamente ligado estrutura da vida literria em que dominam as igrejinhas, as cadeias de felicidade e os fogos cruzados de elogios. Sobretudo, muitas igrejinhas vivem sombra de alguma rvore frondosa. Quais cogumelos, seus membros necessitam de sua proteo. Por isso, do-lhes em troca o cro de louvores e de propaganda. 8/3/1953Nota de 1963Produtos tpicos e exclusivos da vida literria so as famas rpidas e descabidas. As igrejinhas transformam, da noite para o dia, sem que nada justifique, improvisados comentaristas em crticos famosos, e meros revisores de provas em "mestres" fillogos, s porque os primeiros "promovem" os livros e os ltimos colocam certo os acentos e os pronomes nos trabalhos dos membros do grupo.

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Rio de Janeiro, Edies Tempo Brasileiro, 1963, pp. 127-131. ANTROPOFAGIA DE GERAESQuem tem contacto com a mocidade estudantil de nossa terra no pode deixar de observar a enorme nsia de aprender e a larga receptividade que denota em relao ao saber. uma mocidade vida, sequiosa, intelectualmente disponvel, mas buscando aprender com volpia, para preencher a sua disponibilidade e dirigi-la. Onde quer que haja possibilidade de beber conhecimentos, a estar ela, buliosa, mas atenta e vigilante ao que possa benefici-la no particular. Veja-se o exemplo dos cursos de letras, em toda a parte, aos quais acorreram s centenas superlotando anfiteatros. E no se diga que a cata ao diploma, pois desses cursos no tiraro certificados que lhes possam render algo material. simplesmenteo desejo insopitvel de saber que leva os jovens a ouvir tais cursos, no af de completar a formao que os estudos regulares no proporcionam. Em verdade, a est o ponto crucial do assunto, o Brasil tem crescido desproporcionalmente, do ponto de vista material, sobretudo, a que no corresponde, de modo algum, um desenvolvimento intelectual consentneo e altura das necessidades de ordem material. A vida intelectual brasileira oferece um atraso, um retardamento de cinqenta anos em relao ao estado presente da cultura mundial e ao prprio desenvolvimento material do pas. No estvamos ainda adequadamente preparados, do ponto de vista intelectual, para enfrentar a situao de avano material do pas. Por isso devemos responsabilizar a ausncia de universidades, com que nos brindou uma colonizao estreita e egostica. No formamos, em consequncia, uma mentalidade de nvel superior e uma equipe de dirigentes desse tipo, que teria criado no pas hbitos de pensamento e ao diferentes dos quais dominam at hoje, inspirados na improvisao, empirismo, desplanejamento, irreflexo. Tal defeito repercute naturalmente em nosso meio educacional, onde os corpos docentes, na sua generalidade, so constitudos de professores improvisados, sem o devido preparo tcnico e sem o gosto da profisso, que exercem como um bico acrescentado s suas atividades normais e mais lucrativas

19ou de mais relvo social e poltico. O ensino, entre ns, ainda atividade marginal, sem esprito profissional e sem dedicao e especializao. Da a insatisfao com que reagem aos seus mestres os jovens estudantes brasileiros. geral o divrcio entre o que exigem os alunos e o que lhes podem oferecer os seus mestres. As novas geraes brasileiras vivem um drama: ansiosas de aprender, falecem-lhes os guias normais. Raramente, entre ns, se d a formao de uma escola, isto , um mestre cercado de auxiliares que lhe prolongam e transmitem o pensamento a discpulos que o seguem para cumprir, por sua vez, a misso de alargar a cultura a partir daquele ensinamento. Em nosso meio, no h liderana intelectual. No h lderes intelectuais, como no os h literrios. Aqui cada um por si, e os outros contra. As nossas figuras intelectuais, literrias ou educacionais, por desencanto ou outra qualquer razo preferem participar social ou politicamente, tornam-se chefes sociais ou polticos, desviando-se e deixando de ser lderes intelectuais, o que acarreta o desbarato ou a perda das geraes. Na lngua portuguesa no h mesmo expresses usuais para designar o que os franceses significam por "ain" e "cadet", palavras to comuns para exprimir o escalonamento e sucesso das geraes, literrias ou outras. Entre ns, o corrente a antropofagia das geraes, cada uma sentindose obrigada a partir do comeo, aps destruir ou negar a anterior, conforme o mito enganoso da soberania da gerao presente. Mas isso decorre da falncia de liderana e guia da gerao mais velha. A desiluso com que sai de uma classe um aluno aberto conquista intelectual s ter como consequncia o iconoclastismo e a repulsa. de fcil observao nos nossos meios intelectuais, nos diversos centros universitrios e colegiais do pas, como os alunos se deparam com verdadeiros desertos intelectuais representados pelos seus mestres com raros osis de exceo. Atrasados, inatuais, sem cultura, sem gosto pelo estudo, sem domnio da bibliografia antiga e corrente da matria, cpticos, sem lan, meros repetidores de sovados compndios, incapazes de experimentaes e mudanas, empedernidos, fossilizados na repetio anual das mesmas apostilas, exclusivamente preocupados com aumentos de vencimentos ou poca de aposentadoria, no podem, de maneira alguma, corresponder s exigncias de uma mocidade vida de saber, inquieta e marcada pelo sentimento de insegurana do futuro. Resultam o divrcio, o conflito, ainda agravados pelo crescimento de nmero que elevou a populao escolar a verdadeira avalanche. Assim, o pequeno contingente de professores no corresponde, nem mesmo numericamente, s necessidades do ensino. H que pingar, todavia, uma palavra ao crdito dos professores. No h dvida que muitos so verdadeiros heris, vindos por si, sem que ningum os houvesse ensinado como ensinar, abrindo caminho na pobreza, sem poder comprar livros, no tendo tempo para estudar porque os dias eram gastos em aulas de ganha-po e em energias fsicas, sem faculdades de educao onde formar as saus tcnicas. Merecem todas as honrrias e gratides. O que no impede que desejemos mudar a situao. O fato de ter sido assim no nos obriga a ficarmos sempre assim, em homenagem ao erro. O conformismo com a tradio errada a pior desgraa. Tenhamos a coragem de romper com ela para criarmos algo melhor.

31/3/1957.

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Rio de Janeiro, 1968, Livraria Acadmica, pp. 115-157. A CRTICA LITERRIA NO BRASILEstudo publicado em Revista Interamericana de Bibliografia , Washington april june64, vol XIV, N 2.

I. A dcada de 1950, na literatura brasileira, pode ser considerada como da crtica literria. o momento em que se adquire a conscincia exata do papel relevante da crtica em meio criao literria e aos gneros de literatura imaginativa, funo da disciplina do esprito literrio. Sem ser um gnero literrio, mas uma atividade reflexiva de anlise e julgamento da literatura, a crtica se aparenta com a filosofia e a cincia, embora no seja qualquer delas. uma atividade autnoma, obediente a normas e critrios prprios do funcionamento, e detentora de uma posio especfica no quadro da literatura. O reconhecimento de tudo isso pode-se afirmar que se fixou naquela dcada, sob forma to aguda e profunda que justifica para ela a denominao de a dcada crtica , pela descoberta de sua autonomia e cunho tcnico. Essa poca uma rplica a outra, de grande importncia na histria brasileira, a iniciada em 1870 com a gerao naturalista, a cujo trabalhos devem os estudos literrios no Brasil a maioria dos padres predominantes a partir de ento e s postos em cheque nos ltimos quinze anos. A era da crtica corresponde terceira fase do modernismo brasileiro. Como se sabe, este movimento, iniciado em 1922 com a Semana de Arte Moderna, em seguida a um perodo precursor e de preparao, compreende trs fases : a primeira, de 1922 a 1930, fase herica de ruptura, de revoluo, de demolio do passado, de polmica e pesquisa esttica, de liberdade criadora, com predomnio da poesia (Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Mrio de Andrade, Menotti del Piccchia, etc.) ; a segunda, de 1930 a1945, recolhe os resultados da primeira, substituindo a destruio pela inteno construtiva : a poesia prossegue a tarefa de purificao de meios incluindo novas preocupaes de ordem poltica e social (Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Vincius de Morais, etc.), mas foi na prosa de fico que ela mais se destacou, criando um perodo de extraordinria florao e esplendor, a partir de 1928, com a publicao de A bagaceira, de Jos Amrico de Almeida, e Macunama, de Mrio de Andrade, e com a grande gerao de ficcionistas - Jos Lins do Rgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirs, Cornlio Pena, Otvio de Faria, Jos Geraldo Vieira, Lcio Cardoso, rico Verssimo, Joo Alphonsus, etc.; a terceira fase, iniciada por volta de 1945, assiste a um esforo de apuramento formal e de recuperao disciplinar, abrindo novas experincias no plano da linguagem, tanto na poesia quanto na fico (Guimares Rosa, Joo Cabral de Melo Neto, Ldo Ivo, Pricles Eugnio da Silva Ramos, etc.), mas sobretudo no campo da crtica de cunho esttico e a superao do impressionismo jornalstico, o que leva a design-la de fase esttica do modernismo.

21Ao atingir, assim, os ltimos anos de 50, a crtica brasileira encontra-se dividida em trs grupos. De um lado, os reacionrios e saudosistas, que efetuavam o seu trabalho e construram fama sobre um tipo de crtica opinitica, e impressionista, de comentrio irresponsvel e superficial de divagao subjetiva, sem cnones e rigor metodolgico, sob a forma de militncia dos rodaps de jornais, e que no se conformam com perder a situao ; o grupo conservador que se realiza dentro dos ramos tradicionais da biografia crtica, da crtica sociolgica e psicolgica ; por ltimo, os que buscam um novo rumo para a atividade crtica, na base de um rigorismo conceitual e metodolgico, de um conceito da autonomia do fenmeno literrio e da possibilidade da sua abordagem por uma crtica esttica visando mais aos seus elementos intrnsecos, estruturais, isto , obra em si mesma, e no s circunstncias externas que a condicionaram . A gerao empenha neste ltimo movimento est levando cabo uma completa renovao dos estudos literrios e uma reviso crtica da literatura brasileira luz de novos critrios de carter esttico. Graas a ela, o problema da crtica atinge, neste momento, uma fase, de auto-conscincia, de domnio metodolgico e tcnico, de repdio pelo auditatismo e a improvisao, dando preferncia formao universitria. Esse movimento de renovao da crtica e da reviso esttica da literatura est vinculado s tendncias universais que caracterizam a atual fase da histria crtica, na qual se podem citar o grupo do formalismo ou estruturalismo eslavo, o grupo espanhol de Dmaso Alonso, a estilstica teuto-sua, o grupo italiano da autonomia esttica, o new creticism anglo-americano, etc. II A crtica brasileira, durante os quatro sculos de evoluo literria, enquadra-se em uma ou outra das categorias em que se divide a histria da crtica : didtica, histrica, sociolgica, psicolgica, biogrfica, filologico-gramatical, impressionista, esttica. 1) As origens da literatura, no Brasil, nas fases barroca e neoclssica anteriores ao advento do romantismo, conheciam um tipo de crtica rudimentar , praticada sobretudo nas academias e consiste, de acordo com o dogmatismo neoclssico de origem horaciana , no estabelecimento de regras ou preceitos atravs dos tratados de potica e retrica to em voga entre os sculos XVI e XVII. A literatura servia de instrumento ou veculo para a divulgao de mensagens, especialmente religiosas, e ticas . Era o que faziam os jesutas, como exemplifica a obra de Anchieta : usar a literatura a fim de conquistar o esprito rude dos selvagens para as verdades do catecismo cristo. Assim a crtica funcionava sobretudo atravs da aprendizagem retrica e na mente de quem a exercia um est sempre o cdigo clssico absorvido nos tratados de perceptstica. Essa atitude reproduz-se nos poetas e prosadores mais ou menos didticos que encheram as academias. Em suas obras de poesia descritiva, ecomistica, hagiolgica, jaculatria, comemorativa e em prosa historiogrfica ou de narrao de fatos da expanso e descobrimento, relatos de naufrgios, aventuras e faanhas de viagens , toda essa literatura produzida durante a poca colonial, sob o signo do barroquismo, e, depois, do neoclassicismo, est inspirada, quanto ao aspecto tcnico, em princpios crticos oriundos da perspectiva horaciana. De conformidade com este esprito, surgiram os primeiros crticos e historiadores literrios brasileiros que atuaram na primeira metade do sculo XIX : Janurio da Cunha Barbosa (1780-1846), Odorico Mendes (1799-1864), Joo Francisco Lisboa (18121863), Gonalves de Magalhes (1811-1822), Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), Sotero dos Reis (1800-1871), o Cnego Fernandes Pinheiro (1826-1878), sendo este ltimo realmente o iniciador da historiografia literria brasileira . a antolgica da crtica e da histria literria , em a que as obras eram antologias acompanhadas de biografias. 2) O romantismo rompeu esta tradio, como j havia feito, em parte, a literatura arcdica ao introduzir um sopro de lirismo pessoal na poesia, embora nos demais permanecesse fiel aos cnones neoclssicos. Coube, porm, ao romantismo, nos meados do sculo XIX, dirigira a crtica e as idias literrias noutro sentido. A famosa polmica sustentada em 1856 por Jos de Alencar (1829-1877) com os epgonos de um neoclassicismo retardado e que se firmava no poema pico de Gonalves de Magalhes, a Confederao dos Tamoios, o marco de uma nova era na histria da crtica brasileira, situando-se Jos de Alencar no ponto crucial dessa nova direo. A grande idia que entra em cena a da nacionalidade literria. A literatura no deveria realizarse pelos modelos absolutos das formas tradicionais. Deveria condicionar-se ao meio onde se produzia, recolhendo aos usos e costumes, as tradies populares , as peculiaridades idiomticas, os temas e os tipos que constituem a cultura do povo. Tinha que fazer-se nacional, buscando esse Instinto de Nacionalidade , mais tarde (1873) definido por Machado de Assis (1839-1908) em um famoso ensaio, que dos mais importantes documentos da teoria crtica brasileira. 3) Essa doutrina resultou em um verdadeiro manifesto da independncia literria, claro que, inicialmente, dirigido contra o predomnio luso. Recm-libertado do jugo portugus (1822) , o pas tratava de tornar conscientes os motivos dessa autonomia tambm no terreno cultural, de modo que a reao anti-lusa

22era o passo imediato necessrio no sentido dessa tomada de conscincia . Havia sido to forte e profunda a subordinao a Portugal se justifica a violncia da rebelio, abrindo nossos portos a outras influncias intelectuais , especialmente a francesa. De qualquer modo , a literatura se lana busca de um carter nacional. Voltou-se a ateno para o passado colonial na pesquisa do que poderia constituir os traos definidores desse carter . Essa pesquisa do que seria a literatura brasileira foi o corolrio do grande movimento de indagao histrica, de valorizao do passado nacional, uma das importantes atividades desencadeadas pelo romantismo, manifestada na moda dos estudos de histria, etnologia e lingstica, e corporifica particularmente na fundao do Instituto Histrico e Geogrfico (1838 ). Essa onda historicista contaminou os estudos literrios, trazendo ademais a identificao entre historiadores e crticos, o que assinala os albores da historiografia literria brasileira com Francisco A . Varnhagen (1816-1878) , exemplo tpico dessa preocupao dos historiadores com o fenmeno literrio. Desde ento, os estudos crticos de histria literria no Brasil se realizariam, segundo uma grande famlia de crticos brasileiros, como uma dependncia da histria geral, poltica e social, utilizando o mtodo histrico, e concebida a literatura como um reflexo das atividades humanas gerais, um fenmeno histrico. A historiografia e a crtica literrias, luz desse conceito, que o de um grande setor do pensamento brasileiro at nossos dias, foram vistas como parte da histria geral, impregnadas, portanto, de historicismo. Ainda so de atualidade os estudos crticos e historiogrficos que tentam explicar as obras literrias atravs do conhecimento do ambiente histrico de que emergiram e em funo do qual surgiram. Manifestaes desse ideal de nacionalizao da literatura francesa foram os movimentos indianista ( romntico ) e os que o seguiram - sertanismo , caboclismo , literatura folclrica e outras formas de brasileirismo literrio, que desaguaram na moderna literatura regionalista. Em todos predomina a preocupao por encontrar o tipo e o tema brasileiros que melhor capitalizassem ou realizassem esse nacionalismo literrio. 4) A valorizao da cor local e do pitoresco , resultado do romantismo, iria encontrar na ideologia realista a substncia doutrinria que frutificaria em expresses de alta qualidade crtica. O princpio relativista, de origem romntica, segundo o qual o homem varia de conformidade com os tempos e lugares, sua verdade residindo na diversidade exterior e interior de costumes, sentimentos, lnguas que o tornam tpico, teria a confirmao na filosofia do realismo, mormente no postulado positivista do ambientalismo e na famosa teoria determinista de Taine, que coloca a origem da literatura nos trs fatores do meio, raa e momento. As teorias de Comte e Taine, o conceito historiogrfico de Buckle, ao lado do monismo de Haeckel e do evolucionismo de Darwin e Spencer, formaram o substrato doutrinrio da poca realista e naturalista, aprofundando a imerso na massa nacional, na nsia do caracterstico, tpico, peculiar, local, que dariam um carter brasileiro literatura. A fico entrou por este caminho, e a crtica ofereceu sua fundamentao terica, criando uma corrente crtica que se pode denominar sociolgica, e cujo mtodo consiste na interpretao da gnese ( da a crtica gentica) da literatura nos fatos sociais, de acordo com o que sugeriram Taine e seus continuadores. essa corrente uma das mais importantes no Brasil pelo nmero de seus representantes, pelo valor de muitos deles e pelo prolongado tempo de permanncia na cena literria desde a gerao de 1870 em diante. Tobias Barreto (1839-1889), Silvio Romero (1851-1914), Araripe Jnior (1848-1911), Capistrano de Abreu (1853-1927), Rocha Lima(1855-1878), Clvis Bevilqua (1859-1944) , Valentim Magalhes (18501913), Oliveira Lima (1865-1928) , Artur Orlando (1858-1916) , so alguns dos mais notveis entre, talvez, dezenas de crticos literrios que se destacaram segundo os cnones do positivismo naturalista e historicista. A mesma gerao pertenceu Jos Verssimo (1857-1916), o qual no escapou ao esprito do seu tempo, posto que intentasse reagir contra as doutrinas sustentadas por seu rival Silvio Romero, em nome de um indefinido intelectualismo, em que se apoiou possivelmente por notria incapacidade filosfica e deficincias culturais. O fato que a tradio dos estudos literrios que representa a monumental obra de Silvio Romero, a Histria da literatura brasileira (1888) , baseada na interpretao sociolgica da literatura , isto , na crtica pelo esclarecimento de sua gnese ou dos fatores sociais que lhe deram nascimento, teve imensa fortuna no Brasil, e , ainda hoje grande o nmero de crticos a ela filiados. A esse grupo pertence o socilogo Gilberto Freyre (1900), que em trabalhos literrios aplica critrios extrados das cincias sociais e biolgicas : Perfil de Euclides e outros perfis (1944) , Jos de Alencar (1952) , Vida, forma e cor (1962) ; o historiador Srgio Buarque de Holanda (1902) , tambm inspirado , embora de maneira menos sistemtica e mais ecltica em pressupostos sociolgicos, historicistas e culturais ; diversos crticos de orientao marxista, entre os quais se destacam Astrogildo Pereira (1890), em Interpretaes (1944) , e Nelson Werneck Sodr (1911) , em Histrias da literatura brasileira (1938, 4 edio ., 1960 ) para os quais o valor literrio reside na eficcia com que o escritor soube interpretar os ideais de sua classe e refletir o seu ambiente histrico, social e econmico ; e o crtico Antnio Cndido (1918) , sobretudo na sua obra

23Formao da literatura Brasileira (1959) , com idntica tendncia ao enquadramento histrico - social como critrio crtico. 5) Ao lado da corrente sociolgica tem sido amplamente cultivada a interpretao psicolgica. Em vez da ligao com o fator histrico - social, trata de interpretar o fenmeno literrio mediante a anlise do autor, sua alma, carter, temperamento, e de verificar como os traos de sua psique tero infludo na gneses de sua obra. Muito mais divulgada, porm, a corrente, que a esta se vincula, da biografia crtica ou crtica biografia, qui a mais popular no Brasil, graas influncia de Sainte - Beuve, s comparvel a de Taine. No somente as peculiaridades do autor servem aqui de veculo de acesso compreenso da obra literria, mas tambm toda a sua vida atravs de um levantamento de sua biografia, nos menores detalhes, e do ambiente histrico em que viveu. Grande no Brasil a difuso da crtica biogrfico psicolgica, havendo aparecido, nos seus moldes, alguns livros de mrito que superam a pura biografia. Podem citar-se neste caso as obras de Lcia Miguel Pereira, Machado de Assis (1936) e A vida de Gonalves Dias (1943) ; de Hermes Lima , Tobias Barreto, (1943) ; de Homero Pires, Junqueira Freire (1929) ; Augusto Meyer, Machado de Assis (1938) ; de Slvio Rabelo, Farias Brito (1941), Itinerrio de Slvio Romero (1944) e Euclides da Cunha (1940) e Monteiro Lobato (1955) ; de Manuel Bandeira, Gonalves Dias (1952) ; de Pedro Calmon, A vida de Castro Alves (1956); de Lus Viana Filho, A vida de Rui Barbosa (1941) A vida de Joaquim Nabuco (1952), A vida de Rio Branco (1959); de Raimundo Magalhes Jr., Artur Azevedo e sua poca (1955), Machado de Assis desconhecido (1957). Ao redor de Machado de Assis (1958) e outros o sobre Cruz e Souza e lvares de Azevedo (1961-1962) ; de Josu Montelo, Gonalves Dias (1942) e O Presidente Machado de Assis (1961) ; de Ivan Lins, Aspectos do Padre Antnio Vieira (1958) ; de Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto (1952) ; de Waldir Ribeiro do Val, Vida e obra de Raimundo Correia (1960), de Sousa Andrade, Histria e interpretao de Os Sertes (1960); de H. Nbrega, Augusto dos Anjos e sua poca (1960); de Nilo Bruzzi , Casimiro de Abreu (1957) ; de Eli Pontes, A vida inquieta de Raul Pompia (1935) , A vida de dramtica de Euclides da Cunha (1938), A vida exuberante de Olavo Bilac (1944). A vida e a obra de Machado de Assis tm sido objeto de numerosos estudos, seja de um ponto de vista puramente erudito, seja de interpretao crtico-biogrfico ou psicolgica, seja ainda de anlise crtica ,estilstica, comparatista. Citem-se , alm dos j referidos acima: Peregrino Jnior, Doena e constituio de Machado de Assis (1938); Astrojildo Pereira, Machado de Assis (1959); Eugnio Gomes, Machado de Assis (1958); Micimo Tati , O mundo de Machado de Assis (1961) ; Agripino Grieco, Machado de Assis (1959); Wilton Cardoso, Tempo e memria de Machado de Assis (1958) ; Fonseca Pimentel, Machado de Assis e outros estudos (1962) ; de Gondim da Fonseca, Machado de Assis e o hipoptamo (1960); Matoso Cmara, Ensaios machadianos (1961) ; Otvio Brando , O niilista Machado de Assis (1958) ; Afrnio Coutinho, A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios (1959) e Machado de Assis na literatura brasileira (1960) ; Eli Pontes , A vida contraditria de Machado de Assis (1939). A vida e a obra de Jorge Amado foram objeto de estudo de Micimo Tati (1961) e de um simpsio Jorge Amado: 30 anos de literatura (1961). 6) Herdeiros do neoclassicismo retrico so crticos literrios que reduzem sua tarefa a uma simples polcia gramatical, mantendo-se no plano verbal puro, incapazes de compreender o processo atravs do qual a palavra se torna literria em uma obra de arte, isto , o processo atravs do qual a palavra adquire sentido esttico literrio. So tambm numerosos os cultores de uma crtica que se pode , embora impropriamente, chamar gramatical ou filolgica. Para eles, os escritores se classificam em bons e maus, que sabem ou no sabem escrever , na medida do uso que fazem do idioma de acordo com os padres gramaticais, e estes crticos tm sido entre ns um obstculo no somente contra o reconhecimento de uma lngua nacional, seno tambm contra o desenvolvimento dos estudos de cincia de linguagem e da estilstica, pela subordinao aos cnones de uma filologia historicista e normativa que tudo vincula s regras da lngua tradicional. O crtico Osrio Duque Estrada (1870-1972) foi o prottipo desses crticas gramaticais, atualmente um tanto desacreditados pela reao do modernismo em favor da linguagem coloquial brasileira e contra a gramatiquice. 7) O exerccio da crtica literria no Brasil tem sido, em sua maior parte, feito nos jornais, sob forma militante, condicionado produo literria, que acompanha e julga. verdade que tambm se realizou em livros e estudos em revistas, j com carter mais profundo. No foi, todavia, esta uma forma corrente, e o uso estabeleceu para ela a denominao de ensaio. Assim , praticada na imprensa diria, a crtica no podia deixar de sofrer a influncia do esprito ligeiro e superficial do jornalismo, o que lhe comunicou um carter circunstancial, aproximando-a do tipo do review dos ingleses e norte-americanos. Essa modalidade da crtica aplicada consiste em fornecer uma impresso acerca da obra do momento. Da que seja comumente como impressionismo, ainda que no consiga atingir o nvel do verdadeiro impressionismo de Anatole France, Jules Lamaitre , Walter Pater, etc. Numerosos tm sido os crticos que se empenharam nesta atividade, alguns prestigiando-a graas singularidade de suas

24qualidade pessoais, especialmente o bom gosto e a sensibilidade literria. Citem-se : Jos Verssimo (18571916) , Joo Ribeiro (1860-1934), Medeiros de Albuquerque (11867-1934), Joo do Rio(1880-1921), Agripino Grieco (1888), Humberto de Campos (1886-1934), Ronald de Carvalho (1893-1935) , Tristo da Cunha (1878-1942), Afonso A de Melo Franco(1905), Mcio Leo(1898), Eli Prates (1889), Sud Mennucci (1892-1948) , lvaro Lins(1912), Wilson Martins (1920), Temstocles Linhares (1905), Carlos D. de Morais(1902), Moiss Velinho (1901), Odilo Costa Filho(1914) , Guilhermino Csar(1908), Cndido Mota Filho(1897), Sgio Millet(1898), Oscar Mendes (1902), Lus Delgado(1906), Carlos Chiachio(1884-1947), Guilherme Figueiredo(1915), Rosrio Fusco(1910), Jos Lins do Rego(1901-1957), Prudente de Morais Neto(1904), Antnio Cndido(1918), Alcntara Silveira(1910), Roberto Alvim Correia (1898), Antonio Olinto(1919), Valdemar Cavalcanti(1912), Brito Broca (1907-1961), Olvio Montenegro(1896-1961), Haroldo Bruno, Joel Pontes (1926), etc. Na divulgao literria empenha-se Otto Maria Carpeux (1900). 8) De modo geral, pode afirmar-se que o estudo histrico e crtico da literatura no Brasil, obedeceu, na sua maior parte, a uma orientao historicista, psicolgica, prufundamente marcada pelas teorias deterministas da Segunda metade do sculo XIX. Essa orientao resulta de uma concepo da literatura que a considera um produto de foras histricas e sociais externas a ela e, como tal, um documento de uma poca, uma sociedade, uma raa ou uma grande individualidade, em vez de a encarar como um monumento esttico. Nisso teve papel preponderante a influncia de Silvio Romero, crtico e exageta do passado literrio, alm de propugnador das idias modernas que marcou profundamente os estudos literrios no Brasil a partir de 1870 sob o signo do materialismo do naturalismo e do positivismo, divulgados sob a rubrica da Escola de Recife . O cnone historiogrfico e crtico, desde ento considerado como verdadeira ortodoxia , consistia em investigar as razes sociais e biolgicas das quais nascia a literatura , critrio seguidos muito tempo por crticos e historiadores literrios. As obras de histria literria psromerianas seguiram os seus princpios : Jos Verssimo, Ronald de Carvalho, Artur Mota, Djacir Meneses, Pinto Ferreira, Antnio Soares Amora e outros. O livro de Brito Broca, A vida literria no Brasil 1900 (1960) uma crnica da vida literria da belle-poque no Brasil. Uma reao contra a doutrina de Silvio Romero estava no ar desde muito tempo. J alguns crticos inspirados na doutrina simbolista a havia iniciado. Foi o caso de Nestor Victor (1868-1932) , e sobretudo Henrique Ablio (1893-