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    costumeiro entre musicos para quem a distin~ao entre produ~ao e

    reprodu~ao. Eles percebem que trabalham na musica e nao nas

    obras, mesmo que este trabalho ocorra atraves das obras. a

    Sch~enberg tardio, em vez disso, compoe paradigmas .de uma

    mUS1capossfvel. A ideia da musica fica tanto mais transparente,

    quanto menos as obras insistem nas suas aparencias. Elas se aproxi-

    mam do fragmentario, cuja sombra acompanhou Schoenberg

    durante toda a sua vida. Nao apenas por causa de sua brevidadeb

    ' 'mas tam em por causa da sua versao abreviada, as ultimas obras

    de Schoenberg a~re.sentam-se como fragmentarias. No estilha~o

    reconhece-se a d1gmdade da grande obra. Oferendas e sacriffcios

    bfblico~ sao compensados pelos poucos minutos de narra~ao do

    S?b:evzve~te .de Varsovia, minutos nos quais Schoenberg, por ini-

    ClatiV~Apr.opna, suspende a esfera estetica pela rememora~ao de

    expenenClas que como tais estao fora do ambito da arte. a nucleo

    da expressao de Schoenberg - a angustia - identifica-se com a

    angustia da tortura e da morte de seres humanos que vivem sob 0

    domf~i~ de reg~mes totalitarios. as sons da Erwartung, 0choque

    da mUSlca de cmema sobre "0perigo amea~ador, a angustia e a

    catastr~fe" acertam em cheio tudo aquilo que foi dito h:i tempo em

    profec1as. A expressao da fraquezae da impotencia da alma indivi-

    dual e testemunho da violencia contra a humanidade naquelas pes-

    soas que, como vftimas, representam 0todo. Na musica, 0horror

    nunca foi tao verdadeiro, e, na medida em que 0horror se manifes-

    ~a,a musica encontra a sua for~a redentora na nega~ao. a cantico

    Judeu que encerra 0Sobrevivente de Varsovia e uma musica de

    protesto da humanidade contra 0mito.

    ATXJRf'/O t Th-eodAJltJ fA J . /Ylv{,.( M .. V~ tJ~.

    In: p~: ~ui ~ ..t. f-qu~dadL.

    ~ P o t M - t o : A~~, l)O,c;6/ f' ff1-1gS -

    Museu Valery Prouse:-

    Em memoria de Hermann von Grab

    A expressao "museal" possui na lfngua al~ma uma colora~a~ desa-

    gradavel. Ela designa objetos com os

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    desamparo como tambem um certo rancor diligentemente rea-

    cionario. A um bem-intencionado que the recomendou escurecer a

    satio durante a concerto, para que se obtivesse uma "atmosfera"

    adequada, Mahler respondeu com razao que uma apresenta~ao

    diante da qual nao se esquecesse a ambiente nao teria nenhum valor.

    Dificuldades desse tipo revelam alga da situa~ao fatal daquilo que e

    chamado de "tradi~ao cultural". No momenta em que esta nao cor-

    responde mais a nenhuma for~a abrangente e substancial, mas e ape-nas citada, porque afinal sempre e bom ter tradi~ao, a que ainda

    restava dessa tradi~ao dissolve-se em mero meio. 0 aparato tecnico

    industrial zomba daquilo que nele deveria ser conservado. Quem

    acredita na possibilidade de 0 original ser restitufdo pela vontade

    fica preso a um romantismo sem esperari~a; a moderniza~ao do pas-

    sado violenta e danifica 0passado. Mas renunciar radicalmente a

    possibilidade de experimentar a tradicional significaria capitular a

    barbarie por pura fidelidade a cultura. Que a mundo esta fora dos

    eixos revela-se par toda parte no fato de que, nao importa qual seja

    a solu~ao, ela e sempre falsa.

    Ninguem deveria, porem, se tranqiiilizar com 0reconhecimen-

    to geral da situa~ao negativa. Uma disputa intelectual, como a refe-

    rente ao museu, deveria ser travada com argumentos espedficos.

    Sobre isso ha dais documentos extraordinarios. Na Fran~a, as dais

    escritores autenticos da ultima gera~ao, Paul Valery e Marcel

    Proust, pronunciaram-se sabre a questao dos museus assumindo

    posi~oes diametralmente opostas, sem que esses pronunciamentos

    tenham sido, entretanto, dirigidos polemicamente um contra 0

    outro, ou mesmo que algum deles demonstrasse conhecimento da

    posi~ao contra.ria. Valery, em sua contribui~ao a uma coletanea de

    artigos dedicados a Proust, ressaltou que estava muito pouco fami-

    liarizado com as romances do autor. 0 artigo de Valery ao qual me

    refiro intitula-se "Le probleme des musees", e se encontra no volu-

    me de ensaios Pieces sur ['art. A passagem correspondente em

    Proust encontra-se no terceiro volume de A l'ombre des jeunes

    filles en fleurs.

    oplaidoyer de Valery refere-se evidentemente ao desconcertan-

    te excesso de obras de arte no Louvre. Ele declara nao gostar muito

    de museus. Haveria muitas obras admiraveis, mas poucas deHcias. A

    palavra utilizada por Valery, delices, pertence, diga-se de passagem,

    aquelas absolutamente intraduzfveis: Kostlichkeiten soaria como um

    term~ de Feuilleto~; Wonnepossui um ar pesadamente wagneriano;

    E~tzuckungen sena talvez a termo mais proximo do que se quer

    dlzer, mas nenhuma dessas palavras e capaz de expressar a leve

    ~emoria do .p~azer fe~dal que acompanha a postura da l'art pour

    I art desde Vilhers de 1 Isle-Adam, e que em alemao ressoa somente

    no de~izios comico do Rosenkavalier. 0 seigneuriale Valery ja se

    sente m~o~odado pe~o gesto autoritar~o que the toma a bengala epelo anunclO que prOlbe fumar. Vma fna confusao reinaria entre as

    esculturas, um tumulto de criaturas congeladas, onde cada uma exi-

    giria a ~a~-e~istencia da outra, uma estranha desordem organizada.

    Em melO as lmagens expostas para contempla~ao, as pessoas seriam

    to~adas, zomba Va!ery, par um horror sagrado: fala-se um pouco

    malSalto do que na 19reja, mas mais baixo do que no cotidiano. Nao

    se sabe bem a que se veio fazer no museu: instruir-se, bus car encan-

    tamentos, cumprir um dever ou satisfazer uma conven~ao? Fadiga

    e barb~rie se e~contra~ ..Nenhuma cultura do prazer e tampouco

    da razao podena ter edlflcado essa casa de incoerencias. Vma casa

    onde se sepultariam visoes mortas.

    o sentido da audi\;ao, opina Valery - que nao estava familia-

    riza~o com a music~ e podia par isso cultivar ilusoes a respeito _,

    estana em melhor sltua\;ao: ninguem poderia sugerir-Ihe ouvir dez

    o.rquestras ao mes~o tempo. Nem a espfrito conseguiria conduzir,

    slm~ltaneamente, ?lV~rSas opera~oes distintas. Apenas a olho em

    mOVlmento necessltana apreender, no mesmo instante, urn retrato e

    u~a marin~a, um~ co.zinha e uma marcha triunfal; e a que e pior:

    estll?s de pmtura l~telramente inconciliaveis entre si. Quanta mais

    homtas fossem as pmturas, tanto mais seriam elas distintas umas das

    outras: ohjetos raros, exemplares unicos. Freqiientemente se co-

    menta que um determinado quadro mata as outros que estao ao seu

    redor. Se isso e esquecido, a heran~a morre. Assim como a homem

    perde suas for~as pelo excesso de meios tecnicos, ele empobrece

    pelo excesso de suas riquezas.

    A argumenta~ao de Valery possui indiscutivelmente um tom

    conservado.r no que diz respeit~ a cultura. Ele sem duvida se preo-

    c~pava ~UltO pouco com a Crltlca da economia poHtica. Par isso e

    amda .mals surpreendente que os nervos esteticos que registram a

    falsa nqueza ahordem tao precisamente a dado da superacumulac;ao.

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    Quando Valery fala da acumulac;ao de urn capital excessivo, que por

    isso mesmo e inutilizavel, utiliza metaforicamente urn termo que

    vale literalmente para a economia. Acontec;a 0que acontecer - os

    artistas produzem, gente rica morre -, sempre sobra algo para os

    museus. Como urn cassino, eles jamais poderiam perder, e justa-

    mente isso seria sua maldic;ao. Pois os homens sentem-se desconso-

    ladamente perdidos nas galerias, sos em meio a tanta arte. Nao

    haveria outra reac;ao possivel senao aquela que Valery considera emgeral como a sombra do progresso da dominac;ao do material: uma

    crescente superficialidade. A arte torna-se assunto de educac;ao e

    informac;ao; Venus se transforma em documento. E a erudic;ao seria,

    em materia de arte, uma especie de derrota. Nietzsche argumenta de

    forma semelhante em sua Considerafao extemporanea sobre a van-

    tagem e a desvantagem da Historia. Valery, na vertigem do museu,

    chega a uma intuic;ao de carater hist6rico-filos6fico sobre a agonia

    das obras de arte: e la que "infligimos 0suplfcio a arte do passado".

    Mesmo depois, na rua, Valery nao consegue libertar-se do magni-

    fico caos do museu - uma parabola, poder-se-ia dizer, da anarquia

    da produc;ao de mercadorias na sociedade burguesa desenvolvida -

    e procura a razao de seu mal-estar. Pintura e escultura, assim Ihe diz

    o demonio do conhecimento, seriam crianc;as abandonadas. "A sua

    mae esta morta, sua mae, a arquitetura. Enquanto ela vivia, dava-

    Ihes lugar e utilidade. A liberdade de errar Ihes era negada. Elas ti-

    nham 0seu espac;o, a sua luz bem definida, seus temas, suas alianc;as.

    Enquanto ela vivia, elas sabiam 0que queriam ... Adeus, diz-me 0

    pensamento, nao ouso ir adiante." A reflexao de Valery encerra-se

    com urn gesto romantico. Enquanto ele a deixa aberta, evita a entao

    inevitavel conseqiiencia do conservadorismo cultural radical:

    renunciar a cultura para permanecer fiel a ela.

    A visao de Proust sobre 0museu esta engenhosamente inserida

    no contexto da Recherche du temps perdu. Somente ali' ela revela

    inteiramente 0seu valor. Na obra de Proust, as reflexoes - e ao uti-

    liza-Ias ele retoma as antigas tecnicas do romance pre-flaubertiano

    - nao constituem em geral apenas observa~oes sobre 0que esta

    sendo narrado, mas se ligam por associac;oes subterraneas, mergu-

    Ihando, como a propria narrativa, em urn grande continuum este-

    tico, 0do mon61ogo interior. Ele relata sua viagem ao balneario de

    Balbec, e com isso ressalta a cesura que as viagens colocam no

    decurso da vida, ao nos conduzirem "de urn nome para outro

    nome". Palcos desta cesura san antes de tudo as estac;oes de trem,

    "esses lugares especiais ... que quase nao fazem parte da cidade, mas

    contem a essencia de sua personalidade de maneira tao marcante

    quanto 0seu nome escrito na placa". Como tudo que cai sob 0

    olhar rememorativo de Proust, que suga, por assim dizer, a inten~ao

    de seus objetos, as esta~oes transformam-se em arquetipos hist6ri-

    cos e tnigicos, porque associadas a despedida. A proposito do salao

    de vidro da Gare Saint-Lazare, diz que ele "estendeu sobre a cidade

    dividida urn desses imensos ceus repletos de dramas ameac;adores,

    parecido com certos ceus de Mantegna ou Veronese, de uma moder-

    nidade quase parisiense, sob 0qual podem ocorrer somente atos

    terriveis e solenes, como a partida de urn trem ou a coloca~ao de

    umacruz".

    A transic;ao associativa em direc;ao ao museu e deixada implfcita

    no romance: 0quadro daquela esta~ao de trem pintada por Claude

    Monet, pintor que Proust admirou apaixonadamente, encontra-se

    agora na cole~ao do Jeu de Paume. Proust compara, sem muitaspalavras, a esta~ao ao museu. Ambos estao afastados do contexto

    superficial dos objetos da atividade pratica, e a isso poderiamos

    acrescentar que ambos san portadores de urn simbolismo de morte:

    a esta~ao, do antigo simbolismo da viagem; 0museu, daquele que

    se refere a obra, "l'univers nouveau et perissable", 0universo novo

    e pereeivel criado pelo artista. Assim como as reflexoes de Valery,

    tambem as de Proust se referem a mortalidade dos artefatos. 0 que

    aparenta ser eterno, diz ele numa passagem, contem em si os

    motivos de sua destrui~ao. As frases decisivas sobre 0museu estao

    inseridas na fisiognomonia da esta~ao de trem. "Mas em todos os

    setores nosso tempo tern a mania de querer nos apresentar as coisasem seu ambiente natural, e com isso suprimir 0essencial, 0ato do

    espirito que as isolou desse ambiente. 'Apresenta-se' urn quadro

    em meio a m6veis, bibelos e cortinas da mesma epoca, em uma

    decora~ao sem gra~a que, nas novas hospedagens, senhoras ainda

    ontem completamente ignorantes sobre 0 assunto se esfor~aram

    em compor, passando seus dias em arquivos e bibliotecas; mas a

    obra de arte que e vista durante 0jantar nao nos presenteia com a

    mesma alegria inebriante que somente se pode esperar no salao do

    museu, que simboliza muito melhor, em sua nudez e abstinencia

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    sobria de todos os detalhes, os espac;os interiores onde 0artista se

    recolhe para criar."A tese de Proust e comparavel a de Valery, porque ambas com-

    partilham 0pressuposto da felicidade nas obr.as.de a.rte. As~i~

    como Valery fala das delices, Proust fala da alegna mebnante, aJoze

    enivrante. Nada poderia earacterizar mais precisamente do que este

    pressuposto a distaneia nao apenas entre a gerac;aoatual e a anterior~

    mas tambem entre a relac;aoalema e a relac;ao francesa com a arte. Jana epoea em que A l'ombre des jeunes filles en [leurs foi eserita, a

    expressao Kunstgenuss [prazer artfstico] deveria soar em alemao tao

    sentimental e filistina quanto uma rima de Wilhelm Busch. Alem

    disso, esse prazer, no qual Valery e Proust ereem como se fosse a

    promessa de uma mae adorada, sempre foi algo questionav.el. Para

    quem esta proximo as obras de arte, estas representam obJetos de

    encanto tanto quanta a propria respirac;ao. Ele convive com elas

    como 0habitante de uma cidade medieval que responde ao comen-

    tario de urn visitante sabre a beleza de certos ediflcios com0"sim,

    e bonito" meio aborrecido de quem conhece eada recanto e cada

    areo. Mas somente onde reina aquela distancia solida entre as obrasde arte e 0observador, distancia que permite a prazer, pode surgir a

    pergunta sabre 0que esta vivo e marta nas obras de arte. Quem ~e

    sente em casa na obra de arte, em vez de visita-Ia, dificilmente fana

    essa pergunta. Os dois franceses, que nao apenas produzem, mas

    ainda refletem incessantemente sabre a propria produc;ao, estao

    porem completamente certos do prazer que as obras dearte p~o-

    poreionam aos que a veem de fora. Eles eoneordam de tal mane Ira,

    que ambos percebem que uma inimizade mortal entre as obras de

    arte acompanha aquela felicidade originada na competic;ao. Mas

    Proust em vez de ter horror a tal inimizade, aprova-a, como se fos-

    ,.

    se tao alemao como Charlus afeta ser. 0 processo de competlc;ao

    entre as obras e para ele urn processo de verdade; as escolas artis-

    ticas, lemos num trecho de Sodome et Gomorrhe, devoram-se

    mutuamente como microorganismos, assegurando com sua luta a

    manutenc;ao da vida. Essa concepc;ao dialetica acerca da supremacia

    do ser sobre cada ente particular faz com que Proust se oponha ao

    artiste Valery, e permite sua indulgencia perversa para com os

    museus, enquanto para 0outro interessa sobretudo a preocupac;ao

    com a permaneneia das obras.

    A n:edid~ dessa permanencia e 0aqui-e-agora. Para Valery, a

    arte esta perdlda quando se destroi a seu lugar na vida imediata sua

    ligac;ao com 0contexto, ou seja, quando ela perde sua relac;ao ~om

    urn uso possivel. 0 artesao dentro de Valery, que produz coisas e

    poemas com aquela precisao de contornos que sempre inclui 0

    olhar sabre seu entorno, tornou-se infinitamente clarividente quan-

    to ao lugar da obra de arte - tanto 0espiritual quanto 0literal -,

    como se nele 0sentimento perspectivista do pintor tivesse ascendi-

    do a uma perspectiva da realidade na qual a propria obra recebe a

    sua profundidade. 0 seu ponto de vista artistieo e0da imediati-

    dade, mas uma imediatidade levada as ultimas conseqiiencias. Ele

    obedece ao principio da l'art pour l'art ate 0limiar de sua negac;ao.

    Interessa-se pela obra de arte pura como objeto de uma contempla-

    c;~oque nada pode perturbar, mas a observa por tanto tempo e tao

    flrmeme~te que acaba percebendo que a obra de arte, justamente

    como obJeto da contemplac;ao pura, esta prestes a morrer, degene-

    r~d~ em produto deeorativo e privada daquela dignidade que cons-

    tltUlpara a obra e para a proprio Valery a raison d'etre. A obra pura

    e ameac;ada pela reificac;ao e pela indiferenc;a. 0 museu se impoeatraves dessa experiencia. Ele descobre que as obras puras que resis-

    tern seriamente a observac;ao sao apenas as obras nao-puras, que nao

    se esgotam naquela observac;ao, mas apontam para urn eontexto

    social. E ja que Valery, com sua integridade de grande racionalista

    sabe que essa situac;ao da arte esta irremediavelmente perdida, na~

    resta outra saida para 0anti-racionalista e bergsoniano nele presente

    senao 0luto pelas obras petrificadas.

    o romancista Proust comec;a quase no ponto onde 0Hrico

    Valery silencia: na vida postuma das obras. Pais a relac;ao primaria

    de Proust com a arte e a oposto da atitude do expert e do produtor.

    Ele e antes de tudo 0consumidor deslumbrado, a amateur quetende aquele respeito exagerado visto com suspeic;ao pelos artistas,

    urn respeito que e proprio daqueles que estao separados das obras

    ~e arte por.um .abismo. Poder-se-ia quase dizer que a sua genia-

    hdade eonslste Justamente em ter assumido com tanta tranqiiili-

    d~de esta at~tude do consumidor - e tambem daquele que se coloca

    dlante da VIda como espectador -, que the foi possivel reverte-la

    e~ urn .novo tipo de produtividade, elevando a forc;ada contempla-

    c;aodo mterno e do externo a rememorac;ao, a memoria involuntaria.

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    De antemao, 0amador combina incomparavelmente melhor com 0

    museu do que 0 especialista. Este, Valery, sente-se participante do

    atelier, aquele, Proust, lana pela exposic;ao. A sua relac;ao com a

    arte possui algo de extraterritorialidade, e muitos de seus juizos

    equivocados, por exemplo em questoes musicais, mostram do ini-

    cio ao fim os trac;os de diletantismo - 0que tern aver 0Kitsch

    conciliador de seu amigo Reynaldo Hahn com 0 romance de

    Proust, que em cada uma de suas frases descarta, com enorme deli-cadeza, uma opiniao estabelecida? Mas ele transformou magnifica-

    mente essa fraqueza em urn instrumento de forc;a, como somente

    Kafka havia feito ate entao. Se 0seu juizo entusiastico sobre deter-

    minadas obras de arte, principalmente as do Renascimento italiano,

    soa muito mais ingenue que os de Valery, sua atitude para com a

    arte como urn todo era menos ingenua. Parece uma provocac;ao

    falar de ingenuidade justamente em relac;ao a Valery, no qual 0pro-

    cesso artistico de produc;ao e a reflexao sobre este processo esta-

    yam indissoluvelmente entrelac;ados. Mas ele era de fato ingenuo,

    na medida em que nao levantava nenhuma duvida sobre a categoria

    da obra de arte enquanto taL Ele a tomou, para usar uma expressao

    inglesa, for granted, e a dinamica de seu pensamento e sua energia

    historico-filos6fica cresceram exatamente em razao do apego aquela

    categoria. Ela se torna criterio para 0modo como se modificam a

    composic;ao interna e a experiencia das ohras de arte. Proust, entre-

    tanto, esta inteiramente livre do fetichismo inevitavel do artista que

    produz, ele proprio, as coisas. Para ele as obras de arte sao, desde

    o inicio, alem de algo especificamente estetico, algo de diferente,

    urn pedac;o da vida daquele que as observa e urn elemento de sua

    propria consciencia. Com isso ele conserva nelas uma camada hem

    diferente daquela regida pda lei formal das obras. Mas essa camada,

    entretanto, nao e outra senao a que nas ohras de arte apenas e lihe-

    rada com 0 seu desdohramento historico, ou seja, aquela que ja

    pressupoe a morte da intenc;ao viva da ohra de arte. A ingenuidade

    de Proust e uma ingenuidade a segunda potencia; a cada grau de

    consciencia se reproduz ampliadamente uma nova imediatidade. Se

    a fe conservadora de Valery em uma cultura pensada enquanto puro

    "ser em si" faz uma critica cortante a cultura, uma cultura que

    destroi este "ser em si" em razao de sua propria tendencia historic a,

    a sensibilidade extraordinaria de Proust para as modificac;oes dos

    modos de experiencia, sua forma particular de reac;ao perce he com

    sua capacidade paradoxal, 0historico como paisage~. Ele ad~ra os

    museus como uma verdadeira criac;ao divina, que no entanto

    se~ndo a metafisica de Proust, nao esta pronta, mas que sempre s~

    reahza novamente grac;as a cada momento concreto de experiencia e

    a cada intuic;ao artistica original. Em seu olhar maravilhado Proust

    salvou para si urn pedac;o de infancia; Valery, ao contrario: fala da

    a~~ como urn adulto. Se este sabe algo acerca do poder que a his-

    tona tern sobre a produc;ao e a percepc;ao das ohras, Proust sabe que

    a historia, no interior das obras de arte, ocorre quase sempre como

    urn processo de decomposic;ao. "Ce qu'on appelle la posterite, c'est

    la posterite de l'~euvre", frase que poderiamos traduzir assim: 0que

    se chama postendade [Nachwelt], e a vida postuma [Nachleben] das

    obras. Proust descobre na capacidade de decomposiC;ao dos arte-

    fatos. sua sem:l~anc;a com a beleza natural, e entende a fisiogno-

    moma do dechmo como a descric;ao da segunda vida dessas coisas.

    Ja que para e1e nada tern consistencia a nao ser 0que foi transmitido

    pela ~emoria, 0amor de Proust se apega mais a esta segunda vida,

    que Ja passou, do que a primeira. Para 0esteticismo proustiano a

    pergunta pe1a qualidade esteticae secundaria. Em uma passagem

    famosa, e1e exaltou a musica menor em func;ao da memoria de

    vida do ouvinte, que retem antigas canc;oes populares de modo

    rnuito mais fiel e intenso do que urn movimento de urna obra de

    Beethoven, uma musica que, por assim dizer, existe por si mesma.

    o olhar saturnino da memoria trespassa 0veu da cultura: os niveis

    culturais e as distinc;oes, nao mais isolados como dominios do

    espfrito ohjetivo, mas incluidos no fluir da subjetividade, perdem

    aquela pretensao patetica que as heresias de Valery ainda lhes con-

    cedia. 0 aspecto caotico do museu, que escandaliza Valery porque

    perturba a expressao das obras, ganha em Proust a sua expressao

    propria: a expressao tragica. A morte das obras no museu, segundo

    Prou.st, desperta-as para a vida. Somente atraves da perda da ordem

    do Vlvente, na qual estavam inseridas, pode-se libertar a sua ver-

    dadeira espontaneidade: 0que a cada momento e unico 0seu nome

    aquilo que nas grandes obras da cultura e mais do que :nera cultura~

    A forma da reac;ao de Proust conserva em raffinement extravagante

    a ma~ima ~e Goethe n~ diario de Otilia, segundo a qual tudo 0

    que e perfelto em seu genero remeteria para alem desse genero _

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    uma afirma~ao pouco c1assica que, entretanto, rende homenagens a

    arte, ao relativiza-Ia.

    Quem nao quer contentar-se com uma abordagem de historia

    intelectual nao pode deixar de fazer a pergunta: quem esta com a

    razao, 0critico ou 0defensor dos museus? Para Valery 0museu e

    urn lugar de barbarie. Essa atitude tern como fundamento a con-

    vic~ao do carater sagrado da cultura, que ele compartilha com

    Mallarme. Diante de todas as obje~6es provocadas por essa

    religiao do spleen, sobretudo a da precipitada obje~ao social, deve-

    se insistir no momenta de sua verdade. Somente 0que existe por si

    mesmo, sem dar aten~ao aos homens aos quais deveria agradar,

    cumpre a sua voca~ao humana. Pouca coisa tern contribuido tanto

    para a desumaniza~ao quanto a cren~a geral, formada no pre-

    dominio da razao manipuladora, de que forma~6es espirituais so

    se justificam na medida em que existem para servir a outras coisas.

    Valery expos com autoridade incompanivel 0carater objetivo

    dessas forma~6es, a consistencia imanente da obra de arte e a con-

    tingencia do sujeito diante dela, pois ele mesmo chegou a compre-

    ender isso atraves de uma experiencia subjetiva, a coa~ao presente

    no trabalho do artista. Nisso ele era sem duvida superior a Proust:

    incorruptivel, Valery possuia uma maior resistencia, enquanto 0

    primado proustiano da experiencia, que nao tolera nada rigido,

    tern em comum com Bergson urn aspecto sombrio, 0do confor-

    mismo e da facil adapta~ao a situa~ao em constante mudan~a. Em

    Proust ha passagens sobre arte que se assemelham ao desenfreado

    subjetivismo daquela visao vulgar que faz das obras de arte uma

    bateria de testes projetivos, enquanto Valery, oportunamente e qua-

    se sempre com certa ironia, lamenta que a qualidade dos poemas

    nao possa ser testada. Conforme uma afirma~ao do segundo volu-me do Temps retrouve, a obra do escritor nada mais e do que uma

    especie de instrumento otico que ele oferece ao leitor para que este

    descubra, em si, algo que sem 0livro talvez nao pudesse descobrir.

    Mesmo 0que Proust apresenta a favor dos museus e pensado a

    partir do homem, e nao a partir da coisa. Nao e por acaso que ele

    identifica aquilo que deveria diluir-se na posteridade museologica

    das obras com algo subjetivo, com 0ato repentino da produ~ao,

    atraves do qual a obra de arte se afasta da realidade. Proust encon-

    tra esse ato espe1hado nas formas que Valery considera estigmas.

    Apenas a deslealdade da subjetividade livre em rela~ao ao espirito

    objetivo habilita Proust a romper a imanencia da cultura.

    Nem Valery nem Proust tern razao nesse processo de certo

    modo latente entre os dois, e tampouco seria possive1 indicar uma

    postura intermediaria conciliadora. Mas esse conflito reve1a de

    maneira mais penetrante urn conflito inerente a propria coisa, e

    ambos tomam 0lugar de momentos dessa verdade, que reside no

    desdobramento da contradi~ao. A fetichiza~ao do objeto e a pre-sun~ao do sujeito corrigem-se mutuamente. As posi~6es se inter-

    penetram uma na outra. Valery, em uma incessante auto-reflexao,

    torna-se consciente do ser em si das obras, enquanto, por outro

    lado, 0subjetivismo de Proust espera 0ideal, a salva~ao do vivo

    pela arte. Ele defende, contra a cultura e atraves dela,0ponto de

    vista da negatividade, da critica, do ato espontaneo que nao se con-

    tenta com 0existente. Com isso faz justi~a as obras de arte, que

    somente 0saD na medida em que incorporam tal espontaneidade.

    Proust conserva, em razao da felicidade objetiva, a cultura; enquan-

    to a lealdade de Valery para com a pretensao objetiva das obras

    precisa dar a cultura por perdida. E como os dois representam

    momentos contraditorios da verdade, ambos, os mais sabios a

    escrever algo sobre arte nos ultimos tempos, possuem tambem os

    seus limites, sem os quais nao teria sido possive1 sua propria

    sabedoria. Valery nao deixa duvida de que concorda com seu mestre

    Mallarme a respeito do fato de que - como foi formulado no

    ensaio "Triomphe de Manet" - a existencia e as coisas estao ai uni-

    camente para serem consumidas pela arte, 0mundo existe so para

    produzir urn belo livro, urn poema absoluto seria seu coroamento.

    Ele tambem notava c1aramente 0ponto de fuga aspirado pela poesie

    pure. "Nada leva com tanta certeza a completa barbarie quanto aliga~ao exclusiva com 0espirito puro", assim se inicia urn de seus

    ensaios. E a sua propria ideia de elevar a arte a idolatria acabou de

    fato contribuindo para 0processo de reifica~ao e desgaste da arte,

    pelo qual Valery culpa 0museu: somente ai, onde as imagens estao

    oferecidas a contempla~ao como fins em si mesmos, estas se tornam

    tao absolutas quanto Valery sonhava, e ele se espanta mortalmente

    diante da efetiva~ao de seu proprio sonho. Proust, ao contrario, sabe

    qual eo remedio para esta situac;ao. Na medida em que as obras de

    arte, enquanto elementos do fluxo subjetivo de consciencia do seu

  • 7/29/2019 ADORNO_Museu Valry Proust

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    observador, estao de certo modo sendo levadas para casa, renunciam

    a prerrogativa do cuho, e desta forma liberam-se do tra\r0 usur-

    patorio que Ihes e atribuido na estetica heroica do impressionismo.

    Em compensa\rao, Proust superestima, como so os amadores sabem

    fazer, 0 ato da liberdade na arte. Freqiientemente entende as obras

    de arte quase a maneira de um psiquiatra, pensando-as como reflexo

    da vida espiritual daquele que teve a sorte ou a infelicidade de pro-

    duzi-las ou de frui-las, e isso 0 impede de perceber que a obra dearte, scja para 0 seu autor, seja para 0 publico, ja no instante de sua

    concep\rao se impoe como algo objetivo, algo de exigente, com log-

    ica e coerencia proprias. Assim como as vidas dos artistas, tambem

    as suas obras somente parecem "livres" se consideradas a partir de

    um ponto de vista externo. Elas nao saDnem reflexos da alma nem

    incorpora\roes de ideias platonicas ou do puro ser, mas "campos de

    for\ra" entre sujeito e objeto. 0"objetivamente necessario", a favor

    do qual Valery se manifesta, efetiva-se apenas pelo ato da espon-

    taneidade subjetiva, na qual Proust coloca to do sentido e felicidade.

    o combate aos museus possui algo de quixotesco, e nao apenas

    porque 0 protesto da cultura contra a barbarie passa sem ser ouvi-

    do: os protestos sem esperan\ra SaDnecessarios. Mas Valery e ainda

    um pouco inocente ao suspeitar que apenas os museus saDrespon-

    saveis pelo que ocorre com os quadros. Mesmo se estivessem pen-

    durados em seus antigos lugares, nos castelos da nobreza, sobre os

    quais encontramos mais preocupa\rao em Proust do que em Valery,

    ainda assim seriam pe\ras de museu fora dos museus. 0que con-

    some a vida da obra de arte e, ao mesmo tempo, a sua propria vida.

    Se a alegoria coquete de Valery compara a pintura e a escultura a

    crian\ras que perderam a sua mae, entao caberia lembrar que nos

    mitos os herois, nos quais 0 humano se libera do destino, SaDtodos

    homens que perderam a mae. Somente a caminho da propria morte,

    e separadas do solo provedor, as obras se tornam plena promesse du

    bonheur. Proust percebeu isso claramente. 0processo que hoje

    delega ao museu a responsabilidade sobre toda e qualquer obra de

    arte, mesmo a mais recente escultura de Picasso, e irreversivel. Esse

    processo nao apenas e reprovavel, como deixa preyer um estado no

    qual a arte, ao consumar a sua propria aliena\rao em rela\rao aos

    objetivos humanos, "retorna de novo a vida", conforme um verso

    de Novalis. Percebe-se algo deste fenomeno no romance de Proust,

    ~n~e fisionom~as de quadros e de pessoas se juntam quase sem

    hmltes, em melO a recorda\roes de vivencias e passagens musicais.

    Num~ ~as partes mais explicitas do todo, na primeira pagina de

    Du cote de chez Swann, 0 narrador, na descri\rao do adormecer

    diz: "Parece~-~e que era de mim que a obra falava: uma igreja, u~

    quarteto, a nvahdade entre Francisco Ie Carlos V". E isto a recon-

    cilia\rao do que foi separado, a qual se dirige 0 lamento irreconci-

    liavel de Valery.0caos dos bens culturais se dilui na felicidade da

    crian\ra, cujo corpo se sente unido com 0 nimbo da distancia.

    Nao e possivel fechar os museus, e isso nem seria desejavel. Os

    gabinetes naturais do espirito transformaram as obras de arte em

    hier~glifos da his~oria, d~ndo-lhes um novo conteudo [Gehalt] a

    medlda que 0 sent~do antigo se encolhia. Contra isso nao e possivel

    of~recer um concelto de ~rte pura emprestado do passado, que seria

    ate mesmo pouco apropnado para esta epoca. Ninguem soube disso

    melhor q~e Valery, que exat~mente por este motivo interrompeu

    sua reflexao. E verda de, porem, que os museus exigem expressa-

    mente algo que ja e propriamente exigido por cada obra de arte:

    al~m esfor\ro por parte do observador. Pois tambem 0flaneur, em

    cUJ,asom~ra Proust se movia, desapareceu ha muito tempo, e nin-

    guem maiS po~e vagar pelos museus para encontrar aqui e ali algum

    encanto. A umca rela\rao concebivel com a arte, em nossa realidade

    catastrOfica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma

    s.eriedade mortal que tern caracterizado 0 mundo de hoje. So esta

    hvre do mal tao bem diagnosticado por Valery aquele que junto

    ~om a ~engala eo guarda-chuva tambem entregou, na entrada, a sua

    mgenutdade; aquele que sabe exatamente 0 que quer, escolhe dois

    ou tres quadros e se detem diante deles com enorme concentra\rao,

    co~o se fossem realmente idolos. Alguns museus facilitam este pro-Ce~lIl;e?to. Juntamente com 0 ar e a luz, tambem adquiriram aquele

    pnnciplo de sele\rao que Valery declarou ser 0 de sua escola e que

    ele nao encontrava nos museus. No Jeu de Paume, onde ag;ra esta

    exposto 0quadro Gare St.-Lazare, convivem em paz 0 Elstir de

    Proust e 0 Degas de Valery, ainda que discretamente separados.