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REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA NÚMERO 8/OUTUBRO 2017 ISSN 1984-4735
AÇAO E EDUCAÇÃO EM PIAGET E VIGOTSKI: IMPLICAÇÕES NA PRÁTICA PEDAGÓGICA
Maria das Graças de Almeida Baptista1
Tânia Rodrigues Palhano2 RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir a relação ação-educação, em Piaget (1896-1980) e Vigotski (1896-1934), e suas implicações na prática pedagógica, na atualidade, enquanto perspectivas teórico-metodológicas divergentes. O desenvolvimento de um trabalho dessa natureza esbarra em, pelo menos, duas tendências que têm dominado os debates educacionais nos últimos anos: a primeira acerca da diferença entre Vigotski e Piaget; e a segunda acerca da aproximação do pensamento desses autores sob o título de sócio-interacionistas. Nesse sentido, o estudo busca fugir de meras diferenciações ou aproximações, ao analisar a relação ação-educação a partir dos aportes históricos e epistemológicos que orientam tais concepções. Em um movimento dialético, o estudo inicia com a apresentação dos contextos histórico e familiar em que os autores viveram e morreram, e que dá sentido aos aportes teóricos desses autores. No segundo momento, o conceito de ação e sua relação com a educação são abordados tanto na perspectiva da psicologia genética de Piaget, como na perspectiva da psicologia histórico-cultural de Vigotski. Por fim, o artigo aponta que os estudos desses autores, apesar de situados no contexto da psicologia e da educação ativa do final do século XIX e início do século XX, implicam em duas vertentes pedagógicas e metodológicas distintas: a idealista e a materialista. Palavras-chave: Ação-educação;Teorias educacionais; Práticas pedagógicas.
ACTION AND EDUCATION IN PIAGET AND VIGOTSKI: IMPLICATIONS IN THE EDUCATIONAL PRACTICE
ABSTRACT
This article aims to discuss the relation action-education in Piaget and Vigotski, nowadays, as theoretical-methodological divergent perspectives. The development of a work of this nature bumps into, at least, two trends that have dominated the education debates in recent years: the first one touches upon the difference between Vigotski and Piaget; and the second one relates to the approach of these authors' thinking under the heading of socio-interactionists. In this sense, the study seeks to avoid mere differentiations or approximations, when analyzing the relationship between education and action from the historical and epistemological contributions that guide such conceptions. In a dialectical movement, the study begins with the presentation of historical and family contexts in which the authors lived and died, and and that gives meaning to these authors’ theoretical approach. In the second point, the concept of action and its relation to education are addressed both in the context of genetic psychology of Piaget, as in the perspective of historical-cultural psychology of Vigotski. Finally, the article points out that these authors’ studies although situated in the context of psychology and active education, from the late 19th century and early 20th century, imply two pedagogical and methodological distinct strands: the idealistm and the materialism. Keywords: Action-education; Educational theories;Pedagogical practices.
1 Professora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – Brasil. E-mail:
[email protected] 2 Professora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – Brasil. E-mail:
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Introdução
O presente artigo tem por objetivo discutir a relação ação-educação, em Piaget
e Vigotski3, e suas implicações na prática pedagógica, na atualidade, enquanto
perspectivas teórico-metodológicas divergentes. O desenvolvimento de um trabalho
dessa natureza esbarra, pelo menos, em duas tendências que têm dominado os
debates educacionais nas últimas décadas.
Há uma tendência, baseada nas críticas de Vigotski a Piaget, que surge, nos
anos 90, no Brasil e também na Europa e nos Estados Unidos da América acerca da
diferença entre Vigotski e Piaget e, mais especificamente, como esses autores
trabalham a relação desenvolvimento psicológico e escolarização. Manacorda (2006,
p. 324) aponta que esse debate levou a “esquematizações” que colocaram, de um
lado, os que se baseavam em Vigotski e reivindicavam uma educação que
estimulasse o desenvolvimento, uma adaptação da criança à escola, e de outro, os
que se baseavam em Piaget para reivindicar uma educação que se adequasse ao
desenvolvimento, uma escola adaptada à criança.
Também tem havido no Brasil uma tendência de aproximar o pensamento de
Vigotski ao de Piaget sob o título de sócio-interacionistas4, negando as diferenças
nos aportes históricos e epistemológicos que orientam tais concepções. Enquanto
para Piaget (1978c, p. 30-32) há um paralelismo entre a filogênese e a ontogênese,
Vigotski (2000b, p. 27) diferencia o lugar da filogênese e da ontogênese no
desenvolvimento orgânico e no cultural, ou seja, no desenvolvimento orgânico “a
filogênese está incluída em potencial e se repete na ontogênese”, mas no
desenvolvimento cultural há uma “inter-relação real entre filo e ontogenia”: “para o
embrião no útero da mãe desenvolver-se em filhote humano, o embrião não interage
com o biótipo adulto. No desenvolvimento cultural esta inter-relação é a força motriz
básica do desenvolvimento”.
Assim, procurando não cair no reducionismo das esquematizações apontadas
por Manacorda, ou nas últimas tendências quanto ao pensamento desses autores, a
3 Optar-se-á nesse trabalho pelo uso do nome de Vigotski constante na tradução espanhola, até pela idoneidade dessa tradução frente a outras traduções/interpretações trazidas para ou desenvolvidas no Brasil, conforme sinaliza Duarte (2000).
4 A esse respeito ver análise crítica desenvolvida por Duarte (2000, p. 159-211).
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psicologia piagetiana, psico-genética, é analisada a partir da perspectiva empirista,
idealista, que a orienta; e a psicologia vigotskiana a partir da perspectiva materialista
histórica e dialética, da determinação da estrutura econômica e da luta de classes,
ou seja, das relações sociais, e seu reflexo sobre o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores.
O presente estudo segue a metodologia dialética e tem início com a
apresentação dos contextos histórico e familiar em que Piaget e Vigotski viveram e
morreram e, por conseguinte, onde a psicologia, genética e materialista,
desenvolvida pelos autores faz sentido. Em um segundo momento, o texto aponta
como os autores trabalham o conceito de ação e sua relação com a educação, tanto
na perspectiva da psicologia genética de Piaget, como na perspectiva da psicologia
histórico-cultural de Vigotski. Vale salientar que, apresentar o pensamento de Piaget
acerca da relação ação-educação, torna-se necessário e imprescindível, uma vez
que a análise de Vigotski é atravessada, a todo instante, por suas críticas à
compreensão de Piaget acerca dessa relação enquanto adaptação.
Por fim, numa nova síntese, as reflexões de Piaget e Vigotski acerca da
relação ação-educação são situadas no contexto da psicologia e da educação, ativa,
do final do século XIX e início do século XX, assim como nas duas vertentes
pedagógicas e metodológicas distintas: a idealista e a materialista.
O contexto das psicologias de Piaget e de Vigotski5
Ambos nascem no mesmo ano de 1986. Piaget (1896-1980) nasce na Suíça,
em Neuchâtel, um dos 25 Cantões do Estado Suíço. A autonomia cultural dos
Cantões e semicantões suíços possibilita o desenvolvimento de sistemas escolares
distintos. Vigotski (1896-1934) nasce em Orsha, na Bielorrússia. Um ano depois de
seu nascimento a família muda-se para Gomel, onde residiam os russos de
ascendência judia, os Pale of Settlement. Vigotski segue seus estudos apesar da
marginalização dos judeus “condenados” a viverem em áreas pré-determinadas e
sujeitos à cota de estudo e de trabalho fora dessas áreas, a exemplo da Rússia.
Além do ambiente cultural suíço, a formação familiar na igreja protestante e a
ligação com a maçonaria, Piaget também é influenciado, entre outras ciências, pela
5 Biografia de Piaget baseada no trabalho de OrosVázquez (2005). Biografia de Vigotski baseada nos trabalhos de Elkonin (2006) e Muller (2005).
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psicologia francesa (compartilhando o interesse pelos processos sensoriais e
afirmando a ligação entre a Psicologia e a Filosofia). Estuda Biologia e Filosofia e
doutora-se em Biologia. Por sua vez, as influências no pensamento de Vigotski
remontam à educação familiar com a introdução no mundo das artes e da ciência,
além de uma ampla formação com respeito a seu pensamento, possibilitados por
seu tutor ainda na infância. Tem acesso às discussões acerca da relação
pensamento-linguagem, através do livro de Potebnya em que a linguagem é “a
intermediação entre o mundo dos fenômenos objetivos e o mundo interior do ser
humano” (MULLER, 2005). Estuda simultaneamente Direito na Universidade
Imperial de Moscou, e Filosofia e Literatura na Universidade Popular Shanyavsky e
retornando à Gomel, em 1917, ano da Revolução Russa anticzarista. Durante seus
estudos tem contato mais profundo com a filosofia marxista, através de edições
ilegais, com autores como Spinoza, assim como acesso à revista liberal O
Pensamento Russo (que publicava, entre outros, artigos sobre filosofia pragmática
americana), e à revista Problemas de Filosofia e Psicologia.
Após seu doutoramento, Piaget muda-se para a França e é convidado a
trabalhar no laboratório de Binet, começa a combinar os métodos formais da
psicologia experimental com métodos informais, entrevistas e conversação com os
pacientes, o que veio a constituir o método de suas investigações – o método clínico
piagetiano. Piaget inicia estudos experimentais sobre a mente humana e começa a
pesquisar também sobre o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Seu
conhecimento de biologia leva-o a compreender “o desenvolvimento cognitivo de
uma criança como uma evolução gradativa” (OROS VÁZQUEZ, 2006). Piaget sofre a
influência das ideias de Hegel, Freud, Blondel, Levy-Bruhl. De volta à Suíça, começa
a estudar crianças brincando, entre elas, seus três filhos. Desses estudos,
desenvolve sua análise sobre o pensamento da criança, ou seja, sobre a gênese e o
desenvolvimento das estruturas lógico-matemáticas.
Piaget acredita na experimentação científica e, influenciado pelas teses
darwinistas no tocante à relação homem-meio, compreende o processo
desenvolvimento e a aprendizagem enquanto processo de adaptação do homem ao
meio, através da assimilação e da acomodação. Para ele educação é vida e vida é
ação, tornando-se um dos representantes da escola ativa.
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As diferenças de aprendizado e a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso
escolar se restringem, assim, ao meio imediato do indivíduo, perspectiva
denominada aqui de “individualização do social” (BAPTISTA, 2012, p. 43), isto é, a
passagem de uma análise individualista, a uma análise que reduz as questões
econômicas, políticas, sociais, culturais ao meio social, ou seja, à família, à escola,
ao bairro. Dessa forma, suas reflexões acerca do desenvolvimento e da
aprendizagem não problematizam o contexto histórico em que o indivíduo se
desenvolve, uma vez que a influência da transmissão cultural no desenvolvimento
da estrutura mental do indivíduo é relegada a um segundo plano, assim como, a
influência de outras culturas no desenvolvimento do indivíduo é indicada para
estudos posteriores.
Já para Vigotski (1999, p. 396), a construção de uma nova sociedade implica
na construção de novas ideias e instituições, enfim, de uma nova psicologia. Ao
analisar o materialismo histórico e dialético em Marx, Engels e Lênin, e o
desenvolvimento da psicologia, destaca a necessidade de se fazer uma opção entre
a psicologia científico-natural e materialista, e a psicologia espiritualista e idealista.
Nesse sentido, assinala que a Psicologia não pode prescindir do contato com a
prática. Esse contato com a prática implica na compreensão de que a psicologia
“não conta com vias de desenvolvimento independentes: é, pois, preciso buscar por
trás dessas vias os processos históricos reais que as condicionam”.
Nesse sentido, apesar de Piaget (1973, p. 131; 172) ter nascido, vivido e ter
desenvolvido suas reflexões e suas atividades profissionais em dois contextos
democráticos a Suíça e a França, centra seu estudo no desenvolvimento do sujeito
epistêmico rumo à socialização, e é nessa perspectiva que a questão democrática é
encontrada em sua obra. O modelo de interação entre o organismo e o meio-
ambiente de perspectiva biológica, utilizado pelo autor, favoreceu a apropriação da
teoria piagetiana pelo modelo liberal e neoliberal de educação em vários contextos,
inclusive no Brasil (DUARTE, 2000). Piaget morre aos 84 anos de idade em plena
atividade mental. Suas ideias chegam ao Brasil com o término da Primeira Guerra
Mundial e orientaram a chamada Escola Nova.
Por sua vez, o contexto vivido e a influência do materialismo histórico e
dialético possibilitam compreender a importância que Vigotski (1998, p. 177) atribui à
educação e, mais especificamente, à formação da consciência. Em um de seus
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trabalhos escreve que, para além de toda atividade deve-se buscar compreender
“quais rodas devem fazer girar quais mecanismos?”, apontando a importância da
educação para a “tomada de consciência dos conceitos e operações do próprio
pensamento” (VIGOTSKI, 1998, p. 279), enquanto apropriação da cultura
historicamente acumulada pelo gênero humano.
Vigotski é acometido de tuberculose, durante a Guerra Civil por um Estado
Bielorrusso independente em 1919, devido ao clima, à escassez alimentar e à
insalubridade em todo território russo, o que o leva à morte aos 37 anos. Devido,
entre outros fatores, à censura de suas obras pelo governo de Stalin, os estudos de
Vigotski só se tornaram conhecidos no Ocidente em 1958 e no Brasil na década de
1980.
Ação e educação na psicologia genética de Jean Piaget
Ação para Piaget é adaptação, é ajustamento, assim, busca compreender
como essa ação transforma-se em operação mental? Como essa ação possibilita o
desenvolvimento mental do indivíduo? E, qual a relação desse desenvolvimento com
a educação? Esse processo exprime o que o autor pretende com a sua psicologia
genética: “estudando meus próprios filhos, compreendi melhor o papel da ação e,
em especial, que as ações constituem o ponto de partida das futuras operações da
inteligência” (PIAGET, 1976, p. 74).
Nesse sentido, afirma que até o final da primeira infância, tendo em vista o
egocentrismo, a operação é uma “ação interiorizada” e, portanto, requer um período
“pré-operatório” ou “pré-lógico”. Somente, a partir dos 7 ou 8 anos começam as
operações propriamente ditas que se constituem em duas etapas sucessivas: a
primeira etapa “concreta” dos 7 aos 11 anos, “mais próxima da ação”; e a segunda
“formal” ou “lógica” após os 11 ou 12 anos, em que as operações “começam a ser
transpostas do plano da manipulação concreta para o das ideias, através de
qualquer linguagem (palavras ou símbolos matemáticos)” (PIAGET, 1976, p. 74; 63).
Essa ação parte inicialmente de um interesse ou uma necessidade intelectual
que se traduz em uma pergunta ou em um problema. Portanto, uma ação
(movimento, pensamento ou sentimento) corresponde a uma necessidade que é
“sempre a manifestação de um desequilíbrio”. Quando a necessidade é satisfeita, o
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equilíbrio é restabelecido e a “ação se finda”6. A necessidade só é satisfeita quando
ocorre o equilíbrio entre o “fato novo, que desencadeou a necessidade e a nossa
organização mental” (PIAGET, 1976, p. 12). Nesse sentido, a ação do indivíduo
sobre o seu meio e a forma como esse meio responde a essa ação resulta no
amadurecimento das estruturas cognitivas e, por conseguinte, no desenvolvimento
mental.
Do ponto de vista epistemológico, portanto, as estruturas lógicas são
aprendidas e não são “formas a priori, pois a aprendizagem e a experiência são
necessárias à sua elaboração” (PIAGET, 1978b, p. 260-263), em uma contundente
crítica ao caráter passivo que o empirismo atribui ao conhecimento. Entretanto, o
autor diferencia a experiência física da experiência das estruturas lógicas. Essa
última consiste “em exercer ou diferenciar estruturas lógicas ou pré-lógicas
anteriormente adquiridas” (PIAGET, 1978c, p. 12).
Do ponto de vista funcional, há “funções invariáveis” a todas as idades (tais
como as funções do interesse, da explicação, entre outras) e “estruturas variáveis”
(PIAGET, 1976, p. 12-15), cujo aparecimento dá-se ao longo de quatro estágios ou
períodos do desenvolvimento: sensório-motor (até 1,6 ou 2 anos de idade), pré-
operacional (de 2 até 7 anos), das operações concretas (de 7 a 11/12 anos) e das
operações formais (adolescência).
Esses estágios correspondem a uma “hierarquia das condutas” da infância à
fase adulta, do nível mais elementar ao mais elevado. A cada estágio do
desenvolvimento, ocorrem diferenças no nível da conduta, tendo em vista a
necessidade de uma melhor “organização da atividade mental”. Ou seja, aparecem
“estruturas originais” que nos próximos estágios passam a constituir “subestruturas”
e algumas características “momentâneas e secundárias” que são modificadas pelo
“desenvolvimento ulterior”. Cada estágio constitui “uma forma particular de equilíbrio”
que caminha no sentido de uma equilibração “sempre mais completa”. O
desenvolvimento é “uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um
estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior” (PIAGET, 1976, p.
11-14).
6Pode-se compreender os estudos de Piaget extensivos aos de James (pragmatista) no quesito ação-verdade, visto que este último defende que verdades são instrumentos para a ação e só se confirmam pela ação, no momento em que não funcionam, deixam de ser verdadeiras (PALHANO, 2011, p. 42).
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Reafirmando a tendência biológica de sua teoria, Piaget (1976, p. 15-16) afirma
que ao longo de todo desenvolvimento mental (cognitivo) e orgânico (biológico), no
sentido de uma “melhor organização da atividade mental”, as necessidades e
interesses comuns a todas as idades tendem à incorporação e ao reajustamento.
Incorporação no sentido da “assimilação” do meio ambiente (coisas e pessoas) e
reajustamento no sentido de que nessa assimilação os objetos, a ação e o
pensamento passam por um processo de “acomodação”. Ao equilíbrio dessas
assimilações e acomodações denomina-se “adaptação”. O desenvolvimento mental,
em sua organização progressiva, aparece, como uma “adaptação sempre mais
precisa à realidade”.
No primeiro estágio do desenvolvimento, período sensório-motor, a inteligência
é totalmente prática e motora (manipulação dos objetos), e os sentimentos
encontram-se ligados à própria atividade. Com o desenvolvimento da inteligência, os
sentimentos se diferenciam em função da objetivação das coisas e das pessoas (os
objetos são concebidos como exteriores e independentes do eu), originando os
“sentimentos interindividuais” (PIAGET, 1976, p. 18; 22-23).
O surgimento da linguagem na criança, no estágio pré-operacional, e sua
influência sobre o pensamento e a conduta, tanto no aspecto afetivo, quanto no
intelectual, recebe especial atenção de Piaget (1976, p. 23-25), uma vez que torna a
criança “capaz de reconstituir suas ações passadas sob forma de narrativas, e de
antecipar suas ações futuras pela representação verbal”. O aparecimento da
linguagem conduz a “três consequencias essenciais”: uma “socialização da ação”
(possível troca entre os indivíduos); uma “interiorização da palavra” (“aparição do
pensamento propriamente dito, que tem como base a linguagem interior e o sistema
de signos”) e uma “interiorização da ação” (que, de puramente perceptiva e motora
até então, pode se reconstituir no plano intuitivo das imagens e das “experiências
mentais”).
Piaget (1976, p. 24) mantém nesses três aspectos a base para justificar a sua
teoria sobre o egocentrismo infantil. O desenvolvimento da linguagem influencia o
desenvolvimento intelectual e, consequentemente, o social7. Nesse caminho, a fala
interior torna-se social, o que irá possibilitar a sua “verdadeira” socialização e a
7 Essa análise sobre o egocentrismo é considerada, por Vigotski (2000, pp. 26-27), “a pedra angular de todo o edifício teórico de Piaget”, e é fortemente criticada e utilizada pelo próprio Vigotski na construção da psicologia marxista.
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criança, além do universo físico anterior, entra em contato com “dois mundos novos
e intimamente solidários: o mundo social e o das representações interiores”,
definidos como solidários e não relacionais. O contato com esses “dois mundos”,
segundo o autor, só ocorre após o aparecimento da linguagem.
Em relação à socialização da ação, as relações interindividuais de troca e
comunicação entre os indivíduos se limitavam, na segunda metade do primeiro ano,
à “imitação de gestos”. Entretanto, nesse estágio, a imitação de sons associados a
determinadas ações “prolonga-se como aquisição da linguagem” e, com a palavra, a
“vida interior” é posta em comum e se constrói “na medida em que pode ser
comunicada”. Portanto, apenas a partir do segundo ano de vida a criança é capaz de
se comunicar realmente com o seu meio, ou seja, a fala interiorizada torna-se fala
social. As primeiras condutas sociais, contudo, permanecem a “meio caminho da
verdadeira socialização”, uma vez que o indivíduo “permanece centralizado em si
mesmo”. Este egocentrismo, frente ao grupo social, estabelece “a primazia do
próprio ponto de vista”, e nem a “coação espiritual” exercida pelo adulto sobre a
criança, e às vezes a “material”, exclui este egocentrismo (PIAGET, 1976, p. 24-27).
Em relação à gênese do pensamento, essas modificações da ação, sob a
influência da linguagem e da socialização, conduzem a uma transformação da
inteligência de prática em “pensamento propriamente dito” e à interiorização da
palavra. Entretanto, como o ponto de partida desse pensamento é o pensamento
egocêntrico ocorre “uma assimilação deformada da realidade ao eu”, e a linguagem
intervém nesse pensamento enquanto “signo individual”. Entre essa e a segunda
forma encontra-se o pensamento espontâneo da criança, ainda egocêntrico, que se
apresenta nas falas e perguntas sobre “onde”, “o que é” e os “porquês” (PIAGET,
1976, p. 27-29).
Na segunda forma do pensamento, os “esquemas senso-motores” (perceptivos
ou de ação) são “interiorizados por representações” (ou “imitações da realidade”), “a
meio caminho entre a ‘experiência efetiva’”, socialização da ação, e a “experiência
mental”. Entretanto, essas representações somente se tornarão operatórias e se
transformarão em “sistema lógico”, no período das operações concretas (PIAGET,
1976, p. 36-37).
Assim, se no primeiro estágio a ação da criança sobre o objeto é uma ação
externa, e no segundo estágio é uma ação internalizada ou pensamento, no terceiro
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estágio, período operacional, “as ações interiorizadas ou conceptualizadas com as
quais o sujeito tinha até aqui de se contentar adquirem o lugar de operações,
enquanto transformações reversíveis que modificam certas variáveis e conservam as
outras a título de invariantes” (PIAGET, 1978a, p. 18).
Logo, o começo da escolaridade no estágio das operações concretas marca
uma modificação decisiva no desenvolvimento mental no nível da inteligência, da
vida afetiva, das relações sociais e da atividade individual, e um progresso da
conduta e da socialização. Nesse período, a criança já é capaz de “concentração
individual, quando o sujeito trabalha sozinho e colaboração efetiva quando há vida
comum”. No entanto, por serem aspectos complementares e resultarem da mesma
causa, torna-se difícil dizer se “é porque a criança se tornou capaz de uma certa
reflexão que consegue coordenar suas ações com as dos outros, ou se é o
progresso da socialização que faz com o pensamento seja reforçado por
interiorização” (PIAGET, 1976, p. 43).
O pensamento e a conduta humana, para o autor, derivam prioritariamente do
desenvolvimento interno. Com o progresso dessa conduta, no terceiro estágio,
“social e individual”, o acento recai sobre o declínio das “formas egocêntricas de
causalidade e de representação do mundo” (PIAGET, 1976, p. 28; 43-44), que
demonstram a capacidade do indivíduo de adaptação às novas exigências do meio.
Dessa forma, conclui que é somente no quarto período, adolescência, que o
indivíduo é capaz “de ideias gerais e de construções abstratas”, com a passagem
para o pensamento “formal”, que conduz à terceira consequencia do aparecimento
da linguagem ou à interiorização da ação (pensamento mais adaptado ao real ou
pensamento intuitivo). Assim, enquanto o pensamento concreto, próprio da criança
em idade escolar, é “a representação de uma ação possível”, o pensamento formal
na adolescência é “a representação de uma representação de ações possíveis”. A
grande novidade da adolescência é que o pensamento formal “torna possível a
construção dos sistemas”, como um “novo poder”, e a “livre atividade da reflexão
espontânea” (PIAGET, 1976, p. 62-64). Aqui, mais uma vez, Piaget se apoia na
“onipotência da reflexão” para explicar as transformações no pensamento do
adolescente.
A partir do exposto, pode-se afirmar que, Piaget atribui às capacidades que
estão amadurecidas ou em vias de amadurecer a causa do desenvolvimento
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intelectual do indivíduo. Enfim, o desenvolvimento é compreendido a partir da
evolução do indivíduo, iniciada a partir dos reflexos (inatos, hereditários, biológicos),
que se transformam em esquemas motores e através da ação as crianças
constroem as estruturas cognitivas, demonstrando capacidade de adaptação às
novas exigências do meio. Logo, em Piaget, a aprendizagem é uma consequencia
do desenvolvimento mediatizada pela experiência.
Por fim, vale ressaltar que Piaget (1978b, p. 212), apesar de se intitular
“psicólogo e não educador”, compreende que há uma relação entre educação e
sociedade: “os novos métodos de educação se definem pela atividade verdadeira
que postulam na criança e pelo caráter recíproco da relação que estabelecem entre
os indivíduos educados e a sociedade para a qual os destinam” (PIAGET, 1972, p.
140). Dessa forma, sua psicologia, mesmo trabalhando com estruturas invariantes,
desenvolve-se em um contexto de mobilidade e dinâmico que caracterizam a
sociedade democrática.
Ação e educação na psicologia histórico-cultural de Vigotski: contrapontos a
Piaget
Vigotski (2000), por sua vez, trabalha com a sistematicidade dos conceitos,
mas esse não é considerado um resultado da superação do egocentrismo infantil,
como em Piaget, mas sim da superação da falta de sistematicidade dos conceitos na
infância, através da generalidade, chegando, em um movimento dialético, a
sistematização que seria a simplificação do caos inicial (“imagem sincrética”).
Como aponta Leontiev (2004, p. 106), o desenvolvimento da consciência, “não
tem história independente, que ele é determinado no fim das contas pela evolução
da existência. Esta concepção marxista geral conserva naturalmente todo o seu
valor em relação ao desenvolvimento da consciência individual”. Assim, ao propor a
constituição de uma nova sociedade, não cabe tratar apenas da ação em si mesma,
como desprovida de conteúdo ideológico, mas de uma ação específica, em um
contexto histórico, em relação a um objetivo ou a um fim que se pretenda alcançar.
Enfim, de uma ação intencional e essencialmente política.
Em Vigotski, assim como em Luria e Leontiev (2004, p. 115), a atividade
humana é imprescindível para explicar o desenvolvimento da consciência e “a
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primeira condição de toda a atividade é uma necessidade”. Assim como em Piaget
(1976, p. 12) para quem, no desenvolvimento intelectual, a ação parte inicialmente,
de um interesse ou uma necessidade intelectual que se traduz em uma pergunta, ou
em um problema, que é satisfeita quando encontra um objeto.
Entretanto, diferentemente de Piaget (1976, p. 77) para quem as “operações
lógico-matemáticas derivam das próprias ações, pois são o produto de uma
abstração procedente da coordenação das ações, e não dos objetos”, em Vigotski a
atividade não pode existir sem ações que satisfaçam as necessidades, e estas se
encontram relacionadas a objetivos. Ou seja, mesmo que idealmente o sujeito
consiga definir um objeto que satisfaça uma necessidade, ele precisa definir ações
para satisfazer tal necessidade, e essas ações apresentam tanto um aspecto
intencional (a intencionalidade), quanto operacional (a forma) e, portanto, irão
depender das condições históricas concretas em que o sujeito encontra-se inserido.
Dessa forma, diferentemente de Piaget, para quem a ação do homem sobre o
meio e desse meio sobre o homem define a experiência e, consequentemente, a
educação, para Vigotski, Luria e Leontiev a realidade concreta é que delimita e
define a ação humana que, por sua vez, modifica essa realidade e, nela, a
educação. Leontiev (2004, p. 103) explica que, “num estudo histórico da
consciência, o sentido é antes de mais nada uma relação que se cria na vida, na
atividade do sujeito”.
No homem, a ação que se caracteriza inicialmente como uma adaptação
biológica ao meio, à realidade, e cujo reflexo psíquico é indispensável (assim como
em todos os organismos vivos), transforma-se, ou seja, o homem toma consciência
de sua ação, o que o diferencia de outros animais: “de um ponto de vista psicológico
concreto, este sentido consciente é criado pela relação objetiva que se reflete no
cérebro do homem, entre aquilo que o incita a agir e aquilo para o qual a sua ação
se orienta como resultado imediato” (LEONTIEV, 2004, p. 103).
O primeiro ato histórico do homem é a produção de meios para a satisfação das
necessidades básicas de existência, para a sua sobrevivência, tendo em vista os
desafios que o meio lhe impõe (MARX, 1996). Nesse processo de hominização ele
cria uma realidade humana, o que implica a transformação tanto da natureza, quanto
do próprio homem, produzindo, portanto, não apenas objetos físicos, mas também,
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produtos “como a linguagem, as relações entre os homens, o conhecimento, etc”
(DUARTE, 2000, p. 118). Enfim, o homem se objetiva.
Essa ação sobre a realidade gera abstrações de nova ordem, abstrações que
levarão a uma ação nova sobre a realidade, em um constante movimento e em um
eterno devenir. Mesmo a produção de algo já existente pode suscitar o aparecimento
de novas formas de utilização, que possibilitarão o seu desenvolvimento.
Quanto ao método de estudo do desenvolvimento em psicologia, Vigotski e
Piaget também se diferenciam, visto que diferem na compreensão sobre o próprio
desenvolvimento. Para Piaget (1976, p. 107), toda pesquisa em psicologia deve
partir do desenvolvimento uma vez que “a formação dos mecanismos mentais na
criança é o que melhor explica a natureza e o funcionamento desses mecanismos
no adulto”.
Marx, entretanto, afirma que a “anatomia do homem é a chave da anatomia do
macaco” e, ao tratar do método da economia política em Para crítica da economia
política, defende o “modo inverso” para se chegar a “uma rica totalidade de
determinações e relações diversas” (MARX, 1978b, p. 120; 116). Vigotski (1999, pp.
206; 207), assim como Marx, defende o “método inverso” e aponta que só se pode
“compreender cabalmente uma determinada etapa no processo de desenvolvimento
– ou, inclusive, o próprio processo – se conhecemos o resultado ao qual se dirige
esse desenvolvimento, a forma final que adota e a maneira como o faz”. Trata-se,
portanto, de “transferir num plano metodológico categorias e conceitos fundamentais
do superior para o inferior e não de extrapolar sem mais nem menos observações e
generalizações empíricas”.
Vigotski (2000a, pp. 21-22) critica a teoria e o método clínico adotados por
Piaget em seus estudos acerca da relação pensamento e linguagem, e situa esses
estudos na “crise essencialmente profunda que envolve a psicologia atual”, uma
crise dos “fundamentos metodológicos da ciência” que decorre da contradição entre
o material factual e os fundamentos metodológicos da própria ciência. Essa crise
teria suas raízes na própria história da psicologia, “na luta entre as tendências
materialistas e idealistas”. Ao tentar evitar essa ambiguidade, destaca Vigotski,
Piaget fecha-se, conforme suas próprias palavras, “em um círculo restrito de fatos”
(PIAGET, 1978a, p. 63).
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O autor conclui: “quem examina fatos o faz inevitavelmente à luz dessa ou
daquela teoria. Os fatos estão inseparavelmente entrelaçados com a filosofia,
sobretudo aqueles fatos do desenvolvimento do pensamento infantil que Piaget
descobre, comunica e analisa“. Em decorrência dessa crítica, busca a “pedra
angular”, o “elo central” de toda a “construção teórica” de Jean Piaget a qual
“permite resumir numa unidade todas as peculiaridades do pensamento infantil” e os
princípios que a determinam, localizando-a no “egocentrismo” do pensamento infantil
(VIGOTSKI, 2000a, p. 23-27).
O pensamento egocêntrico, do ponto de vista genético em Piaget, é um “ponto
intermediário” entre o autismo e a lógica, e suas raízes encontram-se na “a-
sociabilidade” (origem na psicanálise) e na “natureza original da atividade prática” da
criança; assim, a natureza egocêntrica do pensamento infantil relaciona-se com a
natureza egocêntrica de sua atividade, atingindo todo o desenvolvimento da criança,
mantendo-se estável e independente da experiência infantil até os oito anos
(VIGOTSKI, 2000a, pp. 32-33).
Essa relação com a experiência possibilita a Vigotski (2000a, p. 36), por um
lado, definira “diretriz metodológica” de Piaget que “tenta estudar a substância
psicológica da criança, substância essa que assimila as influências do meio social e
as deforma segundo as suas próprias leis”, devido ao egocentrismo; e, por outro,
vislumbrar a filosofia de toda a sua pesquisa, ou seja, “o problema das leis sociais e
biológicas no desenvolvimento psicológico da criança, a questão da natureza do
desenvolvimento infantil em sua totalidade”.
Ainda em relação à experiência, vale salientar que Vigotski e Piaget concordam
que a experiência é ação, é prática. Entretanto, ao tratar dos conceitos científicos,
Vigotski discorda de Piaget (1978a; 1976), uma vez que para este último a operação
mental que o adolescente efetua no estágio formal não é prática e está distante da
experiência. Portanto, o pensamento abstrato (ou conceito científico) não dá para
ser ação.
Ao trabalhar a relação entre conceitos científicos e espontâneos, Vigotski
(2000a, p. 349) afirma que, mesmo não estando vinculados diretamente à
experiência e o seu ponto forte ser a abstração, o desenvolvimento dos conceitos
científicos dá início ao processo de transformação dos conceitos espontâneos, de
cima para baixo, e a criança começa a dominar as operações em que se
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manifestava a fraqueza do conceito espontâneo. Assim, a experiência é fortalecida
da análise conceitual abstrata que, por sua vez, enriquece os conceitos científicos.
Em relação à originalidade, aponta o que considera mais uma contradição da
teoria piagetiana, ou seja, se Piaget está correto em afirmar que o pensamento da
criança é mais original do que a sua linguagem, uma vez que o papel da imitação é
menor no desenvolvimento do pensamento, do que no desenvolvimento da
linguagem, o que dizer das “formas mais elevadas de pensamento, inerentes à
formação dos conceitos científicos” que são ainda mais originais do que as “formas
de pensamento que participam da organização dos conceitos espontâneos”
(VIGOTSKI, 2000a, p. 265).
Assim, a discussão sobre a relação entre conceitos espontâneos e conceitos
científicos (ou não-espontâneos) se mostra e se insere, para Vigotski, em um estudo
muito mais amplo da relação geral entre ensino e desenvolvimento intelectual e,
especificamente, em um estudo dos aspectos dessa relação quando a criança atinge
a idade escolar. Portanto, somente a partir dessa relação é que se pode
compreender os estágios básicos e as sub-fases pelos quais passa o
desenvolvimento dos conceitos: formação da imagem sincrética ou amontoado de
objetos; pensamento por complexos; e Estágio da abstração, dos conceitos
potenciais (“pré-conceitos”) e dos verdadeiros conceitos.
Dessa forma, pode-se afirmar que Vigotski atribui importância fundamental ao
papel da realidade concreta no desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, no que se refere à relação entre o pensamento e a linguagem e, em seu
campo específico, ao estudo do processo de formação de conceitos.
Por fim, vale salientar que somente uma psicologia de perspectiva marxista
permite compreender que a formação de conceitos, como desenvolvimento das
funções psicológicas superiores, e sua relação com a educação, enquanto
apropriação da cultura historicamente sistematizada, situam-se no processo de
inserção definitiva da criança no gênero humano, enquanto ser social, uma vez que
o indivíduo age como homem, porque o que lhe é dado como produto social (bens
materiais e espirituais), assim como seu “próprio modo de existência é atividade
social”, pois o que faz de si é para a sociedade e com a consciência de si enquanto
um ser social (MARX, 1978a, p. 10).
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Perspectiva defendida por Vigotski (2000b, p. 33) ao longo de toda a sua obra:
“para nós [o homem] é a personalidade social = o conjunto de relações sociais,
encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas pela estrutura social)”. Ou
ainda: “a completa constituição psicológica dos indivíduos pode ser vista como
diretamente dependente do desenvolvimento de tecnologia, do grau de
desenvolvimento das forças de produção e da estrutura daquele grupo social ao qual
o indivíduo pertence” (VIGOTSKI, 2004).
Nesse sentido, a formação de conceitos e, mais especificamente, a formação
de conceitos científicos, em Vigotski, traduz bem esse enfoque, pois trata do
desenvolvimento de propriedades superiores do desenvolvimento intelectual que
estão em processo de maturação; desenvolvimento esse que se encontra
diretamente relacionado às relações sociais estabelecidas pelo sujeito na realidade
concreta em que vive, desde o seu nascimento.
Piaget e Vigotski: orientações possíveis à prática educacional
Como exposto, tanto Piaget, quanto Vigotski compartilham a crença na
educação como provedora de instrumentos para que o homem possa mudar o seu
ambiente e na ação como pressuposto educacional. Entretanto, a proximidade entre
eles termina aí.
A análise dos contextos histórico-culturais em que Piaget e Vigotski se
desenvolveram, assim como da linha teórico-ideológica a que aderiram, possibilita
afirmar que a intenção, o interesse e o objetivo desses autores divergem em vários
aspectos. Essa divergência começa e termina na relação entre o pensamento e o
real. A esse respeito, o idealismo do experiencialismo piagetiano e o materialismo
vigotskiano se contrapõem.
Segundo Engels (1982) a “questão fundamental de toda a filosofia,
especialmente da moderna, é a da relação de pensar e ser” e, segundo Triviños
(1987, p. 18; 23). “todos os outros assuntos dependerão desse posicionamento”.
Essa questão, para o autor, apresenta dois aspectos importantes: o da prioridade e
o da possibilidade do conhecimento. Este artigo ater-se-á à questão da prioridade.
Em relação à prioridade, pergunta-se como se relacionam “o material e o
espiritual”, mundo objetivo e pensamento, enfim “o mundo objetivo cria o
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pensamento? Ou é o pensamento que cria a matéria?” A essa pergunta caberiam,
para o marxismo, duas respostas, a primeira defendida pelo idealismo filosófico, e a
segunda pelo materialismo filosófico.
Ao analisar o método idealista hegeliano, Marx (2010, p.28) explica: “o
processo do pensamento - que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de
ideia - é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa”; e conclui,
“para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a
cabeça do ser humano e por ela interpretado”.
A partir do exposto, pode-se afirmar que o debate Piaget e Vigotski acerca da
relação ação-educação insere-se no debate mais amplo acerca do idealismo e do
materialismo, ou seja, de como o homem aprende e desenvolve. Em Piaget, as
perguntas estão circunscritas às seguintes questões: qual a origem do
conhecimento? Como se conhece? Que método melhor explica esse conhecer? Por
sua vez, em Vigotski, para além dessas questões, busca-se responder: educação
por que? Para que? A quem serve? Para formar que consciência?
Para Piaget e sua epistemologia genética, abstrata e idealista, o
desenvolvimento tem início no sujeito cujos reflexos (sucção, apreensão etc.) irão
permitir construir esquemas de ação e assimilar mentalmente o meio, possibilitando
a aprendizagem. Portanto, ao longo dos ciclos epistêmicos, o sujeito vai se
desenvolvendo, assimilando e acomodando o novo e modificando as estruturas
anteriores que, por sua vez, irá permitir uma nova ação e um novo desenvolvimento:
“todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento
menor para um estado mais completo e mais eficaz” (PIAGET, 1978c, p. 12; 14), um
caminho, um método do mais simples ao mais completo. Ou seja, para o autor, toda
pesquisa em psicologia deve partir do desenvolvimento, uma vez que “a formação
dos mecanismos mentais na criança é o que melhor explica a natureza e o
funcionamento desses mecanismos no adulto” (PIAGET, 1976, p. 107; 95). Logo, a
aprendizagem, em Piaget, é um dos fatores do desenvolvimento ou mesmo uma
consequencia deste.
Nesse sentido, o autor, mostrando o aspecto biologizante de sua psicologia,
estabelece primeiro, uma analogia entre a embriologia (embriogênese) e a
psicologia da criança (psicogênese), enquanto descrição dos estágios e estudo do
mecanismo do desenvolvimento do indivíduo; segundo, uma relação de ambas com
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a teoria da evolução, relação ontogênese-filogênese; expondo um paralelismo entre
filogênese e ontogênese (PIAGET, 1978c, p. 30-32).
Para Vigotski e sua psicologia marxista, dialética e materialista (e sem negar a
importância de um sistema neurológico, através do qual o indivíduo possa se inserir
e se situar no meio em que se desenvolve), é o mundo humano e objetivo, com seus
desafios e determinações, que fomenta necessidades de novo tipo e irá possibilitar
ou não o conhecimento e, consequentemente, o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores. O que ultrapassa, e muito, a filogênese, relacionando,
assim, “filo e ontogenia”.
Em Vigotski (2000b, p. 27), a relação ontogênese-filogênese, no
desenvolvimento orgânico, mostra-se diferente no desenvolvimento cultural, o que o
afasta da matriz teórica de Piaget. No desenvolvimento orgânico “a filogênese está
incluída em potencial e se repete na ontogênese”, mas no desenvolvimento cultural
há uma “inter-relação real entre filo e ontogenia”: “para o embrião no útero da mãe
desenvolver-se em filhote humano, o embrião não interage com o biótipo adulto. No
desenvolvimento cultural esta inter-relação é a força motriz básica do
desenvolvimento”.
A partir do exposto, pode-se afirmar que, para Piaget (1978b, p. 211-212), a
aprendizagem caminha a reboque do desenvolvimento intelectual mediatizada pela
experiência. O desenvolvimento intelectual, por sua vez, divide-se em dois aspectos:
o psico-social e o espontâneo. O desenvolvimento psico-social é “tudo o que a
criança recebe do exterior, aprende por transmissão familiar, escolar, educativa em
geral”. O desenvolvimento espontâneo ou propriamente psicológico é “o
desenvolvimento da inteligência mesma: o que a criança aprende por si mesma, o
que não lhe foi ensinado, mas o que ela deve descobrir sozinha” e que depreende
tempo. Esse último constitui, portanto, “a condição preliminar evidente e necessária
para o desenvolvimento escolar”.
Em relação à educação escolar, na escola moderna, explica Piaget (1972, p.
152-153; 174), diferentemente do que ocorre na escola tradicional em que a
atividade do aluno ocorre pela pressão do professor, deve derivar do “trabalho
espontâneo baseado na necessidade e no interesse pessoal”, o que não significa
deixar que o aluno faça o que bem entende, mas que ele queira e se esforce para
praticar tal ação. Para o autor, as tentativas de aceleração da aprendizagem, sem
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considerar os estágios do desenvolvimento intelectual, tornam-se infrutíferas,
considerando os limites impostos pelo próprio desenvolvimento mental infantil que
limita, em última instância, a elaboração das experiências vividas em seu meio.
Em Vigotski, as idéias da criança, não são idéias inatas, não nascem com elas.
As idéias são determinadas não apenas pelo desenvolvimento intelectual do
indivíduo (orgânico e mental), mas o próprio desenvolvimento intelectual é
determinado pela relação que esse indivíduo, enquanto sujeito histórico, mantém
com as instituições, com os adultos, com seu grupo, com a sua classe. Pensar o
desenvolvimento dos conceitos sem pensar o contexto em que o indivíduo está
inserido é pensar uma formação de conceitos a-histórica, sem vida. Um conceito não
é estático, mas objetivo e ideológico, ou seja, depende do contexto histórico.
Em Vigotski (2000a, p. 290-291), os conceitos se dividem em antes, conceitos
espontâneos, e após a entrada da criança na escola. O primeiro é necessariamente
não conscientizado, pois “a atenção nele contida está sempre orientada para o
objeto nele representado e não para o próprio ato de pensar. Por outro lado, os
conceitos científicos, “por sua própria natureza, pressupõem tomada de
consciência”, ou seja, quando a criança está operando com conceitos científicos
(não-espontâneos), a criança passa a estar consciente de seus próprios processos
mentais. Para o autor, essa consciência só ocorre quando a criança compreende o
como, ou seja, quando ela é capaz de explicar como fez e não apenas fazê-lo.
Os estudos psicológicos sobre a aprendizagem, segundo o autor, têm se
limitado a “estabelecer o nível de desenvolvimento intelectual da criança”, o que a
criança resolve sozinha, ou seja, o que a criança já amadureceu, no entanto, “o
estado do desenvolvimento nunca é determinado apenas pela parte madura”
(VIGOTSKI, 2000a, p. 326). Portanto, faz-se necessário compreender tanto o nível
de desenvolvimento atual, quanto o nível que trata daquelas funções que estão em
processo de maturação – a zona de desenvolvimento próximo. Para poder
realmente compreender o nível de desenvolvimento da criança, segundo o autor,
dever-se-ia analisar o que ela pensa sobre o que nunca lhe foi ensinado, sobre um
campo onde ela não tem nenhum conhecimento.
Logo, aquilo que ela consegue fazer com a ajuda de outros, ponto forte,
segundo o autor, pode ser mais indicativo do seu grau de desenvolvimento mental
do que aquilo que ela consegue fazer sozinha, ponto fraco. Dessa forma, Vigotski
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(2000a, p. 332; 334) aponta que o ensino que tem se voltado para “a fraqueza e não
a força da criança [...] não passa de um reforço dos pontos frágeis do pensamento
pré-escolar”, o que, em última instância, termina por seguir “a reboque do
desenvolvimento da criança quando lhe cabia conduzi-lo”, e que “a pedagogia deve
orientar-se não no ontem, mas no amanhã” e, portanto, o aspecto essencial do
aprendizado é criar a zona de desenvolvimento próximo, visto que “só é boa aquela
aprendizagem que passa à frente do desenvolvimento e o conduz”.
O bom ensino é, portanto, aquele que seleciona, a cada momento do processo
pedagógico, os aspectos do conteúdo que se encontram na zona de
desenvolvimento próximo, obrigando-a a superar-se. Enfim, o ensino que trabalha
com o limite máximo de desenvolvimento da criança em um determinado momento.
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