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A memória histórica do Palácio Tiradentes em disputa nas páginas do Correio da
Manhã (1960-1963)
Thiago Figueiredo Martins 1
Resumo: O presente artigo pretende analisar a representação das disputas em torno da
memória histórica do Palácio Tiradentes, veiculadas pelo jornal carioca Correio da Manhã.
Até o ano de 1960, o Palácio foi a sede da Câmara dos Deputados federais e, portanto, espaço
da cobertura especializada da grande imprensa e das discussões dos grandes temas nacionais.
Com a transferência da capital da cidade do Rio de Janeiro para Brasília, o prédio perdeu sua
função histórica, como sede do poder legislativo. Essa função, de sede do poder legislativo foi
recuperada no âmbito estadual pelo recém-criado Estado Guanabara, que se utilizou do espaço
para funcionar como sede da ALEG (Assembleia legislativa do Estado da Guanabara) até
1963 e da constituinte estadual no ano de 1961.
Palavras chave: Palácio Tiradentes. Estado da Guanabara. Correio da Manhã. Memória.
Imprensa.
Abstract: The present article intends to analyze the representation of the disputes around the
historical memory of the Tiradentes Palace, published by the newspaper Correio da Manhã.
Until the year 1960, the Palace was the seat of the Federal Chamber of Deputies and,
therefore, space of the specialized coverage of the great press and the discussions of the great
national subjects. With the transfer of the capital from the city of Rio de Janeiro to Brasilia,
the building lost its historic role as seat of the legislative power. This function of seat of the
legislative power was recovered at the state level by the recently created Guanabara State,
which used the space to operate as the seat of ALEG (Legislative Assembly of the State of
Guanabara) until 1963 and the state constituent in the year 1961.
Keywords: Tiradentes Palace. State of Guanabara. Correio da manhã. Memory. Press.
1. Introdução
O Correio da Manhã veiculou, em sua capa do dia 25 de fevereiro de 1960, a visita do
presidente norte americano Dwight D. Eisenhower no Brasil. A cerimônia de recepção
ocorreu no Palácio Tiradentes, que até aquele momento o espaço era a sede da câmara dos
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História social da UFRJ. E-mail para contato:
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deputados. Estamos analisando a representação da cerimônia em suas páginas, nesse caso
específico na capa do Correio da Manhã, a fim de demonstrar a centralidade que o Palácio
teve nessa representação no jornal.
Estamos mobilizando o conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu, a fim de
demonstrar como os rituais, os símbolos e os mitos são mobilizados por grupos que possuem
os meios de produção da representação do mundo social e dessa forma construir um discurso
hegemônico no conjunto da sociedade. Os jornalistas, no nosso caso específico, por meio da
sua atividade, são produtores de bens simbólicos que funcionam tanto para integração da
classe dominante como para dominação dos que não possuem esses recursos. A necessidade
de construir a hegemonia cria a possibilidade de posições divergentes no conjunto desses
discursos2.
A representação do Palácio é explicitada nas três fotografias publicadas pelo jornal
Correio da Manhã. As três fotografias que aparecem na capa, pela disposição, mostram as
etapas de um mesmo processo: a chegada do presidente na Câmara sendo saudado pela
população, na parte de fora do prédio; a recepção de parlamentares, no saguão do Palácio, e
por fim o presidente aparece discursando na tribuna. Fica nítida nessa composição das
imagens, que o Palácio é retratado como espaço privilegiado da política e do exercício
democrático. A relação entre representantes e representados se expressa em uma espécie de
“teatro do poder”, no qual o Palácio é parte constituinte da encenação.
2 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomas. 12. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2009.
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Imagem 1: a reportagem mostra a visita do presidente norte americano ao Brasil
Fonte: Correio da Manhã, capa 25 de fevereiro de 1960.
O Palácio Tiradentes (antiga sede do parlamento) adquiriu novos significados e usos
políticos a partir de 1960, quando a capital foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília.
Analisaremos as notícias veiculadas no jornal Correio da Manhã que mostravam os usos e a
disputa pela memória do Palácio Tiradentes. Partimos da hipótese que o Correio da Manhã
retratou o prédio como espaço estruturante da política carioca. O jornal, além de ser um
veículo de informação, era um espaço de embate político e de sociabilidade de uma elite
intelectual, que tinha forte influência na política nacional. O objetivo desse artigo é analisar a
representação que a imprensa carioca, especificamente do jornal O Correio da Manhã,
construiu da atividade política, em torno do peso simbólico do Palácio Tiradentes. E como a
cobertura dessa atividade política no prédio convergiu com a recuperação da memória
histórica, que segundo Robert Frank é a apropriação oficial e seletiva de elementos da
História, por parte de um grupo3.
Essa relação entre memória e história é fundamental para compreendemos nossa
problemática, não se trata de analisar de forma antagônica memória e história, mas de
compreender suas interações. E a memória histórica é essencial nesse processo, ela é formada
pela interação entre o trabalho historiográfico, de criação de uma história nacional e a
3 Ver FRANK, Robert. La memoria y la historie. Historia del presente, ISSN 1579-8135, Nº 3, 2004.
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construção da memória de determinados grupos com força política, para se apropriar de forma
oficial dessa história nacional. O Palácio Tiradentes é um exemplo de como a memória
histórica é formada, pois sua construção remete justamente a história nacional (oficial), e a
memória construída sobre o espaço é alimentada por essa construção historiográfica é
justamente a disputa em torno do sentido dessa memória que estamos analisando.
O historiador Fernando Catroga definiu o século XX como o século da história, e
demonstrou como o Estado nacional utilizou a História e a memória, para legitimar a sua
própria existência, através dos manuais escolares, da construção de monumentos e da criação
de novos rituais, constituindo uma história nacional e oficial pelo viés pedagógico.
A historiografia também funciona como fonte produtora e (legitimadora) de memórias e
tradições, chegando mesmo a fornecer credibilidade cientifica a novos mitos de (re)
fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e sacralização de das origens e de
momentos de grandeza, simbolizados e heróis individuas e coletivos). A modernidade
acentuou essas características4.
O processo de construção da memória não é consensual. Partindo da perspectiva que
há múltiplas memórias em disputa, os esquecimentos e recordações fazem parte desse
processo negociado e não consensual entre grupos. Podemos perceber que a memória que
emerge é a resultante dessas disputas, entre aqueles que são silenciados e os que conseguem
reivindicar no espaço público a sua memória.
A memória é instancia construtora e cimentadora de identidades, a sua expressão coletiva
também atua como instrumento e objeto de poderes mediante a seleção do que se recorda e
do que, consciente ou inconscientemente, se silencia. E quanto maior é sua circunscrição
nacional, mais se corre o risco de o esquecido ser a consequência lógica da invenção ou
fabricação de memória(as)5.
Ao analisar a construção da memória devemos sempre pensar nos atores que
mobilizam ou a usam a partir dessa relação entre o esquecido e o recordado. É necessário
pensar tanto nas motivações, como no tipo de construção que se pretendia fazer. Essas três
instâncias: quem? como? por quê? estão diretamente interligadas. O nosso objeto de estudo,
o Palácio Tiradentes, não será analisado como um mero depósito das memórias, ou como se
uma determinada memória estivesse cristalizada nele, na sua arquitetura. Partimos da
compreensão que a memória é parte de uma disputa na sociedade, que os sentidos atribuídos a
determinado local ou à sua história fazem parte de uma relação constante de poder e, portanto,
4 CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p73
5 CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p74-75
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utilizaremos a imprensa para compreender pelo viés não institucional de como as memórias
ser articulam.
Pierre Nora desenvolveu o conceito de lugares de memória, estamos mobilizando o
conceito, sem com isso aceitar todas as suas premissas para compreender como o as disputas
em torno da memória histórica e da apropriação desta em relação ao prédio se processou nesse
período. Para o autor, os lugares de memória surgem nas sociedades contemporâneas como
produto da desarticulação das memórias tradicionais. A nossa época é marcada pela formação
dos lugares, que podem ser físicos ou apenas simbólicos e surgem como resposta a esse
processo de desarticulação da memória tradicional, da institucionalização da disciplina
História e da formação do estado nação moderno.
Pensemos nessa mutilação que representou o fim dos camponeses, essa coletividade
memória por excelência cuja voga como objeto da história coincidiu com o apogeu do
crescimento industrial. Esse desmoronamento central da nossa memória, só é, no entanto, um
exemplo. É o mundo inteiro que entrou na dança pelo fenômeno bem conhecido da
mundialização, da democratização, da massificação e da mediatização6.
A relação da memória com a criação de novas identidades e com a estrutura do poder
serão pontos de partidas importantes em nosso trabalho. Partindo desse segundo Marieta
Ferreira com perda dos sentidos do passado nas sociedades contemporâneas, as
comemorações funcionam para relembrar o passado e traçar novas identidades, mas a autora
aponta que essa construção não é consensual e podem nos revelar conflitos. Partindo dessa
perspectiva analisaremos os conflitos em torno da construção da memória.
As comemorações ocupam um lugar central no universo político contemporâneo, pois
contribuem para definir as identidades e as legitimidades políticas. Todavia, elas não
constituem somente um simples meio de produzir consenso; ao contrário, elas podem revelar
tensões e conflitos7.
A imprensa foi parte fundamental desse esforço de atribuir novos significados,
reafirmar antigos e, com isso, garantir a importância da cidade do Rio de Janeiro no cenário
nacional. Ela aparece em muitos trabalhos como uma das fontes de análise, mas o enfoque na
política parlamentar ou nas ações do executivo acaba por diminuir o papel da imprensa nesses
trabalhos, fazendo dela apenas um veiculador das ideias de outros grupos políticos. Segundo
Marly Motta, o debate sobre a transferência da capital começou em 1958 nas páginas do
Correio da Manhã, quando o periódico publicou um conjunto de 32 reportagens intituladas o
6 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N°
10, p. 7-28. 1993.p7-8 7 FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral, comemorações e ética. Projeto História. Ética e História oral,
São Paulo, nº 15, p.157-164, abr. 1997. P157
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que será do Rio, com opiniões de figuras importantes como políticos e intelectuais sobre esse
processo 8.
O nosso objetivo aqui é demonstrar como mais do que simplesmente veículos de
informação, os jornais serviram para trazer o debate sobre a transferência da capital ao espaço
público. Sendo eles próprios atores interessados nesse processo de reafirmação política do
lugar do Rio de Janeiro no cenário nacional. Precisamos considerar que se tratava da imprensa
especializada na cobertura política na capital do país.
A imprensa carioca, sobretudo o Correio da Manhã, foi responsável por um esforço de
ressignificação da importância da cidade do Rio de Janeiro, com um conjunto de reportagens
sobre a cidade. Esse processo se deu em meio ao debate sobre a transferência do distrito
federal cujo posicionamento do Correio da Manhã foi negativo em relação à perda da
importância política da cidade.
A cidade do Rio de Janeiro deixava de ser a capital da República nos anos 1960, e, com isso,
as instituições que faziam parte da máquina administrativa do Governo Federal teriam o seu
destino selado. Com a Câmara não seria diferente, e esta seria transferida do Palácio
Tiradentes, no Rio de Janeiro, para o Planalto Central. O antigo prédio permaneceria, assim,
como resquício da memória de uma época, do Rio de Janeiro sede do poder central. A cidade
do Rio de Janeiro se tornaria um Estado e, com isso, manteria importância na federação. O
peso simbólico da antiga capital seria o principal trunfo da política carioca e os símbolos
dessa capitalidade foram apropriados pelas forças políticas que aqui atuavam.
A criação do Estado da Guanabara aparece como uma resposta de políticos cariocas
que desejam a autonomia da cidade na construção do campo político que estes faziam parte, e
estava muito associado ao distrito federal. Podemos pensar em um processo de
regionalização, de construção de uma identidade para Guanabara após o processo de
transferência da capital para Brasília, ou seja, uma nova capitalização que é assentada na
memória histórica do local dentro de uma importância nacional9.
Analisar a representação na imprensa das disputas em torno de um edifício com o peso
de ser um símbolo nacional, em um contexto de mudança institucional, nos permite pensar a
disputa pelo poder. O espaço é retratado pela relação do dentro e fora, no qual o lado de fora
é o local da manifestação popular, da ação dos representados frente aos seus representantes. Já
8 MOTTA, Marly Silva Da. O Rio de Janeiro: de cidade-capital a Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2001. 9 DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do
Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2000.
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o espaço de dentro é apresentado como o espaço da grande política, da ação dos
representantes e, por fim, a tribuna é o local de fala dos líderes. É possível dizer que o jornal
buscava criar entre seus leitores a ideia do espaço como local privilegiado da política
democrática e representativa.
2. A Guanabara e a construção de novas identidades.
A questão central do nosso artigo é analisar a representação das disputas em torno da
memória histórica do Palácio Tiradentes, e como isso pode ser traduzido no esforço político
para reafirmá-lo enquanto local central da política carioca. O processo de ruptura institucional
pelo qual passou a cidade do Rio de Janeiro, deixando de ser Distrito Federal, gerou como
consequência um processo de recuperação da memória histórica da cidade capital, como
elemento legitimador da criação do Estado da Guanabara10
. Dessa forma, o Palácio Tiradentes
perderia suas funções legislativas e um novo destino teria que ser dado para o edifício.
Recuperaremos um pouco da história da ocupação do prédio até 1960, para que o leitor possa
ter dimensão da importância desse processo de construção da memória histórica.
A Câmara dos deputados ocupou o espaço de 1927 até 1937, quando o local se tornou
sede do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, durante a ditadura do Estado Novo,
voltando a ter funções legislativas em 1946. O local ficou marcado por dois grandes eventos:
as constituintes nacionais de 1934 e 1945. Esses momentos marcaram de forma significativa o
espaço e tiveram uma grande cobertura de imprensa carioca11
.
No período de 1945 até 1960, o Palácio continuou como a sede do parlamento e,
portanto, continuou coimo espaço da cobertura da imprensa da atividade parlamentar que
contribuiu para reforçar um imaginário social do prédio como espaço central da política
nacional. A cidade do Rio de Janeiro como um todo expressava os valores cosmopolitas de
uma capital, essa capitalidade poderia ser expressa em locais centrais de poder como o Palácio
Tiradentes.
Uma especificidade que o Palácio Tiradentes teria em relação a outros edifícios de
importância nacional é sua localização, na Praça XV de Novembro. O local foi a primeira
praça central de poder na cidade do Rio de Janeiro e, portanto, carrega consigo o peso da
centralidade. A importância da Câmara dos deputados ter funcionado por tanto tempo ali, que
é o local tradicional dos debates mais acalorados, e da política mais próxima das bases, o que
10
Estado criado em 1960 em decorrência da emenda constitucional de autoria do deputado San Tiago Dantas,
inclusive levando o nome dele, sobre esse processo ver MOTTA, Marly Silva Da. O Rio de Janeiro: de cidade-
capital a Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 11
BELOCH, ISRAEL. Palácio Tiradentes 70 anos de História. ALERJ
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contribuiu para construir a memória do local como casa do Povo, diferente do Senado, que
sempre foi visto como uma casa revisora, e não carrega consigo o peso de ser a casa do Povo.
O Senado na época ocupava o Palácio Monroe que, diferente do Tiradentes, não teria foi
construído com a função de ser a sede do poder legislativo.
Com a transferência da capital da cidade do Rio de Janeiro para Brasília em 1960, e a
criação do Estado da Guanabara, unidade político administrativo que sucedeu o antigo
Distrito Federal, a cidade passou por um processo de perda da sua centralidade. A
transferência pode ser entendida como uma ruptura institucional e uma perda do peso político
da cidade do Rio de Janeiro frente à federação. Ao mesmo tempo, representou uma
oportunidade de criação de novas identidades e de uma nova centralidade por partes de uma
intelectualidade e de setores da política carioca, com a criação do Estado da Guanabara.
A criação do Estado da Guanabara foi essencial para evitar que a cidade perdesse seu
peso político de centro nacional, caso torna-se capital do Estado do Rio de Janeiro. A
imprensa teve seu papel ameaçado á que os jornais que antes eram da capital e, portanto,
tinham uma abrangência nacional poderiam perder esse caráter com a descapitalização. Marly
Motta em seu trabalho Rio- Cidade capital explica que existiram três propostas em relação ao
destino da cidade do Rio de Janeiro: a criação do Estado da Guanabara, a criação da área
federal, e por fim a fusão com o Estado do Rio de Janeiro, sendo esse último descartado
inclusive por pressão dos políticos fluminenses que não queriam ver a importância do seu
estado reduzida por causa da cidade do Rio. A autora explica como a memória da antiga
capital foi acionada para defender que a Guanabara tivesse uma importância específica na
federação (MOTTA, 2004).
Por fim, o primeiro governador eleito do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, estava
disposto a utilizar a sua gestão no Estado para alavancar a sua carreira, como futuro candidato
à presidência da república pela UDN (União Democrática Nacional). Associando a sua
personalidade e seu estilo político a própria cidade do Rio de Janeiro.
Lacerda buscava recuperar a tradição política e administrativa da ex capital federal. Ao
imprimir como marca de sua candidatura o repúdio ao provincianismo, visava se apresentar
como herdeiro da tradição dos políticos da capital, que sempre teriam colocado os grandes
interesses nacionais acima das pequenas demandas locais12
.
Devemos relativizar o peso desses aspectos de caráter mais utilitaristas.
Evidentemente que eles são importantes para compreensão do que foi e do que representou a
12
MOTTA, Marly. Guanabara, o estado capital. in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade
na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
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criação do novo Estado, mas o nosso principal debate encontra-se no campo simbólico. A
cidade representava do ponto de vista político, o estatuto de capital cultural. A cidade do Rio
de Janeiro, por causa do seu cosmopolitismo, da memória construída enquanto capital, do
peso simbólico que tinha para o resto do Brasil e, sobretudo, por meio dos esforços de grupos
políticos cariocas e da imprensa, não deixou de ser o centro simbólico da política nacional.
O centro da cidade, sobretudo o eixo entre as praças XV e Marechal Floriano
(Cinelândia), expressa esse espírito, com os bares, os prédios públicos, as discussões nos
cafés, enfim, um ambiente cultural que propiciava as discussões e os grandes debates políticos
nacionais. A Praça XV foi o primeiro centro de poder da cidade, e passou a recuperar sua
função, do ponto de vista simbólico, segundo Rachel Sisson “A despeito das modificações
ocorridas atingindo os antigos centros, seus elementos remanescentes ainda atuam, porém,
como geradores de configurações espaciais historicamente significantes e valiosas” 13
.
Essa capitalidade não se perdeu da noite para o dia, muito pelo contrário, foi elemento
de capital político mobilizado na construção do novo Estado. Discutir a centralidade é um
elemento importante em nosso trabalho. Não apenas a centralidade da cidade do Rio de
Janeiro em um contexto nacional, mas da própria região central da cidade na qual o Palácio
foi construído. Estamos trabalhando com duas dimensões: uma dos embates políticos
envolvendo os diversos setores das elites políticas cariocas, e uma segunda do peso simbólico
do espaço, e como isso se expressa em uma determinada representação na imprensa.
3. A criação da Guanabara e o papel do Correio da Manhã
Desde a primeira constituinte republicana o debate em torno da transferência da capital
para uma região central do país esteve presente. A cidade do Rio de Janeiro era considerada
tumultuada e a participação popular era vista como nociva pelo governo federal. Essa
transferência para o que seria a cidade de Tiradentes, projeto presente na primeira constituição
republicana 1894, mas que nunca se concretizou e o Rio continuou sendo a capital até a
década de 1950. A consequência desses debates foi a perda da autonomia política, processo
que se concretizou no governo de Campos Salles (1898-1902). Podemos dizer que o Rio de
Janeiro pagou um preço para continuar sendo a capital: o de não poder escolher seus
13
SISSON, Rachel. Espaço e poder: os três centros do rio de Janeiro e a chegada da corte portuguesa, Rio de
Janeiro. Arco, 2008.
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governantes e viver sobre intervenção federal. Os debates sobre a autonomia do distrito
federal foram muito importantes e trouxeram a discussão sobre o pacto federativo14
.
Um longo caminho foi trilhado até a conquista da autonomia, que só realmente
aconteceu quando a cidade deixou de ser distrito federal e passou a ser estado da Guanabara.
Os autonomistas sempre tiveram que lidar com o controle do governo nacional em relação aos
assuntos específicos da cidade. Se a perda do papel enquanto capital representou um duro
golpe nos políticos do Distrito Federal, podemos dizer que a reação foi à altura, com a criação
da Guanabara. Segundo Dias, em sua dissertação sobre a criação do Museu da Imagem e do
Som, qualquer possibilidade de regionalização só poderia ser possível no processo de
construção de uma nova identidade, que dialogasse diretamente com a importância do Rio de
Janeiro como capital15
.
Compreender como os políticos se colocaram de um lado ou de outro, em relação ao
direito da população carioca de escolher seus representantes, o que culminou também na
defesa da criação do Estado da Guanabara, é essencial para pensar o campo político16
carioca.
Não podemos dividi-los em cariocas e não cariocas e, com isso concluir que os políticos
formados na cidade adotaram uma postura de defesa da autonomia do distrito Federal.
Tampouco avaliar os interesses de cada político e também chegar a conclusões simplistas de
que uma postura foi tomada apenas pelo interesse particular, como se forças maiores não
influíssem sobre o campo político.
Buscaremos nas raízes politicas as razões dessas escolhas. Na realidade, ser favorável
à autonomia do distrito federal ou da sua intervenção teria muito mais a ver com a forma de se
compreender política e de fazer política do que com o posicionamento partidário ou mesmo
regional de cada parlamentar. A forma como a cidade era imaginada pelas elites políticas
nacionais conservadoras como PSD nacionalmente, colocou esse grupo político fortemente
contrário a autonomia, esses acreditavam que a capital deveria ser um espaço da
administração técnica e politicamente neutra. A constituinte de 1946 retirou autonomia do
legislativo municipal sobre os vetos do prefeito, passando essa reponsabilidade para o Senado
Federal, as forças conservadoras acreditavam que assim evitaria uma excessiva politização da
14
Para compreender melhor o debate sobre autonomia do Distrito Federal ver DANTAS, Camila e FERREIRA,
Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no processo de redemocratização pós-1945
in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 15
DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do
Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2000. 16
Sobre campo político ver BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomas. 12. Ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
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capital da república o que segundo esse grupo que estava no poder nesse momento
representaria uma ameaça a administração do governo federal17
O PCB (Partido Comunista do Brasil) nacionalmente foi o único partido em bloco que
ficou favorável a autonomia, antes de ser colocado na ilegalidade e ter seus parlamentares
cassados. Defendemos que isso tem relação direta com a defesa da forma de compreender o
papel do Rio de Janeiro e dos movimentos sociais na cidade. Importante compreender que
esse partido seguia de fato uma política centralizada nacionalmente, diferente dos outros que
eram segmentados regionalmente e ideologicamente.
O partido comunista foi o único partido que nacionalmente se posicionou a favor da
autonomia da capital, rejeitando o anteprojeto. Caires de Brito como orador do partido,
afirmou que vários pontos de caráter reacionário nos levam a rejeitar o projeto, desancando
entre eles a falta de autonomia para o distrito federal 18
.
O PSD (Partido Social Democrático) nacionalmente conseguiu além de colocar na
ilegalidade o PCB proibir os comícios na cidade. Esses aspectos correlacionados são
apontados por Dantas e Ferreira, como exemplos de como se pretendeu diminuir o peso do
PCB que era forte na capital e neutralizar o peso político da capital como um todo.
O Estado da Guanabara surgiu do processo de luta das forças políticas do Rio de
Janeiro, o momento de ruptura institucional que representou a mudança da capital seria
contrabalanceado pela proposta de transformar o antigo distrito federal em Estado, finalmente
concedendo autonomia e a possibilidade de escolha do seu governante por parte da população.
O primeiro governador eleito pelo voto direto foi Carlos Lacerda da UDN, vencendo uma
eleição apertada com um candidato do PTB, Sergio Magalhães, esse também deputado pelo
distrito federal, que esteve favorável a autonomia da cidade.
A política de Lacerda se firmou como uma tentativa de recapitalizar a cidade, ou seja,
para preservar o estatuto privilegiado que a Cidade do Rio de Janeiro possuía, o governador
começou a investir na afirmação da memória da antiga capital. Essa política se deu,
sobretudo, no campo cultural, o governador foi responsável pela criação de instituições de
caráter cultural como o: Museu da Imagem e do Som, que foi criado com a finalidade de ser
um arquivo da cultura carioca, e a Sala Cecilia Meireles. Essas instituições foram criadas, e
17
DANTAS, Camila e FERREIRA, Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no
processo de redemocratização pós-1945 in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na
história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 18
DANTAS, Camila e FERREIRA, Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no
processo de redemocratização pós-1945 in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na
história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
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suas sedes passaram ocupar prédios que tiveram no passado outra importância para cidade19
.
Mais do que simplesmente conseguir levantar a sua candidatura, ele queria fazer da cidade o
espelho da nação, transformar a Guanabara em um dínamo cultural, e com isso estabelecer
uma oposição em relação à Brasília. A sede do governo nacional não tinha o peso simbólico
do Rio de Janeiro, e por fim, a cidade do Rio representava uma forma oposta de entendimento
da política, de um espaço do embate e dos grandes temas da política nacional, enquanto
Brasília representaria a administração burocrática da nação.
A construção da memória para legitimar a importância da cidade do Rio de Janeiro na
federação se articula com dois processos. De um lado, era necessário criar uma nova
identidade e construir o regionalismo necessário para estabelecer uma nova unidade
federativa. Do outro, era preciso recuperar o peso cultural e a memória histórica construída
sobre a antiga capital. E a imprensa foi um elemento crucial na formação de uma cultura
política20
.
O Palácio Tiradentes pode ser compreendido como um símbolo da política como arena
de embates, já que as disputas pela ocupação e pelo poder simbólico nesse prédio foram mais
intensas e talvez até mesmo únicas, enquanto que em outras edificações como o Palácio das
Laranjeiras, do Catete e Pedro Ernesto foram inexistentes ou mais frágeis.
O Correio da manhã foi um dos grandes jornais da imprensa carioca, sua atuação na
cobertura da atividade parlamentar e nas eleições, seu caráter oposicionista foram marcas da
sua linha editorial, que em geral tinha uma perspectiva conservadora, mas em grande medida
podemos dizer que o periódico soube expressar opiniões contraias dentro das suas páginas.
Interessa-nos nessa pesquisa analisar não como a linha editorial do jornal determinava toda a
publicação, mas pensar como a elite intelectual e política carioca atuavam por meio desse
órgão, a fim de construir um pensamento hegemônico. O jornal veiculou em suas páginas uma
série de matérias, demonstrando a perda que seria para a República à Câmara ser transferida
do Rio de Janeiro para Brasília. Esse conjunto de matérias se articula com a linha editorial do
Jornal, que se colocou contrária à transferência da capital.
Aqui com rádio ou sem rádio tudo que se passa na câmara e no senado é fartamente
noticiado. Cada jornal tem seus representantes lá dentro, encarregados do noticiário e dos
19
DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do
Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2000. 20
Estamos utilizando o conceito de cultura política, para melhor compreender ver (BRESTEIN, Serge. A cultura
política in RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa Editora Estampa,
1998.).
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comentários de tudo que ocorre no Palácio Tiradentes e no Monroe. A nação é devidamente
informada dos procedimentos dos seus mandatários21
.
O prédio apareceria no Correio como um símbolo da boa política, a política marcada
pelo debate, pelos grandes discursos e pela relação entre o poder e o povo, pelo menos na sua
forma. O que não seria a forma como conduzia a nação o PSD, podemos perceber que essa
forma de ação política se concentrava em dois polos distintos que, de tão diferentes nos
programas, mas se aproximavam na sua ação. De um lado o PCB, que foi o único partido que
nacionalmente se colocou contrário à transferência da capital e, do outro lado, a UDN de
Lacerda, que fazia da tribuna o palco para a luta política. Ainda podemos incluir nessa
posição os radicais do PTB como Sérgio Magalhães. Importante ter clareza que diferente do
PCB que atuava em bloco fechado, os outros partidos eram segmentados, possuindo várias
alas e tendências internas.
O Correio da manhã, para além de uma preocupação com seu próprio futuro,
enquanto grande jornal de peso nacional mostrou-se um agente na elaboração de políticas para
a Guanabara e um espaço para o discurso político. Podemos citar alguns casos emblemáticos
que separamos em três momentos distintos e que mostram as disputas pela ocupação e pela
memória do Palácio Tiradentes nas páginas do Correio da Manhã.
O primeiro desses momentos o Palácio continua abrigando a Câmara dos Deputados e
surge o debate no espaço público sobre a perda que a saída da Câmara representaria para o
Rio de Janeiro e a para a própria democracia. Depois quando o espaço ganha uma nova
função, enquanto sede da constituinte do Estado e depois enquanto sede da Assembleia
Estadual do Estado da Guanabara (ALEG). Por fim, com o período marcado pela
radicalização, percebemos uma maior importância sendo dada para os comícios na parte de
fora do prédio (escadarias).
Em 10 de Fevereiro de 1960, o jornal noticiou que uma comissão de deputados foi
formada para averiguar a falta de espaço em Brasília para que a transferência fosse
concretizada22
. Essa discussão se correlaciona com uma série de matérias veiculadas no jornal
que questionam a viabilidade técnica para o funcionamento da Câmara em Brasília, sendo
pano de fundo para o problema político que representaria o abandono desse edifício. Podemos
perceber pela análise de uma série de crônicas publicadas pelo jornal, que essas tinham como
objetivo criar um discurso saudosista dos tempos do Distrito Federal, de uma época de ouro
da cidade que estaria chegando ao fim.
21
Correio da Manhã, 3 de março de 1960. 22
Correio da manhã, 10 de Fevereiro de 1960.
603
No dia 13 de março de 1960, a matéria intitulada “Conspirata Nua”, demonstra o peso
simbólico dado ao Palácio. A Câmara decidiu manter o prédio como um reduto para uma
possível e dramática volta às pressas se, por alguma razão, ela não se estabeleça em Brasília.
O personagem principal da nossa história é Sergio Magalhães, deputado do PTB
carioca e de uma ala mais radical de oposição ao governo do PSD. O jornal se coloca
claramente favorável a essa decisão, explicando que se trata de um confronto entre o
Legislativo e o Executivo, que estaria planejando um golpe na democracia, com uma
articulação para garantir um continuísmo do PSD e uma neutralização da Câmara em Brasília.
A Câmara ratificou a monção de desconfiança que sua Mesa votara contra o governo quando
decidiu manter seu prédio pronto pra a eventualidade de um retorno dramático para Brasília.
O plenário da câmara ratificou esse voto de desconfiança quando reconduziu à sua vice-
presidência contra a vontade do Executivo, o deputado da maioria, Sr. Sérgio Magalhães
autor da denúncia que motivou a decisão pela qual o prédio do Palácio Tiradentes fica como
último reduto do poder legislativo23
.
O interessante é perceber que a permanência ou não do Legislativo na cidade do Rio
de Janeiro, e consequentemente no Palácio Tiradentes, seria o elemento central desse possível
golpe arquitetado pelo Juscelino Kubichek. Na transferência das instituições para Brasília,
entre elas a Câmara, o presidente estaria tentando controlar o Legislativo, segundo o Correio.
Um comício organizado pelo PTB com a participação de João Goulart foi noticiado em 17 de
Fevereiro de 1960. Essa reportagem reforça a nossa ideia inicial da representação do espaço
da política e da encenação, da pressão das escadarias para dentro do saguão principal.
PSD-PTB, a ser oficializada amanhã. – foi especialmente convidado por uma comissão de lideres
trabalhista para ir ao Palácio Tiradentes. Nessa ocasião, fará um discurso dentro da convenção. Depois
sairá à rua com o Sr. João Goulart para comícios que os petebistas estão organizando para realizar nas
escadarias do Palácio Tiradentes24
.
Assim como no dia 25 de fevereiro, como iniciamos o artigo por conta da visita do
presidente americano, essa visita foi retratada como um momento de encenação política entre
a parte de dentro e as escadarias do Palácio. A política era vista como um teatro do poder, que
não há palco, já que esse é vazio de sentindo, nem mesmo um cenário que serve apenas de
ambientação para a ação política que se desenrola nele, o Palácio é próprio ator desse
processo. Estamos partindo da concepção de Georges Balandier, da encenação como forma de
exercício do poder, e da manipulação de símbolos em quadro cerimonial.
23
Correio da Manhã, 13 de março de 1960. 24
Correio da Manhã, 17 de março de 1960.
604
O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma
existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da iluminação exclusiva da
razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se pelo domínio brutal e nem pela
justificativa racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de
imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial25
.
O Correio da Manhã, reivindicando a memória da antiga capital, escreveu como um
dos subtítulos “Adeus Rio” na matéria intitulada “Ultima instalação do congresso na atual
capital da República”. Essa matéria da última sessão da Câmara realizada no Palácio
Tiradentes é extremamente emblemática. A reportagem é construída mostrando a perda do
caráter do espaço, mas reforça a importância do prédio por ter sido sede da Câmara e como a
cidade ainda carregaria essa importância de ter sido capital, o que deixaria ela em um patamar
diferente de outras capitais estaduais.
As matérias exaltando as qualidades do Rio de Janeiro e do Palácio Tiradentes
seguiram pelos meses de fevereiro, março e abril, até que no dia 23 do mês de abril foi
veiculada uma matéria voltada para o caráter de denúncia ao presidente. O título “Recesso
Criminoso” apresenta o que seria a consequência dos problemas apontados, da dificuldade de
se estabelecer na nova capital as casas legislativas. O Senado tomou a decisão de fazer um
recesso justamente por não encontrar condições nas instalações em Brasília e o Correio da
Manhã novamente voltou a criticar o presidente acusando-o de conspirar para diminuir o
poder do Legislativo frente ao Executivo.
Ontem, o sr. Magalhães Pinto, com sua autoridade, advertiu o país contra ameaças de
perturbação do regiam. Terá, mais do que ninguém, porque inclusive íntimo amigo do sr
Juscelino, razões para essa advertência. Se o governo insistir em obter da Câmara o ato de
omissão arrancado sem dor ao senado, resta à Câmara cumprir sem menor hesitação a
decisão que adotou no Rio, por unanimidade, quando votou a proposta do sr. Sérgio
Magalhães de retornar ao Palácio Tiradentes26
.
Ainda no ano de 1960, com o Estado da Guanabara já regulamentado, temos o debate
sobre a ocupação física do espaço pelas instituições. A discussão onde deveria ser instaurada
a Assembleia Constituinte do novo Estado ganha as páginas do Correio da manhã é um
elemento fundamental para compreensão de como o Palácio Tiradentes seria importante para
a legitimação ação do Legislativo carioca. Mais do que isso, o Palácio seria a herança
simbólica dos tempos da capital, que agora as novas instituições precisavam se apropriar para
justificar a sua própria existência. O novo Estado seria o herdeiro da grande política, que tanto
fez parte da dinâmica da população carioca.
25
BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1980. P7. 26
Correio da manhã, 23 de Abril de 1960.
605
A Câmara dos Deputados cedeu o espaço, mas nunca abriu mão completamente dele?
Mantendo departamentos no quinto andar e exigindo o prédio de volta no ano de 1963. Nesse
momento, podemos observar a radicalização no período e o prédio apareceu novamente como
centro de embates. A tentativa fracassada de Brizola, Sérgio Magalhães, e da Frente
Parlamentar Nacionalista27
de fazer um ato pró-Cuba no Palácio Tiradentes foi veiculada nas
páginas do Correio. Podemos analisar o peso simbólico que teria para o governo de Lacerda
um ato com esse caráter no Estado governado por ele.
Esse ato foi proibido pelo Governador Carlos Lacerda, que utilizou a força policial
para cercar prédios que pudessem ser utilizados para ato, lembrando que a ideia original foi
que acontecesse no próprio Palácio Tiradentes. A matéria de capa “Deputados desistem de
realizar o congresso pró Cuba na Guanabara” mostra justamente a tentativa de apropriação de
lugares, com determinado peso simbólico, e como o governo da Guanabara impediu esse
processo.
Anunciada realização do Congresso de solidariedade a Cuba na Guanabara, com a garantia
de deputados filiados à frente Parlamentar nacionalista, fez com que autoridades policiais do
estado interditasse pela manhã, os prédios da UNE, da AIB, da faculdade de direito, do
Palácio Tiradentes e do sindicato dos metalúrgicos prováveis locais escolhidos para a
reunião28
.
O momento era extremante radicalizado havia uma tensão entre as forças políticas de
esquerda e direita e em março de 1963, o PTB convoca os trabalhadores para comícios nas
escadarias do Palácio Tiradentes. O governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda da
UDN solicita uma intervenção militar cercando o Palácio para impedir as manifestações,
dessa forma impedindo a ocupação do espaço por esse grupo político. Para controlar as greves
e comícios de trabalhadores que estavam sendo convocadas, as Forças Armadas fizeram uma
intervenção no Estado da Guanabara, e o Palácio Tiradentes foi um dos locais escolhidos para
ficar sob vigilância29
.
4.Considerações finais
Com a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, e com isso a mudança
da Câmara dos Deputados, o Palácio Tiradentes ficaria sem função, e com isso apareceu uma
oportunidade, desse local ser utilizado como tantos outros para legitimar a importância da
27
Frente parlamentar ampla, posicionada a esquerda no campo político nacional, mas que era formado por
políticos de várias tendências. 28
Correio da Manhã, 29 de março de 1963. 29
Correio da Manhã, 29 de março de 1963.
606
cidade do Rio de Janeiro pós-descapitalização. O Correio da Manhã fez claramente uma
campanha da importância do Palácio Tiradentes, que fosse concedido um destino que tivesse
à altura da importância daquele edifício, que tinha sido na História recente do país a sede
máxima do poder Legislativo. A memória histórica que o prédio carregava foi mobilizada
pelas elites políticas cariocas e a imprensa foi fundamental para demonstrar, por meio de uma
série de reportagens, as disputas simbólicas pelo prédio, devido a sua importância histórica
para a cidade do Rio de Janeiro.
Ao retomar a nossa perspectiva inicial de quem constrói a memória e como o faz, e
como aspectos são silenciados e recordados nesse processo, podemos perceber que a imprensa
conseguia ir muito além de uma memória institucional, por mais que compartilhasse um
quadro de referência com a institucionalidade. As disputas e até mesmo os setores populares
foram trazidos à tona com a fonte que analisamos. A grande imprensa buscou criar uma
memória muito mais ligada à grande atuação parlamentar, mas não podemos esquecer que a
própria legitimidade da ação parlamentar se conecta com a pressão das massas nas ruas.
A disputa pela memória histórica do espaço, ou seja, o que ele representaria, é
contrastado por matérias que buscam relembrar a importância da cidade como capital federal
e do Palácio Tiradentes como sede da Câmara. Essa disputa também aconteceu entre as
próprias instituições e atores políticos. Particularmente, podemos retomar dois momentos que
a disputa pelo espaço físico foi representada pela imprensa e, com isso, nos permite pensar o
quanto o poder simbólico impactou as disputas no campo político.
Em 1960, com transferência da capital para Brasília , quando o poder Legislativo do
Estado da Guanabara utilizou o espaço para ser a sua nova sede, dessa forma recuperando a
memória histórica do espaço como forma de legitimação do poder político e da própria
existência do Estado da Guanabara. E podemos observar também ao longo dos primeiros anos
da década de 1960 o Palácio ser utilizado como “sede” dos comícios e manifestações
políticas, principalmente as promovidas pelo PTB E PCB. A memória histórica é um
elemento de formação da identidade, e da construção de nação, podemos perceber nessa
pesquisa como determinados projetos políticos podem utiliza-se dela nesse processo de
construção de identidade e de busca da sua própria legitimidade.
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Palácio Tiradentes : 70 anos de história / Coord. Israel Beloch e Laura Reis Fagundes; textos
de Carlos Eduardo Sarmento]. -- Rio de Janeiro : ALERJ, 1996.
Correio da Manhã (RJ-1960-1963)
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