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Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 155 A função clássica do federalismo de proteção das liberdades individuais “No one can be more inclined than I am to appre- ciate the advantages of the federal system, which I hold to be one of the combinations most favourable to the prosperity and freedom of man. I envy the lots of those nations which have been able to adopt it”. TOCQUEVILLE PAULO JOSÉ LEITE FARIAS Paulo José Leite Farias é Promotor de Justiça do MPDFT, Diretor de Ensino da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Professor de Direito Tributário da AEUDF, Professor de Direito Previdenciário, Constitucional do Cespe/UnB e mestrando em Direito e Estado na UnB). SUMÁRIO 1. Introdução. 2. A análise da origem histórica da Federação americana sob a visão nacionalista dos autores da obra The federalist papers. 2.1. Breve exposição das circunstâncias fáticas que precederam ao federalismo americano. 2.2. Os artigos federalistas: razões de seu surgimento e sua estrutura. 2.3. A neces- sidade de um governo forte que assegurasse a segu- rança da incipiente nação. 2.4. A necessidade de um poder central corretor das falhas do modelo existente na Confederação Americana. 2.5. A correlação histórica entre a forma de Estado Federado e um sistema de proteção de direitos humanos na visão de Hamilton. 3. Características centrífugas básicas da Federação americana dualista: a autonomia regional e a descentralização administrativa. 3.1. Visão geral das forças centrífugas que levaram à autonomia regional e a descentralização administrativa. 3.2. A evolução da descentralização federativa e a décima emenda. 3.3. A análise do modelo americano sob a visão de Tocqueville na obra “Democracia na Amé- rica”. 3.4. O governo local – a independência do município como corolário da soberania do povo na visão de Tocqueville. 4. A autonomia regional e a descentralização administrativa como mecanismos clássicos de defesa dos direitos de liberdade. 4.1. Liberdades públicas e Estado Liberal. 4.1.1. Conceito e fundamentos das liberdades públicas como prestação meramente negativa. 4.1.2. Liberdade e organização estatal sob o enfoque de um “status negativus”. 4.2. O núcleo político do Estado liberal na visão de macridis. 4.3. O papel de promoção das liberdades públicas promovido pela autonomia regional e pela descentralização administrativa da Federação ame- ricana. 4.3.1. A autonomia regional e a descentrali- zação administrativa nascem junto com o Estado americano. 4.3.2. A autonomia regional como limi- tação do poder político. 5. Conclusões.

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Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 155

A função clássica do federalismo deproteção das liberdades individuais

“No one can be more inclined than I am to appre-ciate the advantages of the federal system, which Ihold to be one of the combinations most favourableto the prosperity and freedom of man. I envy the lotsof those nations which have been able to adopt it”.

TOCQUEVILLE

PAULO JOSÉ LEITE FARIAS

Paulo José Leite Farias é Promotor de Justiça doMPDFT, Diretor de Ensino da Fundação EscolaSuperior do Ministério Público do Distrito Federal eTerritórios, Professor de Direito Tributário daAEUDF, Professor de Direito Previdenciário,Constitucional do Cespe/UnB e mestrando em Direitoe Estado na UnB).

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. A análise da origem históricada Federação americana sob a visão nacionalistados autores da obra The federalist papers. 2.1. Breveexposição das circunstâncias fáticas que precederamao federalismo americano. 2.2. Os artigos federalistas:razões de seu surgimento e sua estrutura. 2.3. A neces-sidade de um governo forte que assegurasse a segu-rança da incipiente nação. 2.4. A necessidade de umpoder central corretor das falhas do modelo existentena Confederação Americana. 2.5. A correlaçãohistórica entre a forma de Estado Federado e umsistema de proteção de direitos humanos na visão deHamilton. 3. Características centrífugas básicas daFederação americana dualista: a autonomia regionale a descentralização administrativa. 3.1. Visão geraldas forças centrífugas que levaram à autonomiaregional e a descentralização administrativa. 3.2. Aevolução da descentralização federativa e a décimaemenda. 3.3. A análise do modelo americano sob avisão de Tocqueville na obra “Democracia na Amé-rica”. 3.4. O governo local – a independência domunicípio como corolário da soberania do povo navisão de Tocqueville. 4. A autonomia regional e adescentralização administrativa como mecanismosclássicos de defesa dos direitos de liberdade. 4.1.Liberdades públicas e Estado Liberal. 4.1.1. Conceitoe fundamentos das liberdades públicas como prestaçãomeramente negativa. 4.1.2. Liberdade e organizaçãoestatal sob o enfoque de um “status negativus”. 4.2.O núcleo político do Estado liberal na visão demacridis. 4.3. O papel de promoção das liberdadespúblicas promovido pela autonomia regional e peladescentralização administrativa da Federação ame-ricana. 4.3.1. A autonomia regional e a descentrali-zação administrativa nascem junto com o Estadoamericano. 4.3.2. A autonomia regional como limi-tação do poder político. 5. Conclusões.

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1. Introdução

Fixar as determinantes do federalismo com-preende o seu conhecimento desde as elabora-ções mais antigas, apesar de seu debate jurídi-co ser mais recente, pois teve início a partir doséculo XVIII, com a Constituição americana de17871.

Consoante preciosos ensinamentos de JoséAlfredo de Oliveira Baracho,

“No processo de institucionalização,The Federalist, que é uma exposição dosprincípios do republicanismo constitu-cional, além de apontar a importância danatureza humana na política e os motivosdo comportamento do homem em umasociedade livre, tem grande significadona teorização sobre o federalismo. Poucossão os comentários sobre a Constituiçãoque se equiparam em importância à sériede ensaios feitos por Alexander Hamilton,James Madison e John Jay”2.

A federação moderna é uma invenção dospais da Constituição americana, que para tanto,evidentemente, também esquadrinharam a his-tória. Desde então surgiram regularmente, emoutros países de todas as partes do mundo,Constituições federalistas a partir de e em opo-sição ao modelo federalista clássico americano.Nesse sentido, Michael Bothe ensina:

“Quando, no contexto de sua liberta-ção da Espanha, alguns países da Améri-ca Latina adotaram estruturas federalis-tas, o exemplo americano desempenhouum certo papel, embora os constituintesda Venezuela, Grã-Colômbia, México,Argentina – e mais tarde do Brasil – nãotenham de modo algum simplesmentecopiado a Constituição americana. Tam-bém o surgimento de federações naEuropa (Suíça, Alemanha) e no âmbito doImpério Britânico (Canadá, em 1867, eAustrália, em 1900) foi precedido de umaconfrontação com as idéias federalistasamericanas. Experiências federalistas nocontexto da descolonização, sobretudono império colonial britânico (Índia,Malásia, Nigéria), puderam recorrer a

esses exemplos já existentes. Com osolhos ainda voltados para os EUA, ten-taram-se aproveitar as idéias federalistaspara a integração da Europa. Nesse sen-tido, Walter Hallstein deu à primeira edi-ção de seu livro sobre a ComunidadeEuropéia o título de A federação inaca-bada. Embora a seguir a integraçãoeuropéia não apresentasse mais essa pre-tensão, a discussão sobre a conforma-ção posterior dessa integração orientou-se por conceitos federalistas – e de modobastante controverso no passado maisrecente”3.

Lastreado em autores americanos comoElazar4, aderimos ao argumento de que, do pontode vista histórico, um ordenamento estatalfederalista sempre significa equilíbrio numcampo de tensão entre forças centrífugas e cen-trípetas (integrativas e desintegrativas). Suafinalidade é “simultaneously to generate andmaintain both unity and diversity”5. O pesopolítico dos Estados-membros correlaciona-seà relativa força ou fraqueza dos respectivosfatores desintegrativos e integrativos.

A tarefa de equilibrar as forças presentesnum dado contexto não se coloca apenas nacriação de uma federação, mas continuará exis-tindo e marcando o seu desenvolvimento. As-sim, exemplificando com a análise histórica daFederação americana, verifica-se que as razõespara a criação da Federação americana foramuma coisa, a conformação concreta da correla-ção de forças entre a União e os Estados-mem-bros é outra. Ilustrando, Bernard Schwartz afirma:

“... se tivéssemos de redigir uma versãode 1983 do The Federalist, ela conteriauma descrição do sistema americano dehoje que estaria bem distante do concei-to clássico de federalismo. Para o puristateórico, na verdade, até mesmo um esta-do com Imposto de Renda federal não émais um estado genuinamente federal.Mas o federalismo puro é fundamental-

1 “A idéia federal é apontada nas sociedades políticasmais antigas, apesar de o Estado federal, como conceitoou forma de organização, no entender de muitos, só tersurgido com a Constituição Americana de 1787”(ANHAIA, José Luiz de, apud BARACHO, José Al-fredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. BeloHorizonte : Fumarc, 1982. p. 11).

2 Ibidem, p. 6.

3 BOTHE, Michael. Federalismo : um conceito emtransformação histórica. In: O FEDERALISMO na Ale-manha. Konrad-Adenauer-Stiftung, Centro de Estudos,1995. (Traduções, 7). p. 4. Publicado originalmenteem Föderalism und Demokratie, ein deutsch-sowjetis-ches Symposium, Gerhard Stuby, Schriftenreihe desZentrums für europäische Rechtspolitk (ZERP) 16,Nomos-Verlagsgesellschaft, Baden-Baden, 1992.

4ELAZAR, Daniel J. Exploring federalism. Ala-bama : University of Alabama, 1987. p. 64.

5 Ibidem, p. 64.

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mente incompatível com as tensões daevolução política do século XX. Procurarrecriá-lo em sua imagem clássica do sé-culo XVIII é entregar-se à busca de umaquimera. Contudo, ainda hoje existemaqueles que se empenham num empreen-dimento tão quixotesco”6.

2. A análise da origem histórica da Federaçãoamericana sob a visão nacionalista dos autores

da obra “The federalist papers”.

2.1. Breve exposição das circunstâncias fáticasque precederam ao Federalismo americano

Já em 1643, quatro das treze colônias britâ-nicas haviam constituído a “Confederação daNova Inglaterra” sob a inspiração de uma ne-cessária união americana. Entretanto, para asdemais colônias, pouco ligadas entre si, foi aluta pela independência que determinou a ne-cessidade e a utilidade da união.

Independentes em 1776, por meio de umarevolução, proclamam-se todas Estados sobe-ranos. Há, subseqüentemente, a elaboração deConstituições individuais; e a, dos “Artigos daConfederação”.

Os “Artigos da Confederação” e a políticaamericana durante esses anos tinham duas ca-racterísticas dominantes. O poder estava naperiferia, nos diversos Estados separados. Nes-tes, o poder ficava concentrado sobretudo noslegislativos populares, em detrimento de qual-quer compromisso com uma separação dos po-deres. De 1776 a 1787, a América, sob os Arti-gos, não passou de uma frouxa aliança de Esta-dos soberanos e independentes. O Artigo IIdessa primeira Constituição americana declara-va que “cada Estado conserva sua soberania,liberdade e independência”. Havia, antes demais nada, pouca experiência histórica de uni-dade entre as colônias. Elas tinham históriasdiferentes, tradições culturais, religiosas e ins-titucionais diferentes. O que tinham em comumera a dependência para com a Grã-Bretanha,desde seu estabelecimento, e um breve períodode dez anos de disputa comum contra os procedi-mentos comerciais dos ministros de Jorge III. Havialaços muito mais estreitos entre Boston e Lon-dres, por exemplo, ou entre a Carolina do Sul eLondres, do que entre Boston e a Carolina do Sul.

Os fundadores conheciam a teoria republi-cana e concordavam que a liberdade só flores-cia em Estados pequenos. A monarquia e o des-potismo, os patronos do governo enérgico, in-vasivo e poderoso, eram produtos de Estadosde tamanho maior. Supunha-se que os direitosinalienáveis da liberdade e a busca da felicida-de, a que se referia a Declaração de Indepen-dência, seriam mais bem protegidos por gover-nos estaduais pequenos e locais. Luther Mar-tin, um opositor da Constituição, lembraria àConvenção de 1787 que

“quando da separação do Império Britâ-nico, o povo da América preferiu insti-tuir-se em treze soberanias separadas aoinvés de se incorporar em uma única. Écom elas que contam para a segurança desuas vidas, liberdades e propriedades. Écom elas que devem contar. O governofederal foi formado para defender o con-junto contra nações estrangeiras em casode guerra e para defender os menores Es-tados contra as ambições dos maiores”7.

Para muitos americanos, a Confederação foiconsiderada um mero expediente temporário,necessário para fazer guerra contra a Grã-Breta-nha. Com a chegada da paz, ela desapareceria.A Confederação fez a guerra e mal conseguiufinanciar o exército de Washington. Com a ces-sação das hostilidades em 1783, o CongressoContinental8, o único poder central, tornou-sepraticamente impotente, todo o poder efetivopertencendo aos Estados.

Os Artigos não estabelecem nenhum braçoexecutivo para o Governo central. A Revoluçãoamericana, afinal, era contra a autoridade e o

6SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-ame-ricano atual. Tradução de Élcio Cerqueira. Rio de Ja-neiro : Forense Universitária, 1984. p. 64.

7Apud Isaac Kramnick na parte introdutória da obraos artigos federalistas (HAMILTON, MADISON, JAY.Os artigos federalistas : 1787 - 1788. Tradução deMaria Luiza X. de A Borges. Rio de Janeiro : Novafronteira, 1993. p. 9).

8 Ibidem. p.10, verbis: “O Congresso Continen-tal foi a única instituição central, com funções inte-gradoras, criada pelos Artigos. Consistia de apenasuma câmara legislativa, pois nenhuma segunda câ-mara aristocrática seria tolerada pelo espírito de1776. No Congresso, cada Estado tinha um voto.Cada legislativo estadual tinha o poder de decidircomo designar no mínimo dois e não mais que setedeputados de seu Estado para o Congresso unicame-ral. Todos os deputados tinham mandatos de umano. As eleições anuais, tão caras à ideologia repu-blicana na Inglaterra do século XVIII, floresceramsob os Artigos. A remuneração dos deputados, en-quanto tinham assento no Congresso, era assegura-da pelo Estado que representavam”.

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poder, contra reis, como Tom Paine9 expressouem seu “Common Sense”. O governo centralera administrado por um comitê do Congresso.Quando o Congresso não estava reunido, umcomitê representativo dos Estados exercia opoder em seu lugar. Um deputado – chamado“presidente”, palavra que iria adquirir uma im-portância surpreendentemente nova em 1787 –presidia esse comitê, mas por não mais de umano em cada período de três anos. Na Confede-ração, toda a política externa, inclusive o poderde declarar guerra, era atribuição do Congresso.

Além da ausência de um braço executivo,não havia sob os Artigos nenhum poder judici-ário central. Havia simplesmente o legislativounicameral, o Congresso Continental10. Maisrelevante ainda era o fato de que os Artigos nãodavam praticamente nenhum poder a esse le-gislativo. O Congresso não podia, por exemplo,regular o comércio ou criar impostos, e isso nãoera em absoluto uma inadvertência por parte dosque formularam os Artigos. Em torno disso, afi-nal – em torno da resistência do povo a ceder aogoverno o poder de regular o comércio e cobrarimpostos –, se fizera a Revolução. Foi essa ex-periência que fortaleceu a tendência colonial decontrapor governo e liberdade. Se fora feita umaguerra para impedir que o Parlamento lançasse

tributos sobre colônias distantes e regulasseseu comércio, os Estados recém-independen-tes dificilmente confeririam tais poderes a umgoverno central; eles permaneceram reservadosaos próprios Estados. Entretanto, a falta de po-der no centro seria a principal deficiência dosArtigos e desempenharia um papel decisivo naprodução da exigência de reforma em meadosda década de 1780.

Cada medida legislativa tomada pelo Con-gresso precisava ser aprovada por, pelo menos,nove das treze delegações estaduais. Cada Es-tado tinha um voto, independentemente de suapopulação – e havia grandes variações, porexemplo, entre a Pensilvânia, Massachusetts,Nova York e Virgínia por um lado, e Rhode Islande Delaware por outro. De singular importânciaera o dispositivo dos Artigos que exigia quequalquer mudança em seus termos fosse apro-vada por todos os treze legislativos estaduais.O Congresso levantava receita de requisiçõesaos Estados. Alguns pagavam; outros não; tor-nando as finanças da Confederação incertas eprecárias.

Após o tratado de paz de 1783, um númeroainda menor de Estados cumpria com suas obri-gações financeiras para com o Congresso.

Em 1781 o Congresso aprovou emenda aosArtigos que permitia a arrecadação de 5% dastaxas alfandegárias sobre produtos importadoscomo forma de estabilizar e regularizar a receitado governo central. O Estado de Rhode Island,indisciplinado sob todos os aspectos, nesseperíodo, não tendo enviado delegados para aConvenção Constitucional de 1787, não con-cordou com a mudança, que nunca foi aprova-da. Esse fracasso acabou por revelar-se fatal aogoverno11 sob os Artigos. Em 1783 e 1784, fize-ram-se novos esforços para impor taxas alfan-degárias e exigir dos Estados que cedessem 1,5milhão de dólares anualmente para o Congres-so. Essas reformas foram derrotadas, no primei-ro caso, pelo veto de Delaware; no segundo,apenas dois Estados ratificaram as emendas.

9 PAINE, Tom. Na obra Senso comum. São Paulo :Civita, 1973. p. 51.(Os pensadores, v. 29), afirma: “Asociedade em qualquer estado é uma bênção, enquanto ogoverno, mesmo no seu melhor estado, não passa demal necessário, sendo, no pior estado, um mal intolerá-vel. Porque, quando sofremos ou ficamos expostos, porum governo, às mesmas misérias que poderíamos espe-rar em país sem governo, a nossa calamidade aumentapela reflexão de que nós é que fornecemos os meiospelos quais sofremos. O governo, como a vestimenta, éo emblema da inocência perdida; os palácios dos reiserguem-se sobre as ruínas das choupanas do paraíso. Seobedecêssemos clara, uniforme e irresistivelmente aosimpulsos da consciência, não precisaríamos de outrolegislador; não sendo esse, todavia, o caso, vemo-nosobrigados a ceder uma parte da nossa propriedade a fimde providenciar meios para a proteção do resto, e so-mos induzidos a proceder dessa maneira pela mesmaprudência que, em qualquer outro caso, nos aconselha aescolher, dentre dois males, o menor. Pelo que, sendo asegurança o verdadeiro propósito e fim do governo, se-gue-se irretorquivelmente ser preferível às demais qual-quer forma que pareça mais capaz de nô-la garantir”.

10 RANIERI, Nina. No artigo Sobre o federalismo eo Estado Federal. Cadernos de Direito Constitucional eCiência Política, v. 3, n. 9, p. 88, out./dez. 1994, afir-ma: “O Congresso da federação não dispunha, porém,de qualquer poder governamental. Era pouco mais deuma reunião de embaixadores despreparados para solu-cionar os conflitos de interesses entre os Estados, o queprejudicava a ação conjunta da Confederação e amea-çava sua própria sobrevivência”.

11 Ibidem, p.88: “Nesse contexto, vários líderes daRevolução Americana passaram a defender a criação deum governo central, na tentativa de equacionar os pro-blemas políticos, administrativos e econômicos dosEstados Confederados. Para tanto instala-se, em maiode 1787, a Convenção da Filadélfia, que acaba porconstitucionalizar um inédito modelo extra-europeu degoverno, concebido para minimizar os males do EstadoUnitário e, ao mesmo tempo, assegurar força política,perante o cenário internacional, para os Estados autô-nomos em razão de sua união”.

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Consoante ensinamento de Isaac Kramnick:“Em conseqüência desse vácuo de

poder no centro, os treze Estados viviamem meio a rivalidades e confusão. Agiam,em suma, como as entidades soberanas eindependentes que supunham ser. Setedos treze Estados imprimiam seu própriodinheiro. Muitos passavam leis tarifáriascontrárias aos interesses de seus vizi-nhos. Nove dos treze tinham sua própriamarinha, e freqüentemente apreendiamnavios de outros Estados. Havia contí-nua disputa sobre limites, além de reivin-dicações conflitantes sobre os territóriosdo Oeste. Afirmava-se que até os termosdo tratado de paz com a Grã-Bretanha, de1783, só seriam válidos para os Estadosque fizessem essa opção”12.

Para George Washington, comandante-em-chefe do exército americano que lutou contra osbritânicos de 1776 a 1782, os Artigos tinhamproduzido “um governo semifaminto, coxo, queparece estar sempre andando de muletas e clau-dicando a cada passo”13. No Federalista nº 15Hamilton reclamava: “Algo precisa ser feito paranos livrar de uma anarquia iminente”14.

2.2. Os artigos federalistas: razões de seusurgimento e sua estrutura

Assim, no contexto de uma necessária mu-dança da anarquia existente no modelo confe-derativo, surge a “Convenção de Filadélfia” queenvia ao “Congresso Continental” o projeto daConstituição que havia elaborado, sugerindoque o documento fosse submetido às conven-ções de cada um dos Estados. A Convenção de1787 previra no Artigo VII da nova Constitui-ção, que “A ratificação por convenções de noveEstados será suficiente para a entrada em vigordesta Constituição entre os referidos Estados”.

Em conseqüência da necessidade de ratifi-cação do novo modelo veiculado pela Consti-tuição, surge a descrição clássica do sistemafederal americano contida nos escritos “TheFederalist Papers”. Eles foram publicados emjornais, no Estado de Nova York, em 1787 e 1788,e se destinaram a persuadir o povo do Estadode que a Constituição dos Estados Unidos,

elaborada no verão americano anterior, devia seradotada15. Os escritos, na forma de artigos dejornais, foram redigidos, sob o pseudônimoPublius, por James Madison16, Alexander Ha-milton17 e John Jay18 - três dos líderes do movi-mento para o estabelecimento de uma nova Cons-tituição que oferecesse um governo nacional for-te. Esses articulistas utilizaram-se, de forma sa-gaz, das condições históricas na formulação deargumentos integrativos (centrípetos).

Consoante a própria indicação de Hamiltonfeita no primeiro artigo federalista, abaixo transcri-ta, seriam discutidos tópicos a serem desenvolvi-dos nos artigos federalistas subseqüentes:

“Proponho-me a discutir, numa série de arti-gos, os interessantes tópicos que se seguem: A

12 Apud KRAMNICK na parte introdutória da obraos artigos federalistas (HAMILTON, MADISON, JAY,op. cit., p. 11 e 12.

13 Ibidem, p. 11.14 HAMILTON, MADISON, JAY. op. cit., p. 90

15 Segundo Benjamim Fletcher Wright na Introdu-ção da obra O federalista. Tradução de Heitor AlmeidaHerrera. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1984.p.12-13: “Quando o Congresso, de acordo com as Clá-usulas da Confederação aprovou uma resolução a 28 desetembro de 1787, submetendo o projeto da nova Cons-tituição aos Estados, para que fosse votado nas respec-tivas convenções, realizou-se o primeiro referendumnacional na história da América, assim como um denossos maiores debates... Indiscutivelmente, a obra maisnotável, originada pela controvérsia da ratificação, foi alonga série de artigos publicados nos jornais de NovaYork, entre 27 de outubro de 1787 e 4 de abril de 1788,e assinados por Publius - pseudônimo coletivo de Ale-xander Hamilton, John Jay e James Madison”.

16 James Madison (1751-1836), considerado o “pai”da Constituição dos Estados Unidos, nasceu na Virgínia,em uma antiga e influente família. Completou seus es-tudos no College of New Jersey, atual Universidade dePrinceton, sendo eleito para o Congresso em 1780. Es-critor infatigável, meticuloso, planejador e estrategista,teve participação decisiva na Convenção Constitucionale em negociações internacionais do novo país, incluin-do-se a compra da Louisiana aos franceses e o acordocom a Espanha sobre a livre navegação no Mississippi.Foi secretário de Estado durante o governo de ThomasJefferson, junto com quem criou o Partido Republicano.Exerceu a Presidência dos EUA por dois mandatos.

17 Alexander Hamilton (1757-1804) nasceu nasAntilhas e foi para a América com dezesseis anos deidade. Durante a Guerra da Independência, emergiu doanonimato como capitão de artilharia, depois tenente-coronel e, finalmente, ajudante-de-campo de GeorgeWashington, comandante-em-chefe do Exército rebel-de. Depois da guerra, estudou Direito e exerceu a profis-são em Nova York. Em 1782 entrou para o Congresso.Na Convenção Constitucional, liderou a facção favorá-vel a um governo central forte, em detrimento do po-der dos Estados. Depois da aprovação da Constituição,foi nomeado para o primeiro gabinete de Washingtoncomo secretário do Tesouro, criando então a infra-estrutura financeira do Estado americano. Morreu com47 anos, em conseqüência de ferimentos recebidos emduelo contra Aaron Burr, seu adversário político.

18 John Jay (1745-1829), filho de um abastado co-merciante de Nova York, estudou na Universidade deColumbia. Jurista e diplomata, adquiriu sólida reputaçãointelectual ainda durante a dominação inglesa. Foi o

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utilidade da União para vossa prosperidadepolítica – A insuficiência da atual Confederaçãopara preservar essa União – A necessidade, paraa consecução dessa meta, de um governo pelomenos tão vigoroso quanto o proposto – A con-formidade da Constituição proposta com osverdadeiros princípios do governo republicano –Sua analogia com vossa própria Constituiçãoestadual – e finalmente, a segurança adicionalque sua adoção proporcionará à preservaçãodessa espécie de governo, à liberdade e à pro-priedade”19 (grifo nosso).

Assim, nota-se que desde os trabalhos de-senvolvidos para a ratificação da Constituiçãoamericana, o modelo federativo sempre foi vis-to como um instrumento de garantia de direi-tos fundamentais20.

Nesse diapasão, a análise da obra dos fede-ralistas mostra-se fundamental, pois indica acorrelação que os Federalistas pregavam existirentre um governo eficiente e a proteção das li-berdades individuais. Ademais, ressalta, tam-bém a dialética das forças centrífugas e centrí-petas existentes, nos argumentos contráriospostos por antifederalistas como Patrick Hen-ry21, para o qual “a tirania da Filadélfia” poucodiferia da “tirania de Jorge III”.

Assim, só da análise da estrutura da obrados federalistas, podemos tirar algumas conclu-sões iniciais preciosas, a saber:

• a maioria dos artigos foi escrita por Ale-xander Hamilton, seguido por James Madison,sendo que John Jay escreveu poucos artigos(só cinco)22;

• há uma estrutura lógica na seqüência dostemas apresentados pelos artigos, assim suadisposição não foi aleatória e, sim, metodica-mente organizada com um claro propósito, con-soante ressalta o Federalista nº 1, a ratificaçãoda Constituição Americana e do ideal federati-vo nela proposto, verbis:

“Após uma experiência inequívoca da inefi-cácia do governo federal, estais sendo chama-dos a deliberar sobre uma nova Constituiçãopara os Estados Unidos da América. A impor-tância do assunto é evidente: suas conseqüên-cias envolvem nada menos que a existência daUnião, a segurança e a prosperidade das partesque a compõem, o destino de um país que é sobmuitos aspectos o mais interessante do mun-do”23.

Tendo em vista o contexto das forças inte-gradoras e desintegradoras existentes à épocada ratificação da Constituição Americana, faz-se necessário o detalhamento das forças centrí-petas que aprovaram a Constituição Americanade 1787 e o sistema federativo nela instituído.

2.3. A necessidade de um governo forte queassegurasse a segurança da incipiente nação

Uma poderosa força centrípeta que pode serobservada na proposta federalista é o desejo deuma defesa comum, especialmente em face deameaça externa.

A primeira preocupação dos artigos iniciais(artigos 2 a 5), diretamente relacionada ao mo-mento histórico existente à época, relaciona-secom o temor das forças estrangeiras que poriamem risco a liberdade já alcançada pela naçãoamericana, nesse sentido, traz-se à colação oseguinte trecho:

“Quando o povo da América refletirque está sendo chamado agora a decidiruma questão que se pode revelar, em suasconseqüências, uma das mais importan-tes que jamais lhe prendeu a atenção, fi-cará evidente a conveniência de exami-ná-la de modo tão abrangente quantosério.

Nada é mais certo que a necessidadeindispensável de governo; é igualmenteinegável que, não importa quando e comoseja ele instituído, o povo deve lhe ceder

autor da Constituição de seu Estado natal, promulgadaem 1777 e importante fonte de idéias para a Constitui-ção federal. Presidiu o Congresso Continental em 1778.Em 1783, como ministro das Relações Exteriores, foio principal arquiteto do tratado de paz com a Grã-Bretanha, tornando-se em seguida o primeiro presiden-te da Suprema Corte dos Estados Unidos. Depois de doismandatos como governador de Nova York retirou-seda vida pública.

19 HAMILTON, MADISON, JAY, op. cit., p. 96.20 Segundo Benjamim Fletcher Wright na Introdu-

ção da obra O federalista, op. cit., p. 17: “Nesta alturaé suficiente registrar que o plano geral para o Federalis-ta incluía uma análise dos perigos dos desacordos e van-tagens de uma união mais forte, a fraqueza das Cláusulasda Confederação, a natureza do governo proposto, seuspoderes, suas relações com os Estados e as salvaguar-das contra o uso abusivo do poder” (grifo nosso).

21 Apud KRAMNICK, op. cit., p. 8.22 Segundo Benjamim Fletcher Wright na Introdu-

ção da obra já citada, p.18: “John Jay não foi um dele-gado na Convenção e somente tomou conhecimento

da Constituição quando o documento estava pronto.Como já foi mencionado, sua co-autoria dos artigos dePublius se limitou a cinco, justamente os que não foramconsiderados como os mais notáveis”.

23 HAMILTON, MADISON, JAY, op. cit., p. 93.

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alguns de seus direitos naturais, a fim dedotá-lo dos poderes indispensáveis. Valea pena considerar, portanto, se o interes-se do povo da América será mais bematendido se ele formar, para todos os pro-pósitos gerais, uma única nação, sob umúnico governo federal, do que ele se divi-dir em confederações e der ao chefe decada uma delas o mesmo tipo de poderesque lhe aconselham atribuir a um gover-no nacional.

Até recentemente, foi opinião aceitae inconteste que a prosperidade do povoda América dependia da continuidade desua firme união. Os desejos, preces e es-forços de nossos melhores e mais sábioscidadãos estiveram constantemente diri-gidos para esse fim. Agora, porém, apa-recem políticos que insistem em que essaopinião é errônea e que, em vez de buscarsegurança e felicidade na União, devería-mos buscá-la numa separação dos Esta-dos em distintas confederações ou sobe-ranias”24.

2.4. A necessidade de um poder centralcorretor das falhas do modelo existente na

Confederação AmericanaPassando à análise da situação fática exis-

tente (a Confederação Americana), a argumen-tação integradora corporificada nos artigos fe-deralistas aponta persuasivamente os defeitosdo modelo confederado e a necessidade de umpoder central (Union). Ilustrativo dessa posi-ção é o trecho abaixo transcrito do Federalistanº 15:

“Houve um tempo em que nos afirma-vam que violações das normas da autori-dade federal pelos Estados eram impro-váveis; que um senso de interesse co-mum presidiria a conduta dos respecti-vos membros, gerando uma plena aceita-ção de todos os requisitos constitucio-nais da União. Hoje, quando devemos teraprendido outras lições da experiência, omelhor oráculo da sabedoria, tal lingua-gem pareceria tão absurda quanto gran-de parte do que ouvimos agora da mesmafonte. Em todos os tempos, ela traiu umaignorância das verdadeiras fontes que mo-vem a conduta humana e desvirtuou asmotivações originais para o estabeleci-mento de um poder civil. Afinal, por que

se instituiu um governo? Porque as pai-xões dos homens não se conformam aosditames da razão e da justiça sem coação.Está provado que corporações de homensatuam com maior retidão ou desinteresseque indivíduos? Todos os observadoresprecisos da conduta humana concluíramo contrário, e seus motivos são óbvios.O cuidado com a reputação tem menorinfluência quando a infâmia de uma máação deve ser distribuída entre muitos doque quando deve incidir sobre um sóhomem. O espírito faccioso, que é capaz deinstilar seu veneno nas deliberações detodas as corporações humanas, muitasvezes precipitará as pessoas que as com-põem a impropriedades e excessos de queelas se envergonhariam individualmente.

Além de tudo isto, faz parte da natu-reza do poder soberano uma avidez decontrole que dispõe os que estão inves-tidos de seu exercício a ver com mausolhos todas as tentativas externas de li-mitar ou dirigir suas ações. Em decorrên-cia desse espírito, em toda associação po-lítica fundada no princípio de unir em tor-no de um interesse comum certo númerode soberanias menores, estará presentenas esferas subordinadas ou inferioresuma tendência centrífuga por força daqual cada uma delas se esforçará por es-capar ao centro comum. Não é difícil ex-plicar esta tendência. Sua origem é o amorao poder. O poder controlado ou restritoé quase sempre rival e inimigo do poderresponsável por esse controle ou restri-ção. Esta simples proposição nos ensinacomo se tem pouca razão para esperar queas pessoas incumbidas da administraçãodos negócios dos membros particulares deuma confederação estejam sempre dispos-tas, com perfeito bom humor e impertuba-da consideração pelo bem público, a pôrem prática as resoluções ou decretos daautoridade geral. É o inverso disto que re-sulta da natureza humana”25 (grifo nosso).

Esse tema ressurge, novamente, de formadireta e explícita, em uma série de artigos subse-qüentes (artigos 37 a 46) sob a ótica da análisedos debates da Convenção de Filadélfia, após areapreciação da questão da segurança externavista sob o prisma da necessidade de um exérci-to permanente para garanti-la.

24 Ibidem, p. 97. 25 Ibidem, p. 162-163.

Revista de Informação Legislativa162

Nesse sentido, Benjamin Fletcher Wrightafirma:

“Os primeiros quarenta e seis artigos– mais da metade do total – insistem nanecessidade de um governo central maisforte. Esta foi a principal razão para serconvocada a Convenção federal e tam-bém o argumento para a maior parte daoposição aos seus resultados. Na vastaliteratura antifederalista, incluindo os dis-cursos nas convenções estaduais, hámuita matéria a respeito da ausência deuma declaração de direitos na Constitui-ção e da necessidade de maior proteçãoaos direitos e às liberdades do cidadão. Éde notar, entretanto, que os primeiros trêsEstados – Massachusetts, Carolina doSul e New Hampshire – que em suasconvenções propuseram emendas àConstituição, votaram no sentido deratificá-la, incluindo pouquíssimas se-ções tratando dos direitos das pesso-as e, em cada caso, registraram umadeclaração de que todos os poderesnão ‘expressamente delegados’ nem‘expressamente renunciados’ nem ‘ex-pressa e particularmente delegados’pela ‘dita Constituição’ são ‘reserva-dos aos diversos Estados’26.

Nesse contexto, a própria tributação surge,dentre outras razões, como mecanismo de asse-gurar recursos para a manutenção das forçasnacionais (Federalistas nº 30 a 36). Assim,Hamilton assinala:

“Já foi observado que o governo fe-deral deve possuir o poder de assegurara manutenção das forças nacionais; pre-tendeu-se incluir nesta proposição oscustos da convocação de tropas, daconstrução e equipamento de frotas etodas as demais despesas de algum modorelacionadas a preparativos e operaçõesmilitares. A jurisdição da União, no to-cante à receita, não deve, porém, ficar res-trita a estes fins. Deve conter dispositi-vos para a manutenção da lista civil nacio-nal; para os pagamentos das dívidas na-cionais já contraídas ou a contrair; e,em geral, para o atendimento de todasaquelas matérias que exigirão desembol-so do Tesouro Nacional. A conclusão éque um poder geral de tributar, de umamaneira ou de outra, deve estar intima-

mente combinado à estrutura do gover-no”27.

Também a proteção do comércio é ressalta-da no interesse econômico da constituição deum mercado maior, consoante a ilustrativa pas-sagem do Federalista nº 11, verbis:

“A importância da União, do pontode vista do comércio, é um dos pontosque menos dão lugar a diferenças de opi-nião e que, de fato, inspiraram o mais ge-ral acordo entre homens que têm algumconhecimento do assunto. Isto se aplicatanto a nosso intercurso com países es-trangeiros como entre Estados.

Sinais autorizam a suposição de queo espírito intrépido que distingue o cará-ter comercial da América já despertousentimentos de desconforto em váriasdas potências marítimas da Europa. Elasparecem temer nossa interferência exces-siva naquele negócio de transportes, queé a base de sua navegação e o fundamen-to de sua força naval. As que possuemcolônias da América observam com aflitaatenção o que este país é capaz de setornar. Antecipam os perigos que podemameaçar seus domínios americanos emrazão da vizinhança de Estados que semostram todos dispostos a criar uma ma-rinha poderosa e teriam os meios parafazê-lo. Impressões deste tipo conduzemnaturalmente à política de estimular divi-sões entre nós e de nos privar, tanto quan-to possível, de um comércio ativo comnossos próprios barcos. Isto satisfaria otríplice objetivo de impedir nossa interfe-rência na navegação deles, monopolizaros lucros de nosso comércio e cortar asasas que nos permitiriam voar a alturasperigosas. Se a prudência não o impedis-se, seria fácil seguir o rastro dessa políti-ca, por meio de fatos, até os gabinetesdos ministros”.

Ressaltando os defeitos do modelo confe-derativo existente e ressaltando a importânciada distribuição de poderes em diferentes esfe-ras governamentais, o Federalista nº 37 dispõe:

“Ao analisar os defeitos da atual con-federação e mostrar que não podem sersanados por um governo menos forte queeste de que dispomos, vários dos maisimportantes princípios deste último tor-naram-se evidentemente objeto de con-

26 Segundo WRIGHT, op. cit., p.24. 27 Ibidem, p. 231.

Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 163

sideração. Mas, como o objetivo finaldestes artigos é determinar clara e plena-mente os méritos da Constituição propos-ta e a conveniência de adotá-la, nossoplano não pode completar-se sem quefaçamos uma avaliação mais crítica e com-pleta do trabalho da convenção, sem queo examinemos em todos os seus aspec-tos, comparando-o em todas as suas par-tes e avaliando seus efeitos prováveis.Para que a tarefa que nos resta possa re-alizar-se com base em idéias que condu-zam a um resultado justo e eqüitativo,devemos dar lugar aqui a algumas refle-xões prévias, ditadas pela imparcialidade

(...)Entre as dificuldades encontradas

pela convenção, uma muito importantedeve ter sido a de combinar estabilida-de e firmeza necessárias ao governo coma sagrada atenção devida à liberdade eà forma republicana. Sem realizar subs-tancialmente esta parte de sua tarefa, te-ria atendido de modo muito imperfeito aoobjetivo de sua designação ou à expecta-tiva do povo; no entanto, ninguém nega-ria sua dificuldade, a menos que estives-se disposto a revelar sua ignorância doassunto. A força do governo é essencialpara aquela segurança contra o perigoexterno e interno e aquela execução pron-ta e salutar das leis que fazem parte daprópria definição do bom governo. A es-tabilidade do governo é essencial ao ca-ráter nacional e às vantagens a ele asso-ciadas, assim como para aquela tranqüili-dade e confiança do povo que estão en-tre as maiores bençãos da sociedade ci-vil... O gênio da liberdade republicanaparece demandar, por um lado, não sóque todo poder emane do povo, mas queaqueles a quem ele é confiado sejam man-tidos na dependência do povo pela curtaduração de seus mandatos; e que, mes-mo durante esse curto período, a confi-ança deva ser depositada não em pou-cas, mas em muitas mãos. A estabilidade,ao contrário, requer que as mãos que re-cebam o poder permaneçam as mesmaspor certo período de tempo. A freqüenterepetição de eleições produzirá uma fre-qüente mudança de homens e esta, umafreqüente mudança de medidas; por ou-tro lado, a firmeza do governo exige nãosó certa permanência do poder como sua

execução por uma única mão”28 (grifonosso).

Nos artigos federalistas seguintes, a análiseda divisão de poderes centra-se mais na divisãofuncional de poderes entre Legislativo, Executi-vo e Judiciário, nessa ordem. Assim, os Federa-listas nº 47 a 51 tratam de argumentos relaciona-dos aos benefícios gerais das divisões de po-deres; analisando-se o Poder Legislativo (Fe-deralistas nº 52 a 66); o Poder Executivo (Fede-ralistas nº 67 a 78) e na parte final, o PoderJudiciário(Federalistas nº 79 a 83).

2.5. A correlação histórica entre a forma deEstado Federado e um sistema de proteção de

direitos humanos na visão de HamiltonConforme as precisas palavras de Benjamim

Fletcher Wright sobre os argumentos contrári-os à criação da federação americana (governocentralizado), uma das maiores preocupaçõesera que tal centralização de poderes poderia serdestruidora dos direitos e liberdades dos cida-dãos; nesse sentido retrata, verbis:

“O argumento era de que tal governoseria não apenas inconsistente para comos soberanos direitos e poderes dos Es-tados, mas também destruidor dos direi-tos e liberdades dos cidadãos. Que umgoverno assim, abrangendo uma área tãogrande como a compreendida nos limitesda Confederação, pudesse ser bastantecentralizado para ser eficiente e ainda res-peitador das liberdades civis e dos prin-cípios de independência dos governoslocais, era negado com veêmencia porClinton, assim como por Yates, Lansing eoutros membros da facção que predomi-nava em Nova York”29.

A solução adotada, entretanto, no EstadoFederal, conforme a obra federalista propugna,evitaria esse inconveniente pela forma comoseriam distribuídos os poderes, assegurando aefetiva independência dos governos locais.

Assim, no penúltimo artigo federalista (Fe-deralista nº 84), ao tratar da objeção a que oplano da convenção não contenha uma “Cartade Direitos”, Hamilton responde a tal assertivadizendo e exemplificando que no bojo das di-versas disposições haveria várias cláusulas emfavor de direitos e que as Cartas de Direitossurgiram para reduzir os privilégios dos monar-

28 Ibidem, p. 264-266.29 Ibidem, p. 14.

Revista de Informação Legislativa164

cas, sendo que, como no governo americano, opovo não renuncia a nada; e como conservatudo, não há necessidade de reservas particula-res, verbis:

“Várias vezes foi observado, com ra-zão, que as cartas de direitos são, em suaorigem, estipulações entre reis e seussúditos, reduções da prerrogativa em fa-vor do privilégio, reservas de direitos aque não se renuncia em favor do prínci-pe. Assim foi a Magna Carta obtida pelosbarões, espada na mão, do Rei João. As-sim foram as subseqüentes confirmaçõesdessa carta por príncipes subseqüentes.Assim foi a Petição de Direito aceita porCarlos I no início de seu reinado. Assimfoi, também, a Declaração de Direitos apre-sentada pelos lordes e comuns ao prínci-pe de Orange em 1688, e posteriormentepromulgada na forma de um ato do Parla-mento chamado Carta de Direitos. É evi-dente, portanto, que, segundo seu signi-ficado primitivo, elas não têm nenhumaaplicação a constituições professamentefundadas no poder do povo e executa-das por seus representantes e servidoresimediatos. Aqui, no sentido estrito, opovo não renuncia a nada; e como con-serva tudo, não tem necessidade de re-servas particulares: ‘Nós, o povo dosEstados Unidos, para assegurar as bên-çãos da liberdade para nós mesmos enossa posterioridade, ordenamos e esta-belecemos esta Constituição para os Es-tados Unidos da América’. Há nisto ummelhor reconhecimento dos direitos po-pulares que em volumes inteiros dessesaforismos que dão o tom de várias denossas cartas estaduais de direitos e quesoariam muito melhor num tratado de éti-ca que numa constituição de governo.

................................................Resta apenas uma outra concepção

deste assunto para concluir este tópico.A verdade, a despeito de todas as aren-gas que ouvimos, é que a própria Consti-tuição é ela mesma, em todos os sentidosadmissíveis, e para todos os fins úteis, umacarta de direitos”30 (grifo nosso).

Assim, verifica-se que, na visão federalista,a mais importante forma de proteção dos direi-tos estava na própria forma de governo e deEstado adotada, sendo irrelevante a declaração

de direitos31 se comparada aos outros mecanis-mos institucionais existentes na Constituiçãoem via de ratificação.

Nesse mesmo diapasão, importante o últimoartigo do Federalista (Federalista nº 85), que dis-põe, verbis:

“As seguranças adicionais ao gover-no republicano, à liberdade e à proprie-dade, que decorrerão da adoção do pla-no sob exame consistem sobretudo nasrestrições que a preservação da Uniãoimporá a facções locais e insurreições, eà ambição de indivíduos poderosos ape-nas em seus Estados, que poderiam ad-quirir crédito e influência suficientes delíderes e favoritos a ponto de se tornaremdéspotas do povo”32.

3. Características centrífugas básicas daFederação Americana dualista: a autonomiaregional e a descentralização administrativa

3.1. Visão geral das forças centrífugas quelevaram à autonomia regional e àdescentralização administrativa

O Federalista, conforme já visto, foi fruto daimaginação33 de Alexander Hamilton, que enga-jou James Madison e John Jay. Em um notávelesforço jornalístico para persuadir os votantesda convenção de ratificação do Estado de NovaYork de que deveriam aprovar a nova Constitui-ção dos Estados Unidos. Surge, pois, em um

30 Ibidem, p. 521-522.

31 Deve-se, entretanto, observar que a ratificaçãoda Constituição Americana só ocorreu condicionada aoBill of Rights. Vários Estados americanos (Virgínia,Massachusetts, Nova York e Pensilvânia) demandaramcomo condição para ratificação da Constituição umasérie de emendas que garantissem “direitos individuais”,as primeiras dez emendas aprovadas das doze apresen-tadas em 1791 ficaram conhecidas como Bill of Rights.

32 Ibidem, p. 529.33 Segundo Isaac Kramnick na apresentação da obra

citada anteriormente, p. 1: “O Federalista foi fruto daimaginação de Alexander Hamilton, que engajou JamesMadison e John Jay em seu esforço jornalístico parapersuadir os votantes da convenção de ratificação doEstado de Nova York de que deveriam aprovar a novaConstituição dos Estados Unidos, esboçada na Filadél-fia naquele mesmo verão. Nos dez meses seguintes, comum único intervalo de dois meses na primavera de 1788,duas e ocasionalmente três vezes por semana um novotexto de O Federalista seria publicado em até quatrojornais de Nova York. No final, Publius – pseudônimocoletivo usado por Hamilton, Madison e Jay – produzi-ram 175 mil palavras em defesa da nova Constituiçãofederal”.

Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 165

contexto histórico determinado que não podeser visto separadamente.

É interessante notar que os federalistas ame-ricanos almejaram um Governo central (União)forte, que substituísse a tibiez da frustrada Con-federação34. Contudo, para vencerem as resis-tências dos Estados-membros (as antigas colô-nias), desenvolveram a engenhosa fórmula fe-derativa, no final do século XVIII35, conceden-do ou “reservando”, originariamente, substan-ciais parcelas de poder às unidades federadas.

Os poderes da União seriam os enumeradosna própria Constituição. Tudo o mais estariareservado aos Estados-membros.

É essencial assinalar que mesmo nas matéri-as em que o Congresso pode legislar, a compe-tência dos Estados não está excluída. As auto-ridades dos Estados têm, nestas matérias, umacompetência “residual”. O que não lhes é per-mitido é a elaboração de disposições que iriamde encontro às disposições do direito federal.Nada lhes proíbe, entretanto, de elaborarem dis-posições que se aditem às do direito federal ouque preencham as lacunas deste.

René David, notável estudioso do direitocomparado, analisando a importância das com-petências estaduais na Federação Americana,afirma:

“Também podem assinalar-se, do pon-to de vista jurídico, numerosas e, por ve-zes, importantes diferenças entre os di-reitos dos diversos Estados, que resul-tam muitas vezes de suas leis, mas po-dem também derivar da maneira como in-terpretam a common law. A organizaçãojudiciária e a organização administrativadiferem de Estado para Estado, assim

como o processo civil e o criminal; o di-vórcio não é admitido nas mesmas condi-ções e pelas mesmas causas; o regimematrimonial pode ser ora de comunhão,ora de separação de bens; o direito dassociedades e o direito fiscal comportamregras diversas; a relação e a sanção dasinfrações penais também variam de umEstado para outro. Por mais importânciaque tenha ganho o direito federal, é o di-reito dos Estados que, na vida cotidiana,permanece o mais importante para os ci-dadãos e para os juristas americanos. Énecessário sabê-lo e ter igualmente cons-ciência da diversidade que pode existirentre estes direitos”36.

A distribuição inicial dos poderes, portan-to, entre os Estados e a União, era desigual,atendendo, entretanto, às circunstâncias histó-ricas.

Hamilton, pedagogicamente, procura com-bater a argumentação de possível excesso na cen-tralização de poderes pela União, assinalando:

“Uma grande vantagem, que perten-ce ao domínio dos governos estaduais,lança, por si só, uma luz satisfatória so-bre a questão – refiro-me à administraçãoordinária da justiça criminal e civil. Esta é,entre todas, a mais poderosa, mais uni-versal e mais atraente fonte de obediên-cia e lealdade popular. É ela que, sendo oguardião imediato e visível da vida e dapropriedade, tendo seus benefícios eameaças em constante atividade peranteo olhar público, regulando todos aquelesinteresses pessoais e preocupações fa-miliares a que a sensibilidade dos indiví-duos está mais imediatamente atenta,contribui, mais que qualquer outra cir-cunstância, para infundir nas mentes dopovo afeição, estima e reverência pelogoverno. Este notável cimento da socie-dade, que se difundirá pela quase-totali-dade dos canais dos governos individu-ais, independentemente de todas as de-mais causas de influência, lhes assegura-ria um império tão definido sobre seusrespectivos cidadãos que faria deles emtodos os momentos um completo contra-peso do poder da União e, não raro, seusperigosos adversários”37.

34 HAMILTON, MADISON, JAY, op. cit., p. 172,afirmam, comparando, depreciativamente, a Confede-ração ao regime feudal, que: “Embora não fossem, es-tritamente falando, confederações, os antigos sistemasfeudais partilhavam da natureza dessa espécie de associ-ação. Havia um chefe, líder ou soberano comum, cujaautoridade se estendia por toda a nação; diversos vassa-los subordinados, ou feudatários, tinham grandes tratosde terra distribuídos entre si; e numerosos vassalos infe-riores, ou servos, ocupavam e cultivavam essas terras,sob a condição de manter fidelidade ou obediência àque-les de quem as tinham recebido. Cada vassalo principalera um rei ou soberano em seu próprio domínio. Aconseqüência dessa situação era uma contínua oposiçãoà autoridade do soberano e freqüentes guerras entre ospróprios grandes barões ou principais feudatários”.

35 DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria geral doEstado. São Paulo : Saraiva, 1976. p. 224, diz que ofederalismo nasceu realmente com a Constituição Ame-ricana de 1787 : “É um fenômeno moderno”.

36 DAVID, René. Os grandes sistemas do direitocontemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho.São Paulo : Martins Fontes, 1996. p. 375.

37 HAMILTON, op. cit., p. 171.

Revista de Informação Legislativa166

Percebe-se que, nessas formulações, há preo-cupação central em estabelecer uma divisão es-carpada de competências entre a União (somenteos poderes enumerados) e os Estados-membros(todos os poderes residuais – “reservados”).

Não nos devemos espantar com essa carac-terística dualista do Federalismo americano. Eramuito natural que fosse afirmado logo em se-guida ao dia em que os Estados Unidos con-quistaram a sua independência. As 13 colônias,até a Guerra da Independência, tinham vivido demodo quase inteiramente independente umas dasoutras; e não tinham, entre si, por assim dizer,nada de comum, a não ser o indesejável elo co-mum que as ligava, anteriormente, à metrópole.

3.2. A evolução da descentralizaçãofederativa e a décima emenda

Todavia, a evolução do sistema tomou rumooposto, embora mais próximo das reais inten-ções dos federalistas (fortalecimento do poderfederal).

O texto da Décima Emenda, expressão daautonomia regional e da descentralização admi-nistrativa, (“Os poderes não delegados aos Es-tados Unidos pela Constituição, nem por elanegados aos Estados, são reservados aos Esta-dos ou ao povo”) não foi suficiente para impe-dir essa tendência38.

A redução da competência estadual, nosEstados Unidos, teve dois momentos destaca-dos, consoante ensinamento de Paulo Luiz NetoLobo39:

(1) A doutrina dos poderes implíci-tos da União, partida de genial constru-ção da Suprema Corte americana, em 1819,no leading case MaCulloch versusMaryland40. Decidiu-se que na Consti-

tuição, apesar dos poderes enumerados,não existia qualquer expressão que “excluapoderes eventuais ou implícitos e que re-queira que tudo o que foi concedido devaser descrito expressa e minuciosamente”41.

(2) A consagração do princípio da su-premacia federal, mercê do exercício dopoder de revisão judicial, “que é, assim, oarbítrio, do sistema federal”42 sobretudoa partir da legislação intervencionista doNew Deal, de 1933. A Suprema Corte nocaso Estados Unidos versus Darby, de1941, chegou mesmo a considerar a Déci-ma Emenda como um truísmo, sendo seupropósito “o de moderar temores de que onovo Governo nacional pudesse procurarexercer poderes não concedidos e os Esta-dos pudessem não ser capazes de exercerplenamente seus poderes reservados”.

Como acentua Schwartz43, ver a DécimaEmenda como um erro, um truísmo é “destruir abase sobre a qual se assentou o conceito defederalismo dual”. Em outra parte44 diz que sealguma coisa pareceu incompatível com as últi-mas décadas de concentração de autoridade nogoverno central, “foi a noção de que os Esta-dos ainda possuem os atributos de soberania”.

A noção de federalismo atenua, conseqüen-temente, o argumento de soberania45. Mais im-portantes, no entanto, são os critérios de distri-buição de competências, com limites mais preci-sos, embora vulneráveis às contingências his-tóricas.

Entretanto, o argumento da “soberania po-pular” encontra-se presente no modelo federa-tivo, pois, em última instância, a escolha de ummodelo que assegure a diversidade na unida-de é uma opção do titular do poder constituinte.

Nesse sentido, Tocqueville assinala:“Na América, o princípio da sobera-

nia do povo não é estéril nem está escon-

38 DAVID, op. cit., p. 369, em sentido oposto, assi-nala: “A décima emenda à Constituição dos EstadosUnidos, em 1791, precisou sem ambigüidade possível asituação: ‘Os poderes que a Constituição não delega aosEstados Unidos, e que não proíbe que os Estados exer-çam, são reservados a cada um dos Estados, respectiva-mente, ou ao povo’. Este princípio nunca foi abando-nado. A competência legislativa dos Estados é a regra;a competência das autoridades federais é a exceção, eesta exceção deve sempre fundar-se sobre um dado tex-to da Constituição”.

39 LOBO, Paulo Luiz Neto. Competência legislati-va concorrente dos Estados-Membros na Constituiçãode 1988. Revista de Informação Legislativa, v. 26., n.101, jan./mar. 1989.

40 Segundo Lincoln Magalhães da Rocha, na obra AConstituição americana : dois séculos de direito com-parado. Rio de Janeiro : Edições Trabalhistas, 1987. p.7, verbis: “Também em 1819, surge o caso MaCulloch

contra Maryland, em que o Estado de Maryland tenta-va, através de tributação, esvaziar o banco federal cria-do pelo Congresso. Marshall demonstrou que ‘o poderde tributar é o poder de destruir’ e, como tal, a leiestadual é inconstitucional, pois o Estado, através datributação, pode chegar ao ponto de anular as agênciasdo Governo Federal”.

41 Transcrição de SCHWARTZ, op. cit., p. 15.42 Ibidem, p. 22, 30, e 34.43 Ibidem, p. 34.44 Ibidem, p. 48.45 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição.

São Paulo : Revista dos Tribunais, 1985. p. 10, refere-se, ainda, à repartição rígida de atributos da soberania.

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dido, como sucede em outras nações; éreconhecido pelos costumes e proclama-do pelas leis; espalha-se livremente e che-ga sem impedimentos às suas conse-qüências mais remotas. Se existe país nomundo onde a doutrina da soberania dopovo pode ser razoavelmente apreciada,onde ela pode ser estudada na sua apli-cação aos negócios da sociedade, e ondeseus perigos e suas vantagens podem serjulgados, esse país é com certeza a Amé-rica”46.

3.3. A análise do modelo americano sob a visãode Tocqueville na obra “Democracia na América”

A obra de Tocqueville47 desperta renovadointeresse em nosso tempo. “A Sociedade Toc-queville, sediada simultaneamente nos EstadosUnidos e na França, edita uma revista e promo-ve freqüentes seminários e encontros, dedica-dos ao eminente pensador”48.

O grande feito de Tocqueville consiste emhaver recuperado o prestígio da democracia,responsabilizada no início do século passadopelos desmandos da Revolução Francesa.

O primeiro volume da obra de Alexis deTocqueville49, Democracy in America, foi pu-blicado em 1835, tendo sido muito aclamado.

Em seguida, em 1835, publicou-se o segundovolume; desde então, as teorias de Tocqueville,apresentadas nessa obra, têm sido objeto demuita discussão e interesse.

Na introdução de sua obra, Alexis de Toc-queville50 assinala, de forma perspicaz :

“Dentre as coisas novas que me atraí-ram atenção durante a permanência nosEstados Unidos, nada me surpreendeucom mais força do que a igualdade geralde condição entre o povo. Prontamentepercebi a influência prodigiosa que estefato fundamental exerce no curso inteiroda sociedade; dá uma direção peculiar àopinião pública e um teor peculiar às leis;leva, a novas máximas, as autoridadesgovernantes e, a hábitos peculiares aosgovernados”(grifo nosso).

No entanto, Tocqueville51 estava apenas re-latando, não aprovando. A obra Democraciana América não é um hino de louvor às virtudesdo igualitarismo ou do governo da maioria. Aocontrário, esse estudo clássico rejeita, em par-te, a mágica equação americana: de igualda-de com liberdade, de democracia com liberda-de. Ilustrando tal assertiva, significativa a pas-sagem que indica:

“Não acredito que haja um país nomundo onde, em proporção à população,haja tão poucos indivíduos ignorantes e,ao mesmo tempo, tão pouco eruditos”52.

Em outra significativa passagem afirma:“Portanto, a maioria tem, nos Estados

Unidos, imenso poder de fato, e poder deopinião quase tão grande; e quando estase forma a respeito de um assunto, nãohá, talvez, obstáculos que possam, nãodigo detê-la, mas mesmo retardar-lhe amarcha, deixá-la escutar as queixas dosque esmaga na passagem.

As conseqüências desse estado decoisas são funestas e perigosas para ofuturo.

46 TOCQUEVILLE, Alexis Charles Henri MauriceClérel de. Democracia na América. Edição condensadapara o leitor moderno, por Richard D. Heffener. Tradu-ção de João Miguel Pinto de Albuquerque. São Paulo :Companhia Editora Nacional, 1969. p. 68.

47 “Alexis de Tocqueville é filho de família francesatradicional, tendo nascido a 29 de julho de 1805. Con-cluiu a Faculdade de Direito de Paris em 1825, aos 20anos. Fez, durante 1826 e parte de 1827, uma viagemde estudos à Itália. Ingressou na Magistratura, comoJuiz-Auditor em Versalhes, onde seu pai era prefeito.Vivia-se o chamado período da Restauração, subseqüen-te à queda de Napoleão”(...) “Em 1835 Tocquevillepublica o Livro I de A Democracia na América subdivi-dido em duas partes. O Livro II somente aparece em1840” (TOCQUEVILLE. Democracia na América.Posfácio de Antonio Paim; tradução de Neil Ribeiro daSilva. São Paulo : Itatiaia, 1987. p. 1-2).

48 Ibidem, p. 1.49 Conforme Richard D. Heffner dispõe na introdu-

ção da versão portuguesa intitulada Democracia naAmérica, verbis: “Alexis de Tocqueville chegou aosEstados Unidos em maio de 1831 e de lá retornou parasua terra, a França, em fevereiro de 1832, apenas novemeses mais tarde, portanto. Não obstante, já há bemmais de um século sua Democracia na América vemproporcionando aos leitores uma riqueza incomparávelde descrição, análise e profecia, a respeito de quasetodos os aspectos do cenário americano”. (TOCQUE-VILLE, op. cit., 1969. p. 13).

50 Ibidem, p. 33.51 Conforme HEFFNER, op. cit., verbis: “O fato de

Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville ter sido umcrítico tão vigoroso da democracia americana, de haverinvestido tão duramente contra os pressupostos em queela se baseava, era inteiramente de esperar, pois êssebrilhante francês era aristocrata completo, herdeiro deuma ilustre tradição de família, de conservantismo, deindependência intelectual e de individualismo, que nãotinha afinidade alguma com o igualitarismo desenfrea-do que caracterizava a América jacksoniana.”. (TOC-QUEVILLE, op. cit., 1969. p. 16).

52 Ibidem, p. 65.

Revista de Informação Legislativa168

Considero ímpia a máxima segundo aqual, em matéria de governo, a maioria deum povo tem o direito de tudo fazer e, noentanto, situo a origem de todos os po-deres nas vontades da maioria. Estaria emcontradição comigo mesmo?

Existe uma lei geral que foi feita, oupelo menos adotada, não somente pelamaioria de tal ou tal povo, mas pela maio-ria de todos os homens. Essa lei é a justi-ça. A justiça forma, portanto, o limite dodireito de qualquer povo (...) Quando merecuso a obedecer a uma lei injusta, nãonego à maioria o direito de dirigir; apelo àsoberania do gênero humano contra a so-berania do povo”53 (grifo nosso).

3.4. O governo local – a independência domunicípio como corolário da soberania do

povo na visão de TocquevilleEm rica passagem de sua obra, ao ressaltar a

íntima ligação entre o povo e o poder na incipi-ente nação americana, Tocqueville afirma:

“Em alguns países, embora o poderseja estranho em certa medida ao corposocial, o dirige e força a seguir certo ca-minho. Em outros, a força dominadoraestá dividida, estando em parte dentro eem parte fora das fileiras do povo. Masnada disso se vê nos Estados Unidos; láa sociedade governa-se a si própria porsi própria. Todo o poder se centraliza emseu seio. Mal se poderia encontrar umindivíduo que se atrevesse a conceber,ou ainda menos, a expressar a idéia de oprocurar noutro lugar. A nação participada confecção das leis pela escolha deseus legisladores, e na execução das mes-mas pela escolha dos agentes do gover-no executivo; quase pode dizer-se que segoverna a si própria, tão fraca e restrita éa parte deixada à administração, tão pou-co as autoridades esquecem sua origempopular e o poder do qual emanam. Opovo reina no mundo político america-no como Deus no universo. O povo é acausa e o objetivo de todas as coisas;tudo vem dele, e tudo é absorvido nele”54

(grifo nosso).

Sempre reafirmando que “o princípio da so-berania do povo governa a totalidade do siste-ma político dos anglo-americanos”55. Esse aris-tocrata francês faz uma comparação importan-tíssima entre a necessária distribuição de po-der e o direito fundamental de igualdade, aoesclarecer o porquê da obediência ao governopelo cidadão: “Nas nações que reconhecem asoberania do povo, cada indivíduo tem um qui-nhão de poder igual, e participa igualmente dogoverno do Estado. Por que, então, obedece eleao governo e quais são os limites naturais desua obediência? Cada indivíduo deve estar tãobem informado, ser tão virtuoso e forte comoqualquer de seus concidadãos. Obedece ao go-verno não por ser inferior aos que o conduzem,ou por ser menos capaz do que qualquer outrode se governar a si próprio, mas porque reco-nhece a utilidade da associação com os outroshomens e sabe que tal associação não pode exis-tir sem uma força reguladora. É um súdito emtudo o que concerne aos deveres dos cidadãosentre si; é livre e só responsável perante Deus,no que lhe diz respeito a si próprio. Daí surge amáxima, de que cada um é o melhor e único juizde seu próprio interesse particular, e a socieda-de não tem o direito de controlar as ações dohomem, a não ser que elas sejam prejudiciais aobem-estar comum, ou a não ser que o bem-estarcomum exija a sua ajuda. Esta doutrina é, uni-versalmente, admitida nos Estados Unidos. Exa-minarei agora a influência geral que exerce nasações ordinárias da vida; estou falando agorados corpos municipais.

O município (townships), tomado como umtodo, e em relação ao governo central, é apenasum indivíduo, como qualquer outro ao qualseja aplicável a teoria que acabo de descre-ver”56 (grifo nosso).

Assim, ao indicar a abstenção da atividadeestatal na esfera particular de cada indivíduo,com fundamento na soberania popular que nãopermite uma subordinação do Estado sobre oindivíduo, Tocqueville passa em seguida a exa-minar a independência (no sentido de “escolhada forma de agir”) dos municípios vista comoconseqüência natural do princípio da soberaniado povo:

“A independência municipal nos Es-tados Unidos é, portanto, uma conse-qüência natural deste próprio princípioda soberania do povo. Todas as repúbli-53 A democracia na américa. Tradução J. A. G.

Albuquerque. (Os pensadores, 19) São Paulo : Abril Cul-tural, 1973. p. 241.

54 Ibidem, p. 69-70.

55 Ibidem, p. 70.56Ibidem, p. 70-71.

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cas americanas, mais ou menos, o reco-nhecem; mas as circunstâncias favore-cem, particularmente, o seu crescimentona Nova Inglaterra.

Nesta parte dos Estados Unidos, avida política teve origem nos municípios;e quase se pode dizer que cada um delesforma originalmente uma nação indepen-dente. Quando os reis da Inglaterra afir-maram, depois, sua supremacia, ficaramcontentes por assumir o poder central doEstado. Deixaram os municípios ondeantes estavam; e, embora estejam agorasujeitos ao Estado, não o eram a princí-pio e nunca completamente o foram. Nãoreceberam os seus poderes da autorida-de central, mas, ao contrário, abdicaramde uma parte de sua independência emfavor do Estado. Trata-se de distinçãoimportante, que o leitor deverá, constan-temente, recordar. Os municípios são,geralmente, subordinados ao Estado ape-nas nos interesses a que chamarei soci-ais, por serem comuns a todos os outros.São independentes em tudo o que só aeles diz respeito; e não acredito que entreos habitantes da Nova Inglaterra se en-contre um único homem que reconheçater o Estado qualquer direito de interferirnos negócios de seu próprio município.As cidades da Nova Inglaterra comprame vendem, processam ou são acusadas,aumentam ou diminuem suas taxas e ne-nhuma autoridade administrativa jamaispensa em oferecer qualquer oposição”57

(grifo nosso).Ao delimitar a subordinação dos municípi-

os ao Estado apenas aos interesses por ele cha-mados de sociais (comuns a todos os municípi-os), Tocqueville constatava a necessidade dedivisão das competências locais e nacionais,consoante ilustra o texto abaixo:

“Há certos deveres sociais, contudo,que estão empenhados em cumprir. Se oEstado está necessitado de dinheiro, acidade não pode reter os abastecimen-tos; se o Estado projeta uma estrada, omunicípio não pode recusar autorizaçãopara ela atravessar o seu território; se oEstado fizer um regulamento de polícia, acidade deve pô-lo em vigor; se for pro-mulgado um sistema uniforme de instru-ção pública, todas as cidades estão obri-gadas a estabelecer as escolas que a lei

ordenar. Quando passar a examinar a ad-ministração da lei nos Estados Unidos,acentuarei a maneira e os meios segundoos quais os municípios são compelidos aobedecer nos diferentes casos; agora,quero mostrar apenas a existência da obri-gação. Por estrita que seja essa obriga-ção, o governo do Estado apenas a im-põe em princípio, e, em seu desempenho,o município retoma todos os seus direi-tos independentes. Assim, os impostossão votados pelo Estado, mas são arre-cadados e coletados pelo município; oestabelecimento de uma escola é obriga-tório, mas o município constrói, paga esuperintende a mesma. Na França, o co-letor estadual recebe os impostos locais;na América, o coletor da cidade recebeos impostos do Estado. Assim, o gover-no francês empresta seus agentes à com-mune; na América, o município emprestaseus agentes ao governo. Só isso mostrao quão amplamente diferem as duas na-ções”58

Portanto, consoante ressalta a obra deTocqueville, há evidente identidade entre omodelo federativo americano que valoriza aautonomia regional, e a proteção dos direitosfundamentais: igualdade e liberdade.

4. A autonomia regional e a descentralizaçãoadministrativa como mecanismos clássicos de

defesa dos direitos de liberdadeOs elaboradores da Constituição americana

rejeitaram não só o modelo confederativo como,também, o modelo unitário de governo. Ao in-vés, eles fundaram o novo governo americanoem uma teoria completamente nova: o federalis-mo. Em uma confederação, os Estados sobera-nos, por meio de tratados internacionais, coo-peram mutuamente um com o outro. A sobera-nia permanece com os Estados e os indivíduossão cidadãos dos respectivos Estados. Em umsistema unitário, por outro lado, o governo na-cional é soberano e os Estados-membros, casoexistam, são meros braços administrativos dogoverno central. No sistema federativo ameri-cano clássico, o povo constitui o único deten-tor da soberania e delega poucos poderes aogoverno nacional e alguns outros poderes paraos Estados-membros. Indivíduos são, ao mes-mo tempo, cidadãos do governo geral e dosEstados-membros.

57 Ibidem, p. 71. 58 Ibidem, p. 72.

Revista de Informação Legislativa170

Este breve resumo mostra-se importante porduas razões. Primeiro, por assinalar que o siste-ma federal americano não se constitui simples-mente de um conjunto de Estados longa manusdo poder central. Os Estados americanos nãosão unidades administrativas que só existempara implementar políticas feitas pelo governocentral. Os Estados funcionam, de forma inde-pendente e autônoma, implementando políticasa eles asseguradas na Constituição por parcelaexpressa de poder, deferida pelo titular do po-der constituinte.

Ademais, no Federalismo Clássico, os ela-boradores da Constituição esperaram que osEstados-membros fossem os principais agen-tes elaboradores das ações estatais no sistemafederal. Os poderes delegados ao governo fe-deral são comparativamente menores em núme-ro e em importância, relacionando-se, principal-mente, com a matéria diplomática, militar e as-suntos econômicos nacionais, como o fluxo demercadorias entre os Estados-membros. Os te-mas estatais fundamentais para os indivíduospermaneceram no âmbito do próprio Estado-membro, para solucionar os problemas deacordo com as características locais.

Essa autonomia regional e descentraliza-ção administrativa constituem característicabásica do modelo federativo americano, tendoíntima correlação com a proteção dos direitosfundamentais de então; isso porque, no Estadoliberal, preocupa, sobremaneira, a limitação dopoder para a garantia das liberdades individu-ais, em sentido omissivo, do que à ação do Es-tado em sentido comissivo e construtivo.

Esses direitos fundamentais de primeira ge-ração referem-se principalmente às liberdadesindividuais, tais como liberdade pessoal de pen-samento, de religião, de reunião e de liberdadeeconômica.

Nesse momento, é adequado e proveitosoapresentar, como uma moldura de referência paraesta análise, o Preâmbulo da Constituição ame-ricana que expressa íntima relação entre o Esta-do americano instituído pela Constituição e aproteção das liberdades públicas, verbis:

“Nós, o Povo dos Estados Unidos, afim de constituir uma União mais perfeita,estabelecer a Justiça, assegurar a Tran-qüilidade doméstica, providenciar a De-fesa comum, promover o Bem-Estar gerale assegurar as Bênçãos da Liberdade paranós e nossa Posteridade, determinamose estabelecemos esta Constituição paraos Estados Unidos da América”

Consoante ensinamento de BenjamimFletcher Wright:

“Os seis objetivos deste preâmbulopodem ser divididos em dois grupos detrês cada um. O primeiro inclui formar umaunião mais perfeita, assegurar a tranqüili-dade doméstica e providenciar a defesacomum. Todos estes estão intimamenterelacionados com o problema central edominante da controvérsia da ratificação,tendo sido bastante discutidos, até repe-titivamente, e mesmo com ocasionais in-consistências. A ênfase atribuída à or-dem, ao poder e à estabilidade é em parteo resultado da concepção de Hamiltonsobre a natureza e finalidade do governo,mas deve também ser creditada às cir-cunstâncias da época e à natureza da dis-cussão. O debate sobre justiça, bem-es-tar geral e liberdade é, por outro lado,incompleto e insatisfatório – a menos quetenhamos o cuidado de recordar as hipó-teses admitidas no debate pelos dois par-tidos e quase universalmente aceitas pelovoto popular”59 (grifo nosso).

4.1. Liberdades públicas e Estado Liberal

4.1.1. CONCEITO E FUNDAMENTOS DAS LIBERDADES

PÚBLICAS COMO PRESTAÇÃO MERAMENTE NEGATIVA

Dá-se o nome de liberdades públicas àque-las prerrogativas que tem o indivíduo em facedo Estado. Constituem um dos componentesmínimos do Estado de direito. Neste, o exercíciodos poderes do Estado não vai ao ponto deignorar que existem limites para a sua atividadealém dos quais invadiria esfera jurídica do cida-dão. As liberdades públicas, assim, dizem res-peito, num primeiro momento, a uma inibição dopoder estatal, ou seja, a uma prestação meramen-te negativa; os direitos individuais clássicos sãosatisfeitos pela não-interferência do Estado.

A expressão liberdades públicas tornou-se,nos últimos tempos, importante, a ponto de con-verter-se em alguns países (a França, por exem-plo) em título de disciplina universitária. Um dosautores mais expressivos, dentro da literatura jáformada para tal disciplina, Georges Burdeau,utiliza, tratando dos institutos de direito públi-co que se referem ao problema, a frase “mise enoeuvre de la liberté”60.

59 Segundo WRIGHT op. cit., p. 23-24.60 BURDEAU apud SALDANHA, Nelson. Estado

de direito, liberdades e garantias : estudos de direitopúblico e teoria política. São Paulo : Sugestões Literá-rias, 1980. p. 29.

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Por outro lado, é fato bastante conhecidoque o conceito de liberdade tem variado muito,quer no modo de ser entendido, quer na formade ser negado ou afirmado, desejado ou repudi-ado, e na sua relação com a experiência de liber-dade, situada neste ou naquele plano do viver61.A tentativa de formular uma noção geral esbar-ra sempre, se se trata da liberdade, com hesita-ções impostas pelo conhecimento de debatesseculares, e com a tendência analítica que de-compõe a representação da liberdade em diver-sos planos ou aspectos, cada qual conceitual-mente distinto.

Nesse diapasão, Nelson Saldanha ensina que:“A experiência da liberdade, no plano

da vida social e das instituições, implicauma série de condições. E uma observaçãode cunho geral que parece possível desdelogo é a seguinte: a liberdade, a partir dodesenvolvimento dos grupos, se tornoucada vez mais possível, em face da supera-ção do chamado poder difuso e das lide-ranças primitivas; entretanto, o passar dostempos veio por vezes tornar mais difícil aliberdade, com a complexificação da vidasocial impondo sobre os indivíduos meca-nismos sempre mais pesados de controle ede pressão. De qualquer sorte, a experiên-cia de liberdade propriamente dita se dá nocurso e nas estruturas da vida social, den-tro de contextos que correspondem a solu-ções organizacionais específicas. Nestesentido se entende a frase muito britânicade Heyeck: freedom is not a state of naturebut an artifact of civilization. Sim, tanto aliberdade como a sua falta são obras davida civilizada, e este é um dado que põecomo problema a responsabilidade dos ho-mens em se auto-ordenarem: uma respon-sabilidade diretamente refletida nos deba-tes e nas indagações, e indiretamente ma-nifestada nas oscilações institucionais, nadiversificação dos regimes e das formas daordem”62 (grifo nosso).

Na mesma ordem, Colliard ensina:“as relações do indivíduo e do Estadoconstituem o próprio centro dos proble-

mas jurídicos do homem. Os sistemaspolíticos oscilam com uma série de pon-tos de equilíbrio intermediários entre umafórmula que nega as liberdades humanas(concepção dita comunitária, ou totalitá-ria) e uma fórmula que exalta as liberda-des individuais (concepção denominadaindividualista). O que importa, porém, éassinalar os limites dos sistemas, pois nãose encontram, nunca, no estado puro,sociedades totalitárias ou sociedades to-talmente individualistas, porque, levadasao extremo, as liberdades públicas des-troem todo organismo social e significamanarquia”63.

Assim, a Federação americana, nessa abor-dagem, deve ser vista sob o prisma de um Esta-do que se aproxima mais da concepção denomi-nada individualista, pois exalta a liberdade indi-vidual, à medida que favorece a distribuição dopoder estatal, em diferentes esferas de atuação,com a clara finalidade de administração descen-tralizada que favoreça a liberdade individual,respeitando a diversidade dos indivíduos quecompõem o Estado.

Evidentemente, estima-se defende-se a liber-dade como algo valioso e é fácil afirmar que osprogressos históricos representam acréscimosem sua proteção e em sua generalização. Mas,por dentro desta evidência, pode-se descobrirum postulado constituído e defendido pela pró-pria ideologia liberal.

A liberdade tem um caráter histórico porquedepende do poder do homem sobre a natureza, asociedade e sobre si mesmo em cada momentohistórico; entretanto, sempre se ressaltou avalorização da pessoa humana. A liberdade é,portanto, conquista constante. O conteúdo daliberdade amplia-se com a evolução da humani-dade. Fortalece-se e estende-se, à medida emque a atividade humana se alarga.

Cumpre lembrar, como ensina Emile Durkheim64,que a pessoa é uma categoria histórica, isto é, ovalor da pessoa humana hoje reconhecido comauréola de santidade é fruto da civilizaçãohumana.

A importância da pessoa65, como categoriafilosófica, relaciona-se diretamente com a temá-

61 Nesse sentido: “A garantia jurídica das liberdadespúblicas traduz, no direito positivo, uma certa concep-ção ideológica das relações do homem com a sociedade,pelo que seu aparecimento e evolução se explicam emfunção dessa ideologia” (RIVERO apud CRETELLAJÚNIOR, José. Curso de liberdades públicas. Rio deJaneiro : Forense, 1986. p. 11).

62 SALDANHA, op. cit., p. 30.

63 COLLIARD, apud CRETELLA JÚNIOR, op. cit.,p. 13.

64 DURKHEIM, apud REALE, Miguel. Pluralismo eliberdade. São Paulo : Saraiva, 1963. p. 63.

65 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos:a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versusa liberdade de expressão e informação. Porto Alegre :

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tica das chamadas liberdades públicas. Foi essapreocupação com o ser humano, nas suas rela-ções com o ente estatal, que fizeram com quefossem estabelecidas esferas individuais de pro-teção na qual a atuação estatal não poderia in-filtrar-se.

No cerne da construção constitucional oci-dental moderna, erige-se o valor liberdade comodireito fundamental, tendo a revolução america-na como um dos marcos, ao lado da revoluçãofrancesa66. Consoante ensinamento de GeraldoAtaliba:

“No centro da construção constitucio-nal ocidental moderna – como propostapelo constitucionalismo informador dasRevoluções francesa e norte-americana– está a tábua de direitos do homem e docidadão, o rol das chamadas liberdadespúblicas. Quase todas as constituiçõesdo constitucionalismo têm, como a nos-sa, uma lista de direitos assegurados aoscidadãos (e muitas vezes, também, a nãocidadãos). Esses chamados direitos indi-viduais são postos como fulcros dos sis-temas constitucionais”67.

Com o liberalismo triunfante, por meio dasrevoluções que derrubaram as monarquias ab-solutas, o valor liberdade se erigiu pública e até

oficialmente em valor dominante. Do ponto devista do liberalismo clássico, a existência de ins-tituições políticas (que alguns radicais encara-vam como um mal necessário), era função dasvontades intrinsecamente livres dos indivídu-os, e toda a história seria, como forma de pro-gresso, uma inexorável aproximação ao ideal daliberdade plena. O liberalismo ensejou inclusivea formação de um conceito novo de saber, nãotão novo talvez por provir da Renascença: osaber como algo público, distinto do saber ocul-to e secreto de outras épocas. Este conceito dosaber como coisa pública, obra da ilustração edo acesso de todos à razão e à ciência, com-pletava-se com o de uma verdade objetiva,conhecida por meio do saber progressivo, dodebate franco, função de vida social liberadade parcialismo e privilégios, sobretudo privi-légios feudais.

Esse conceito de saber promoveu também atendência que ficou, marcantemente, caracteri-zando a cultura ocidental moderna e contempo-rânea, em contraste com as culturas antigas emgeral, quase sempre dotadas de poucos livrosprincipais: senão mesmo de um só. Do mesmomodo, a mentalidade ocidental contemporâneaassumiu um crescente pluralismo em matéria deposições filosóficas, em matéria de estilos artís-ticos, em matéria de leis. Em lugar da lei, nosingular, as leis, no plural, como experiência sem-pre mais numerosa, apesar de ser falar na lei emsentido genérico, e de ter-se o Estado como fon-te única do Direito, nisso negando-se o plura-lismo de fontes que houve na Idade Média.

Na primeira vaga romântica, Benjamin Cons-tant arrolou como direitos individuais os seguin-tes: a liberdade individual, o julgamento pelojúri, a liberdade religiosa, a liberdade de in-dústria, a inviolabilidade da propriedade e aliberdade de imprensa68. Sua teoria constitucio-nal, conciliatória e realista, incluía as conquis-tas liberais temperando-as com o doutrinaris-mo nascente.

Dentro ainda do pensamento do séculoXVIII, um dos momentos mais importantes parao nosso tema foi a diferenciação, indicada (e atésentida) por Jean-Jacques Rousseau, entre a li-berdade natural ou física e a liberdade civil,isto é, social e política. Para Rousseau, os ho-mens depois do contrato social se encontraminseridos num corpo que deve ser coeso e ondea liberdade de cada qual consiste principal-mente em incluir sua vontade no conjunto for-

Fabris, 1996. p. 45, ensina, verbis: “A importância dapessoa como categoria filosófica avulta-se no mundocontemporâneo tendo em vista que muitas vezes é opróprio valor do ser humano que está posto em causa.A despeito das conquistas alcançadas no campo dosdireitos humanos, porém, as vicissitudes e as constan-tes crises e guerras a que são submetidos diferentes po-vos e nações revelam que o processo de afirmação dohomem como pessoa portadora de valores éticos insu-primíveis, tais como a dignidade, a autonomia, a liber-dade, exigem uma constante vigilância. Talvez por issoa filosofia dos valores seja hoje disciplina que se expan-de e impulsiona uma axiologia jurídica”.

66 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucionaldas liberdades. São Paulo : Saraiva, 1989. p. 34, afirmaque: “O campo estava preparado, portanto, para o sur-gimento da Reforma, cujo princípio fundamental foi aliberdade de consciência, de Rousseau, do enciclopedis-mo e da Revolução Francesa. Nos Estados Unidos, de-corrente da experiência inglesa, estava preparado o es-pírito para as declarações de direitos de Virgínia, NovaJersey e Carolina do Norte. A Revolução Francesa e aIndependência Americana, através de declarações for-mais de direitos, consagravam, então, a experiênciainglesa da Magna Carta e do Habeas Corpus Act de1679, especialmente quanto à consciência de que direi-tos somente têm consistência se acompanhados dosinstrumentos processuais para a sua proteção eefetivação”(grifo nosso).

67 ATALIBA. Liberdades públicas. Revista de Infor-mação Legislativa, v. 24, n. 93, jan./mar. p. 99, 1987. 68 CONSTANT apud SALDANHA op. cit., p. 33.

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mado pelas vontades de todos69. Tocqueville,em esclarecedora passagem sobre esta temáti-ca, afirma, comentando as associações políti-cas nos Estados Unidos:

“O privilégio mais natural do homem,depois do direito de agir por si próprio, éo de combinar seus esforços com os deseus semelhantes, e de agir em comumcom eles. O direito de associação, por-tanto, parece-me quase tão inalienável emsua natureza como o direito da liberdadepessoal. Nenhum legislador o pode ata-car sem pôr em perigo os fundamentosmesmos da sociedade”70.

4.1.2. LIBERDADE E ORGANIZAÇÃO ESTATAL SOB OENFOQUE DE UM STATUS NEGATIVUS.

Assim, a mentalidade do constitucionalis-mo clássico entendia que a nação, ao consti-tuir-se (e aqui se forjou a doutrina do pouvoirconstituant), impõe aos indivíduos serem livres,ou seja, serem partes de um todo criado por con-sentimentos livres.

Esse espírito mostrou-se especialmente pre-sente no incipiente Estado americano federado.Nesse sentido, Alexis de Tocqueville, ao tratardas “Vantagens do sistema federal em geral, esua utilidade especial na América” ensina:

“Entre as pequenas nações, o olhoda sociedade penetra em toda parte; oespírito de melhoria desce até os meno-res detalhes: por ser a ambição do povoem muito grande parte compensada pelasua fraqueza, os seus esforços e recur-sos voltam-se quase inteiramente para oseu bem-estar interior e não são de modoalgum sujeitos a dissipar-se na bruma vãda glória. Ademais, como as faculdadesde cada um são geralmente limitadas, as-sim o são também os seus desejos. Amediocridade da fortuna torna as condi-ções mais ou menos iguais; os costumestêm uma maneira de se conduzir simples etranqüila. Assim, a levar tudo em conta econsiderando os diversos graus de mo-ralidade e conhecimentos, encontra-seordinariamente nas pequenas naçõesmais confortos, mais população e maistranqüilidade que nas grandes”71.

Segundo Oscar e Mary Handlin:“O homem livre, escreveu Helvécio,

‘é aquele que não está em feros, nem en-carcerado, nem aterrorizado como um es-cravo, pelo medo do castigo’. Tal conceitoremonta à definição de Hobbes: ‘ A liber-dade (ou a autonomia) consiste propria-mente na ausência de oposição... Um ho-mem é livre quando não é impedido de fa-zer aquilo que deseja fazer e que, pela suavontade e inteligência, é capaz de fazer’.

Esses princípios expressam um dospostulados fundamentais da teoria polí-tica do Ocidente, nos últimos três sécu-los. A liberdade, sobe esse prisma, é aantítese do outro. A liberdade é, portan-to, um estado a que chega um indivíduoresguardando-se da coação ou ameaçade coação. Robinson Crusoe, habitandoum mundo onde superior algum impera,nem lei alguma o constrange, é o protóti-po do homem inteiramente livre”72.

Os filósofos e historiadores que abraçaramessa concepção descreveram a liberdade em ter-mos negativos (status negativus73). Procurarama compreensão de seu desenvolvimento pelaanálise de como os homens se defenderam a sipróprios e os seus direitos contra a restrição.Nos tempos modernos, tendo sido o Estado oorganizador dos meios mais eficientes de coer-ção, a história da liberdade vem sendo escritalargamente como uma sucessão de fatos e ten-dências, por meio dos quais o povo tem apren-dido a se defender da interferência estatal.

No presente estudo, não é necessário deter-se na apreciação da validade do conceito nega-tivo como uma proposição abstrata e filosófica.Mas é indispensável julgar a adequação desseconceito para poder explicar como agiu o povoem certas circunstâncias que podiam ser tidascomo livres.

Para explicar algumas fases da evolução deleis que contribuíram para a liberdade nos Esta-dos Unidos, muito vale a idéia da ausência derestrição. A luta contra as restrições estatais fa-voreceu o estabelecimento da liberdade de pala-vra e de imprensa, de consciência e de cátedra.

69 SALDANHA, op. cit., p. 33.70 TOCQUEVILLE, op. cit., 1969. p. 115.71 TOCQUEVILLE, op. cit., 1987, p. 124.

72 HANDLIN, Oscar e Mary. As dimensões da li-berdade. Tradução Edilson Alkmin Cunha. São Paulo :Fundo de Cultura, 1961. p. 19.

73 Segundo Robert Alexy, ao descrever “a teoria dosstatus” de Georg Jellinek, o status negativo correspon-de à esfera de liberdade na qual os interesses essencial-mente individuais encontram sua satisfação. É, pois, umaesfera de liberdade individual, cujas ações são livres, por-que não estão ordenadas ou proibidas, vale dizer: tantosua omissão como sua realização estão permitidas.

Revista de Informação Legislativa174

O caráter negativo, da concepção de liber-dade, diminui, porém, a sua utilidade. Essaconcepção estreita limita a matéria de modo aexcluir seus aspectos críticos. Destarte, ficampreteridos importantes acontecimentos, cujaanálise o critério da coação externa oferece pou-ca vantagem. Por exemplo, os repórteres têmmenos liberdade de expressar sua própria opi-nião do que os professores; não porque elesestejam mais sujeitos ao controle externo, masporque um jornal é uma instituição diferente deuma universidade74. Para entender a diferença épreciso saber por que os direitos específicosdos editores e das congregações evoluíram demodo diverso e por que um intricado desenvolvi-mento social destinou, na comunidade, para aimprensa um status e para a universidade, outro.

A evolução da liberdade de consciência éoutro exemplo do malefício da concepção ne-gativa da liberdade. Ao se estabelecerem ascolônias, o Estado exercia rígida supervisãosobre o culto. A um século e meio, sua capaci-dade de intervir nesse campo não diminui; a his-tória daquela época está repleta de assaltos àliberdade de consciência. No entanto, por voltade 1760, antes de quaisquer mudanças na lei ouna forma de governo, essa liberdade era ampla-mente admitida. A tolerância religiosa do mea-do do século XVIII não foi o resultado da somade resistência aos ataques passados, mas deforças sociais e culturais totalmente diversas75.

Além disso, é impossível tratar de conflitosde liberdades se essas são mensuradas sim-

plesmente pela ausência de restrição. Como con-ciliar a liberdade de imprensa com o direito desigilo dos indivíduos de que ela se ocupa, oucomo harmonizar o direito de greve dos empre-gados de uma indústria, com a habilidade dealgum grupo descontente em boicotá-la? As leisantitrustes, limitando os direitos do monopoli-zador em benefício de seus fregueses, prejudi-caram a liberdade? Pelo critério da ausênciade restrição, o mais que se pode dizer é quetais casos envolvem vantagem para os direitosde uns e prejuízo para os de outros. Daí não serpossível proceder à apreciação do resultado, seredundou ou não, de modo geral, em proveitoou detrimento para a liberdade. Sob esse pris-ma, nenhuma sociedade pode ser consideradatotalmente livre.

Assim, a concepção da liberdade como au-sência de restrição se restringe às ameaças even-tuais de interferência surgidas em fragmenta-das áreas de experiência social. A definição deliberdade como ausência de restrição foi o pro-duto de condições históricas peculiares. Enten-der-se-á melhor a adequação do conceito nega-tivo de liberdade por meio de uma análise domodo em que era então empregada a palavra.

A liberdade, nos séculos XVIII a XIX, justi-ficou-se como um ataque contra um sistema deprivilégios herdado do passado. No feudalis-mo, havia uma complicada ordem ou hierarquiade direitos e privilégios, entre os quais as prer-rogativas da Coroa e as faculdades da nobreza,do clero, das corporações municipais e outras.

Tais faculdades não eram nem restritas nemgerais, mas se particularizavam propriamentecomo pertencentes a diferentes grupos ou po-sições. Os privilégios de pessoas, de corpora-ções, da nobreza não eram idênticos. A cadaqual eram atribuídas as faculdades que lhe com-petiam pela classe ou situação que ocupasse naordem social total. E, para a preservação dessasgraduadas faculdade, mais tarde consideradas“um incômodo geral”, foram empregados todosos meios úteis de coerção.

Contra essas prerrogativas, grupos sociaisdescontentes e desprivilegiados travavam umalonga luta que, começando muitas vezes pelaquestão de um privilégio particular, terminavam,freqüentemente, no repúdio de todo direito deprivilégio em geral. O processo criava um balu-arte de garantias positivas contra os antigosabusos do poder. A estratégia era necessaria-mente negativa, dedicada, como era, à erradica-ção de práticas profundamente arraigadas natradição, na lei e na política.

74 TOCQUEVILLE, op. cit., 1973. p. 226, afirma:“Nos Estados Unidos, quase não há povoado mais im-portante sem seu jornal. Admite-se, sem dificuldade,que entre tantos combatentes não se possa estabelecerdisciplina, nem unidade de ação: cada um alça seu pró-prio pavilhão. Os jornais não podem, portanto, nosEstados Unidos, fomentar essas grandes correntes deopinião que derrubam ou transbordam dos mais com-pactos diques. Essa divisão das forças da imprensa pro-duz, ainda, outros efeitos não menos notáveis: sendofácil a criação de um jornal, todo mundo pode fazê-lo;por outro lado, a concorrência faz com que um jornalnão possa esperar grandes lucros, o que impede as altascapacidades industriais de se meterem nesse tipo deempresa”.

75 TOCQUEVILLE, (ibidem, p. 250), afirma: “Amaior parte da América inglesa foi povoada por ho-mens que, após terem-se subtraído à autoridade do papa,não se submeteram a nenhuma supremacia religiosa;trouxeram, portanto, para o Novo Mundo, um cristia-nismo que não poderíamos retratar melhor, senão cha-mando-o de democrático e republicano: isso facilitousingularmente o estabelecimento da república e da de-mocracia nos negócios públicos. Desde o princípio, apolítica e a religião se puseram de acordo e daí para afrente nunca mais deixaram de estar. (...)”

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Na luta contra o privilégio, o povo clamavapela liberdade, mas somente na acepção geraldo termo do século XVI: a distinção de pessoasde condição servil das que não o eram. Servos,escravos, criados, eram pessoalmente não li-vres, por se acharem sujeitos à vontade e à au-toridade de um senhor; os homens livres nãoeram assim dependentes. Conseqüentemente,na luta contra o privilégio, a liberdade reves-tiu-se do sentido principal de resistência àcoerção. Ansiosa, acima de tudo, por libertaro indivíduo dos grilhões que o impediam deusar de seus direitos, aquela época inclinou-se a conceber a liberdade nos termos de Helvé-cio como a antítese do poder de outros.

4.2. O núcleo político do Estado liberal navisão de macridis

As revoluções burguesas propiciaram aemergência do Estado Liberal, cuja preocupa-ção maior era dar, àqueles que controlavam aeconomia (os burgueses), ampla liberdade deexercerem suas atividades, sem estarem amea-çados por qualquer outro poder. Os liberaispregavam o respeito aos direitos individuais,mas, quanto ao mercado, este deveria regular-se por si só.

Roy C. Macridis76, cientista político, nosensina, verbis:

“O indivíduo – suas experiências eseus interesses – é o conceito básico as-sociado à origem e crescimento do libera-lismo e das sociedades liberais. O conhe-cimento e a verdade derivam do raciocí-nio do indivíduo que, por sua vez, é for-mado pelas associações que os seus sen-tidos fazem a respeito do mundo exterior,pela experiência(...)

O liberalismo é uma ética individua-lista pura e simples. Nas suas fases inici-ais, o individualismo se expressa em ter-mos de direitos naturais, liberdade e igual-dade. Ele está embebido no pensamento

moral e religioso, mas já aparecem os pri-meiros sinais de uma psicologia que con-sidera os interesses materiais e a sua sa-tisfação como importantes na motivaçãodo indivíduo. Em sua segunda fase, o li-beralismo se baseia numa teoria psicoló-gica segundo a qual a realização do inte-resse é a principal força que motiva osindivíduos”77.

Nesse sentido, os liberais exaltavam comovalores básicos a serem defendidos: o indivi-dualismo e as liberdades individuais como for-ma de desafio e limite ao poder político do Estado.

Assim, esse professor formado em Direitopela Universidade de Paris ensina :

“Os liberais proclamavam o individu-alismo e as liberdades individuais – es-pecialmente a liberdade de movimento ede comércio; eles tomaram emprestado dopassado para desenvolver o que gradu-almente se tornou uma teoria abrangentede direitos individuais a desafiar e a li-mitar o poder político absoluto”78 (grifonosso).

Macridis, buscando uma melhor compreen-são do que foi o liberalismo, divide a democra-cia liberal em três núcleos básicos: o moral, oeconômico e o político79.

No núcleo moral, deve o indivíduo ser res-peitado e ter a liberdade de buscar a sua auto-realização. A liberdade divide-se em liberdadepessoal (todos os direitos que protegem o indi-víduo contra o governo), compreendendo as li-berdades individuais de pensamento, expressãoe crença e liberdade social, a de progredir oumover-se socialmente, independentemente deraça e de crença, objetivando alcançar uma po-sição na sociedade compatível com suas poten-cialidades.

O núcleo econômico representa o propósi-to de liberar a atividade econômica individual,resultando nas liberdades econômicas (direitode propriedade, de herança, de produção, deacumular, de comprar e vender e de realizar con-tratos).

A base teórica encontra-se em autores comoAdam Smith80 (A Riqueza das Nações), Jeremy

76 No prefácio da obra Ideologias Políticas Con-temporâneas. Tradução de Luís Tupy Caldas de Mourae Maria Inês Caldas de Moura, Brasília : Editora Uni-versidade Brasília, l982. p.13; Roy C. Macridis assinalaque “as ideologias moldam as nossas motivações, asnossas atitudes e os regimes políticos sob os quais vive-mos. Elas dão formas a nossos valores”. Assim, esseautor ressalta algo importantíssimo que se procura de-monstrar nesse trabalho, qual seja a íntima relação en-tre “as ideologias” e os valores a serem por ela alcança-dos, seja na expressão da forma de Estado (unitário efederado), seja na expressão de ideologias políticas comoo liberalismo.

77Ibidem, p.37.78 Ibidem, p. 38.79 Ibidem.80 Adam Smith, economista escocês (1723-1790),

formulador da Teoria do Liberalismo Econômico, é umdos mais influentes teóricos da Economia moderna.Em 1763, durante uma viagem à França e à Suíça, entra

Revista de Informação Legislativa176

Bentham81 e o utilitarismo e, ainda, John StuartMill e o auto-interesse esclarecido.

Por fim, o terceiro componente dessa tríadeelaborada por Macridis é o núcleo político, in-timamente ligado com o tema das liberdadespúblicas, ora em estudo, defende as liberdadesindividuais frente ao poder do Estado e prevêoportunidades iguais para todos. Coloca o di-reito do indivíduo de seguir a própria determi-nação, dentro dos limites impostos pelas nor-mas, como fundamento das relações sociais. Estenúcleo político se compõe de quatro princípiosbásicos:

a) o consentimento individual, baseadonas teorias contratuais, nas quais homens emulheres consentiam em ligar-se a um siste-ma político e aceitar suas decisões, visandoobter proteção, estabelecendo-se, assim, umasociedade civil onde é estabelecida uma le-gislatura comum, um juiz comum e um execu-tivo comum;

b) a representação ou governo represen-tativo, a legislatura eleita pelo povo, consti-tuída por aqueles que podem tomar as deci-sões em nome dele, sem no entanto privaremos indivíduos de seus direitos naturais, su-primirem suas liberdades ou tomar-lhes suaspropriedades;

c) o constitucionalismo, que significa umdocumento escrito (a Constituição) que dágarantias para o indivíduo, ao limitar o poderdo governo e estipular como as funções degoverno devem ser executadas, bem comodisciplina o acesso ao poder por meio de elei-ções periódicas;

d) a soberania popular, significando, emúltima instância, que o poder reside no povo, e

nele está a fonte de toda autoridade política82.Assim, observa-se que, nos moldes de ou-

tros autores que tratam do tema liberalismo erespeito às liberdades individuais, Macridis co-mete um equívoco ao não elencar o Federalismocom característica do núcleo político do Esta-do Liberal, intimamente ligado com o tema dasliberdades públicas, pois, conforme se demons-tra com base no modelo americano, esta formade Estado favoreceu as liberdades individuais.

4.3. O papel de promoção das liberdadespúblicas promovido pela autonomia regional e

pela descentralização administrativa daFederação americana

4.3.1. A AUTONOMIA REGIONAL E A DESCENTRALIZAÇÃO

ADMINISTRATIVA NASCEM JUNTO COM O ESTADO AMERICANO

Antes da declaração da independência, oCongresso Continental havia recomendado àscolônias que formassem governos estaduaisindependentes. Assim, a própria formação doEstado americano federado, originário de umaconfederação, já trazia, desde a sua origem umapreocupação relevante com a autonomia regio-nal e com a descentralização administrativa.

Conforme ensina Roscoe Pound83, em obe-diência à autonomia de cada uma das antigas

em contato com os fisiocratas. Volta à Escócia e publi-ca sua obra principal, Investigação sobre a Natureza eas Causas da Riqueza das Nações (1776). Nela, defineos pré-requisitos do liberalismo econômico e da riquezadas nações: combate aos monopólios, públicos ou pri-vados; não-intervenção do Estado na economia e sualimitação às funções públicas de manutenção da ordem,da propriedade privada e da Justiça; liberdade na negoci-ação do contrato de trabalho entre patrões e emprega-dos e livre-comércio entre os povos.

81 A filosofia utilitarista de Bentham pode ser en-tendida pelo fato de que esse autor defendia as liberda-des com base na sua utilidade; assim, Macridis (op.cit, p. 44) ensina: “É, por exemplo, mais agradável (oumenos penoso) para um número maior de pessoas numsistema expressar livremente as suas idéias, adoração aDeus à maneira que escolheram, e ler o que lhes apraz.Seria penoso se houvesse censura e falta de liberdade deexpressão e de crença”.

82 A discussão sobre o liberalismo aconteceu de modoum tanto tardio no Brasil. Para o Professor LeonelSevero Rocha, o período no qual nasce a teoria liberalmoderna no Brasil se dá nos últimos dez anos da Mo-narquia, que precedem a proclamação da República em1889, e vai até a promulgação da Constituição de 24 defevereiro de 1891. Para ele, “nessa fase, o Estado bra-sileiro, independente em 1822, fundado na herança dosistema administrativo e político português, vai tentardefinir-se como instituição política moderna. Trata-sede uma importante transição, em que os atores sociaissão ultrapassados pelos acontecimentos, e os discursoscomeçam a ter uma difusão na sociedade jamais alcan-çada anteriormente, ultrapassando mesmo a intençãode seus emissores. Pela primeira vez, notadamente nadiscussão das eleições diretas e da abolição, o discursopolítico atingiria, muito além do então restrito espaçopúblico, camadas mais profundas da sociedade. É prati-camente o nascimento da política moderna e da ideolo-gia no Brasil”. (ROCHA, Leonel Severo da. A demo-cracia em Rui Barbosa: o projeto político liberal-racio-nal. Rio de Janeiro : Liber Juris, 1995. p.2).

83 POUND, Roscoe. Desenvolvimento das garanti-as constitucionais da liberdade. Tradução de E. JacyMonteiro. São Paulo : IBRASA, 1965. p. 64: “A idéiade constituição escrita tinha por precedente o Instru-mento do Governo sob a Comunidade, mas era conhe-cida dos juristas da Revolução tanto pelas cartas quetinham lido nos livros de direito como pelas cartas sobas quais os governos coloniais e provinciais vinhamfuncionando, e às quais se haviam acostumado a repor-tar os poderes dos magistrados e dos legisladores. A

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colônias inglesas, os Estados confederadosamericanos estabeleceram constituições esta-duais. Seis entre essas constituições adotadasantes de 1787 continham declarações de direi-tos, tendo sido a da Virgínia a primeira a fazê-lo.As outras seis faziam constar do texto de uma aquatro garantias de direitos particulares, damesma sorte que a Constituição federal originá-ria não continha qualquer declaração separa-da de direitos, prefixada ou adicionada à cons-tituição e dela fazendo parte. Entretanto, a par-tir da emenda à Constituição federal, em 1791,para incluir a declaração de direitos (Bill of ri-ghts), todas as constituições estaduais subse-qüentes também passaram a contê-la.

Ressaltando a liberdade como objeto co-mum de todas as Constituições americanas esua indissolubilidade com a repartição dospoderes, Roscoe Pound assinala:

“Dos dispositivos que se encontramem mais de metade das primeiras declara-ções de direitos, três constam de todas,isto é, a garantia de julgamento por júri,liberdade de imprensa e que o acusadoseja informado da acusação e confron-tado com as testemunhas contra ele. In-sistia-se especialmente sobre o julgamen-to por júri porque, quando os governa-dores reais nomeavam e removiam os ju-ízes a fim de conseguir julgamentos con-forme desejassem, o júri, mesmo quandoescolhido por xerife nomeado pelo gover-nador e instrumento dele, era a seguran-ça única de julgamento eqüitativo que seoferecia ao acusado ou litigante. Por issoobjetava-se tão fortemente à ampla exten-são da jurisdição do almirantado, vistocomo os tribunais deste processavam semjúris. A liberdade de imprensa chamara aatenção ao tempo de julgamento de Zen-ger, e o público a acompanhava de pertodevido à instauração de processos polí-ticos contemporâneos na Inglaterra. Oprocesso em julgamentos criminais, her-dado da Idade Média, era excessivamen-te rigoroso para acusados processados apedido da Coroa, e, sob os Stuarts, aspossibilidades do inocente eram fracasquando o rei se empenhava pela condena-ção. A declaração inglesa de direitos sali-entava as garantias fundamentais dos acu-sados e a elas se atendeu em todas as cons-tituições americanas desde o começo.

Em seguida, a estes dispositivos, asprimeiras declarações de direitos institu-íam a separação dos poderes, exigida emdispositivos especialmente fortes e rígi-dos em Massachusetts, mas formuladacomo fundamental igualmente em NewHampshire, Maryland, Virgínia e Carolinado Norte, e tomada como base da estru-tura constitucional do governo nos de-mais, embora sem que constasse das de-clarações de direitos. A experiência dacentralização de todos os poderes dogoverno no Conselho Privado e no Con-selho de Comércio e Plantações, em Wes-tminster, convencera os juristas da era daRevolução que aí havia algo mais do queteoria de filosofia política. A unanimida-de com que se pôs em execução prática aidéia, no dia seguinte à Declaração daIndependência, revela que a apoiava algomais que simples moda”84 (grifo nosso).

Juntamente com a declaração de direitos, aseparação dos poderes – distribuição das fun-ções legislativa, executiva e judicial em departa-mentos distintos por meio de lei fundamental,obrigando a cada um e exigindo de cada um con-servar-se dentro dos limites estabelecidos – éespecialmente característica da primeira consti-tuição americana e das constituições america-nas desde então. Analiticamente, as declara-ções de direitos são declarações de liberdades.Definem circunstâncias, situações e ocasiõesem que a sociedade politicamente organizadase mantém à distância, permitindo atividadeindividual livre, espontânea; garantem que osagentes e os órgãos da sociedade politicamen-te organizada não agirão neste ou naquele sen-tido senão por certa maneira.

Durante o século XVIII, as colônias erampropriedades. O Lorde Proprietário ou os pro-prietários eram donos e supremos legislativo,executivo e judiciário. Desse modo, curadoreseram donos da Geórgia e governavam. RoscoePound, exemplificando, cita que

“por exemplo, um indivíduo que perderaum processo no Tribunal Municipal deSavannah escreveu uma carta aos cura-dores queixando-se da sentença. Os anaismostram que o secretário leu a carta aoscuradores e estes, sem mais nada, deramordem para que se enviasse uma carta aogovernador em Savannah para que orde-nasse ao tribunal a inversão do julgamen-província era governada sob carta expedida pelo rei. O

Estado devia ser governado por meio de carta promul-gada pelo povo soberano”. 84 Ibidem, p. 66.

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to. Durante todo o século XVII, as colô-nias lutavam pelo estabelecimento decorpos legislativos próprios. Depois deestarem bem estabelecidas as legislatu-ras locais, o poder ainda se encontravainteiramente centralizado em Westmins-ter. A legislação estava sujeita a veto fi-nal pelo Conselho Privado dentro de cin-co anos e o Conselho conservou a Pen-silvânia durante vinte e um anos sem umsistema de tribunais porque os habitan-tes não queriam instalar um tribunal dis-tinto de eqüidade. Assim também, con-forme referimos acima, o controle final daadministração residia em Westminster,donde emanavam instruções aos gover-nadores, e o Conselho privado era o últi-mo tribunal de apelação. Além disso, den-tro da província, o governo estava prati-camente nas mãos do governador e doconselho. Foram maus os resultados quese seguiram a esta centralização comple-ta, como também acontecera com a cen-tralização dos poderes no rei da Inglater-ra. É fácil supor que o que aconteceu naInglaterra quando o rei controlava os ju-ízes e na América colonial, quando o go-vernador real os controlava, não aconte-ceria no mundo melhorado em que vive-mos”85.

Não é de se admirar, pois, que as primeirasconstituições dos Estados Confederados ame-ricanos insistissem muito mais sobre a separa-ção dos poderes do que sobre os detalhes daorganização política.

4.3.2. A AUTONOMIA REGIONAL COMO LIMITAÇÃO DO

PODER POLÍTICO

Os americanos criaram um regime que secaracterizou pela instituição de processos parao exercício do poder coercitivo. Esperavam fir-memente que, preservando o sistema, o Estado,que era o produto de seu próprio consentimen-to, mais haveria de ampliar do que limitar sualiberdade.

Estavam, por isso, sempre atentos ao perigodo abuso do poder da parte de seus detentores.A sabedoria da História e a experiência contem-porânea da Europa despertaram nos cidadãosda República a nítida consciência da propensãoque tem a força de embevecer aqueles a quemera confiada. A evolução dos processos políti-cos, nos Estados Unidos, continha, por con-

seguinte, dispositivos para limitar a faculdadede agir das pessoas revestidas de poder, comopara garantir sua dependência do consenso dosgovernados que elas representavam.

Ademais, só o mecanismo formal não asse-gurava a restrição do uso do poder coercitivodo Estado. Nas crises, reais ou imaginárias, se-ria sempre possível a preterição dos controlescorriqueiros; essa possibilidade era o bastantepara justificar, freqüentemente, o temor de queo governo pudesse transformar-se em instru-mento de destruição, em vez de promoção daliberdade do povo.

Essas preocupações refletiam a convicçãosegundo a qual, sem falar das restrições pura-mente normais, havia limites absolutos além dosquais o Estado jamais devia usar a coerção. Aliberdade dependia não só do exercício do po-der coercitivo dentro dos processos legais, mastambém da sua limitação dentro de reconheci-dos termos. Para conhecer a evolução da liber-dade, nos Estados Unidos, é necessário, porconseguinte, examinar as forças que puseramlimites à ação do governo.

Muito raramente, foi explicitamente discuti-do o problema dos limites absolutos, pois a táti-ca do debate político obscurecia comumente aquestão abstrata. Era mais fácil chegar a con-clusões aceitáveis pela discussão da conveni-ência de uma medida específica, ou da compe-tência de um funcionário ou de um órgão parti-cular, do que pela proposição de soluções ge-rais. Antes de tudo, a quem se julgasse ameaça-do pelos efeitos adversos da ação, seria maisplausível procurar proteger-se pela defesa pro-cessual da limitação da competência do queapelando para um princípio geral.

Um exame de como os americanos procura-vam evitar que um governo, de qualquer nível,agisse onde, segundo eles, não devia revela ainsistência obstinada da limitação de sua com-petência. O federalismo e o constitucionalismoproporcionaram os mais importantes e formaisimpedimentos ao exercício ilimitado do poderpolítico, não obstante, muitas vezes, determi-nados autores só ressaltem este e não aquele.

A descrição dos limites do governo numdocumento escrito que repartisse a autoridadeentre várias entidades, em vez de concentrá-lanuma só, estabeleceu a maneira de como deviaser exercido o poder. Mas, oferecendo a possi-bilidade de apelação, quer para as constituições,quer para as jurisdições rivais, indiretamenteapresentava os meios para limitar quaisquer85 Ibidem, p. 71-72.

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poderes considerados ilegítimos ou prejudici-ais. Além dessas restrições normais da capaci-dade de agir do Estado, existia ainda a firme con-vicção de que, em alguns assuntos, ele não ti-nha competência alguma.

Depois de 1789, a pluralidade de jurisdições,nos Estados Unidos, vagamente distintas umasdas outras por demarcações imprecisas, punhalimites aos poderes quer dos Estados, quer daNação. As partes interessadas que desejavamneutralizar o governo, ou pretendiam obter deleum tratamento favorável, preferiam, muitas ve-zes, jogar uma jurisdição contra outra, a depen-der de um princípio abstrato para o julgamentodo mérito de suas causas. O utilíssimo materialda extensa literatura histórica e jurídica do fede-ralismo tem sido recolhido, em abundância, dassoluções constitucionais assim suscitadas.

O federalismo, entretanto, exerceu sobre ofim do poder político uma influência mais consi-derável do que sugerem essas formulações doproblema. Pois, o próprio federalismo se as-sentava no princípio de que a partição do po-der era realmente proveitosa para salvaguar-dar as liberdades dos cidadãos. Esse princípioantecipou o aparecimento de um regime formal-mente federal e tornou viáveis os recursos aosdireitos dos Estados ou à autoridade federal parasustar ações nocivas.

Os indícios desse princípio já eram eviden-tes no século XVII. A coexistência de váriascolônias, contíguas e autônomas, limitava, naprática, os poderes de cada uma pela criaçãodos meios de fugir de suas jurisdições. As fron-teiras abertas de Rhode Island e da Virgínia eramum convite aos dissidentes que desejassemevadir da jurisdição dos magistrados de Mas-sachusetts ou do proprietário de Maryland.

Ademais, a fraqueza das normas do governoe a incapacidade de exercer o poder em muitosdistritos sem a colaboração dos cidadãos dolugar, dotavam as unidades centrais de umaautoridade destituída de eficácia. Governa-dores e Câmaras sabiam que suas ordenspodiam ser frustradas por uma cidade, por umaparóquia obstinada, limitando, assim, sua capa-cidade de ação.

Os fundadores da República estavam intei-ramente mais familiarizados com a prática da dis-tribuição de poderes a várias jurisdições, do quea uma só. A consideração da experiência histó-rica das confederações anteriores mostrava queuma falha conduzia, invariavelmente, ou à anar-quia ou à tirania. Os artigos da Confederação e

da Constituição, embora um tanto divergentes,proveram uma união não meramente de Esta-dos, mas de povo. Depois da adoção da Consti-tuição, cada uma das entidades do governo,operando dentro de sua órbita, tratava, direta-mente, com os cidadãos, em vez de o fazer porintermediários.

A geração revolucionária foi capaz de che-gar a essa solução, porque concebia a autori-dade não como emanada de um único sobera-no, mas do consentimento dos governados, eporque a prática demonstrara que governado-res e assessores, juízes de paz e conselheirosparoquiais, agindo em suas próprias áreas, es-tabeleciam entre si um equilíbrio mútuo e pro-veitoso. Embora surgissem, naquele tempo edepois, grandes divergências acerca da exten-são do poder a ser dado ao governo nacionalcom relação ao estadual, não havia, conforme jávisto, polêmicas quanto à essência da estruturafederal. Estavam todos virtualmente unânimesem reconhecer que seria essa estrutura a salva-guarda da liberdade, por estabelecer limites àmeta de ação de todas as entidades públicas.

A concepção de limites não foi um produtode processos inovadores que levaram à con-cepção federativa, mas, antes, sua justificação,pois já existiam, quando foram formalmenteincorporados à Constituição86.

86 Em um interessante paralelo da situação das Co-lônias da América com as controvérsias existentes en-tre a Coroa e os tribunais na Inglaterra medieval,POUND, (ibidem, p. 44), assinala, no capítulo intitula-do “Nas Colônias da América”, verbis: “No século XVIIIapresentou-se certa situação nas Colônias da Américainteiramente paralela à que existiu durante as contro-vérsias entre a coroa e os tribunais na Inglaterra, noséculo XVII. Não se haviam definido claramente, nessepaís, as prerrogativas da coroa. Era possível fazer afavor delas amplas reivindicações como por igual seformulavam em contrário, para limitá-las. Desenvol-vera-se no Continente um corpo de doutrina políticaabsoluta com relação aos poderes dos governantes, e osdois países que então fixavam a moda em política, aFrança e a Espanha, eram monarquias autocráticas. Poroutro lado, os juristas ingleses haviam recebido umatradição ensinada de limitações sobre a ação governa-mental, sujeição dos funcionários à lei da terra, e direi-tos garantidos por lei ao súdito. A América, país que sedesnvolvia rapidamente, dispondo de comércio em ex-pansão, grande riqueza natural, população pioneira aven-tureira, corpos legislativos e tribunais próprios, com-punha-se politicamente de treze províncias distintas,separadamente sujeitas ao governo absoluto de West-minster. Os incidentes jurídicos das relações entre ogoverno inglês e as colônias não estavam claramentedefinidos. Não se apresentara a necessidade de defini-los. Na era da colonização, as povoações tinham sidofracas, precisavam da proteção do governo da metró-pole, e não tinham levantado dúvidas quanto aos pode-

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Conseqüentemente, a Constituição não fi-xou de modo permanente as relações de váriasentidades públicas entre si. Para restringir ouestender os limites da ação governamental, pros-seguiram os esforços posteriores visando alte-rar as demarcações entre as jurisdições federale estadual. Mas, a idéia de jurisdições múltiplasjá existia, permanecendo intacta.

Sob outro ponto de vista, no entanto, o fede-ralismo foi mais do que uma acomodação fortui-ta das circunstâncias históricas. Os limites queimpôs à ação do governo, pela existência demúltiplas jurisdições governamentais, refletiamo princípio de que tais limites sobre todas asentidades eram em si mesmos proveitosos.

O conceito americano de constitucionalis-mo implicava análogo interesse de estabelecerrestrições ao poder do governo. Os limites pro-cessuais estavam inerentes à idéia de um docu-mento escrito que definisse a estrutura do Esta-do. Os americanos apelaram para constituiçõesa fim de estabelecer limites em termos absolutosà capacidade de agir do Estado.

Já no século XVII, colonos prejudicados,baseados em suas escrituras, buscavam novasdefinições de autoridade, alegando, por exem-plo, que aquelas doações da Coroa limitavamseu poderio de modo a não poder mais se alte-rar. Em algumas províncias, a idéia puritana depacto reforçava o argumento; o rei, como Deus,por sua própria vontade aceitava as regras douso de seus poderes soberanos e não podiaagir fora delas. Assim, também, os homens, vi-vendo nas condições de habitantes de terrasremotas, forçados a improvisar entidades que osgovernassem, muitas vezes estabeleciam acordos,verdadeiros documentos constitucionais, quedescreviam o que o Estado podia ou não fazer.Estava implícito em todas essas formulações ofirme princípio, porém sem apoio legal, de que taispactos eram irrevogáveis e inalteráveis.

Em conseqüência, desde que os Estadosentregaram-se à tarefa de elaborar suas própri-as constituições, por volta de 1770, os america-nos já não as concebiam mais à moda inglesa.No Novo Mundo, o termo constituição nãotinha mais o sentido da organização contempo-rânea do poder exercido através da praxe, docostume e da jurisprudência. Em vez, alcançoua significação de uma estrutura de governo,que assentava, “por escrito”, os limites fixospara o exercício do poder. O ponto de vistaamericano estava, como era de se esperar, inti-mamente ligado à rejeição da velha mentalida-de, segundo a qual a autoridade descia da Co-roa para seus funcionários. Segundo a novamentalidade – a da autoridade emanada do con-sentimento dos governados –, a constituiçãoescrita tornou-se o instrumento pelo qual o povoconfiava o poder aos seus representantes.

Apelos às constituições, como limites à açãodo governo, tornaram-se mais freqüentes de-pois de 1780 e, mais ainda, depois de 1789. Asamargas controvérsias que conduziram à Guer-ra Civil não enfraqueceram o respeito pelo cons-titucionalismo; a Confederação, nesse sentido,seguiu o precedente da República. Tais apelos,porém, depois de 1780, estavam, mais do queoutrora, presos a provisões específicas conti-das nos documentos; a dificuldade de estabele-cerem-se os apelos que se referiam a assuntosprocessuais ou a limites concretos ou abstratosfoi-se tornando maior.

A experiência americana, quer com o federa-lismo, quer com o constitucionalismo, demons-trou que, além das restrições meramente legais,havia limites absolutos ao poder do Estado. Oscidadãos da República e seus predecessorescoloniais não puseram o problema em seus jus-tos termos; não concebiam que o Estado pu-desse sempre agir, desde que houvesse funda-mento legal para isso. Ao contrário, estavamconvencidos de que havia algumas ações que ogoverno não podia realizar e procuravam fun-damentos no federalismo e no constituciona-lismo para impedi-lo.

A distinção entre o que era permissível e oque não o era estava convencionalmente des-crita como a limitação do poder do Estado emface dos direitos do indivíduo. A filosofia dosdireitos naturais fornecia uma base teórica e umvocabulário descritivo à convicção dos ameri-canos de que nem o governo nem qualquer ou-tra entidade podia violar a liberdade de açãoque o cidadão se reservava, com referência acertas matérias. A Declaração da Independên-

res dela. Mas a metrópole precisava extremamente dedinheiro durante o século XVIII, a exemplo dos reisingleses durante o século XVII, e procurava fontes dereceita. Da mesma forma que o rei procurava levantardinheiro fazendo lançamentos por autoridade própria,independentemente de autorização do Parlamento, re-presentante do povo que tinha de pagar, assim tambéma metrópole procurava levantar dinheiro das colôniassem solicitar ou obter-lhes o consentimento. Além dis-so, o regime de monarquia absoluta a que visavam osStuarts importava no desprezo dos interesses individu-ais desde muito reconhecidos e na limitação da ativida-de e iniciativa particulares, o que inevitavelmente en-contrava resistência em época de confiança na razãoindividual, colapso do autoritarismo e afirmação indi-vidual, inquieta e ambiciosa”.

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cia falava, como era natural, da vida, da liberda-de e da busca da felicidade, como direitos natu-rais e inalienáveis do homem. As constituiçõesda Virgínia e de Massachussets estabeleceramdisposições para evitar a transgressão de al-guns desses direitos, como fizeram os dez pri-meiros artigos adicionais à Constituição Fede-ral. Lá pela metade do século XIX, os america-nos, em geral, estavam certos de serem seusdireitos uma sólida barreira que podia ser pron-tamente definida em manuais e que abrangiatudo, desde as mais gerais prescrições da Cons-tituição até os detalhes das transações comer-ciais. Somente a reação de intelectuais sulistas,em defesa da escravidão, suscitou genuínasquestões como a da validade daqueles direitos.

A origem e a natureza desses direitos nãoeram absolutamente claras. As condições ame-ricanas que tendiam para a destruição das leis,hábitos e costumes herdados produziam fre-qüentemente as reivindicações de que o indiví-duo era apto para guiar-se per se e lhe davam apresunção do direito de assim agir.

Todos esse direitos, no início do séculoXVIII, não eram mais tidos como dependentesde um privilégio de qualquer origem, nem con-dicionados a qualquer situação social, mas ine-rentes à natureza humana. Tinham sido descri-tos num documento somente para efeito de con-firmação. Os direitos eram por si mesmos anteri-ores a qualquer manifestação explícita deles.

Por isso, a validade, maior que de costume,concedida à controvérsia dos defensores daConstituição Federal, em 1787 e 1788, dispen-sou uma Carta dos Direitos87. Quaisquer pode-res que explicitamente não delegassem ao go-verno permaneciam seus. Seus direitos eramabsolutos e sua especificação era apenas ne-cessária para promover as formas de sua defesa.

Nesse sentido, ilustrativa a passagem doArtigo Federalista nº 84, verbis:

“Vou mais além, afirmando que decla-rações de direitos, no sentido e na abran-gência que lhes atribuem, são não ape-nas desnecessárias na Constituição pro-posta, mas também perigosas. Eles inclui-riam várias exceções aos poderes nãodelegados e, com isso, dariam margem afalsos pretextos em favor de maiores con-cessões. Por que declarar que determina-das coisas não podem ser feitas, se nãoexiste poder para fazê-las? Por que, por

exemplo, dizer-se que liberdade da im-prensa não será restringida, se não existeo poder de impor as restrições? Nãonego que um dispositivo a respeito po-deria mencionar quem teria esse poder,mas é evidente que ele forneceria, a quemtiver mentalidade de usurpador, uma ex-celente oportunidade para utilizá-loabusivamente. Pode ser alegado, comaparente razão, que a Constituição nãodeve chegar ao extremo de incluir provi-sões contra o abuso de uma autoridadeque não foi concedida e que um disposi-tivo proibindo restrições à liberdade daimprensa permitiria uma clara implicaçãode que houve a intenção de investir ogoverno nacional do poder de prescre-ver normas a respeito dessa liberdade.Este fato poderia servir como exemplo dosnumerosos instrumentos utilizáveis peladoutrina de poderes inferidos, graças à in-dulgência de um prudente entusiasmo pordeclarações de direitos”88 (grifo nosso).

Portanto, o federalismo, lado a lado do cons-titucionalismo, como mecanismo de limitação dopoder político, promoveu os direitos de liberda-de (vistos como status negativus), à medida queevitava a interferência estatal em certas matéri-as que, não sendo de ninguém, eram de usoexclusivo do titular do poder constituinte.

5. Conclusões

1. O federalismo constitui-se um fenômenomoderno, surgindo com a Constituição Ameri-cana de 1787.

2. O federalismo como modelo de forma deEstado passou a ser adotado por outros países,tendo como paradigma o modelo adotado nafederação americana.

3. Constitui-se característica fundamental dofederalismo a busca de um equilíbrio entre asforças integrativas (centrífugas) e desintegrati-vas (centrípetas) em um Estado soberano quebusca manter a unidade, respeitando a diversi-dade das partes que o compõem.

4. O equilíbrio das forças integrativas e de-sintegrativas não se dá exclusivamente na cria-ção da federação, sendo reconfigurado ao lon-go da evolução do Estado, razão pela qual aconformação federativa é um processo históri-co e dinâmico.

87 Bill of Rights (1689) - Decreto declarando osdireitos e as liberdades do indivíduo e estabelecendo asucessão da Coroa inglesa. 88 HAMILTON, op. cit., p. 626-627.

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5. O surgimento do Estado federal america-no está intimamente ligado à necessidade demodificação do modelo confederativo adotadoinicialmente pelos Estados Unidos da América,após a Revolução Americana que desfez o laçode subordinação que vinculava a América à In-glaterra.

6. A Revolução Americana caracterizou-sepela luta contra autoridade e o poder; tal cir-cunstância histórica influiu, sobremaneira, naescolha do modelo confederativo, no qual nãohavia um poder central.

7. A confederação americana regulava-se pormeio de um legislativo unicameral denominadoCongresso Continental; entretanto, tal órgãonão possuía significativamente nenhum poder,sendo pouco mais que uma reunião de embaixa-dores despreparados para solucionar os confli-tos de interesse entre os Estados, o que preju-dicou a Confederação e determinou a busca domodelo federativo defendido nos célebres fede-ralist papers.

8. No contexto da anarquia existente no mo-delo confederativo, surge a Convenção de Fila-délfia, que envia ao Congresso Continental oprojeto de constituição que institui a federaçãoamericana.

9. Em face da necessidade de ratificação daconstituição elaborada na Filadélfia, James Ma-dison, Alexander Hamilton e John Jay, capita-neados por Hamilton, defendem a Constituiçãoe o modelo federativo em uma série de artigospublicados em jornais do estado de Nova Ior-que entre 1787 e 1788.

10. Na argumentação dos artigos federalis-tas, observam-se como forças centrípetas queensejam o modelo federativo em substituição àconfederação: a defesa comum em face de ame-aça externa inglesa; a correção das falhas de-correntes da falta de um poder central no mo-delo confederativo, bem como a proteção dosdireitos humanos da época, a saber os direitosfundamentais de primeira geração (direitos deliberdade).

11. Ao lado das forças centrípetas, o mode-lo federativo americano surge também para har-monizar duas características centrífugas bási-cas do Estado Americano: a autonomia regionale a descentralização administrativa.

12. A autonomia regional e a descentraliza-ção administrativa propiciavam a distribuiçãodo poder e, conseqüentemente, protegiam osdireitos de liberdade e igualdade conforme se

depreende da obra “Democracia na América”de Alexis Tocqueville.

13. O sistema federativo americano clássicoevidencia que o povo constitui-se o único de-tentor da soberania, na medida em que delegapoucos poderes ao governo nacional e algunsoutros para os Estados membros.

14. O cidadão americano pode, em face domodelo federal, exercer plenamente os seus di-reitos, seja como cidadão do governo geral, sejacomo cidadão da comunidade local em que vive.

15. A organização federativa, no que se re-fere ao indivíduo, permite que os direitos e de-veres estatais principais do cidadão sejam exer-cidos no âmbito do próprio Estado-Membro.

16. O conceito de liberdade pública mostra-se impregnado das prerrogativas que o indiví-duo possui em relação ao Estado, sendo que,em um primeiro momento, constituiu uma inibi-ção do exercício do poder estatal sobre o indiví-duo, ou seja, havia uma prestação meramentenegativa (os direitos individuais clássicos eramsatisfeitos pela não-interferência do Estado).

17. A federação americana aproxima o Esta-do Americano de uma concepção denominadaindividualista, que exalta a liberdade individualà medida que favorece a distribuição do poderestatal em diferentes esferas de administração(administração descentralizada).

18. As revoluções burguesas propiciaram aemergência do Estado Liberal, cuja preocupa-ção maior era dar àqueles que controlavam aeconomia (os burgueses) ampla liberdade deexercerem suas atividades, sem estarem amea-çados por qualquer outro poder. Assim, o libe-ralismo surge com o escopo de no âmbito polí-tico, consoante ensinamento de Macridis, de-senvolver uma teoria abrangente de direitosindividuais a desafiar e a limitar o poder polí-tico absoluto.

19. O federalismo, paralelamente ao consti-tucionalismo, constitui-se parte do núcleo políti-co liberal que consagrou a liberdade individual.

20. Tocqueville, ao tratar das vantagens dosistema federal em geral e sua utilidade especialna América, ressalta que, nos entes estatais demenor território, a vigilância da sociedade mos-tra-se mais efetiva, elogiando, dessa forma, aadoção do modelo federativo em países de vas-ta extensão territorial.

21. Roscoe Pound assinala, fazendo umacomparação entre o modelo inglês e o modeloamericano, que a separação e o equilíbrio entre

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os poderes constitui-se uma preocupação cen-tral da sociedade americana do século XVIII.

22. A autonomia local constitui uma limita-ção do poder político, sendo mecanismo de sal-vaguarda das liberdades dos cidadãos uma vezque poderiam contrapor a esfera de poder naci-onal à local e vice-versa, caso qualquer uma delasestivesse desrespeitando a liberdade individu-al; tal modelo característico da federação cons-titui um sistema de “pesos e contrapesos” queevita o abuso do poder.

23. O federalismo assenta-se no princípio departição do poder ao garantir a autonomia regio-nal e a descentralização administrativa, consti-tuindo tal característica proveitoso mecanismode salvaguarda das liberdades dos cidadãos.

24. A federação americana ressalta que aautoridade não emana de um único soberano,mas sim do consentimento dos governados, amedida em que sua estrutura estabelece um equi-líbrio entre diferentes entes estatais, todos su-bordinados ao titular último da soberania: opovo.

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