A aproximação provisória de Strawson com o Naturalismo

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MIRÁGLIA, Carlos Alberto. A aproximação provisória de Strawson [...] Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 04; nº. 01, 2013 28 A aproximação provisória de Strawson com o Naturalismo Strawson’s provisional approach with naturalism Carlos Alberto Miráglia 1 Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar parte do desenvolvimento conceitual de um dos mais importantes debates filosóficos presenciado na metade final do século XX: a disputa entre Barry Stroud e Peter Strawson referente à validade e o status dos argumentos transcendentais. Em minha opinião, o percurso intelectual de Strawson, na tentativa de responder ao desafio de Stroud, apresenta estágios diferenciados que revelam uma primeira fase condescendente às críticas de Stroud, para finalmente reabilitar a pertinência técnica dos argumentos transcendentais. Veremos que a primeira alternativa de Peter Strawson foi retificar as limitações epistêmicas destes, subordinando-os aos tipos de verdades indubitáveis, em moldes inspirados por doutrinas naturalistas como a de David Hume e, segundo Strawson, também encontradas no pensamento do Wittgenstein tardio. Contudo, creio, é possível verificar, que em tempos ulteriores Strawson reabilitará a força cognitiva dos Argumentos Transcendentais em decorrência de uma nova explicação feita por ele do significado de análise e, consequentemente, o de prova filosófica. Concomitantemente, isto trará um novo entendimento do próprio conceito-chave da disputa: o conceito de “experiência”. Palavras-chave: Argumentos Transcendentais; Naturalismo; Strawson; Stroud. Abstract: The objective of this paper is to examine the conceptual development of one of the most important philosophical debates witnessed in the latter half of the twentieth century: the dispute between Barry Stroud and Peter Strawson concerning the validity and status of transcendental arguments. In my opinion, the intellectual journey of Strawson, in an attempt to meet the challenge of Stroud, has different stages that reveal a first phase condescending criticism of Stroud, to finally rehabilitate the technical relevance of transcendental arguments. We will see that the first alternative was Peter Strawson rectify these epistemic limitations, subordinating them to the types of indubitable truths, in a manner inspired by doctrines naturalists such as David Hume and, according to Strawson, also found in the thought of the later Wittgenstein. However, I believe it is possible to verify that once Strawson further rehabilitate the cognitive force of Transcendental Arguments due in a new explanation made by him of the significance of analysis and, consequently, of the philosophical proof. Concomitantly, this will bring a new understanding of the concept's key dispute: the concept of "experience". 1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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Strawson

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  • MIRGLIA, Carlos Alberto. A aproximao provisria de Strawson [...]

    Revista Opinio Filosfica, Porto Alegre, v. 04; n. 01, 2013 28

    A aproximao provisria

    de Strawson com o

    Naturalismo

    Strawsons provisional approach with naturalism

    Carlos Alberto Mirglia1

    Resumo: O objetivo deste trabalho examinar parte do desenvolvimento conceitual de um dos mais importantes debates filosficos presenciado na metade final do sculo XX: a disputa entre Barry Stroud e Peter Strawson referente validade e o status dos argumentos transcendentais. Em minha opinio, o percurso intelectual de Strawson, na tentativa de responder ao desafio de Stroud, apresenta estgios diferenciados que revelam uma primeira fase condescendente s crticas de Stroud, para finalmente reabilitar a pertinncia tcnica dos argumentos transcendentais. Veremos que a primeira alternativa de Peter Strawson foi retificar as limitaes epistmicas destes, subordinando-os aos tipos de verdades indubitveis, em moldes inspirados por doutrinas naturalistas como a de David Hume e, segundo Strawson, tambm encontradas no pensamento do Wittgenstein tardio. Contudo, creio, possvel verificar, que em tempos ulteriores Strawson reabilitar a fora cognitiva dos Argumentos Transcendentais em decorrncia de uma nova explicao feita por ele do significado de anlise e, consequentemente, o de prova filosfica. Concomitantemente, isto trar um novo entendimento do prprio conceito-chave da disputa: o conceito de experincia. Palavras-chave: Argumentos Transcendentais; Naturalismo; Strawson; Stroud.

    Abstract: The objective of this paper is to examine the conceptual development of one of the most important philosophical debates witnessed in the latter half of the twentieth century: the dispute between Barry Stroud and Peter Strawson concerning the validity and status of transcendental arguments. In my opinion, the intellectual journey of Strawson, in an attempt to meet the challenge of Stroud, has different stages that reveal a first phase condescending criticism of Stroud, to finally rehabilitate the technical relevance of transcendental arguments. We will see that the first alternative was Peter Strawson rectify these epistemic limitations, subordinating them to the types of indubitable truths, in a manner inspired by doctrines naturalists such as David Hume and, according to Strawson, also found in the thought of the later Wittgenstein. However, I believe it is possible to verify that once Strawson further rehabilitate the cognitive force of Transcendental Arguments due in a new explanation made by him of the significance of analysis and, consequently, of the philosophical proof. Concomitantly, this will bring a new understanding of the concept's key dispute: the concept of "experience".

    1 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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    Keywords: Transcendental Arguments; Naturalism; Strawson; Stroud.

    Introduo

    O objetivo deste trabalho examinar parte do desenvolvimento

    conceitual de um dos mais importantes debates filosficos presenciado na

    metade final do sculo XX: a disputa entre Barry Stroud e Peter Strawson

    referente validade e o status dos argumentos transcendentais. Em minha

    opinio, o percurso intelectual de Strawson, na tentativa de responder ao

    desafio de Stroud, apresenta estgios diferenciados que revelam uma primeira

    fase condescendente s crticas de Stroud, para finalmente reabilitar a

    pertinncia tcnica dos argumentos transcendentais. Veremos que a primeira

    alternativa de Peter Strawson foi retificar as limitaes epistmicas destes,

    subordinando-os aos tipos de verdades indubitveis, em moldes inspirados por

    doutrinas naturalistas como a de David Hume e, segundo Strawson, tambm

    encontradas no pensamento do Wittgenstein tardio. Contudo, creio, possvel

    verificar, que em tempos ulteriores Strawson reabilitar a fora cognitiva dos

    Argumentos Transcendentais em decorrncia de uma nova explicao feita por

    ele do significado de anlise e, consequentemente, o de prova filosfica.

    Concomitantemente, isto trar um novo entendimento do prprio conceito-

    chave da disputa: o conceito de experincia.

    A importncia deste debate est no fato dos argumentos

    transcendentais aparentarem ainda serem os melhores candidatos do discurso

    filosfico, a garantir para esta matria a marca que a distingue de todas as

    demais formas de conhecimento. Se olharmos a histria da mesma,

    constatamos facilmente que seu desdobrar no mundo da cultura a obrigou a

    renunciar reas que se constituram no que passou a ser o domnio das cincias

    naturais. A comear pela metafsica, entendida como filosofia primeira. O

    esforo voltado a fornecer um fundo ontolgico de inteligibilidade para a

    compartimentao e multiplicidade dos saberes humanos. Isto, sob o

    indefectvel selo do universal e necessrio. Sabemos que um grande detrator

    moderno dessa ambio (sem esquecermos Hume, o maior de todos) Kant.

    Justamente o autor apresenta uma alternativa temtica que aparenta ser a nica

    podendo preservar a generalidade mxima pretendida pela filosofia. Para isso,

    ele prope (quem sabe inventa), uma distino no observada at ento. A que

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    permite o reconhecimento dos famigerados juzos sintticos a priori. Faanha

    que traz embutida, na elucidao dos mesmos, o que passou a se chamar de

    argumentos transcendentais, embora tal alcunha no esteja propriamente na

    letra de Kant.

    I

    Mas, para incio de conversa, que espcie de argumento um

    argumento transcendental? O que permite identific-lo em autores to diversos

    na histria? Para no me arriscar em demasia, vou me servir da definio feita

    por Charles Taylor, no artigo a validade dos argumentos transcendentais.

    No por ser particularmente clara (talvez nenhuma a possa ser), mas, pela

    conciso da mesma. Depois de algumas digresses, Taylor afirma: Argumentos

    transcendentais so, portanto, cadeias de reivindicaes apodticas que concernem

    experincia, achando-se em consequncia ancorados em elementos indisputveis. Aquilo para

    que eles mostram que as coisas so indispensveis no pode ser desdenhado2.

    Embora apaream algumas ambiguidades, se, por exemplo, o

    necessrio aqui invocado engloba no apenas os elementos constituintes da

    cadeia, como ela prpria, o conceito capital nesta definio o de experincia e

    importante salienta-lo para diferir os argumentos transcendentais de outros

    argumentos apresentados na filosofia cuja estrutura exige igualmente bases

    condicionantes para extrair concluses condicionadas. Se no fosse o caso,

    retrospectivamente, sua originalidade remontaria as origens da filosofia. Vide a

    prova de Aristteles para a validade universal do princpio de no contradio,

    na qual a supresso do mesmo aniquilaria a prpria capacidade de significao

    da linguagem. Os argumentos transcendentais so o fruto da modernidade. De

    fato, eles esto comprometidos com a nova perspectiva epistemolgica

    elaborada por Descartes. A que instaura o saber atravs de uma dimenso

    privilegiadamente subjetiva. A partir de ento, o conhecimento passa a ser o

    resultado de uma conscincia imersa no mundo no ato de experinci-lo. em

    decorrncia desse cenrio que correntes antagnicas surgem para saldar o que

    Cassirer chama de o problema do conhecimento, tais como o empirismo e o

    racionalismo moderno.

    2 TAYLOR, C. Argumentos Filosficos. So Paulo: Edies Loyola, 2000.

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    A Crtica da Razo Pura surge ento, como o gigantesco esforo que

    pretende sanar as falhas desses movimentos conflitantes. Em consequncia, o

    projeto global de Kant inevitavelmente acaba por colocar em pauta a mais

    impertinente questo ctica entranhada na problemtica cartesiana. Como

    separar a conscincia do mundo objetivo que ela representa? Sua referncia

    autnoma legtima? Em outras palavras, a partir do simples clculo

    conceitual, possvel obter uma concluso que garanta a existncia do mundo

    exterior? Ciente do desafio ctico Kant apresenta um adendo segunda edio

    da Crtica da Razo Pura, com o ttulo Refutao do Idealismo. Em decorrncia

    do aparato de prova da validade dos princpios puros do Entendimento, Kant

    pensa ser a refutao um efeito direto da estratgia transcendental.

    Apesar do brilho e impacto do gnio de Knigsberg, desde o incio

    este sofreu severas objees (igualmente refutao do idealismo) ao ponto de

    inadvertidamente gerar, aps sua morte, defesas que, segundo muitos, vieram a

    desfigurar de modo irreversvel o seu projeto crtico, especialmente com

    advento do idealismo alemo. Sem entrar no mrito da qualidade desse

    movimento germnico, consenso que ele sofreu na histria o desprezo dos

    pensadores que tinham afinidade com o produto consagrado das cincias

    empricas no sculo IX. Segundo eles, estas trouxeram no somente

    representaes cientficas do mundo mais amplas e refinadas, mas, igualmente,

    uma eficincia tecnologia inconteste, enquanto aquele, na melhor das

    hipteses, um mero rodeio de palavras. Tal repdio levou ao extremo de

    qualificar a inteligibilidade da filosofia como apenas uma parasita elucidativa do

    que se obtinha do mundo concreto das cincias naturais, munida, ento, da

    nova lgica ps fregueana. O a priori sinttico foi banido, bem como, portanto,

    as provas transcendentais.

    Assim, digamos, depois de um perodo de hibernao forada, a

    problemtica dos argumentos transcendentais ressurge em meados do sculo

    XX, surpreendentemente no seio do ambiente filosfico que a exilou. A

    filosofia analtica. E o personagem principal desta retomada Peter Strawson.

    Um pensador fortemente influenciado pela tradio que julgava ser a lgica

    (isenta de metafsica) a ferramenta decisiva na investigao filosfica. Em 1959,

    publica um livro chamado Individuals. Com o provocativo subttulo: um ensaio de

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    metafsica descritiva. Obra que, apesar de estar fortemente embasada no denso

    instrumental analtico, resgata o projeto crtico de Kant, a saber, exibir os

    conceitos mais gerais (e sua gramtica lgica) que permitem capturar o mundo

    no ato de experienci-lo. Certamente o jargo no o de Kant, mas o esprito

    o mesmo. Enfim, podemos resumir o essencial da concluso posta em

    Indivduos com as seguintes palavras: o mnimo possvel de inteligibilidade da

    linguagem objetiva acerca do mundo sensvel a que permite divis-lo em

    indivduos concretos ajustados no espao e tempo. Para exibir este mnimo,

    Strawson apresenta, ento, a sua verso de argumentos transcendentais.

    Tambm temos aqui a presuno de um aparato especfico condicionando a

    possibilidade da experincia.

    II

    A ousadia de Strawson no deixaria a academia indiferente, e quase

    uma dcada mais tarde, em 1968 o investigador do pensamento ctico, Barry

    Stroud, publica o artigo que desencadeou a controvrsia para alm desses

    autores, inclusive e se transformou num clssico contemporneo, Argumentos

    Transcendentais. Ainda que o texto esteja focado no trabalho de Strawson,

    pretende sustentar uma tese mais geral, segundo a qual todo e qualquer

    argumento transcendental, especialmente na sua variante de prova da existncia

    do mundo exterior, padece de um vcio lgico fatal, a saber, o real revelado

    como concluso, j presumido nas premissas do argumento.

    Vejamos de modo resumido, o que ocorre em Individuals. Como j foi

    dito, o ncleo da linguagem capaz de representar o mundo munido por

    conceitos que recortam a percepo em indivduos no espao e no tempo. S

    podemos acessar o mundo se formos capazes de identificar corpos no espao e

    re-identific-los no tempo. E aqui surge a dificuldade capital. A possibilidade

    de re-identificao s promovida se as coisas mantiverem suas identidades

    alheias ao ato de perceb-las. porque suas existncias so preservadas, que se

    torna possvel reencontr-las na experincia. De forma mais grave, a

    experincia mesma somente se efetiva ao custo de coisas independentes dela.

    Estamos, portanto, diante de uma petio de princpio clssica falcia lgica.

    Para provarmos a realidade do mundo exterior, aceitamos a verdade da prpria

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    tese como ponto de partida. Se esta observao procede, ento, todas as

    iniciativas para responder ao DESAFIO ctico, seguindo a estratgia de que o

    que o ctico abdica como concluso, colapsaria a significao do seu prprio

    questionamento, ficariam agora anuladas. Ele concorda que tomada a verdade

    da premissa principal do argumento devemos nos submeter concluso. A

    questo que nada, do ponto de vista lgico, o obriga a admitir tal verdade.

    Para no cometermos uma injustia, bom frisar que este tipo de

    restrio aparece de forma muito similar em uma das primeiras recepes

    crticas da obra de Kant. Jacobi, debruando-se sobre o conceito de coisa em si

    e francamente insatisfeito com a prova do mundo exterior acrescida na

    segunda edio da Crtica Razo Pura afirma ser a filosofia transcendental, nada

    mais que idealismo disfarado. O mundo objetivo sempre algo interno ao

    jogo de representaes. Contudo, o que Jacobi particulariza em Kant, Stroud

    diz viciar qualquer argumento transcendental.

    A advertncia de Stroud certamente debilitou a proposta de Strawson

    contida em Individuals. Levando ele futuramente a sugerir uma alternativa mais

    modesta para o peso dos argumentos transcendentais. Esta incomoda

    assimilao do golpe emerge em conferncias feitas por Strawson na dcada de

    80 e reunidas em um pequeno livro intitulado Ceticismo e Naturalismo: Algumas

    Variedades. Nesta obra, Strawson concede que o desafio ctico possa ser

    indiferente aos argumentos transcendentais. Admite o dilema inescapvel entre

    um modo de verificacionismo e suas arbitrariedades fundacionais ou a

    ocorrncia de uma falha lgica fatal na circularidade da prova da realidade

    exterior. A sugesto agora que os argumentos transcendentais no devem ser

    mais vistos com a fora de provas. Menos ainda a que obtm a concluso da

    realidade do mundo exterior. Motivado pelo naturalismo do empirista David

    Hume, Strawson pensa, neste momento, ser tal postura a melhor alternativa

    possvel para seu empreendimento de anlise. Sendo assim, afirmaes, como a

    que ratifica e existncia de coisas exteriores e independentes da mente, no

    podem ser provadas, mas devem ser assumidas.

    como fossem fatos inevitveis. Crenas profundamente enraizadas

    na tradio de qualquer cultura. Ocorre uma certa ambivalncia no pensamento

    de Hume. Se por um lado, ele ctico com respeito a oferecer um suporte

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    racional para tais crenas, a recusa das mesmas no passaria de um mero

    capricho intil para as prticas intelectuais genunas. As que provem o

    conhecimento emprico, por exemplo. Strawson no to severo quanto

    Hume. Existe ainda espao para a investigao filosfica. Qual seja, o

    detalhamento das relaes lgicas entre os conceitos, envolvidos, por exemplo,

    no conhecimento mediante a percepo. Strawson declara

    uma vez abandonado o projeto irreal da validao absoluta, o filsofo naturalista abarcar o projeto real de investigar as conexes entre os elementos estruturais principais de nosso esquema conceitual. Se esto realmente disponveis conexes to firmes como aquelas que os argumentos transcendentais pretendem oferecer, tanto melhor.

    Sendo assim, embora o alcance dos argumentos transcendentais seja

    reduzido seguindo a assimilao desse vis naturalista, eles sero teis por se

    exibirem como o circuito lgico mnimo na qualificao da possibilidade do

    conhecimento.

    Isto nos levaria a cogitar como sendo esta, enfim, a considerao final

    de Strawson sobre o tema. Entretanto, suspeito, anos mais tarde ser

    reformulada a importncia dos argumentos transcendentais a partir de uma

    nova estratgia. Em um breve livro, enganadoramente apresentado como uma

    simples introduo filosofia, exatamente com o nome de Anlise e Metafsica:

    Uma Introduo Filosofia, retoma a questo, apesar de fazer de um modo

    indireto.

    No segundo captulo, intitulado por uma pergunta: Reduo ou

    conexo? Conceitos bsicos, encontramos pistas de uma nova atitude. Neste

    captulo, Strawson reflete sobre o mtodo de pesquisa na filosofia.

    Influenciado na tradio na qual se formou, Strawson questiona um dos

    principais lemas no mtodo da filosofia analtica. A ferramenta a lgica e, em

    geral, ela tomada como um meio de separao das partes simples de um

    complexo maior. Da a analogia com a qumica na busca dos elementos. Seja na

    diviso do significado de um conceito em suas notas constituintes ou na

    explicitao das sentenas logicamente genunas camufladas na linguagem

    mundana. Este tipo de programa, que Strawson chama de anlise redutora, tem

    seus mritos, mas tambm exigncias e limitaes prprias. Se optarmos por

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    um outro procedimento, ainda que balizado pela correo lgica, talvez

    ultrapassemos estas limitaes. Vale a pena lermos a seguinte passagem do

    mencionado captulo.

    Abandonemos a noo de uma simplicidade perfeita nos conceitos; abandonemos at a noo de que a anlise deve estar sempre na direo de uma maior simplicidade. Vamos imaginar, em vez disso, o modelo de uma rede elaborada, um sistema de itens, de conceitos, tal que a funo de cada item, de cada conceito, s pudesse, do ponto de vista filsofo, ser compreendida pela percepo das suas conexes com os outros, do seu lugar no sistema ou talvez melhor ainda, atravs da imagem de um conjunto de sistemas dessa espcie engrenados uns nos outros. Caso o nosso modelo passe, no h razo para preocupao, se ao percorrer as articulaes da rede, voltarmos ao ponto de partida ou por ele transitarmos. Por exemplo, achar que no conseguirmos elucidar completamente o conceito de conhecimento sem fazer referncia ao conceito de percepo e que no pudemos explicar todos os traos do conceito de percepo sensvel sem fazer referncia ao conceito de conhecimento. O fato no causa preocupao nem surpresa. Processando a anlise num crculo amplo, revelador e iluminante, a acusao de circularidade no nos atinge embora no desaparea3.

    A limitao em destaque acima, para o mtodo redutivo exatamente

    a mesma que autoriza Stroud a apontar o erro fatal nos argumentos

    transcendentais. A saber, a circularidade lgica desses argumentos. Tendo isso

    em vista, a anlise por conexo pode redefinir no somente o modo como

    descrevemos nossos circuitos argumentativos como, tambm a compreenso

    dos termos que ocorrem neste circuito. Tomemos o problema de provar a

    realidade do mundo exterior. Para Strawson, o significado dos principais

    conceitos envolvidos no permite ser isolado plenamente numa anlise

    redutora ou atomista. Pode ser que suas elucidaes estejam imbricadas de um

    modo complementar, assim como por analogia dizemos trazer a superfcie

    cncava simultaneamente sua convexidade numa relao espacial. Vejamos este

    emblemtico trecho de Strawson na mesma obra.

    Assim como os conceitos (ou pelo menos os conceitos relativamente

    triviais) adquirem sentido na e a partir da experincia perceptiva, da mesma

    forma a experincia perceptiva adquire a sua natureza a partir dos conceitos

    3 STRAWSON, P. F. Analysis and Metaphysics: An Introduction to Philosophy. Oxford: 1992.

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    que desenvolvemos nos juzos perceptivos originrios. A natureza da nossa

    prpria experincia perceptiva, da experincia sensvel, inteiramente

    condicionada pelos juzos que ns dispomos a fazer sobre o mundo objetivo

    quando temos essa experincia; , digamos assim, inteiramente permeada

    saturada, poderamos dizer com os conceitos empregues nesses juzos.

    Concluso

    Poderamos apostar, concluindo que a reformulao de Strawson

    acerca do alcance dos argumentos transcendentais certamente nada explcita

    ultrapassa a ideia mantida at ento que o uso dos mesmos, resume-se a exibir

    a cadeia lgica dos conceitos em certos temas filosficos importantes,

    especialmente a clarificao do conceito de conhecimento mediado pela

    experincia sensvel. De fato, o deslindar dos argumentos transcendentais

    clarificaria conjuntamente o contedo dos conceitos neles presentes. Se

    pensarmos o persistente problema da realidade do mundo exterior, um recurso

    de prova que instaura e elucida os principais conceitos envolvidos na questo.

    Um penoso recurso abstrato para legitimar o mundo independente da

    conscincia, apesar de engendrado dentro da linguagem. Fortemente abstrato,

    mas no exatamente algo novo. No posso deixar de fazer uma aproximao

    com um autor aparentemente antagnico tradio filosfica que Strawson

    partilha: Heidegger , no por acaso, outro leitor atento da Crtica da Razo

    Pura. No livro O Que uma Coisa, quando procura explicar a estrutura de prova

    dos princpios puros do conhecimento, ele afirma:

    Deve ter-se em ateno esse fato, se queremos perceber as caractersticas das demonstraes dos princpios. Abstraindo das dificuldades particulares de contedo destas demonstraes, elas tm algo de estranho, pois estamos sempre tentados a dizer que todos os movimentos do pensar se movem em crculo. No necessrio comear por chamar a ateno para esta dificuldade das demonstraes. necessrio, no entanto, explicar o fundamento da dificuldade. Ela no reside simplesmente no contedo particular dos princpios, mas na sua essncia. O fundamento da dificuldade um fundamento necessrio. Os princpios devem ser demonstrados como sendo aquelas determinaes que, antes de mais, possibilitam uma experincia dos objetos em geral. Como isso pode se demonstrar? Na medida em que se mostre que elas prprias

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    apenas so possveis na base da unidade e da pertena mtua dos conceitos puros do entendimento com o que intuitivamente encontrado.

    Esta unidade da intuio e do pensar , ela prpria, a essncia da experincia. A demonstrao consiste nisso tambm: os princpios do entendimento puro so possveis atravs daquilo que eles prprios devem possibilitar, a saber, a experincia. Isto um crculo evidente. Sem dvida. E para a compreenso do movimento e do carter da prpria coisa a demonstrar inevitvel, no s pressupor este crculo (o que nos leva a suspeitar o valor da demonstrao), mas tambm reconhec-lo claramente e percorr-lo enquanto tal4.

    No difcil reconhecer, portanto, que analticos e continentais

    podem ser surpreendentemente semelhantes quando mediados por um autor

    clssico como Kant.

    Referncias Bibliogrficas

    TAYLOR, C. Argumentos Filosficos. So Paulo: Edies Loyola, 2000.

    HEIDEGGER, M. O que uma coisa? Lisboa: Edies 70, 1992.

    STRAWSON, P. F. Individuals: An Essay in Descriptive Metaphysics. London: Methuen, 1959.

    STRAWSON, P. F. Skepticism and Naturalism: Some Varieties. New York: Columbia University Press, 1985.

    STRAWSON, P. F. Analysis and Metaphysics: An Introduction to Philosophy. Oxford: 1992.

    STROUD, B. The Significance of Philosophical Scepticism. New York: Oxford University Press, 1984.

    STROUD, B. Understanding Human Knowledge. New York: Oxford University Press, 2000.

    Data de Recebimento: 10/06/2013

    Data de Aprovao para Publicao: 21/07/2013

    4 HEIDEGGER, M. O que uma coisa? Lisboa: Edies 70, 1992.