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DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
IRINEU STRENGER
22. Dos Bens
22.1. Facetas históricas. 22.2. Imóveis e móveis: localização. 22.3. Móveis e imóveis como termos
técnicos. 22.4. Direitos relativos aos bens. 22.5. Jurisdição territorial. 22.6. Classificação dos bens. 22.7.
Posse. 22.8. Propriedade. 22.9. Usufruto. 22.10. Hipoteca. 22.11. Obra literária. 22.12. Direito da
personalidade e privacidade.
22.1. Facetas históricas
Os bens podem ser vistos sob duplo aspecto. Cada valor, com efeito, é passível de consideração
individual ou como fazendo parte de conjunto que forma o patrimônio de certa pessoa em íntima
relação consigo própria. Dessa intimidade resultam numerosas combinações, das quais as mais
importantes são o regime das sucessões e o regime de bens entre marido e mulher.
Deixando de lado, porém, o estatuto dos bens enquanto constituem património de uma pessoa,
conduziremos nossa análise no sentido do que dispõe o Código Civil brasileiro a respeito, com as
devidas extensões e visão internacional.
No direito antigo fazia-se distinção entre imóveis e móveis. Enquanto aos primeiros se aplicava a
lei do lugar da situação (lex rei sitae), os segundos eram regidos pela lei do domicílio de seu
proprietário, seja assinando-Lhes uma situação ficta na determinação do lugar ou fazendo depender do
estatuto real, seja considerando-os como acessórios das pessoas, devendo assim obedecer à mesma
lei que patrocinava o estatuto pessoal (mobilia sequuntur personam). Em numerosas hipóteses, porém,
aplicava-se tanto aos imóveis como aos móveis a lei do lugar de sua situação efetiva.
Tomemos do Prof. Haroldo Valladão algumas importantes facetas históricas do instituto, que no
nosso Código Civil está disciplinado no Livro li, intitulado "Dos Bens".
"Na história doutrinária do direito internacional privado é conhecida a frase de Waechter de que o
princípio da lei da situa
ção, da lex rei sitae para os bens, era o mais seguro e o mais corrente, porém, com uma restritiva:
'tratando-se de imóveis'. Veremos que essa restritiva está desaparecendo...
Nas escolas estatutárias, Bartolo IV aplicava aos bens imóveis (a uma casa) a lei do lugar da
respectiva situação, lex rei sitae, nada dizendo sobre os móveis, que Baldo, todavia, submetia à lei do
domicílio da pessoa, do proprietário, mobília personam sequuntur unindo-a à primeira: 'immobilia
concernent territoria'. O princípio era intuitivo para os imóveis, e acerca dos móveis a lei da pessoa se
impunha porque, segundo Dumoulin, eles estavam situados no domicílio do proprietário. Já a escola
francesa, com WArgentré, seguida pela escola holandesa, via na lex rei sitae para os imóveis uma
expressão da soberania territorial e quanto aos móveis a lei do domicílio do proprietário decorria da
variação de sua situação e confusão final com a própria pessoa (D'Argentre) ou da ficção legal
(Rodemburgus) de estarem situados naquele domicílio. Mas segundo ressaltou Anzilotti também para
os móveis se aplicava em certos casos a lex rei sitae e Lainé referia que se visava mais os móveis
numa universalidade (sucessão).
Nas doutrinas modernas, Story, seguindo os estatutários, levou a lex rei sitae para os imóveis a
um extremo rigor, na diretriz de D'Argentré, até à capacidade, à forma e ao fundo dos contratos sobre
os mesmos e aos direitos transmitidos, e admitia para os móveis a lei do domicílio do proprietário, mas
com a larga exceção de disposição contrária do lugar da situação dos mesmos móveis. Sua doutrina
dominou o direito angloamericano e na Europa ocidental, através das obras de Rocco, na Itália, e de
Foelix, com muitas exceções, na França, Espanha, etc. Já Savigny afastou-se imperativamente da
tradição estatutária pluralista, para adotar o regime unitário, da moderna doutrina alemã, com
Muffienbuch, Meizner e Waechter, pois a sede quer dos bens imóveis quer dos bens móveis é sempre o
lugar da respectiva situação, regulados, assim, uns aos outros, pela lex rei sitae; fazia, porém, a justa
exceção dos móveis que ocupam no espaço um lugar indeterminado e variável, que será indicado pela
vontade do proprietário ou coincidirá com o respectivo domicílio, assim a bagagem do viajante ou as
mercadorias expedidas pelo negociante para um país longínquo. Justificou a lex rei sitae pelas idéias
da moda, pela autonomia da vontade, afirmando: 'quem deseja adquirir ou exercer um direito sobre
uma coisa transporta-se para onde está situada, submetendo-se, assim, voluntariamente ao direito do
lugar'. Finalmente, para Mancini e a escola ítalo-franco-belga, a tendência lógica seria considerar o
direito dos bens como pertencente ao direito privado necessário e, pois, regido pela lei nacional do
proprietário e assim dois dos seus grandes seguidores, Laurent (Bélgica) no seu projeto de Cód. Civil,
art. 13, e WeiSS (França), em sua obra, aplicaram aos bens a lei nacional do proprietário. Mas o Cód.
ital., 1865, art. 7°-, só a aplicou aos bens móveis e com a larga exceção de Story, antes referida, e
muitos autores italianos justificaram a lex rei sitae para os imóveis por uma exigência de ordem pública,
tendo Bartin, na França, visto na regra um princípio de 'sécurité', que impõe a absoluta generalidade
dos preceitos sobre os bens".
Na doutrina coletiva, o lnstitut de Droit Internacional aprovou a Resolução de Madrid, de 19 de
abril de 1911, acerca dos conflitos de leis em matéria de direitos reais, em geral estabelecendo o
regime unitário, lex rei sitae, sem distinção entre bens imóveis e móveis (art. 3°-), e sem excessos, pois
a capacidade e forma extrínseca relativas seguiriam as respectivas regras gerais, com algumas
variantes.
"A posição original, necessária para dar eficácia ao princípio unitarista, no caso difícil da
mudança de situação dos bens móveis, em trânsito, sem situação permanente, foi a proposta pelo
insigne brasileiro Freitas, 1860, no art. 411 do Esboço do Cód. Civ. do Império do Brasil."
Suprimiu ele as exceções de Savigny para a bagagem do viajante e as mercadorias em trânsito,
para os bens móveis em movimento, por uma fórmula feliz e prática, localizando-os no tempo, fixando
temporalmente a respectiva lex rei sitae. Eis o seu texto, na íntegra, sobre a matéria: "Art. 411. O lugar
da existência das coisas imóveis no Império, ou fora dele, será o de sua situação; e o das coisas
móveis, aquele em que se achavam no dia da aquisição dos direitos reais que sobre elas se alegar, ou
no dia da aquisição da posse, ou em que se acharem no dia em que sobre elas se intentar alguma ação
ou procedimento judicial", sublinhada a novidade. E, em nota justificativa, declarava ser "falsa a
distinção que se tem feito entre as coisas móveis e imóveis, reconhecendo que ela deriva de uma ficção
e que a ficção deve cessar com o fato real da existência das coisas em um lugar dado", citando as
muitas exceções de Foelix e Savigny.
Teixeira de Freitas, com a sábia solução acima, tornou desnecessárias quaisquer exceções,
estabelecendo para os móveis a
lei da sua situação no dia (fixação local temporal) da aquisição dos direitos reais que sobre eles se
alegarem ou do dia da aquisição de sua posse, ou do dia em que se acharem, em que sobre eles se
intentar procedimento judicial.
Completando o texto de Freitas, para localizar também os imóveis no tempo e lhes dar ainda
situação local temporal (pois eles podem, também, mudar de situação, fisicamente: acessão, avulsão;
ou juridicamente: permuta ou anexação de territórios) dispôs Haroldo Valladão no Anteprojeto de seu
Código de Aplicação das Normas Jurídicas, art. 45: "A aquisição da posse e dos direitos reais se rege
segundo a lei da situação do bem no dia em que se integraram as respectivas condições, e os direitos
alegados nas ações reais segundo a mesma lei no dia em que se iniciou o processo judicial". É fórmula
genérica que fixa, no tempo, a lex rei sitae para quaisquer bens.
O direito internacional privado brasileiro recebeu a influência de Savigny em relação ao critério
unitário da regra lex rei sitae. Dizia o art. 10 da Introdução ao Código Civil (1916), em sua primeira
parte: "Os bens, móveis ou imóveis, estão sob a lei do lugar onde situados...".
22.2. Imóveis e móveis: localização
A aplicação dessa regra, em verdade, não cria dificuldade para os imóveis. No que concerne à
conexão propriamente dita, os imóveis que estiverem situados aqui ou acolá de uma fronteira podem ter
aplicação distributiva de duas leis interessadas. Contudo, as coisas transportadas, como mercadorias,
bem assim os meios de transporte eles próprios, oferecem dificuldades de localização. Como é sabido
no que concerne a aeronaves e navios, ou sofrem qualificação legal, considerando-se-os imóveis, ou
têm a tutela do lugar da matrícula ou de pavilhão.
Quando a hipótese é de transporte terrestre, a localização do bem envolve problema de prova, e
para considerar resolvida a situação do bem no momento preciso em que o estatuto pode ser posto em
causa, não constitui elemento de conexão significativo, em razão de sua precariedade. Melhor do que
aplicar a lei da situação efetiva dos bens, supostamente determinada, deve-se
submeter as mercadorias à lei do lugar de destinação ou, se este for desconhecido, a do lugar da
expedição.
Freqüentemente a venda de mercadorias exige transferência de documentos, sendo, então de
maior conveniência considerá-los como representativos das mercadorias, sem consulta à lei da
situação efetiva; em conseqüência, a lei do lugar da remessa será reconhecida apta a apelar a
transferência da propriedade. É preciso, porém, admitir que os direitos de um adquirente a non domino
cedem diante daqueles do possuidor segundo a lei da situação efetiva do bem.
Analisando a questão do conflito móvel, Bemard Audit adverte que o deslocamento de móvel de
um país para outro acarreta sua submissão sucessiva a duas leis, sem reconhecer necessariamente os
mesmos direitos sobre ele, quer dizer, um conflito imóvel. A teoria dos direitos adquiridos desejaria que
os direitos do qual o móvel é objeto no país de origem fossem reconhecidos, nos países onde viesse a
ser introduzido. Essa solução faz prevalecer a segurança dos terceiros de boa-fé, assim obrigados a
respeitar direitos sobre os quais não poderiam praticamente conhecer a existência. Em compensação, a
transposição de princípios recebidos em matéria de conflitos de leis no tempo conduz a não aplicar a lei
antiga senão pelos modos de aquisição dos direitos sobre o bem e os efeitos correspondentes, ao
passo que o conteúdo dos direitos e seus efeitos vindouros serão imediatamente submetidos à lei da
situação atual.
Em todos os casos em que se aceitará reconhecer os direitos adquiridos sob o império de uma
lei estrangeira, pode tornarse necessária a transposição dos direitos em questão, por não serem
exatamente equivalentes àqueles previstos pela lei local.
A lei do lugar da situação dos bens móveis e imóveis determina o conjunto de seu regime,
compreendido como disposição das relações entre a pessoa e a coisa. O princípio faz respeitar a
soberania do Estado sobre os bens situados sobre seu território. Do ponto de vista do direito privado,
ele tende a preservar os terceiros da surpresa que constituiria a revelação de direitos desconhecidos da
lei local ou oponíveis, nas condições não previstas por esta. A lei local define, assim, em primeiro lugar,
as coisas objeto de imóvel, de onde se deduz seu regime. Essa regra está
ligada ao fato de que a lex rei sitae é aplicável tanto aos imóveis como aos móveis.
22.3. Móveis e imóveis como termos técnicos
Contudo, como explica Amilcar de Castro móvel ou imóvel não são em direito o mesmo que
vulgarmente significam essas palavras. Bens móveis e imóveis são apenas termos técnicos.
Juridicamente considera-se conveniente tratar os valores de certas coisas como bens móveis e os
valores de outras como bens imóveis, independentemente da mobilidade natural das coisas cujos
valores são tomados em consideração.
Por outro lado, acrescenta o insigne mestre, o jurista só se refere à qualificação dos bens em si
mesmos considerados como pressupostos de validade das apreciações jurídicas. O jurista toma em
consideração as relações humanas a respeito dos valores que possam determinar coisas do mundo
exterior, e para esse efeito é que cuida de qualificar os bens (valores das coisas) como pressupostos de
validade daquelas apreciações.
Atualmente, a palavra e, "bens" compreende valores de toda espécie, como, por exemplo, de
casas, terras, móveis, créditos, rendas, direitos de autor, patentes de invenção, nome e clientela do
comerciante. Os bens, acentua Amilcar de Castro, podem, portanto, ser valores de coisas corpóreas, de
existência verificável pelos sentidos, principalmente o do tato (quae tangi possuno, e podem ser
também valores de coisas incorpóreas, de existência não reconhecível pela vista, ou por apalpação
(quae tangi non possunn, não podendo ser apanhados senão pela inteligência (solo juris intellectu
consistunl).
22.4. Direitos relativos aos bens
Conseqüentemente, a respeito dos bens, em si mesmos considerados ou como objeto de
relações juridicamente apreciáveis, vários direitos podem ser contemplados: o da situação para o jus in
re; o do lugar da constituição do contrato para o jus ad rem; o do domicílio para a capacidade das
partes; o do lugar do ato para a forma respectiva; o do domicílio do de cujus para a sucessão; o do
domicílio conjugal para o regime matrimonial; e o do lugar do principal estabelecimento para a falência.
22.5. Jurisdição territorial
Em razão do princípio inconteste segundo o qual cada país exerce seu poder exclusivo de
império e de jurisdição sobre toda a extensão do território, deve-se admitir que não somente o território
mas, ainda, as coisas ali contidas devem ser submetidos ao imperium, à auctoritas e à jurisdição do
soberano territorial, de onde o axioma quidquid est in territorio est etiam de territorio.
Desse princípio resulta que a qualificação das coisas diante de sua condição jurídica depende
absolutamente da lei territorial, porque na realidade o legislador, assim dispondo, não se preocupa em
saber se elas pertencem a tal ou qual pessoa, a um cidadão nacional ou estrangeiro, mas,
considerando essas coisas como objetos do direito, determina-lhes a qualidade das condições jurídicas
de que são dotadas.
A primeira vista, pode parecer que não existe nenhuma dúvida razoável a esse respeito.
Contudo, as dificuldades surgem, porque certos objetos, móveis por sua natureza, podem ser
declarados imóveis por uma disposição de lei, como é o caso dos navios entre nós. Em direito
comparado, verifica-se que inúmeros legisladores, com efeito, declaravam imobiliários certos bens
mobiliários, dependendo de sua destinação, tais como, por exemplo, os animais atrelados a uma
exploração agrícola, os instrumentos de agricultura, os aparelhos necessários às fábricas. Outros
legisladores declaravam certas coisas imóveis tendo em consideração o objeto ao qual se relacionam:
tal ~ é o fato, por exemplo, do legislador italiano, que considera imóvel o direito de enfiteuse sobre bens
de raiz submetidos a esse direito, as ações que se destinam à garantia de imóveis ou direitos relativos
aos imóveis, ou, ainda, como ocorre no Brasil, os títulos da dívida pública gravados de cláusula de
inalienabilidade.
22.6. Classificação dos bens
As classificações dos bens são bastante diversificadas nos diferentes sistemas. A título de
exemplo vejamos a disposição do Código Civil francês, cujo art. 524 é do seguinte teor:
"Art. 524. Les objets que le proprietaire d'un fonds y a piacés pour le service et I'exploitation de
ce fonds, sont immeubles par destination.
Ainsi, sont immeubles para destination, quand ils ont été piacés para le propriétaire pour le
service et I'exploitation du fonds:
Les animaux attachés à Ia culture;
Les ustensiles aratoires;
Les semences données aux fermiers ou colons partiaires;
Les pigeons des colombiers;
Les Japins des garennes;
Les ruches à miei;
Les poissons des étongs;
Les pressoirs, chaudières, alambies, cuves et tonnes;
Les restensiles necessaires à I'exploitation des forges, papeteries et autres usines;
Les pailles et engrais.
Sont aussi immeubles par destination tous effets mobiliers que le proprietaire a attachés au fonds
à perpétuelle demeure".
O princípio consagrado no art. 300 do Código Civil austríaco, que submete os imóveis à lei do
lugar onde estiverem situados e segundo o qual todos os outros bens, ao contrário, devem submeter-se
às leis às quais está subordinada a pessoa de proprietário, está em conformidade com a regra
tradicional consagrada pela doutrina e jurisprudência de todos os países que, admitindo a máxima
mobília personam sequuntur, mobilia ossibus personae inhaerent, constantamente reconheceram que
os bens mobiliários, do ponto de vista da lei aplicável para regular os direitos que lhes são
concernentes, devem ser regidos pela lei pessoal daquele ao qual eles pertencem, e que sua situação
real deve ser considerada irrelevante.
Essa é a orientação legal do direito internacional privado brasileiro, que, no art. 8°- da Lei de
Introdução ao Código Civil, assim dispõe:
"Art. 8° Para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do
país em que estiverem situados.
§ 1°- Aplicar-se-á a lei do país em que for domiciliado o proprietário, quanto aos bens móveis que
ele trouxer ou se destinarem a transporte para outros lugares.
§ 2°- O penhor regula-se pela lei do domicílio que tiver a pessoa, em cuja posse se encontre a
coisa apenhada".
Considerando esse princípio pergunta-se se a lei pessoal do proprietário, segundo a qual dada
coisa é considerada como imobiliária, pode assim considerá-la em toda parte, e, em conseqüência,
mesmo na hipótese onde, de acordo com a lei territorial, ela fosse declarada imóvel, seja por
destinação, seja em razão do objeto ao qual ela se refere.
A solução dessa questão no sentido da afirmativa ou da negativa pode gerar conseqüências
jurídicas importantes na prática, pois a capacidade das pessoas de praticar certos atos depende em
alguns casos da condição jurídica dos bens. Assim, por exemplo, a alienação de bens pertencentes à
mulher casada não pode ser feita sem autorização do marido (art. 242 do Código Civil), mas, ao
contrário, é valida se se tratar de coisas mobiliárias. Essa circunstância serve para demonstrar que,
quanto aos atos sujeitos a certas formalidades substanciais, quer se trate de bens imobiliários ou
mobiliários, é natural que tudo deva depender da qualificação jurídica das coisas. Contudo, é preciso
salientar que nessa matéria não se admite a autoridade do estatuto pessoal, porque a lei que determina
a condição jurídica dos bens ou coisas dispõe a esse respeito sem se preocupar com as relações entre
a pessoa e a coisa e a pessoa à qual essa coisa pertence.
22.7. Posse
A posse pode ser considerada segundo duplo ponto de vista:
a) como um fato puro e simples, independente da aquisição ou do exercício de um direito. Tal é a
posse natural, que os romanos qualificavam muda defentio, esse in possessione;
b) como um fato jurídico, que, com abstração de todo direito preexistente, produz por si mesmo
certas conseqüências legais. É a posse no sentido técnico, ou posse jurídica: ela resulta dos atos
sensíveis exercidos por qualquer um sobre determinado objeto ex-
terior de modo a manifestar a intenção de submeter esse objeto ao exercício de um direito.
Considerada desse ponto de vista, a posse produz conseqüências jurídicas importantes,
sobretudo quando tende a afirmar um direito de propriedade ou um direito real, por meio da vontade de
possuir a coisa animo domini e de tê-la à sua disposição física, para adquirir, assim, abstração feita ao
direito preexistente, o direito de propriedade ou direito real.
A posse pode também ser considerada como fato jurídico, com a ajuda da qual se manifesta e se
exerce o direito de propriedade. Assim entendida, porém, torna-se antes exercício de direito
preexistente, constituindo o que se intitula o jus possidendi.
É evidente que a posse considerada como fato jurídico, realizada segundo condições
estabelecidas pela lei territorial, produz todas as conseqüências que esta atribui a tal fato.
Resulta, portanto, desse princípio que o possuidor, seja cidadão nacional ou estrangeiro, pode
prevalecer-se de todos os meios jurídicos permitidos pela lei do lugar da posse, quer para fazer cessar
turbações e para manter-se no seu exercício, quer para reintegrar-se se despojado da coisa.
Deve-se admitir, destarte, em princípio, que o jus possessionis deve ser regido pela lex rei sitae;
o mesmo ocorrendo em relação às ações possessórias.
22.8. Propriedade
A propriedade, em geral, é o direito de gozar e dispor das coisas de modo absoluto, desde que
não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos.
Considerada em face da pessoa que a detém, deve a propriedade ser regida pela lei da qual ela
possa resultar. Segundo as circunstâncias, pode ser tutelada pela lei do lugar onde a coisa que a
constitui está situada, mas não é valido assegurar que a lex rei sitae é o único princípio sustentável,
porque não se pode, de acordo com essa indicação territorial, determinar se a pessoa deve ou não ser
a legítima proprietária da coisa imobiliá-
ria. Genericamente, os modos de aquisição da propriedade dependem da lex rei sitae, seja ela a título
universal ou a título particular.
22.9. Usufruto
Em matéria de bens imóveis, podem ocorrer delicados problemas de direito real de usufruto, em
suas duas modalidades: voluntário ou legal. No primeiro aspecto, nosso direito concede certa margem
de autonomia da vontade, posto que, de acordo com o que resulta expresso nos arts. 713 e seguintes
do Código Civil, o usufruto se rege em primeiro lugar por seu título constitutivo e subsidiariamente pelas
disposições legais. Não obstante, na regulação do usufruto em todos os países existem disposições
imperativas que não podem ser descartadas por pacto em contrário ou por aparecer o usufruto regulado
por lei estrangeira, tais como as que estabelecem a esse direito real um limite máximo de duração ao
constituir-se a favor de uma pessoa jurídica ou durante a vida de vários indivíduos. É o caso do Brasil,
onde o usufruto se extingue com a pessoa jurídica, ou, se esta perdurar, aos cem anos da data em que
se começou a exercê-lo (art. 744).
Nos usufrutos legais podem entrar em colisão a lex rei sitae e a que regula a instituição dentro da
qual se concede a um de seus sujeitos o usufruto de certos bens. E em nosso Código existem três
possibilidades de usufruto legal: o do pai ou mãe sobre os bens dos filhos sujeitos ao pátrio poder, o do
marido que estiver na posse de bens particulares da mulher, se o rendimento for comum, ou de dote de
capitais e rendas, e o do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal. Em todas
essas hipóteses, o título legal constitutivo do usufruto é pessoal e não territorial. Claro é que a
efetividade dos direitos usufrutuários sobre bens imóveis estará também em função de seu
reconhecimento no país da situação dos bens, e do cumprimento das medidas que a legislação desse
país exija para sua oponibilidade diante de terceiros.
Reciprocamente, no Brasil, por exemplo, será suscetível de reconhecimento o usufruto legal
imposto sobre bens situados em nosso território pela legislação pessoal que rege o pátrio poder, o dote,
a sucessão de estrangeiros etc., segundo a regra geral de nosso direito.
22.10. Hipoteca
Quanto à hipoteca aplicar-se-á a lex rei sitae para determinar seu conteúdo e exercício;
relativamente à sua base contratual, ter-se-á em conta a autonomia da vontade dos contratantes, até o
limite em que não se oponha à ordem pública local.
Sendo a hipótese um direito limitativo do domínio, e, portanto, manifestação do regime de
propriedade, reger-se-á o gravame pela lei da situação do imóvel que presidirá sua constituição; a
retenção ou exame dos bens suscetíveis de ser hipotecados; as formalidades de inscrição e
publicidade. Modernamente, concedese aos estrangeiros o gozo dos chamados direitos preferenciais
sempre que a causa da preferência invocada seja reconhecida pela lei do país onde se pretende
invocá-la.
Importante e significativo o posicionamento do Prof. Haroldo Valladão, que passamos a
transcrever:
"Acerca dos direitos de garantia, especialmente da hipoteca, discutiu-se nos tribunais brasileiros
se a dívida por ela garantida, o contrato de empréstimo, se rege pela lei brasileira, aqui estando o
imóvel hipotecado.
Sustentamos em dois estudos, longamente desenvolvidos, sobre dívidas em moeda estrangeira
simples e sua distinção da 'cláusula ouro'.
Fica afastada desde logo qualquer influência da lei reguladora da garantia, da lei da situação dos
imóveis hipotecados. Não há em foco qualquer problema de direito real, não se questiona sobre direito
hipotecário, a respeito da validade da garantia dada pela devedora. E se não se discute a respeito de
'atos relativos ao regime hipotecário brasileiro' não é possível a aplicação da lei brasileira com
fundamento no parágrafo único, n. IV, do art. 13 da Introdução do Código Civil. Muito mais descabido
seria pleitear, num debate exclusivamente feito sobre o modo de cumprimento da obrigação, de
pagamento da importância mutuada, a aplicação da lei da garantia, pretender que a lei do acessório
disciplinasse o principal, que a lei da hipoteca fosse a reguladora da dívida". E ainda mais: "Mas é
corrente, até elementar, que a lei que rege a garantia, no caso a lei disciplinadora do direito real da
hipoteca, não é a mesma que regula a dívida, na espécie, o mútuo. Num contrato de empréstimo por
obrigações ao portador, com garantia especial hipotecária, há dois negócios, um, o principal, o emprés-
timo, e outro, o acessório, a hipoteca. O primeiro, direito de crédito, círculo do direito das obrigações, o
segundo, direito real, círculo do direito das coisas; cada um com suas regras próprias no campo do
direito internacional privado".
O assunto foi largamente discutido, em dois casos mandando-se aplicar a lei brasileira, mas por
se entender que o lugar da execução era o Brasil. Em um, da Cia. Tecidos Paulista e do British Bank of
South America Ltd., no Tribunal de Pernambuco (primeiro acórdão in Rev. Forense 92/179 e ss., não
prosseguindo por ter havido acordo) e noutro, da Cia. América Fabril S.A. e The City Bank Farmer Trust
Co. Ltd., no Tribunal do antigo Distrito Federal (Rev. Forense, 95/334) e no Supremo Tribunal Federal
(primeiro acórdão, 111 Turma, 15.6.44, Rev. Forense 99/652, não tendo prosseguido ex vi do D. L. n.
6.650, de 29.6.44, excetuando o caso de obrigação contratual no estrangeiro e exeqüível no Brasil, e
aplicável à espécie por não existir ainda decisão judicial transitada em julgado). É de se destacar, ainda,
no debate geral, notável voto vencido do eminente e saudoso Min. Philadelpho Azevedo (Rec. Extr.
6.728, Rev. Forense 99/354, em "Um Triênio de Judicatura", I, 115), concordando com a opinião acima
transcrita do eminente mestre Haroldo Valladão.
22.11. Obra literária
As prerrogativas jurídicas consistentes na exploração dos benefícios produzidos por uma obra
literária, científica ou industrial se encontram tratadas como propriedades especiais, em leis próprias,
denominadas propriedades intelectual e industrial.
A índole especial desses direitos reais de caráter material reclama extraterritorialidade em sua
proteção, que se conseguiu mediante tratados internacionais. Em razão da importância do direito
convencional, resultante notadamente de duas Convenções multilaterais, o direito interno adquire
significação mais restrita. São elas: a Convenção de Berna de 1886, várias vezes revisada, e a
Convenção de Genebra de 1952, igualmente revisada, chamada "Convenção Universal", de aplicação
mais extensa, mas menos protecionista. As diferentes convenções colocam o princípio da assimilação
do estrangeiro ao nacional, isto é, os autores estrangeiros devem beneficiar-se da mesma proteção
pelas suas obras que os autores nacionais, mas segundo modalidades diferentes. De acordo com a
Convenção de Berna, beneficiam-se da proteção
nacional, de um lado, os autores súditos dos países da União ou tendo sua residência habitual em um
desses países por suas obras publicadas ou não, e daqueles de países não pertencentes à União por
suas obras publicadas em um desses países (art. 3.1. e 2). A Convenção de Genebra beneficia com
proteção nacional os súditos de todo Estado contratante por suas obras publicadas pela primeira vez no
território de um Estado contratante; um Estado contratante pode, além disso, por sua legislação interna,
assimilar aos seus nacionais qualquer pessoa domiciliada em seu território (art. II). Segundo Bernard
Audit em boa análise, essas disposições visam a proteção dos estrangeiros e deixam teoricamente
aberta a questão de saber segundo qual lei os direitos são exercidos; chega-se assim a uma
combinação de leis do Estado de origem e do Estado receptor. Contudo, algumas vezes eles são
compreendidos como se um impusesse a aplicação integral da lei ao outro.
Anote-se, também, a existência da Convenção de Roma de 1961 sobre a proteção dos artistas,
intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de organismos de radiodifusão.
22.12. Direito da personalidade e privacidade
O direito internacional privado contemporâneo impôs-se a tarefa de incorporar ao seu campo de
ação não só questões relativas à proteção da personalidade como à vida privada, na qual se inclui o
direito à imagem e suas conseqüências. Soma-se a esse cabedal o regime do dados informatizados.
O conceito de direito da personalidade é relativamente recente em direito interno, tanto no Brasil
como no estrangeiro. É, igualmente, heterogêneo, pois abrange aspectos muito diversificados, como o
direito à imagem, o respeito à privacidade, a integridade física, a honra, e, ainda, como abordado, o
direito moral do autor e do artista a sua criação.
Esses direitos adquirem particular relevo com o desenvolvimento da sociedade tecnocientífica
com as telecomunicações, informática, pesquisas genéticas etc., que multiplicam as possibilidades de
violação dos objetivos, notadamente através de suas aplicações mercantis. Pela mesma razão essas
violações cada vez mais adquirem caráter internacional, bastando pensar no papel que desempenha a
mídia, e em particular a televisão.
A sanção de uma violação em dado país coloca preliminarmente a questão do gozo de direitos
pelos estrangeiros. Este é, entretanto, muito teórico, tendo-se em vista o caráter fundamental da
maioria dos direitos em tela, que constituem freqüentemente o postigo privatista dos direitos do homem
ou liberdades públicas.
François Rigaux examinou essa problemática com muita acuidade ao estudar "a lei aplicável à
proteção dos individuos em face do tratamento automatizado dos dados de caráter pessoal' j
Esses elementos foram colhidos pelo autor na Convenção do Conselho da Europa, ainda em
projeto em 1980.
Assim, a matéria dos "dados de caráter pessoal" significa toda informação concernente a uma
pessoa física identificada ou identificável. E "tratamento informatizado" é compreendido como
operações subseqüentes efetuadas na totalidade, ou em parte, com a ajuda de procedimentos
automatizados: registro de dados, aplicação a esses dados de operações lógicas e/ou aritméticas, sua
modificação, apagamento, extração ou difusão.
Segundo o art. "2b" do projeto supra-aludido, "fichário automatizado" significa "todo conjunto de
informações tendo como objeto um tratamento automatizado", contendo o seguinte comentário: "A
expressão fichário automatizado substitui aquela de banco de dados eletrônico, utilizada anteriormente,
assim como em certas leis nacionais. Em nossos dias, banco de dados é utilizado em sentido mais
especializado, notadamente um fundo comum de dados acessível a diversos utilizadores".
A advertência de Rigaux é de que não mais é permitido ignorar a concentração de informações
pessoais, nos "fichários automatizados", capazes de subverter o equilíbrio atual dos poderes societários
e ameaçar a intimidade da vida privada de cada cidadão.
Para o inventário das principais questões de direito internacional privado suscitadas para a
proteção dos indivíduos em face do tratamento automatizado de dados de caráter pessoal, deve-se ter
conta:
- da diferença de estatuto entre um fichário automático gerado por administração pública e tal
fichário pertencente ao setor privado.
- da diversidade de métodos de proteção postos em prática, a principal distinção separando os
controles exercidos por autoridade administrativa das ações civis pertencentes à pessoa em cujo nome
os dados foram registrados, sendo essas ações dirigidas seja contra o dono do fichário, seja contra um
terceiro utilizando esses dados produzidos ou adquiridos de modo ilícito.
Amplamente considerada a temática, verifica-se que, no domínio das violações contra a pessoa,
os demandantes se colocam geralmente no terreno da responsabilidade civil. Em termos de
jurisprudência internacional, a qualificação tem-se orientado no sentido de considerar as conseqüências
dos atentados contra a vida privada de uma pessoa ou da violação do direito que ela possui sobre sua
imagem ligadas à lei do lugar onde esses atos foram cometidos.
Essa concepção, entretanto, leva ao afrontamento de uma dificuldade importante: a da
localização dos fatos visados e daqueles que devem ser retidos em face da grande dispersão possível.
Quanto ao caso típico de transgressão da vida privada por publicação de fotografias indiscretas em
"magazine", por exemplo, o fato gerador é constituído por uma cadeia de acontecimentos, indo da
observação dos fatos e gestos do interessado à tomada de clichês e posteriormente sua impressão e
difusão, cada um podendo situar-se em um país diferente. No que tange à localização do dano, pode-se
hesitar, notadamente, entre o lugar da difusão, na maior parte das vezes múltiplos, e o domicílio da
vítima ou a sede de sua atividade principal. Se fizermos preponderar o dano sobre o fato gerador, o
domicílio do demandante deve prevalecer enquanto lugar onde se concentra o prejuízo. É, igualmente,
concebível admitir ao interessado opção em favor da lei do estabelecimento do autor do delito, sob o
argumento de que este deve respeitar as regras de comportamento que ali estiverem vigorando.
Contudo, parece mais conforme à realidade considerar que, nos casos das violações por meio da
imprensa, a difusão realiza um dano distinto em cada país onde ocorre, e, assim, aplicar
distributivamente a lei dos diferentes países em que o efeito se produziu; isso levará a adotar o critério
da difusão local e a avaliar distintamente o dano sofrido em cada território.
Como se vê, nesse campo a matéria se torna cada vez mais importante, dado que a facilidade
das comunicações propicia com maior intensidade a ocorrência de tais fatos, e ao direito internacional
privado incumbe proporcionar os meios de solução de tais problemas.
Todo esse contigente fático se inclui no quadro amplíssimo da propriedade intelectual, no qual
encontra esteio metodológico o direito da personalidade, compondo essas duas áreas fértil manancial
técnico-conflitual para o direito internacional privado na extensão e abrangência da problemática dos
bens.
23. Das Obrigações
23.1. Matéria polêmica. 23.2. Evolução cronológica. 23.3. Direito comum de nossos dias. 23.4.
Elementos caracterizadores. 23.5. Lex validitatis e specific performance. 23.6. Princípio da autonomia
da vontade. 23.7. Direito subjetivo. 23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo. 23.9. Designação de
lei e contrato sem lei. 23.10. Regra obrigacional brasileira. 23.11. Obrigações não convencionais. 23.12.
Aplicação do direito. 23.13. Substância do contrato.
23.1. Matéria polêmica
A obrigação voluntária e a obrigação convencional, isto é, as obrigações que nascem do contrato
ou do fato contratual, implicam a presença de tão complexos elementos integrantes que suscitam
sempre árdua questão quando se trata de regulá-las no tráfico internacional privado. A dificuldade de
localizar o contrato, a concorrência aderida aos elementos pessoais, reais e formais e a participação
dos interesses públicos e privados internos e internacionais converteram as obrigações voluntárias em
uma das matérias mais polêmicas em direito internacional privado.
No mesmo sentido a afirmação de Amílcar de Castro:
"Tem sido penoso e interminável o problema da prevalência desta ou daquela circunstância de
conexão em matéria de obrigações: até agora doutrinariamente insolúvel, e positivamente mal resolvida
pela legislação e pela jurisprudência, na opinião de Arminjon 'é sem dúvida a mais difícil das questões
de direito internacional privado'. Numerosos autores modernos têm pelejado por submeter as
obrigações a um só direito, pretendendo manter a unidade do contrato e o espírito do direito por que há
de ser apreciado, mas o resultado do esforço tem sido nulo, podendo-se dizer que cada autor tem seu
sistema. Entendem vários tratadistas que a desconjunção do contrato não só o desfigura, como importa
desnaturação dos direitos aplicados em pequenas porções. Ensi-
nam que o direito perde sua significação e sua eficácia quando mutilado, parcialmente aplicado, ou
combinado com direito estranho, pois falta unidade e coesão lógica à composição de vários direitos,
enquanto o contrato forma um todo, cujos elementos não podem ser convenientemente articulados
senão apreciados por critérios fornecidos por uma única ordem jurídica".
Os comentários assim encaminhados, entretanto, não desconstituem o rico acervo das questões
que envolvem o direito das obrigações no direito internacional privado, recheado de incidentes
doutrinários e práticos, mas nunca enfraquecendo o papel que, em decorrência, desempenham os
contratos como instrumentos indispensáveis de sua efetivação nos inúmeros campos jurídicos
delimitados pela natureza das coisas.
Ao enfrentar o estado das obrigações é indispensável distinguir duas modalidades fáticas:
aquelas que têm sua origem no contrato e aquelas com fonte diversa, denominadas obrigações
extracontratuais. Tanto na primeira hipótese como na segunda, a pesquisa do elemento de conexão é o
objeto principal, sendo desde logo assinalável que nas obrigações contratuais essa tarefa é
particularmente difícil.
Ao contrário das relações de família, cujo elemento de conexão é singelamente determinado pelo
princípio do estatuto pessoal (lei nacional ou domiciliar), ou, então, nos direitos reais, a lei do lugar da
situação, não ocorre o mesmo com a individuação, mais apropriada para regular os contratos. A
essência de um contrato, como diz Edoardo Vitta, consiste, de fato, no surgimento de um vínculo
obrigatório entre as partes, e isso, por si só, não apresenta características tais que permitam agilmente
determinar a conexão a uma ou outra lei.
23.2. Evolução cronológica
Em épocas remotas, os autores que cuidaram da questão propuseram a respeito da solução as
mais diversificadas, como explicam alguns historiadores do direito internacional privado, entre os quais
Lainé (Introduction au droit intemational privé; contenant une étude historique et critique de Ia theorie
des statuts, 2 vols., Paris, 1892), Gutzwiller (Le dévelopement historique du droit international privé, RC,
29, 1929) e Meijers (L'histoire des principes
fondamentaux du droit intemational privé, à partir du Moyen Age, speciallement daus I'Europe
occidentale, RC, 49, 1934).
Edoardo Vitta, colocando em ordem cronológica essa evolução, distingue teorias que individuam
a lei reguladora dos contratos, estabelecendo uma conexão de caráter territorial entre contrato e lugar
de sua conclusão, ou, então, entre contrato e lugar de sua execução. Nesse sentido já se orientavam
autores dos séculos XII e XIII e, posteriormente o estatutário Bártolo de Sassoferrato (1314-1357), o
qual, referindo-se à lei Si fundus, afirmava a natural dependência do contrato ao lugar de sua
conclusão. Entre os sequazes de Bártolo, menciona-se Paolo di Castro que, comentando também a lei
Si fundus, acentuava que o contrato é regulado pela lei do lugar de sua conclusão, in verbis: "guia talis
contractus dicitur ibi nasci ubi nascitur, et sicut persona ratione originis ligatur a statutis loci originis ita et
actus", ou, em vernáculo: Porque do contrato se diz que é nascido onde nasceu, como uma pessoa que
é ligada por motivo de sua origem às leis de seu lugar de origem.
Saltando no tempo encontramos Savigny, que, também referindo-se às fontes romanas,
sustentou que o contrato deve ser regulado pela lei do lugar no qual é destinado a ser executado (lex
loci solutionis), isto é, os contraentes estabelecem onde as obrigações recíprocas devem ser
cumpridas. Para Savigny, a execução é o verdadeiro escopo em vista do qual o contrato se conclui, e
constitui, portanto, o momento essencial na vida da relação obrigacional.
Outras teorias, desenvolvidas por Windscheid, von Bar e Zitelmann, já não se fundam em uma
conexão territorial, mas, sobretudo naquela que deflui das pessoas dos contraentes, e, em especial do
devedor, afirmando que se deve recorrer às leis pessoais destes. No que respeita às motivações,
Zitelmann assevera que a obrigação exprime um poder jurídico de uma pessoa, poder que, portanto,
poderia ser conferido somente pela lei à qual a pessoa estivesse sujeita, isto é, a sua lei pessoal. Na
mesma linha, outros autores dessa teoria proclamavam que é lógico submeter o devedor à lei que
melhor conhece, ou seja, sua lei pessoal.
Ulteriormente o pensamento se orientou no sentido de tomar os contraentes como ponto de
partida, mas marginalizou as leis
pessoais, fixando-se, prevalentemente, na vontade, de modo que o contrato se submetesse à lei objeto
da escolha das partes. Adotou-se nessa fase o princípio da autonomia da vontade, cuja origem é muito
antiga, como se sabe, remontando aos estatutários do século XVI.
No common law alei reguladora do contrato não pode ser prefixada de modo absoluto, nem
mesmo pelos próprios contraentes, mas deve ser individuada em cada caso pelo juiz, tendo em vista os
elementos relevantes, entre os quais a vontade das partes. O juiz, no momento do litígio sobre um
contrato, deverá pesquisar a lei mais apropriada, isto é, a proper law do contrato, na base da qual
proferirá sua decisão. Todas as teorias supra-referidas, em medida maior ou menor, influenciaram os
atuais sistemas de direito internacional privado, podendo-se afirmar que boa parte das legislações
vigentes toma como ponto de partida o principio da autonomia da vontade, na pior das hipóteses
integrando-o com outros princípios vigentes.
23.3. Direito comum de nossos dias
Em nossos dias, o direito comum foi praticamente substituído pela Convenção de Roma de 19 de
junho de 1980, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, destinada a unificar as regras do conflito
no seio dos Estados-membros da CEE e que entrou em vigor no dia 1°- de abril de 1991.
Como nos ensina Bemard Audit, o direito francês, como a quase, totalidade dos sistemas (o
Brasil entra nas exceções), consagrou o princípio da lei da autonomia da vontade, isto é, a faculdade
para as partes de designar a lei aplicável ao contrato. Na ausência de escolha, a jurisprudência se
pronuncia, em geral, em função da localização do contrato. Contudo, adverte o mesmo autor, a Corte
de Cassação não tomava nitidamente partido da teoria subjetiva, segundo a qual a determinação da lei
aplicável resulta diretamente da vontade expressa ou implícita das partes, e da teoria da localização,
misturando objetivismo e subjetivismo, segundo a qual o objeto da vontade das partes não é senão
colocar o contrato sob o império de determinada lei. A teoria da localização consagra a possibilidade de
escolha direta, uma vez que a vontade das partes seja exprimida sem equívoco.
23.4. Elementos caracterizadores
As passagens doutrinárias e algumas fixações teóricas de efeitos determinadores dos contratos
internacionais levam, naturalmente, à enunciação das características identificadoras das formalizações
do comércio internacional, por meio das diversas modalidades de ajustes negociais.
Antes de se chegar a um esboço de classificação, pertine esclarecer que o vocábulo
características é adotado com o sentido de entrever, nos contratos internacionais, certas notas
distintivas, não só de estrutura como de sistema.
Ao estudar esse assunto, verificamos que nos contratos internacionais ocorre um processo
inexoravelmente desenvolvimentista, que, continuamente, gera a eclosão de novas cláusulas, sempre
destinadas a satisfazer as exigências do comércio internacional, sempre desempenhando papel de
extrema singularidade quanto às diferentes instituições que abrange.
Sem dúvida, existem regras nascidas das práticas internacionais, compostas pelos usos
profissionais, e princípios gerais do direito, com encaminhamentos inevitáveis de adaptação à vida
própria do comércio internacional, e, mesmo que se admita a forma normativa dos direitos estatais,
verifica-se que no plano internacional, em matéria de lei aplicável ao contrato, interferem disposições
supletivas e imperativas, sendo de notar-se que as primeiras periodicamente revigoram-se, por meio de
regulamentações associativas, e mesmo através da criatividade individualizada pelas especializações
do comércio.
Fenômeno que deve ser especialmente realçado é o da força crescente do princípio da
autonomia da vontade, cuja extensão já avança inclusive para a área dos países de economia
planificada, e hoje parece incontestável que a noção de contrato, estimulada por essa influência, sofreu
notáveis evoluções.
Henri Batiffol, ao prefaciar o magnífico livro de Annie Toubiana, confirma essa perspectiva, com o
seguinte pensamento: "O regime dos contratos em Direito Internacional Privado aparece dividido entre
duas tendências antagônicas. De um lado, o procedimento geral da designação de uma lei aplicável ao
contrato é visto como inadequado: são contratos que não se conectam efetivamente a nenhum sistema
jurídico estatal determinado, e esses sistemas foram concebidos por relações internas, ao passo que o
comércio internacional tem suas exigências próprias bem melhor conhecidas por aqueles que nele
estão enganjados e que se exprimem por seus próprios acordos livremente negociados, sem referência
a qualquer lei. De outro lado, e em sentido diametralmente oposto, a ênfase é colocada na intervenção
crescente do Estado em matéria de contratos, e no dirigismo econômico e social, que reduz
inexoravelmente a liberdade contratual: como recusar, a tal legislação, a aplicabilidade que reclama a
título imperativo, não obstante a designação pelas partes da lei que governa os contratos segundo o
método bem assentado dos conflitos de leis?".
Com efeito, os contratos do comércio internacional ainda se debatem entre essas duas direções,
mas o elasticismo dessa dupla tendência tem sofrido grandes distensões, com visível vantagem para as
solicitações do comércio internacional.
Essas ponderações permitem chegar, como primeira conclusão, ao convencimento de que o
principio da submissão de um contrato a uma lei determinada, no plano internacional, é quase
abstração teórica, com a evidente ressalva da ordem pública, pois interferiria, em caso contrário, na
operação contratual um elemento de estraneidade, bloqueador de sua eficácia; isso porque não se
podem deixar de considerar os efeitos de ordem técnica e as diferentes finalidades que orientam a
atividade internacional do comércio.
Em verdade, a prática jurídica internacional repousa grandemente, e até com certa obstinação,
na lex voluntatis, pois, perdendo esse princípio, aquele caráter tradicional de ajuste de vontades dos
indivíduos transformou-se numa expressão de natureza comunitária, através dos regulamentos e das
leis-tipo, quase sempre emanadas de órgãos e entidades não governamentais.
Se tomarmos o conceito de contrato segundo os cânones tradicionais, veremos que os juristas
distinguem entre os contratos clássicos - aqueles a título oneroso ou gratuito, desinteressados,
sinalagmáticos, unilaterais, consensuais, reais, solenes etc. - e procuram definir suas condições de
formação e de validade por meio do consentimento, objeto, causa, e seus efeitos entre as partes,
principalmente as relações causais entre contratantes e terceiros.
Essas visões, sedimentadas em certa acomodação doutrinária, não se coadunam com a
natureza e as características dos
contratos internacionais, que repousam mais na execução do que nos outros elementos formadores do
contrato, para o fim de se deduzir sua real contextura jurídica.
Um autor já dizia, habitualmente, que quase não há diferença entre um contrato e o amor: no
começo tudo é perfeito; somente o uso revela se o dia seguinte será de choro ou de alegrias.
Do ponto de vista prático, pode-se dizer que um contrato internacional é a constatação de uma
situação e a definição de um quadro de ação. É a expressão a priori de uma situação que deve evoluir
em um lapso de tempo, em função de decisões voluntárias, ou de causas involuntárias, das quais é
preciso ter nítida consciência. O contrato internacional é, nessas circunstâncias, um elemento dinâmico
e não um monumento jurídico.
Em lugar de, figurativamente, abrigá-lo num cofre-forte depois da assinatura e somente pegá-lo
se houver um litígio, quando não há exata recordação dos termos que contém, é preciso ter o contrato
internacional como instrumento de trabalho, que permite verificar, periodicamente, se possível com os
consignatários, se as circunstâncias nas quais foi concluído continuam as mesmas. Daí decorre a
necessidade de um preâmbulo descrevendo essa circunstância. Se, a despeito de alterações nas
circunstâncias, as partes desejam continuar sua colaboração, um aditivo ou uma complementação no
texto original será suficiente para descrever a nova situação, ou, então, até mesmo, limitar e suspender
a atividade decorrente do ajuste contratual.
Se concebermos essas colocações como pré-tipificadoras poderemos dizer que, no plano
internacional, é possível distinguir, no âmbito do contrato, dois modos: os fundamentais e os
operacionais.
Os primeiros engajam a empresa numa estrutura política. A parte fundamental é uma espécie de
utensílio de trabalho dos dirigentes e faz parte dos elementos de gestão, como ocorre, por exemplo, na
negociação de uma licença de fabricação.
Por seu turno, os modos operacionais inscrevem-se na vida corrente. São mais de caráter
estático, concluídos para e pelos serviços funcionais, no quadro de suas prerrogativas, sujeitando-se a
limitações quanto aos efeitos e aos inconvenientes que possam surgir por ocasião de sua execução,
como, por exemplo, os transportes, operações bancárias etc.
Em excelente trabalho, o eminente jurista húngaro F. Madl, examinando ao seu tempo a questão
pelo ângulo socialista, captação sempre importante para efeito do raciocínio comparativo, assim se
manifesta: "A classificação dos contratos por tipos não é de regra considerada como obrigatória pelos
modernos ordenamentos jurídicos. Nem tampouco pelo Direito húngaro. Ampla gama de contratos,
contudo, pode ser integrada dentro dos parâmetros legais de tipos que foram assumindo os seus
contornos, ao longo do desenvolvimento do Direito estatutário. Aí se incluem transações classificadas
como contratos também no âmbito do comércio internacional, e os tipos concretos desses contratos do
comércio internacional.
As regras gerais básicas que regulam os contratos são aplicáveis parcialmente somente para
algumas questões específicas (autonomia, contratos referentes a bens imóveis, navios etc.), enquanto,
por outro lado, um grande, talvez o maior, número de contratos não se subordina a esta classificação,
como é sabido. Pois as regras gerais só se aplicam às obrigações típicas, e somente para normas
legais suplementares que sejam necessárias, quando, por algum motivo, a lei especial que regula a
transação em pauta não pode ser aplicada, e novamente, isso só se aplica em número relativamente
pequeno de casos.
Similarmente, embora regras gerais regulando a forma dos contratos tenham sido discutidas, sob
outro ângulo, têm de ser enfocadas como amplo grupo, ou mesmo maior volume de litígios aparece
dentro da esfera e os vários tipos contratuais. Em cada ordenamento jurídico, legislador e jurista têm de
se defrontar com a questão de como a regulamentação legal do conflito de leis relativa aos vários tipos
contratuais deve ser abordada. A lei e a jurisprudência indicaram alguns caminhos e meios nesse
sentido".
23.5. Lex validitatis e specific performance
Na prática internacional, a lex validitatis (também chamada favor negotii) é significativa.
Ehrenzweig analisou esse princípio e demonstrou sua grande utilidade. Sem dúvida, a política de
preservar a validade de um contrato vai ao encontro do interesse no bom desempenho de qualquer
transação negocial. O princípio afirma-se igualmente no direito substantivo interno dos vários países,
bem como em dispositivos de direito internacional privado (e.g., a forma das transações), nos quais se
incluem as mais atípicas
transações internacionais sob a égide do direito das obrigações, ou formalidades especiais de tais
transações, assumindo o caráter de um favor contractus estatutário. A prática judicial, mesmo que não
como uma tese de princípios, reforçou particularmente a doutrina da lex validifatis, presença latente,
quase universal. As últimas tendências ou opiniões talvez pudessem ser mais adequadamente
designadas pelo princípio da specific performance.
Historicamente, a idéia tem sua origem nas teorias de Bar e Gierke, às quais podem ser
atribuídas as designações Natur der Sache e Schwergewicht des Rechtsverhãltnisses,
respectivamente. O que é a natureza de um contrato, onde se localiza a sua essência, e qual é o centro
de gravidade na relação jurídica? De forma direta, a teoria da specific performance responde a isso: a
essência da obrigação é a qualidade característica da função e objeto da obrigação no seu todo, ou o
contrato. Com esse reconhecimento, escreve, por exemplo, Schnitzer.. o sfatus pessoal e real
artificialmente inserido, o destaque de um elemento fático, tal como o locus contractus ou o locus
solutionis em vista de fator a priori conectante, a aplicação de uma presumida intenção das partes, que
provará tudo, e que por esse motivo nada prova, ficam suplantadas (com a idéia de specific
performance) por um fator que se acha na mesma linha das características das diversas obrigações.
O que deveria ser o direito da specific performance, quando contingências tais como a
nacionalidade, o locus contractus, ou a eleição de foro acham-se fora de questão? Esse direito é o do
lugar da execução do contrato, onde a obrigação desempenha sua finalidade específica. "Die obligation
ist vielmehr dort innerlich verankert, wo sie eine Funktion eine Daisein der Menschheit ausübt. " Isso, na
concepção jurídica dos países de livre mercado, é, no âmbito do direito comercial, o direito do lugar
onde a sede de negócios (Niederlassung) está situada e, como tal, é designada pelas partes. As
atividades e as funções de um médico, de um advogado e de um engenheiro materializam-se no local
de seu exercício profissional. No caso de artesãos, o local da execução é representado pelo local de
trabalho onde tais funções são normalmente desempenhadas. Para as atividades coletivas de
trabalhadores, a tarefa a ser cumprida, nos termos do contrato de trabalho, torna-se a specific
performance, e o local onde esse serviço é prestado é também o lugar de execução da obra. Quando
não existem elementos de conexão específicos, então, para
qualquer outra transação regida pelo direito civil, o domicílio da pessoa a quem compete a execução da
obrigação torna-se o lugar da execução.
Esse é o ponto-chave da teoria da specific performance. Certamente, e antes de tudo, trata-se de
direito dispositivo, e essa teoria não pode, nem tampouco tenciona, oferecer provisão específica para
cada problema dentro dos limites de um simples contrato (p. ex., o problema da aceitação qualitativa),
e, enquanto concerne a obrigações não típicas, essa regra geral acarretaria grande número de
dificuldades construtivas, finalmente admitindo que em certo número de casos a prática poderia
encontrar a lei de regências das transações (p. ex., a venda de um navio, ou vendas realizadas em
feiras ou bolsas de mercadorias) com base em outros elementos de conexão. Apesar de tudo, não pode
ser negado que, para bom número de codificadores modernos, o princípio da specific performance
mostrou-se importante e útil como princípio de codificação. Dispositivos reguladores dos diversos tipos
contratuais evidenciam, em larga medida, a elevação desse princípio para a condição de medida
impositiva.
O novo Código tcheco, bem como o Código polonês, estipulam que dispositivos reguladores dos
diversos tipos contratuais são introduzidos por declaração expressa de que o direito aplicável deve
alcançar regulamentação adequada do vínculo em questão. Regras cuja eficácia proviria desse
princípio prevêem, no mais das vezes, a aplicação da lei do domicílio (lugar de atuação, sede) das
pessoas a quem compete a execução. Szászy fundamenta-se em princípio muito semelhante.
Esse enfoque também prevalece nos ordenamentos onde, via de regra, incluem-se a venda de
objetos móveis e que declaram a aplicabilidade do direito do país do vendedor para esses tipos de
transações. Tal direito foi transferido, na prática, em certo número de países, também para outros tipos
negociais. A lei do vendedor foi aceita pelas Convenções da Haia, regulando as regras aplicáveis à
venda de objetos mobiliários. Como é sabido, à lei do vendedor foram atribuídas funções
suplementares e de caráter geral, tais como nas condições gerais de entrega. Esse direito se manifesta
no vasto grupo das Condições Gerais formuladas no âmbito da Comissão Econômica da Europa. O
princípio da definição do direito, com base na specific performance, implícita ou explicitamente
colocado, encontrou resposta também na litera-
tura socialista. Considerando todos os aspectos, os comentários seguintes podem ser feitos a respeito
do princípio da specific performance, ou qualquer outro princípio geral que regula a definição do direito
aplicável.
~Em primeiro lugar, o princípio da specific performance não pode ser aceito como princípio
exclusivo para toda a esfera do direito das obrigações. Parcialmente, a prática legislativa e judiciária,
sob, muitos aspectos, leva em consideração outras soluções razoáveis e adequadas (aplicação
exagerada do princípio da specific performance é limitada pela autonomia da vontade, e também, em
muitos outros aspectos, a escolha de outros caminhos e meios pareceu mais conveniente, como na
aceitação de residência comum, da sede, do locus contractus etc.). Parcialmente, como já foi
esclarecido, em muitos casos o locus contractus supera em importância o lugar da specific
performance, ou seja, a lei do devedor aparece indistintamente, e só indistintamente, por trás da lex locf
contractus.
Em segundo lugar, definindo as regras especiais dos vários tipos contratuais, o direito também
pode utilizar esse princípio, e terá de utilizá-lo extensivamente (mesmo que não o faça em sentido
absoluto), ao definir dispositivos de direito internacional privado aplicáveis ao dia-a-dia, isto é, para as
transações implícitas em um contrato de comércio internacional. De acordo, inicialmente, com o
enfoque analítico, todos os tipos contratuais de maior importância devem ser destacados, e, para cada
contrato, pesquisa deveria ser feita para caracterizar a assim chamada natureza das coisas, ou a
specific performance, e, com base nisso, para a regra que está em conformidade com o espírito do
moderno direito internacional privado, e os princípios do direito, resultando benefício para a atividade do
comércio exterior.
Embora seja verdade que grande número de dispositivos legais, apesar de correto para os fins
da atividade legislativa futura, pode ser expresso em regra generalizada, com relação à qual somente
desvios ou exceções serão individualmente definidos, e muito embora tais regras gerais não
representem de forma generalizada a multifária realidade, poderia ajudar a prática somente no nível de
abstrações, mas com menor eficiência. Para os fins da legislação futura, em nenhuma circunstância
poderia a doutrina ser dispensada de sua tarefa de estudar os vários tipos contratuais um a um, como
imperativo inerente ao ávido processo dialético da contratualística internacional.
23.6. Princípio da autonomia da vontade
Na sucinta e expressiva conceituação de Sanfi Romano, deve-se entender por autonomia, em
sentido subjetivo, o poder de dar a si próprio ordenamento que as pessoas para si mesmas constituem
e que se distingue e contrapõe aos ordenamentos constituídos para elas, mas por outrem.
O reconhecimento do valor da vontade jurídica, seja qual for a flexão teórica, resultaria sempre
na exaltação do valor do indivíduo, porquanto, no entender acertado de Vicente Ráo, criticando a
rigidez das teorias que somente vêem ou a vontade psicológica ou a declaração da vontade como
geradoras dos efeitos jurídicos, quando vemos, na vontade autônoma, que na ordem privada se exerce
um elemento essencial dos atos produtores de efeitos jurídicos, não se exclui o valor nem a
necessidade da declaração, nem se deixa de considerar que, em princípio, a força produtora de tais
efeitos se encontra na vontade real efetivamente corporificada na declaração, pois é esta que torna a
vontade eficaz e atuante, de conformidade com o ordenamento jurídico.
Em que pese o empenho das correntes objetantes do valor e da possibilidade do prevalecimento
do princípio da autonomia da vontade por força da infiltração do Estado nos negócios privados, bem
justifica Vicente Ráo ao observar que o problema não pode ser colocado em termos simplistas, visto
que a autonomia da vontade não se exerce, apenas, no campo delimitado pela lei, nem se aplica tão-só
aos contratos nominados ou inominados, pois melhor se qualifica como expressão de um poder criador
que atua de conformidade com o ordenamento jurídico, ou sob as sanções por esse ordenamento
estabelecidas, padecendo maiores ou menores limitações, mais graves ou menos graves cominações,
segundo a relação de que se trate.
Para contestar a concepção extremadamente publicista, valese da opinião de Betti, segundo a
qual a autonomia de um ente ou sujeito subordinado pode ser concebida através de duas funções
distintas: a) como fonte de normas destinadas a formar parte integrante da própria ordem jurídica que a
reconhece como tal e por meio dela realiza uma espécie de descentralização da função nomogenética,
fonte esta que poderia ser qualificada como regulamentar, por ser subordinada à lei; e b) como
pressuposto à
hipótese de fato gerador de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e geral, pelas normas de
ordem jurídica, revelando semelhante distinção um dado fenomenológico que não pode ser
desconhecido, bastando, para compreender o problema, comparar as regras resultantes de um acordo
normativo entre entes dotados de autonomia, v.g., as produzidas pelo contrato coletivo de trabalho
celebrado entre associações profissionais titulares dessa faculdade, com as decorrentes do contrato
concluído entre particulares. E finaliza: a autonomia privada verdadeira e própria consiste no poder que
os sujeitos privados possuem de ditar as regras de seus interesses particulares, em suas relações
recíprocas.
De acordo com Orlando Gomes em seu recente e bem elaborado trabalho sobre as
Transformações Gerais do Direito das Obrigações, alguns publicistas, como Wieacker, por exemplo,
têm demonstrado que, de algumas décadas para cá, certas figuras jurídicas devem perder o tratamento
tradicional, especialmente porque a autonomia da vontade nada mais seria do que a manifestação de
um individualismo superado, e os direitos subjetivos já não constituem limites inflanqueáveis ao poder
do Estado.
Entretanto, apesar de desenvolver as teorias mais inflexíveis e outras menos obstinadas na
apreciação do papel do princípio da autonomia da vontade, ressalva Orlando Gomes com louvável
precisão o fato de que as limitações que se devem reconhecer ao seu exercício não impedem que os
juristas contemporâneos dêem atenção mais profunda à questão, pois marcadamente importante é o
trabalho pandectista nesse sentido, e, portanto, insuscetível de fáceis substituições doutrinárias, por
mais que prevaleçam as teses opostas da nova realidade jurídico-social, que a ninguém é lícito negar.
A autonomia da vontade como princípio deve ser sustentada não só como elemento da liberdade
em geral, mas como suporte também da liberdade jurídica, que é esse poder insuprimível no homem de
criar por um ato de vontade uma situação jurídica, desde que esse ato tenha objeto lícito.
Não se pode deixar de reconhecer a procedência das explicações que apontam as mudanças de
critérios apreciativos impostos pela expansão do contrato em massa, que Orlando Gomes, com
indiscutível autoridade, mostra "que substitui, em diversos setores do campo negociai, o negócio
jurídico bilateral dantes concluído individualmente. Nos transportes, nos seguros, nas ope-
rações bancárias, no trabalho realizado nas empresas, e em tantos outros departamentos a atividade
social dos indivíduos, esse elemento, sem constituir uma comunidade jurídica, influiu decisivamente na
sua própria dogmática".
Em geral, porém, o pluralismo contemporãneo concebe direitos relativos e objetivos, que
permitem adiantar uma distinção entre direitos individuais e sociais. Os primeiros teoricamente
pertenceriam aos indivíduos isolados, aos quais se deve reconhecer uma esfera própria e bem
delimitada. E o aspecto mais característico de oposição entre o direito social e o individual é que este
último se apóia sobretudo no contrato, ao passo que o direito social coloca em primeiro plano a
instituição.
Ora, o contrato, seja de que natureza for, constitui-se num meio pelo qual os particulares regulam
seus interesses de acordo com determinada vontade, mesmo admitidas as limitações ao seu exercício,
apresentando-se num quadro abstrato que, segundo nossa visualização, pode configurar em seus
conteúdos as instituições correspondentes, essencialmente as relativas a quaisquer dados concretos da
vida social, expressos na lei ou num ordenamento jurídico. Tais elementos não devem ser vistos
somente pelo ângulo da técnica jurídica, porque exatamente o direito que se apóia sobre o contrato,
como símbolo do direito individual, alicerça-se nos princípios da igualdade e da liberdade, ao passo que
o direito que se apóia nas instituições tem apenas como suporte a autoridade.
Assim, deixar de reconhecer o papel da vontade, em qualquer alternativa teórica, contraria a
irrefutável concepção pluralista da sociedade onde os ideais morais e jurídicos se cristalizam por força
de um comando que se origina na natureza humana.
Por outro lado, o processo jurígeno não se exaure na norma jurídica, porquanto, como diz Miguel
Reale, ela mesma suscita, no seio do ordenamento e no meio social, um complexo de reações
estimativas, de novas exigências fáticas e axiológicas, e o homem constitui o centro do direito, e o fim
principal do direito é servir a seus legítimos interesses
Somos, portanto, novamente levados à controvérsia central, cujos termos principais procuramos
desenvolver, e chegamos à convicção de que o princípio da autonomia da vontade sobrevive a despeito
das tentativas demolidoras, tendo toda razão Coviello quando sustenta que a vontade deve ter por
escopo um fim prá-
tico que não precisa ser necessariamente de ordem patrimonial ou econômica, bastando que seja
tutelado pelo direito. As conseqüências que o direito lhe atribui não são sempre coincidentes com a
vontade subjetiva do agente: podem, mesmo, ser-lhes disformes e, até, contrária - mas sempre
correspondem a um intento prático e neste sentido podem ser ditas conformes, apenas, à vontade geral
das pessoas.
23.7. Direito subjetivo
Fábio Konder Comparato, em precioso ensaio analítico sobre os elementos e a estrutura das
obrigações, concentrando seu esforço interpretativo no confronto entre as teorias voluntaristas e a
doutrina de Brinz, faz prévio e minucioso estudo dos "direitos subjetivos e das situações jurídicas
passivas", onde esclarece que, apesar de ultrapassado o interesse pelo exame do conceito geral de
direito subjetivo, subsiste ainda o propósito de classificação e estudo dos elementos constitutivos desse
direito, como ocorre, presentemente, com a noção de poder jurídico, que leva nessa ordem de
cogitações à concepção de que toda pessoa, tendo um interesse reconhecido pela lei, possui, ao
mesmo tempo, o poder de fazê-lo valer, produzindo efeitos jurídicos em relação a terceiros. E, nos
casos de incapacidade, esse poder de agir que é retirado do incapaz se transfere ao seu representante
legal sem transfigurar a natureza de ambos os poderes. Caracterizando o poder em geral como a
faculdade de produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros, assinala o eminente jurista pátrio que
entre os poderes jurídicos é preciso assinalar aquele que consiste na criação, modificação ou
supressão de uma relação de direito, por uma simples manifestação unilateral da vontade...
A dedução forçosa de quanto ficou dito é que não se pode evitar que a manifestação da vontade
entre no mundo jurídico como ato ou como negócio jurídico. O princípio de que se parte é sempre da
autonomia da vontade ou auto-regramento da vontade, como diria Pontes de Miranda, naturalmente
sob a compulsão das regras jurídicas cogentes, dispositivas e interpretativas, que, entretanto, nunca
são suficientes para justificar a ineficácia daquela categoria jurídica.
Fenômeno idêntico observa-se na representação, por meio da qual se supre a carência da
vontade própria de uma pessoa na sua vida jurídica. E, modernamente, a representação não desdota
o homem do poder jurídico de fazer a sua lei. Não se pode dizer que a pessoa fique sufocada na sua
capacidade volitiva diante das novas figuras jurídicas, visto que o seu alargamento não é suficiente a
garantir-lhe um reinado antivoluntarista.
Impossível e incompatível com a experiência jurídica levar-se, como pretendem alguns, às
conseqüências extremas a doutrina que nega a autonomia da vontade que pode converter-se numa
regulamentação tirânica e resultar na destruição da prosperidade que produz a livre atividade, como,
aliás, comprovou-se recentemente na Rússia, que depois de vários anos de experiências e diversas
alternativas fez restaurar certa liberdade na contratação privada.
Como advertem Planiol e Ripert, falar na decadência da soberania do contrato na época
moderna é esquecer que o desenvolvimento do comércio proporcionou ao contrato um campo que
jamais havia tido anteriormente e, ainda, que as restrições de índole moral à liberdade contratual,
desaparecendo, provocam com maior intensidade o aparecimento de novas forças da vontade
individual.
Apesar de poder-se afirmar em resumo que o Estado moderno se caracteriza por uma tendência
socializadora para realizar maior justiça social, intervindo, inclusive, nos contratos celebrados por
particulares em matéria que antes era do estrito domínio privado, apesar de alguns publicistas
sustentarem a tese de que na época contemporânea a autonomia da vontade tem valor apenas
acadêmico e que a maioria dos contratantes terá de submeter-se às leis que o Estado lhes impõe, tudo
isso não significa que a autonomia da vontade tenha desaparecido ou tenda a desaparecer. Haverá, por
certo, a extensão de certas limitações impostas pela ordem pública, mas impõe-se reconhecer que a
história do direito revela não haver sido aplicada tal doutrina, segundo seus termos extremos, em
momento algum pelos diversos sistemas legislativos.
A autonomia da vontade assumiu, em verdade, o sentido específico, que jamais perderá, de
poder de regulamentação das próprias relações, ou dos próprios interesses dentro das limitações
maiores ou menores ditadas pela equação do bem individual com o bem comum.
A força da autonomia da vontade, praticamente, concentra-se no contrato, que, sendo uma
relação entre sujeitos de direito, é, em conseqüência, o campo mais abrangido por essa categoria
jurídica, notadamente porque a relação obrigacional se estabelece entre pessoas.
Embora o problema não esteja jungido a uma tipificação, há certos institutos jurídicos,
evidentemente, que expressam com maior fidelidade as hipóteses em que pode ser considerada a
vontade como elemento de relevância conceitual, ou mesmo gerador de direito.
De modo geral, poucos sistemas jurídicos podem ser meditados com abstração de suas raízes
romanas, cuja evolução reflete a influência nunca expungível de seus ensinamentos e, se quisermos
raciocinar exemplificativamente, verificaremos que é nos chamados contratos consensuais - de quatro
tipos no direito romano: venda, locação, sociedade e mandato - que encontramos hipóteses onde a
vontade é criadora de situações jurídicas.
Teoricamente, tanto no direito antigo como no atual a norma dá nascimento a sua situação
jurídica, regulada por suas disposições, de maneira geral e uniforme para todos, mas entre os deveres
jurídicos alguns são fixados por regras de direito como conseqüência obrigatória dos fatos jurídicos e
outros são prescritos ou recebem predominante incidência da vontade humana.
O fenômeno moderno não invalida o pensamento supra, como é dedutível das equilibradas
considerações de Orlando Gomes ao assinalar que a delimitação do campo da autonomia privada não
deve obstar a indagação de seu fundamento prático, pois essa função, segundo suas próprias palavras,
"encontra-se, para alguns, no reconhecimento da propriedade privada, porque unicamente nos regimes
que a admitem ocorrem a circulação de bens e a prestação de serviços entre os indivíduos... De fato,
onde não existem esferas particulares de interesses, a autonomia privada está ausente... Onde, porém,
se reconhece ao indivíduo o poder de manifestar interesses particulares, esse exercício constitui dado
incomovível da realidade social. Tem a ordem jurídica, no reconhecimento da autonomia privada, sua
pedra angular. Outra não é a razão por que o negócio jurídico, principal instrumento dessa autonomia,
se coloca no centro do sistema do Direito Privado".
Acrescenta, ainda, o emérito privatista que esse reconhecimento, embora não signifique
contestação da conveniência de restringi-lo com o objetivo de submeter ao interesse coletivo os
interesses individuais, deve admitir que, apesar das limitações impos-
tas pelo Estado e pela concentração de capitais, o princípio da autonomia privada conserva-se
incólume. E conclui: "As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, apanhando o
campo econômico e se tornando tanto mais numerosas quanto mais se compenetra o Estado da
necessidade de intervir com o objetivo de realizar superior justiça social... Do ponto de vista técnico,
ocorrem limitações precisamente como efeito da multiplicação de normas cogentes. Não se permite a
formação do conteúdo de alguns negócios, obrigando-se os interessados a adotarem a forma típica; a
exclusão de certos efeitos jurídicos não é válida em certos negócios; difunde-se o princípio da inserção
automática de comando legal no conteúdo de determinados contratos, e assim por diante. Predominam,
entretanto, as normas de caráter supletivo, que podem ser indiferentemente afastadas pelas partes
contratantes. Prevalece, por outro lado, a liberdade de criar negócios atípicos".
Tem sentido lógico e fundamento concreto a preocupação revelada por Orlando Gomes em
diferenciar a "declaração da vontade" do "ato de autonomia privada", este como empenho do sujeito ao
regulamento e aquela como uma abertura para fugas estritamente subjetivas que incapacitam a
compreensão dos intentos, mas na raiz dessas considerações a vontade permanece sobreviva, visto
que a aliança da vontade e da legalidade é geradora da noção jurídica e técnica de autonomia.
Fazer abstração da legalidade é desconhecer o sentido do princípio de autonomia, pois ela não
se vincula aos indivíduos senão pela lei que lhe dá uma habilitação ad hoc. Exatamente a vontade
socializada e legalizada é que devemos entender por autonomia. A sociedade e o legislador soberano
que a representa diante do indivíduo formam a confiança deste a fim de que ele possa exercer sua
vontade jurídica pelo bem comum.
Pontes de Miranda, que prefere substituir a expressão "autonomia da vontade" por "auto-
regramento", também concorda que é no direito das obrigações que se verifica com maior latitude tal
problemática, porquanto entende que "as categorias jurídicas do direito das obrigações deixam margem
a negócios jurídicos que não entram nos tipos fixados pela lei".
Preleciona ainda o grande mestre que o "auto-regramento" sofre as limitações do direito cogente
que se opera impositiva ou despositivamente, inibindo a pessoa de qualquer escolha, mesmo que a
regra cogente contenha alternativa, mas não conteste o
pleno vigor do "auto-regramento" quando se trata de jus dispositivum. E explica: "A forma de tais regras
é: Se não foi dito não-a, entende-se a, ou Se nada se disse quanto a, entende-se a,. Porém a cada
momento tem o jurista, diante de regras jurídicas que podem ser cogentes ou dispositivas, de levantar
ou de responder à questão. Para isso tem de examiná-las em sua função e alcance, se não cabem,
desde logo, por serem cogentes, outras que como tais foram apontadas, o argumento a contrario. Às
vezes, a regra jurídica, em lugar de aludir à manifestação da vontade, alude à possibilidade de se
excluírem efeitos; ou de alguns serem incluídos; ou de serem tais e tais, se não se dispôs
diferentemente. As maiores dificuldades de interpretação surgem quando o legislador usou de
expressões que mais serviriam ao direito cogente, ou ao direito interpretativo, ou são próprias do direito
cogente, ou do direito interpretativo".
Por outro lado, Pontes de Miranda avança em sua tese para admitir que as regras interpretativas,
também, em nada limitam o "auto-regramento" da vontade. E diz: "Supõem-no. A vontade lá está...
Assim, `a dúvida entre a interpretação da vontade que se prefere na regra interpretativa, e outra
interpretação da vontade resolve-se pelos métodos de interpretação dos atos jurídicos, porque vontade
houve"'.
Em direito privado interno, portanto, a autonomia da vontade, como preferimos denominar essa
categoria jurídica, dinamiza-se numa compreensão mais ampla de correlação dinâmica ou dialética com
a experiência jurídica sob a égide de uma soberania única, ou seja, a vontade individual é criadora de
situações jurídicas, porque, ao mesmo tempo em que ela age, preenche missão social. Sejam as regras
impositivas, dispositivas ou interpretativas, não há nenhum critério a priori que possa justificar a
classificação de uma regra ou de uma relação de direito numa ou noutra categoria, porquanto compete
ao juiz descobrir as razões contigentes que fazem entrar uma regra no domínio da autonomia ou da lei
imperativa.
Acreditamos que essa maneira de ver a questão encontra eco positivo, ainda, no pensamento de
Pontes de Miranda quando alude ao princípio da liberdade de contratar, definindo-o como o poder de
livremente assumir deveres e obrigações, ou de "se adquirirem, livremente, direitos, pretensões, ações
e exceções oriundos de contrato; e princípio da autonomia da vontade, o da
escolha, o líbito, das clausulas contratuais". E explica: "No fundo, os dois princípios prendem-se à
liberdade de declarar ou manifestar a vontade com eficácia vinculante e de se tirar proveito das
declarações ou manifestações de vontade alheias, receptícias ou não". O direito longe está de adotar
esses princípios como absolutos: sofrem eles, sempre sofreram, limitações. A própria existência de
tipos de negócios jurídicos limita-os. Limita-os, também, a natureza cogente de certas regras. Quanto
aos tipos, se bem que, em geral, se pense poderem ser criados tipos novos, sem se criarem novas
regras jurídicas, a verdade está com A. Manigk (Das Anwendungsgebiet der Vorschriften für die
Rechtsgeschüfte, 82, nota 2): só se constituem novas espécies, e não tipos. Acrescentamos: salvo se
há lei-costume que os crie. Mais uma vez aparece a distinção entre costume-regra jurídica e costume-
série de negócios jurídicos. Às vezes, na vida aparecem figuras contratuais, que formam tipos, mas
estranhos aos da lei e dos costumes. Esses tipos são apenas negociais, e somente se podem levar em
conta para se receberem como disposições onde, se eles não existissem, caberiam regras dispositivas
das leis. Quer dizer: no que não entram na tipicidade legal, somente se alojam no espaço deixado à
autonomia da vontade.
23.8. Autonomia da vontade no plano conflitivo
O terreno sobre o qual domina tematicamente o princípio da autonomia da vontade em direito
privado, evidentemente, não sofre estruturalmente mudanças radicais quando se transfere para a área
do direito internacional privado, porquanto, conceitualmente, o problema insere-se nos mesmos
institutos já mencionados como receptivos de tais indagações.
Marcel Caleb, todavia, em magistral obra sobre o assunto, assinala que o princípio da autonomia
da vontade em direito internacional tem menor amplitude, significando que as partes apenas têm
liberdade de exercer sua vontade tendo em vista a escolha da legislação à qual querem submeter sua
convenção, sob reserva de respeitarem a ordem pública.
De acordo com esse notável internacionalista, o que essencialmente deve preocupar é o
estabelecimento dos limites dentro dos quais a autonomia da vontade vai movimentar-se. Para esse fim
impõe adotar um critério metódico, que variará segundo se considere o direito internacional privado
como um ramo do direito
privado ou público, ou se a sua filiação é de índole nacional ou internacional. Tendendo a aproximar-se
do sistema de Pillet, embora com soluções pessoais, Caleb tem principalmente a preocupação de
conservar como objeto primordial os indivíduos como os sujeitos de direitos e obrigações. Com certo
ecletismo, admite, porém, que o direito internacional privado contém duas espécies de regras, algumas
internacionais e outras internas.
Assim, consistindo o direito internacional privado numa disciplina jurídica que visa resolver
conflitos de leis, o princípio da autonomia da vontade desempenha um papel generalizador, no sentido
de ultrapassar as fronteiras do direito privado para selecionar nas ordens jurídicas existentes a lei
aplicável a uma determinada relação de direito, apresentando caracteres internacionais. A escolha de
uma lei competente constitui, pois, o objetivo essencial em razão do qual se exerce a vontade
individual. Explica que a questão de direito positivo aplicável é acessória, pelo menos teoricamente,
porquanto ela se reduz a uma simples interpretação do direito local ou do direito estrangeiro, segundo a
lei escolhida pelas partes, e que em virtude de sua autonomia será a lei local ou a lei estrangeira.
A verdade inegável é que a teoria da autonomia da vontade nasceu a propósito dos contratos e
até o momento atual é o âmbito onde ela se aloja.
O sistema de Niboyet, por exemplo, focaliza a questão buscando analisar os contratos numa
classificação tipológica, propondo soluções de acordo com o direito mais próximo ou mais compatível
com a sua natureza, e nega que a autonomia da vontade como poder de escolha por si mesma da lei
competente possa existir ou será teoricamente defendida; sustentando a tese, faz incisiva afirmação:
"Não existe teoria da autonomia da vontade, porque a autonomia da vontade não existe, porquanto se
faz confusão entre duas concepções em matéria de contratos".
Como se verifica, para Niboyet, residindo, como admite, o princípio da autonomia da vontade nos
contratos e estando as partes sujeitas às leis imperativas de direito interno, sob pena de nulidade de
seus atos, não existe diferença nas conseqüências, passando-se para a ordem internacional, porquanto
não pode a lei imperativa em face dessa circunstância tornar-se facultativa sem degradar-se nessa
passagem.
Entre nós, Amílcar de Castro acolhe a tese, tecendo considerações interessantes, cuja
transcrição literal dará juízo mais fiel da questão:
"Para abordar o famoso sistema da autonomia da vontade, será conveniente esta advertência in
limine: é preciso não perder de vista que, a respeito de contratos, funcionam disposições de três
espécies, imperativas, facultativas e supletivas. Imperativas, aquelas a cujo rigor não poderão fugir as
partes, como, por exemplo, a imposição do regime de separação de bens ao maior de sessenta anos
(art. 258, n. II, a do Código Civil). Facultativas, aquelas que, até certo momento, facultam aos
particulares a liberdade de convencionar, como, por exemplo, a regra de que é lícito aos nubentes,
antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (art. 256 do
Código Civil). Supletivas, as que se impõem quando a manifestação de vontade das partes seja
deficiente, nula ou inexistente, como, por exemplo, a regra de que, não havendo convenção, ou sendo
nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal (art. 258 do
Código Civil), ou melhor, se até o momento do casamento os nubentes não usarem da liberdade de
convencionar regime de bens, ou então se for nula ou deficiente sua manifestação supletiva, o regime
de comunhão universal".
"Acontece que os contratos, em geral, são essencialmente dominados pela liberdade das
convenções, isto é, dentro de certos limites, mais ou menos amplos, as disposições facultativas deixam
à vontade dos particulares a regulamentação contratual de seus interesses privados. A regra é a
liberdade das convenções; mas há exceções a essa regra, porque a respeito de contratos vigoram
também disposições imperativas, convindo aqui ficar bem claro que as disposições supletivas são
imperativas, já que necessariamente são aplicadas, se não forem afastadas pela vontade das partes, e
uma vez aplicadas não podem mais ser removidas por essa vontade. Além disso, é preciso ver bem
que a liberdade de convencionar não é absoluta, e sim é sempre condicionada, tanto pelo tempo,
porque a manifestação da vontade deve ser feita até o momento de ser redigido o ato, como pela
própria natureza das estipulações, que devem ser lícitas e adequadas ao tipo de contrato fornecido em
branco aos contratantes."
"Isto posto, convém salientar que, em direito internacional privado podem, ou não, ser
encontradas disposições facultativas, mas isto de nenhum modo importa autonomia da vontade neste
ramo do direito. Às vezes, disposições imperativas são escalonadas, por exemplo, a que manda
observar o direito do domicílio, em falta do direito nacional, e o da residência, em falta de domicílio
conhecido; podem, também, encontrar-se disposições facultativas acompanhadas, ou não, de
correspondentes disposições supletivas, assim, por exemplo: `É lícito estipular que os contratos sejam
regidos em tudo e por tudo pelo direito de um país determinado, podendo a vontade das partes, quando
não expressa, ser deduzida do contexto das cláusulas, da nacionalidade dos contratantes, ou das
diferentes circunstâncias atinentes ao assunto' ou, então, `Em falta dessa estipulação, será aplicado o
direito do país em que a obrigação se constituir"'.
Como é normal, no campo doutrinário do direito internacional privado, as conjecturas
representadas pela corrente que acompanha o ponto de vista de Niboyet não encontram plena
receptividade entre os autores. É o caso de Batiffol, assumindo posição menos rígida e, ao nosso ver,
mais compatível com a verdade científica nesse plano de cogitações,-2
Para Batfffol, a vontade individual desempenha papel relevante no direito internacional privado.
Considerou os diversos sistemas jurídicos existentes, assinalando a distinção verificável na submissão
maior ou menor das relações dada a cada um desses sistemas, determinada por fatores resultantes da
definição de conflito de leis que cada país adote.
Esses fatores - diz o famoso mestre - em si se apresentam como objetivos, independentes da
vontade individual, caráter não contestável para a situação de um imóvel, porquanto podemos abster-
nos de comprá-lo, mas, aí, a questão é outra, porque a vontade não tem por objeto a aplicabilidade de
uma determinada lei, o mesmo podendo-se dizer de um móvel, que pode mudar de situação, mas que o
será normalmente, por razões outras que não a competência da lei real, ressalvando-se a fraude, como
será, também, nos casos de mudanças de domicílio e de nacionalidade.
Solução paralela examina Batiffol no caso dos contratos, tendo em vista as interpretações
jurisprudenciais: "A lei de conflito dá como elemento de conexão a vontade das partes, mas esta fixa
somente as circunstâncias de fato que localizam o contrato, da mesma forma como se deduz a lei real
da localização de um imóvel. A complexidade da operação contratual permite somente às partes
sublinhar que, na concepção que elas fazem da opera-
ção, os elementos de conexão a tal ou qual país se revestem aos seus olhos de uma importância
primordial".
Estamos convencidos de que a autonomia da vontade reassume no direito internacional toda
aquela vitalidade que singularizou as fases mais tolerantes do voluntarismo jurídico da esfera do direito
privado interno, exatamente porque a matéria num e noutro plano tem finalidades metódicas
completamente diversas, sem significar que as leis imperativas perdem o seu caráter no direito
internacional privado, porquanto Haroldo Valladão mostra com exuberância que o princípio tradicional
das obrigações em direito internacional privado é o da autonomia da vontade, que impõe o
reconhecimento aos interessados de escolher o direito, expressa ou tacitamente, como lei reguladora
dos contratos, explicando, acertadamente, "que a norma de direito internacional privado do foro pode e
deve em certas matérias, como, por exemplo, substância e efeitos das obrigações, regime matrimonial
dos bens, etc., determinar, como tem determinado, que a vontade individual é, qual a nacionalidade ou
o domicílio, etc., noutros assuntos, um elemento de conexão, que indique a lei competente. Assim o fez
o art. 13 da Introdução ao Código Civil Brasileiro, permitindo às partes escolher a lei competente para
reger a substância e os efeitos (não a capacidade contratual) dos contratos. Nesse e noutros casos a lei
que o direito internacional do foro permite seja indicada pela vontade, ou pela nacionalidade, ou pelo
domicílio, ou pelo lugar do contrato ou da execução, tal lei é aplicada na íntegra, em suas disposições
imperativas ou facultativas, salvo, evidentemente, abuso de direito e a ofensa à ordem pública do foro".
Não seria procedente nem sustentável desenvolver a noção de autonomia da vontade sem
considerar o elemento de legalidade que se alia à ação volitiva individual, visto que indiscutível a força
das leis imperativas na limitação e condicionamento do domínio da autonomia. Esses obstáculos se
estendem ao terreno do direito internacional privado no tocante às exceções à aplicação do sistema
estrangeiro, compreendendo a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes, de acordo
com o nosso direito positivo, bem assim a fraude no plano da intencionalidade individual.
Há, realmente, excelentes razões a desenvolver para justificar em numerosos casos a benigna
intervenção legislativa em matéria contratual, desde que não se ultrapassem os limites de modera-
ção imprescindíveis à preservação de certos princípios de liberdade individual invioláveis pela própria
natureza.
Se tomamos o contrato como símbolo expressivo desse tratamento, devemos admitir que suas
regras resultam tanto da vontade da lei quanto da vontade do indivíduo, porquanto a estrutura orgânica
e homogênea do homem em sociedade não dissocia o domínio da lei do domínio da liberdade, mas se
integram ambos na vida social para que a verdadeira liberdade possa ser alcançada.
A liberdade e a vontade jurídica podem aparecer algumas vezes, como sendo coisa fictícia do
ponto de vista da realidade natural, como puras construções .racionais, mas apesar de tudo elas não
deixam de ser autênticas realidades jurídicas.
O que importa, porém, frisar é que toda atividade, seja de que ordem for, está dirigida para um
fim que a determina e define. Querer essa atividade é querê-la para realizar um fim estabelecido.
Querer é colocar através de uma atividade o fim de uma outra atividade, aquilo que em direito lhering
chamaria interesse. A vontade é, por conseguinte, uma relação entre as atividades e, em conseqüência,
uma relação de fins. Toda atividade, como já tivemos oportunidade de acentuar, implica finalidade, do
mesmo modo que toda finalidade implica atividade. Agir é colocar um objetivo à investigação e pensar é
procurar aquilo que se procura encontrar.
Chegamos, assim, sempre à mesma compreensão do fenômeno volitivo, ou seja, que a vontade
jurídica deve ser livre e ao mesmo tempo conformar-se ao direito.
Como diz Gropali, a vontade transformada de um fim interior num ato exterior e afirmando-se
objetivamente por intermédio de uma declaração ou de uma manifestação é o que constitui o ponto
central e culminante ao qual o ordenamento jurídico concede sua proteção, atribuindo-lhe efeitos
particulares.
Paul Roubier coloca a questão em termos precisos ao analisar os caracteres que se devem
reconhecer numa situação jurídica subjetiva, explicando que ela pode ter por finalidade criar
prerrogativas ou vantagens, pois as responsabilidades ou deveres que podem acompanhá-las não
criam, necessariamente, um paralelo com o proveito que daí deve resultar. E essa é a razão pela qual
essas situações são procuradas e desejadas pelos particulares, proporcionando-lhes o prazer e a
felicidade, falando delas, de
poder dizer: meu direito. Essa é a razão profunda pela qual a vontade privada é um elemento que
anima as situações jurídicas, e, mesmo nas situações subjetivas que encontram sua fonte na lei, a
vontade privada pode declinar desse modo de aquisição, porquanto ela pode desistir de seu direito,
seja pela via da transferência, seja num caso normal, seja mesmo quando a transferência é impossível
por motivo de abandono.
Daí por que, principalmente, Roubier define as situações jurídicas subjetivas como "situações
regularmente estabelecidas", seja pelo ato voluntário, seja pela lei, das quais decorrem, especialmente,
prerrogativas em proveito de seus beneficiários e aos quais eles podem em princípio renunciar.
Mais adiante serão examinadas algumas teorias principais sobre a autonomia da vontade em
direito internacional privado, para uma melhor compreensão do problema na esfera dessa disciplina
jurídica. Entretanto, criticamente, no sentido filosófico do termo, chegamos desde logo à afirmação de
que, particularmente no plano internacional, o jurista somente pode pensar na comunidade jurídica
como uma justaposição de esferas individuais, nas quais o direito envolve em qualquer hipótese os
membros dessa coletividade, sejam pessoas físicas ou jurídicas, pessoas de direito privado ou público.
Essas esferas, preenchidas, por definição, inteiramente em seus espaços pela vida jurídica da
coletividade, formam um círculo do qual ninguém pode sair sem penetrar no domínio do outro. Tal
desdobramento provoca a ruptura do equilíbrio, que exige a interferência do direito para restabelecer,
como expressão de uma reação social, a normalidade e a segurança da ordem jurídica ameaçada.
O direito privado caracteriza-se exatamente pela subordinação da reação social à iniciativa
pessoal do interessado. Essa faculdade de iniciativa de que a ordem jurídica positiva dota o indivíduo é
que se constitui na pedra angular do direito.
O Estado não se organiza nem existe exclusivamente para si mesmo, salienta com acerto
Bustamante, mas, também, para os indivíduos que vivem em sua esfera de ação. Pronuncia todos os
preceitos legais que requerem sua esfera de ação. Pronuncia todos os preceitos legais que requerem
sua organização, subsistência e desenvolvimento, porém legisla igualmente para os cidadãos e os
estrangeiros que residem em seu território e ali mantêm relações jurídicas. As leis do Estado devem
servir de garantia, de tutela e de complemento à liberdade das pessoas. Estabelecem como princípio a
faculdade que tem o indivíduo de criar seu direito enquanto relacionado com as atividades privadas,
sancionando sua existência, re-
tirando-se ou não aparecendo diante das combinações particulares, mas reaparecendo para obrigar
coativamente ao cumprimento dos deveres voluntariamente aceitos. Velam pela eficácia e exercício da
"autarquia pessoal"' em todas as suas formas, estabelecendo meios formais de expressão e meios
probatórios da existência da vontade humana para que ela não se falseie ou se evada, tomando por
base a ordem jurídica estabelecida. Nesse mesmo plano de cogitações se registram as conseqüências
internacionais.
23.9. Designação de lei e contrato sem lei
Assim, a autonomia da vontade no direito internacional privado corresponde, segundo a definição
aceitável de Marcel Caleb, à faculdade concedida aos indivíduos de exercer sua vontade, tendo em
vista a escolha e a determinação de uma lei aplicável a certas relações jurídicas nas relações
jurisdicionais, derivando ela da confiança que a comunidade internacional concede ao indivíduo no
interesse da sociedade, e exercendo-se no interior das fronteiras determinadas de um lado pela noção
de ordem pública e de outro pelas leis imperativas, entendendo-se que, em caso de conflito de
qualificação entre um sistema imperativo e um sistema facultativo, a propósito de uma mesma relação
de direito, a questão fica fora dos quadros da autonomia, do mesmo modo que ela somente se torna
eficaz na medida em que pode ser efetiva.
Hodiernamente está consagrada a hipótese de as partes poderem designar uma terceira lei, que
não as de seus respectivos indicadores pessoais, não sendo, portanto, exigido que o contrato
apresente liames efetivos com o país cuja lei é escolhida. Contudo, as partes entretanto, não poderão
subtrair-se facilmente à aplicação de uma lei imperativa à qual o contrato se vincula. No caso em que
surja disposição evitada ou afastada, sua autoridade poderá ser restabelecida por força da
imperatividade da ordem pública. A matéria de contrato de trabalho ou relacionada com o consumidor
são impedientes rígidos a toda tentativa de prevalecimento da liberdade dos contratantes.
Fala-se, também, com insistência, no contrato sem lei, desde que as partes não a tenham
designado, permitindo essa circunstância que, em seu todo ou em parte, a convenção seja regida por
leis diferentes, ou sem qualquer liame, implicando que, de certa maneira, nenhuma lei se imponha
inteiramente aos contratantes.
O direito inglês também dá proeminência ao princípio da autonomia da vontade, visto que a
maior parte dos autores, a começar por Dicey, afirma que, na busca da lei apropriada (proper law) para
a regulamentação do contrato, é preciso ter em conta a vontade das partes. Uma corrente minoritária,
liderada por Westíake se é de opinião que se deve dar preferência à lei com a qual apresenta "the most
real connection".
Prevalece, porém, com notória vantagem o ponto de vista de Dicey exposto no seu Digest of the
law of England with reference to the conflict of laws, de 1896, nos seguintes termos:
"In this Digest the term 'proper law of a contract' means the law, or laws, by which the parties to a
contract intended, or may fairly be presumed to have intended, the contract to be governed...".
A jurisprudência e a doutrina de outro país de common law, os Estados Unidos, tiveram evolução
diversa. Story opinava que, qual fosse o contrato que devesse ser executado em lugar diferente de sua
conclusão, dever-se-ia admitir, segundo a vontade presuntiva, dependente, para sua validade, a
capacidade de obrigar-se a interpretação da lei do lugar onde a obrigação se cumprisse.
O desenvolvimento posterior, contudo, caracterizou-se por decisões contrastantes não só em
outro Estado da União mas mesmo no âmbito do mesmo Estado. A jurisprudência e a doutrina, de fato,
dividiram-se entre a lei do lugar da conclusão, a lei do lugar de execução e a vontade das partes.
No momento assiste-se nos Estados Unido como evidencia Edoardo Vitta, ao fenômeno de
reviver sob novas vestes a teoria do "most real connection" de Westlake. As várias teorias sobre
conflitos de leis propostas pelos autores americanos (teoria do centro de gravidade, de reagrupamento
dos contatos etc.) se preocupam em sanar a situação insatisfatória em matéria de lei reguladora dos
contratos e das obrigações decorrentes do ilícito. Tais teorias foram postas em relevo por Reese no
segundo Restatement, mas, longe de pacificar, têm sido objeto de severas críticas de outras correntes
da doutrina americana.
Verifica-se, porém, no Restatement of The Law Second, Conflict of Laws (1971) que ali, no § 187,
começa-se a admitir que as partes escolham a lei reguladora de seu contrato, mas com a
dúplice limitação da razoabilidade da escolha (no sentido de que a lei pré-escolhida deve ser
substancialmente coligada às partes ou ao negócio) e de que dita escolha não vai contra uma
"fundamental policy" de outro Estado, que tivesse um maior interesse do que aquele cuja lei foi pré-
escolhida para regular a questão. Em seguida, no § 188, afirma-se que, ausente a escolha da lei por
obra das partes, o contrato será regido pela lei que apresente os contatos mais significativos com o
convencionado, os quais vêm assim enumerados: lugar do contrato; lugar no qual este foi negociado;
lugar de execução; lugar no qual se encontra o objeto do contrato; domicílio; residência; nacionalidade;
lugar da incorporação e lugar dos negócios das partes. Todas essas questões devem ser avaliadas com
base na sua importância relativa ao caso em espécie.
23.10. Regra obrigacional brasileira
A Lei de Introdução ao Código Civil vigente estipula, no art. 9°-:
"Para qualificar e reger as obrigações aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem".
Não contém o texto referência à autonomia da vontade, nem exclui o império da lei do país em
que se constituírem as obrigações para aplicar a lei brasileira, como o fazia o art. 13 da revogada
Introdução de 1916 aos contratos ajustados em países estrangeiros, quando exeqüíveis no Brasil; às
obrigações contraídas entre brasileiros em país estrangeiro; aos atos relativos ao regime hipotecário
brasileiro.
A lei do lugar da obrigação, segundo advertência de Oscar Tenório, tem âmbito limitado à
qualificação e à substância. A matéria da capacidade rege-se pela lei pessoal: no Brasil, pela lei do
domicílio. Mas há restrições à capacidade e que se regem, em certos atos sobre imóveis, pela lex rei
sitae.
O art. 9°- não exclui a aplicação da autonomia da vontade se ela for admitida pela lei do país
onde se constituir a obrigação. Manda a Lei de Introdução aplicar a lei do lugar do contrato. Não quer
isso dizer que a obrigação se qualifica e se rege pelas leis locais internas, o que seria admitir o princípio
da territorialidade.
Consta do § 2° do art. 9° da Lei de Introdução regra complementar:
"A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente".
Essa disposição mereceu os seguintes comentários de Oscar Tenório:
"O preceito geral das obrigações é, na regra do direito internacional privado brasileiro, o da lei do
país em que elas se constituírem, sendo que para os contratos a lei a aplicar é a do país em que residir
o proponente.
"O preceito cogita das obrigações convencionais. As demais obrigações dependem da lei do
lugar onde contraídas, não se levando em conta a nacionalidade, o domicílio e a residência dos
contratantes, seja qual for a posição das partes na iniciativa da proposta e da contraproposta.
"A regra geral do art. 92 da Lei de Introdução se aplica aos contratos entre presentes. Para os
contratos entre ausentes, em face da existência de elementos diferentes de conexão e de difícil
adaptação, o legislador tem de escolher um dado permanente, um elemento de fixação ou estabilidade.
Manifestou-se favorável à lei da residência do proponente".
Na verdade, o art. 9°-, § 2°-, da Lei de Introdução reproduz o art. 1.087 do Código Civil, e assim
só pode ser visto como regra de qualificação preliminar da questão de direito internacional privado. Eis
o seu texto:
"Art. 1.087. Reputar-se-á celebrado o contrato no lugar em que foi proposto".
Contudo, na opinião de Amílcar de Castro, foi mal colocado entre normas de direito internacional
privado; deveria continuar entre as regras de direito privado, já que se refere diretamente à constituição
da obrigação, sendo por isso mesmo direito primário. Há aparente divergência de redação, pois,
enquanto o art. 1.087 fala que o contrato se reputa celebrado no lugar em que foi proposto, o art. 9°-, §
2°-, dispõe que a obrigação resultante de contrato se reputa constituída no lugar em que residir o
proponente; divergência aparente, porque o verbo "residir" tem dois sentidos: significa estabelecer
morada ordinária, morar, ter sede, mas significa também achar-se, ser, estar, e com este último sentido
se encontra no art. 9°, § 2°. Lugar em que residir o proponente, continua Amílcar de Castro, quer dizer
lugar onde estiver o pro-
ponente. A pessoa pode ter residência, morada, no estrangeiro e propor contrato no Brasil; e o que o
art. 1.087 do Código Civil e o art. 9°-, § 2°-, da Lei de Introdução têm em vista é o lugar onde foi feita a
proposta. Se for feita no Brasil, aqui se considerará constituída a obrigação, e pelo direito brasileiro é
que deverá ser regida no fundo e na forma. O § 2°- não abre exceção, e sim apenas esclarece e
confirma o que dispõe o art. 9°-, mantendo a mesma regra do art. 13 da antiga Introdução ao Código
Civil.
23.11. Obrigações não convencionais
Referindo-se às obrigações não convencionais, acerca das que decorrem diretamente da lei e
quanto à gestão de negócios e enriquecimento sem causa, que abrange o pagamento indevido e
ensinamentos de Haroldo Valladão, se decorrentes de fatos lícitos, os princípios correntes no direito
internacional privado, no direito comparado e no direito pátrio são a observância da lei que estabelece a
obrigação, ou a da lei do lugar do fato ou ato que lhes deu origem. Por isso o ilustre mestre, ao elaborar
o seu Projeto de Código de Aplicação das Normas Jurídicas, hoje de valor meramente histórico e
doutrinário, dispôs, no art. 54:
"As obrigações não oriundas de declaração de vontade regem-se segundo a lei que as
estabeleceu ou segundo a lei do lugar do fato ou ato que lhes deu origem".
Em decorrência das formulações até aqui colocadas, pode-se afirmar que a extensão das
obrigações, com a concordância praticamente geral, será disciplinada de acordo com o princípio da lei
reguladora do contrato. Essa compreensão resulta da circunstância de que uma única lei regula a
obrigação que nasce do contrato, e, pois, todos os aspectos da vida das obrigações igualmente,
inclusive a extinção.
23.12. Aplicação do direito
Resumidamente apresentamos as situações mais freqüentes em matéria de aplicação do direito
nas relações obrigacionais:
18) Sistemas que defendem a aplicação de uma só lei: a) Aplicação da lex fori, ponto de vista
sustentado por Waechter, seguramente o de piores conseqüências, visto que deixa os direitos e
obrigações contratuais na incerteza de serem regulados por
uma legislação que muitas vezes não se pode prever no momento da contratação e até mesmo depois.
b) Lei do devedor, seja a nacional (Zietelmann) ou a dos devedores nos contratos bilaterais, o que
conduziria ao fracionamento dos efeitos dos contratos; contudo, complica-se quando em um mesmo
contrato existem dois ou mais devedores. c) Lei do proponente do contrato: em alguns tipos de
convenção se torna solução acertada, tais como os contratos de adesão; porém, em outros pode tornar-
se difícil determinar diante dos tribunais de qual dos contratantes partiu a oferta. d) Lei do lugar do
contrato: pode ser completamente aleatório, como já observava Dumoulin; é o que conta,
indubitavelmente, com o maior número de adesões. São inegáveis os argumentos de caráter prático
que militam em grande número de casos a favor desse sistema, porém é o que causa maiores
dificuldades em sua aplicação nos contratos entre ausentes, os quais, previamente, devem estabelecer
uma ficção acerca do lugar em que o contrato se realizou; e) Lex loci executionis: sistema que já era
sustentado por Savigny, necessita de critério complementar nas hipóteses em que não haja sido
convencionado expressamente ou se deduza do texto do contrato o lugar de execução deste. Outra
dificuldade provém dos contratos que tenham de ser executados em dois Estados.
2á) Teorias que declaram competentes para reger o fundo do contrato duas ou mais leis. Nolde
denominou essa solução depeçage do contrato. Para Alfonsin cabem dos tipos de fracionamento do
contrato: vertical e horizontal. O primeiro, quando cada uma das partes fica submetida a uma lei
diferente; horizontal, quando se distinguem em um contrato vários planos, tais como a capacidade,
forma, cumprimento normal, danos e prejuízos etc. Nesta última forma o desmembramento é muito
freqüente, tanto por separação da capacidade e da forma, regidas ambas pelas mesmas leis, como por
distinção, que se remonta a Bártolo, entre os efeitos diretos e imediatos dos indiretos e remotos da
convenção, que cinco séculos depois se haveria de traduzir, na distinção de Foelix, entre os effets e as
suítes do contrato, os primeiros correspondendo às conseqüências previstas pelas partes e os
segundos correspondendo às conseqüências decorrentes meramente da obrigação legal, ou seja, os
effets subordinados à autonomia da vontade e as suítes à lei do lugar da execução.
34) Soluções analíticas, que buscam para cada contrato, e às vezes para cada modalidade
dentro de um mesmo tipo contratual, a lei que melhor convém ao seu conteúdo (Jitta, Audinet,
Caleb, Niboyen. Essa é a direção que hoje predomina, tanto quando se indaga da lei aplicável a cada
tipo contratual a título de diretamente competente, ou como supletiva da autonomia da vontade.
42) Para Batiffol, cada contrato, e não cada tipo contratual, é suscetível de receber uma
localização pelos tribunais, em razão de uma série de indícios que assinalam a sua própria lei,
conforme proclamam os ingleses falando da proper law of the contract. A insuficiência e a arbitrariedade
de todas as soluções anteriormente explanadas são argumento decisivo a favor das idéias de Batiffol,
que fundamentalmente significam reabilitação em forma mais moderna e realista da velha tese da
autonomia da vontade.
23.13. Substância do contrato
Savatier aponta as seguintes leis aplicáveis à substância dos contratos: a) submetem-se à lei
nacional das partes as disposições ligadas a certa concepção da família (proibição de venda entre
cônjuges, revogação das doações entre cônjuges), bem como a capacidade e os vícios de
consentimento; b) submetem-se à lei do lugar do ato as regras imperativas de polícia local,
notadamente a organização de bolsas, feiras e mercados, inclusive todas as normas de economia
dirigida; c) submetem-se à lei da situação dos bens as regras contratuais que dizem respeito
intimamente ao estatuto real; d) enfim, é a lei do juiz que determinará, quanto a ele, se o contrato tem
causa imoral; quanto à apreciação da iliceidade da causa do contrato, deve ser respeitada a
competência de cada uma das leis imperativas que cada causa violaria (apud Wilson de Souza Campos
Batalha, Direito Internacional Privado, vol. II).
24. Das Obrigações Extracontratuais
24.1. Nomenclatura técnica. 24.2. Classificações. 24.3. Definição. 24.4. Categorias. 24.5. Qualificação.
24.6. Regime internacional. 24.7. Enriquecimento sem causa e gestão de negócios. 24.8. Fato ilícito ou
delito. 24.9. Circunstâncias tradicionais de conexão. 24.10. Tarefa do julgador. 24.11. Exame intrínseco
do problema. 24.12. Vetor da obrigação extracontratual. 24.13. A norma e suas transgressões. 24.14.
Atos jurídicos normativos. 24.15. Domínio das qualificações. 24.16. Damnum injuria datum. 24.17. Fatos
delituais como situações complexas. 24.18. Extensão da responsabilidade. 24.19. Forum delicti e forum
rei. 24.20. Relação causal. 24.21. Outros elementos de conexão.
24.1. Nomenclatura técnica
O rápido e complexo desenvolvimento das atividades humanas acelera o processo de
conhecimento e investigação de magnos problemas em todos os campos do direito, colocando-se numa
linha preferencial importantes questões relacionadas com a doutrina das obrigações não contratuais,
tanto na esfera internacional como interna ou ambas conjugadas, pelas suas implicações práticas e
teóricas no plano normativo, atualmente alvo de inúmeras transformações nos diversos ordenamentos
jurídicos vigentes.
A quantidade quase incomensurável de relações obrigacionais que se formam diariamente
explica o fundado interesse que desperta no jurista o estudo esmiuçado da matéria, hoje com
referibilidade internacional, pela impossibilidade de circunscrever eficazmente ao direito local as
soluções ènvolventes de vários sistemas jurídicos.
Não existe propriamente uma nova doutrina das obrigações não contratuais, no sentido de
possibilitar a construção de esquemas revolucionários, mas aos poucos vão surgindo posições
doutrinárias que forçam a mudança das perspectivas até aqui válidas e incontestadas, impondo a
substituição das velhas categorias in-
condizentes com a realidade jurídico-social por conceitos e noções condicionados a outros significados
de natureza vital, fundantes e explicativos das relações obrigacionais imperativamente constituídas.
A primeira discussão que se pode travar refere-se à nomenclatura tecnicamente viável para
expressar amplamente a estrutura, a conexão interna e lógica da tradicionalmente chamada obrigação
extracontratual e a sua função no conjunto dos ordenamentos jurídicos.
Sem tomar partido ou entrar no mérito das discussões taxonômicas, assinalamos que nesse
terreno o problema também se coloca para dirimir certas dúvidas a respeito das expressões mais
convenientes, para substituir o conceito de obrigações extracontratuais. Muitos são os autores que se
propuseram a pesquisar a matéria, apresentando classificações minudentes que, em verdade, não têm
mero espírito acadêmico, mas, ao contrário, refletem a realidade do direito.
Orlando Gomes entende, acompanhando significativa corrente doutrinária inspirada
principalmente na obra de Larenz, que as fontes das obrigações devem ser divididas em duas
categorias, a saber: a) os negócios jurídicos e b) os fatos jurídicos extranegociais.
A última denominação abrangeria os atos jurídicos stricto sensu, os atos ilícitos, o abuso de
direito, os acontecimentos naturais, os fatos materiais e as situações especiais, acentuando o civilista
pátrio que a diversificação se impõe "para que possa melhor frisar a diferença de tratamento
dispensado pela lei às duas categorias gerais. Quando a obrigação é suscitada por um negócio jurídico,
há de corresponder à vontade do obrigado. Quando provocada por fato extranegocial, produz-se, em
alguns casos, contra a vontade do obrigado por estar predeterminada, invariavelmente, na lei".
Na mesma direção, o consagrado Pontes de Miranda, buscando justificar conceitualmente a
expressão "responsabilidade extranegocial", para significar todas aquelas condições em que alguém na
relação jurídica se obrigou a uma prestação que a lei impõe. Procura, assim, abranger amplamente o
elenco de situações caracterizadoras de "atos ilícitos stricto sensu, atos-fatos ilícitos stricto sensu".
Se tivéssemos de tomar partido, incontinenti optaríamos pela expressão "atividades
extranegociais" para delimitar todas as situações de fato cujos efeitos se produzem ex lege, mas não o
fazemos, tendo em vista o estado polêmico do assunto, palmilhando terreno inseguro e cheio de
divergências, pois, como bem diz Orlando Gomes, "noções de importância fundamental, de cuja
formulação correta depende a orientação a ser seguida no tratamento de toda a vasta matéria que se
desdobra copiosamente nessa imensa província do direito privado, permanecem controvertidas".
24.2. Classificações
Mais eficiente para o desenvolvimento dessa imensa problemática no campo internacional é a
clássica divisão das obrigações extracontratuais em três categorias: a) obrigações delituais e quase-
delituais; b) obrigações quase-contratuais; c) obrigações puramente legais, entre as quais se
compreendem as obrigações alimentares, as de vizinhança, as de tutela e todas as demais que
provocam efeitos predeterminados invariavelmente na lei.
Tomados os diferentes modelos, é claro, poderia um novo esforço classificatório encontrar os
lugares comuns e as analogias, mas sem maiores compensações teóricas para a finalidade deste
trabalho, que tem por principal escopo tratar da determinação do direito aplicável à solução dos
conflitos legislativos que surgem para amparar tais relações jurídicas.
Aceitando o ponto de vista de Pierre Bourel, pensamos que, a partir dessa classificação, é
possível abordar, em seus ângulos mais significativos e menos equívocos, os problemas dos conflitos
de leis relativos às obrigações não contratuais.
Se, por um lado, a doutrina das obrigações em toda a sua amplitude constitui matéria de largo
espectro teórico no direito interno de cada país, de outro lado, em que pesem os crescentes
relacionamentos fáticos e jurídicos de natureza internacional, o estudo do assunto não sofreu suficiente
desenvolvimento por parte dos escritores especializados. É o que constata, por exemplo, Bourel, na
França, valendo a observação em geral, que assinala que a maior parte dos escritores não consagra
mais do que pequenos artigos ou sínteses, contentando-se com a enunciação da
jurisprudência e algumas decisões isoladas sem sequer discuti-Ias convenientemente.
Todavia, as próprias explicações de Bourel ressaltam a grande necessidade hodierna de
repensar globalmente o problema dos conflitos de leis em matéria de obrigações extracontratuais,
emergindo de toda parte manifestações sobre essa necessidade, notadamente na literatura
especializada estrangeira, em vários países, onde já se pode notar sensível mudança de atitude em
relação às regras tradicionais de conexão, revelada numa sucessão de penetrantes análises dos
escritores, propondo novas soluções. No mesmo caminho a jurisprudência, quebrando certos tabus
jurídicos com decisões que já traduzem aspirações da doutrina moderna.
24.3. Definição
A ausência total de um conceito de obrigação extracontratual leva-nos, sem intuito de
originalidade, mas com a finalidade teórica e prática de estabelecer um ponto de partida, a oferecer a
seguinte proposição conceitual:
Obrigação extracontratual é a relação jurídica de ordem pública ou privada, predeterminada por
lei, que tem como efeito constranger alguém a uma prestação, economicamente apreciável, por
desrespeito ao dever geral de não causar dano a outrem.
Os sistemas legislativos diversificam-se na caracterização normativa das obrigações não
contratuais, parecendo, todavia, não haver dúvida de que a doutrina civilista moderna centraliza na
culpa o motivo de atuação do direito, a partir da qual se busca o nexo de causalidade.
Exatamente por isso não nos preocupamos com o encontro de variantes interpretativas que
procuram distinguir os elementos constitutivos das relações obrigacionais, tendo em vista que com a
denominação "obrigação extracontratual" compreendemos aqueles deveres genéricos de não
prejudicar, que o agente transgride, conduzindo a outra parte ao dano, por uma violação da norma e
não do contrato.
A concepção apresentada não exclui os quase-contratos, pois a questão de saber a que regime
está sujeita a culpa na execu-
ção dos quase-contratos ou das obrigações legais não pode suscitar dificuldades, por várias razões.
Uma, porque as fontes das obrigações verdadeiramente são duas: a lei e a vontade do homem.
E as obrigações resultantes dos quase-contratos são impostas pela lei.
O outro motivo é que não se podem aplicar regras de responsabilidade contratual a pessoas que
não contrataram. É o caso das pessoas vinculadas em virtude de operações apresentadas como
quase-contratos, a saber: gestão de negócios, pagamento do indevido, enriquecimento sem causa e
outros.
E ainda outra razão: os textos sobre a responsabilidade quase-delitual têm um conteúdo mais
geral que os textos sobre a responsabilidade contratual. Mazeaud e Tunc, por exemplo, acham que as
regras de responsabilidade delitual devem ser aplicadas em matéria de quase-contratos e obrigações
legais, asseverando que alguns entenderam ser necessário aproximar a responsabilidade quase-
contratual da responsabilidade contratual e a responsabilidade legal propriamente dita da
responsabilidade delitual. E acrescentam: "Tal opinião se baseia numa confusão imperdoável: funda-se
unicamente na similitude dos termos `contrato' e `quasecontrato', porém, como é sabido, sem que haja
necessidade de insistir, em que pese seu nome, o quase-contrato não se parece em nada com o
contrato, salvo em ser, com o mesmo título que o contrato, uma fonte de obrigação".
24.4. Categorias
Somos inteiramente partidários dessa posição, pois apenas existem duas grandes categorias de
obrigações: de um lado, as que nascem do contrato, da vontade do credor e do devedor; de outro lado,
as que são impostas pelo legislador, trate-se de obrigações legais propriamente ditas, delituais ou
quase-contratuais, existindo entre esses dois tipos de obrigações diferença fundamental de fato. As
situações são claramente distintas.
Em conseqüência, as regras da responsabilidade delitual e quase-delitual devem ser estendidas
à responsabilidade quasecontratual e à responsabilidade legal propriamente dita.
Tais observações são feitas com o pressuposto de que a expressão "obrigações
extracontratuais" compreende todos os casos da responsabilidade legal lato sensu.
Em direito internacional privado, o pressuposto conceitual levantado assume importância cardeal,
porquanto nesse quadro compreensivo se enfeixam os institutos da responsabilidade delitual e quase-
delitual e as diferentes hipóteses do enriquecimento sem causa, ao lado de outros eventos geradores
de prestação econômica na esfera extracontratual, ou seja, o estudo dos delitos civis e quase-contratos
circulando em torno do problema da territorialidade e extraterritorial idade do direito e a possível
solução de conflitos que daí nascem.
24.5. Qualificação
Com vista, ainda, a um ajustamento da terminologia jurídica, preferimos qualificar de
"inadimplemento" o ilícito chamado contratual e "ilícito", pura e simplesmente, o extracontratual.
Poderia ser objetado que a qualificação proposta circunscreve em demasia o conteúdo dos
termos. Mas, rigorosamente pensando, sempre que se viola o dever genérico de não infligir dano injusto
a alguém há ilícito extracontratual. Em outras palavras: entre o sujeito ativo e o sujeito passivo do ilícito,
não preexistíndo nenhuma relação jurídica de natureza volitiva, produzir dano injusto constitui ilícito
extracontratual; ao contrário, no ilícito contratual sobre aquela relação genérica deve existir outra
específica.
Em tais circunstâncias, portanto, não é à vontade de um ou de outro que se necessita chegar
para determinar sua responsabilidade. São exatamente a amplitude e a elasticidade desse mecanismo
indeterminável pelo método imediato que dão aos fatos não contratuais no âmbito do direito
internacional privado relevância hermenêutica, geralmente de complexa solução, pois não somente as
ações involuntárias, não somente os movimentos conscientes que provêm de disposição física,
fisiológica ou psíquica, mas todo movimento das coisas sobre as quais se estende a atividade das
pessoas, está ordenado de modo a proporcionarIhes vantagens que podem impedir o desenvolvimento
de outras atividades.
A questão é, pois, conseguir ou não prevenir o impedimento. Se se consegue, inexiste o
problema; se não, deve o dano even-
tualmente causado a outros ser compensado. Quando há dano, há sempre responsabilidade, que,
normalmente, transforma-se em dever de reparação.
Identicamente pode-se examinar o problema da culpa contratual e extracontratual. Apesar das
tendências de alguns civilistas no sentido de unificar o conceito de culpa, abrangendo tanto os fatos
contratuais como os não contratuais, temos diversa visão, visto que nas situações contratuais a
transgressão depende de análise subjetiva, ao passo que nas extracontratuais, não estando a conduta
do agente regulada por convenção, amplia-se o campo de avaliação, sempre dissipada pela
generalidade da norma. No contrato, sempre existe um dever específico e positivo consistente em
prestação definida na relação obrigacional. Em contrapartida, na culpa extracontratual há, conforme
aponta Caio Mário da Silva Pereira, "um dever negativo, ou obrigação de não prejudicar, e para que se
concretize a responsabilidade é necessário que se encontre, não uma transgressão temática da norma,
porém ainda que a infração percuta na órbita jurídica do queixoso, causandoIhe um dano específico".
Em seguida às presentes considerações, com o sentido exclusivo de ressaltar alguns
pressupostos, os quais continuadamente terão referência no desenvolvimento do trabalho, passaremos
a analisar os reflexos da doutrina e da jurisprudência nos diversos ordenamentos jurídicos vigentes.
A primeira dificuldade para construir uma analítica sumária dos principais sistemas vigentes
reside na diversidade de tipos obrigacionais não originários nos contratos, tornando difícil seu
tratamento pelo direito internacional privado, que, segundo bem assinala Adolfo Miaja de Ia Muela,
tropeça em uma primeira impossibilidade, qual seja, a da classificação das fontes admitidas nas
distintas legislações para as obrigações não contratuais.
Eis o pronunciamento sintético e preciso de Adolfo Miaja a esse respeito:
"Nas de tipo latino, pesa ainda a classificação romana das obrigações -ex contractu e ex
maleficio, de Gaio, com aditamento das que nascem ex variis causarum figuris, desdobradas pelos
glosadores medievais em quasi ex contractu e quasi ex delicto, ponto de partida das duas artificiosas
figuras jurídicas do quasecontrato e do quase-delito.
"Nos códigos alemão e suíço, substitui-se a noção do quase-contrato pela de outras fontes
particulares, tais como as do enriquecimento sem causa e a declaração de vontade unilateral, além de
conservar algumas figuras quase-contratuais, como a gestão de negócios sem mandato.
"A construção do quase-contrato, fundada numa vontade tácita ou pressuposta, impeliu uma
corrente doutrinária a declarar aplicável nos conflitos de leis que surgissem nessa matéria a autonomia
da vontade, critério que esbarra com grandes dificuldades na prática, pela impossibilidade de localizar
um querer que não tenha sido declarado e que muitas vezes não existe".
A doutrina que reduz as fontes das obrigações às leis e ao contrato, considerado, por
conseguinte, como obrigações ex lege, as chamadas extracontratuais, corta o nó górdio do problema,
porque as obrigações impostas por uma lei somente por essa lei podem reger-se. É claro que tal
solução corre o perigo de fecharse dentro de um círculo vicioso se, por exemplo, uma negotiorum
gesfio, em que o lugar no qual esta se realiza e as nacionalidades do gestor e do dono do negócio são
distintamente conectados a outras tantas legislações, parte do pressuposto sobre o qual a lei impõe as
obrigações ao gestor e lhe outorga direitos perante o dominus negotii.
Outras obrigações legais estão mais claramente conectadas com determinada lei, por exemplo, a
de alimentos com a nacional dos interessados, se é comum, mas a diversidade de estatutos pessoais
daquele que reclama os alimentos e o presumido obrigado a prestá-los pode introduzir uma
complicação para a solução adequada do problema.
Além desses casos de conexão pessoal, a obrigação extracontratual, ainda que imposta pela lei,
aparece sempre subordinada em sua produção a um fato ou negócio jurídico. Nesse sentido, o contrato
tampouco é causa das obrigações que cria, senão sua condição, porque sua verdadeira causa é a lei
que condiciona à concorrência de vontades das partes a produção das conseqüências próprias do
contrato. Neste, a vontade das partes pode desempenhar um papel na designação da lei aplicável. Nas
figuras quase-contratuais falta uma vontade expressa, daí por que o lugar de produção dos atos
originários da obrigação deve ser decisivo para a determinação da lei que regula os efeitos desse ato.
Traçados os fundamentos lineares da questão, desde logo se verifica que os sistemas jurídicos
se agrupam de maneiras as mais diversificadas, nem sempre seguindo esteiras doutrinárias
tradicionais, o que de certo modo dificulta a construção de um sistema estrutural, impondo-se o método
comparativo como suporte de um desenvolvimento teórico possível.
24.6. Regime internacional
Para facilitar a compreensão do assunto, sem qualquer renúncia aos conceitos prévios básicos já
expendidos, adotaremos o critério tradicional de distinguir as obrigações segundo as causas de que se
originam, e com tal premissa faremos a exposição do regime internacional das obrigações não
contratuais.
De modo geral, concordamos com Carlo Cereti no sentido de que as obrigações ex lege em
sentido estrito surgem geralmente como conseqüência ou acessório de uma relação jurídica principal,
por isso convindo começar a análise dos sistemas jurídicos atuais pesquisando as obrigações que
decorrem diretamente da lei.
As obrigações que resultam da lei - adverte Pillet - e que não pressupõem a intervenção de um
delito ou quase-delito não são, como se tem afirmado freqüentemente, submetidas sempre à lei do
lugar onde se produz o fato gerador da obrigação. Nem todos têm caráter territorial; tudo depende do
objeto visado pelo legislador, e, assim, as obrigações que derivam dos laços de parentesco ou da
existência duma tutela são de natureza extraterritorial, ainda que de origem puramente legal.
Vários autores contemporâneos tecem considerações a respeito da vantagem e interesse em
discutir quais as circunstâncias de conexão numa classificação mais restrita das fontes obrigacionais,
adotando como princípio duas espécies de obrigações não convencionais: as decorrentes de um ato
lícito do homem è as oriundas de um ato ilícito.
Assim, como o admite Serpa Lopes, o aspecto fundamental em relação às obrigações não
contratuais assenta em defluírem da lei, antes que da vontade, ou seja, entender a lei como fonte única
das obrigações não contratuais, sem o concurso da vontade humana, como fonte imediata.
Referindo-se ao quase-contrato, Planiol e Ripert asseguram que, nesse tipo de fonte, a vontade
do obrigado não é tomada em consideração, e que a obrigação nasce sem a interferência de sua
vontade, e mesmo a despeito de sua vontade contrária, de onde resulta que a capacidade do obrigado
é indiferente.
Algumas variações assinalaram a instabilidade teórico-prática do problema, v.g. os acidentes de
trabalho, que durante muito tempo foram submetidos ao direito comum dos delitos e quasedelitos. Tais
hipóteses, muito versadas na doutrina francesa, foram abandonadas, entendendo-se atualmente que o
regulamento do acidente do trabalho deve inspirar-se na concepção do risco profissional.
Eduardo Espínola, pai e filho relatam, apud Niboyet, notável decisão da Corte de Cassação
francesa, cujas Câmaras reunidas proclamaram, no caso Antipoul, que os acidentes do trabalho,
ligando-se ao contrato do trabalho, ficam submetidos à lei francesa, desde que se verifique ser essa lei
que rege o contrato do trabalho, concluindo acertadamente que, na hipótese inversa, muito
provavelmente, a justiça francesa submeteria o acidente à lei estrangeira, ainda quando este tivesse
ocorrido no território francês.
O mesmo jurista aceita, com razão, a opinião de Frankenstein de que, em matéria de acidente do
trabalho, prevalece idêntica restrição que se encontra no tocante aos delitos e obrigações legais, isto é,
o regulamento dos acidentes do trabalho constitui uma parte do direito público, ainda quando se trate
de empresa estrangeira que empregue operários estrangeiros dentro do país.
Deduz, então, o escritor germânico que não há motivo para excluir uma indenização maior
autorizada pela lei da empresa estrangeira.
A doutrina e a jurisprudência francesa e italiana, principalmente, desenvolveram a teoria das
obrigações ex lege, resultante de relações entre vizinhos, da tutela, da curatela, do pátrio poder e do
casamento. O princípio regulador é sempre da lei que as impõe ou as cria.
Considerando o quase-contrato como fonte autônoma das obrigações, alguns preeminentes
juristas, entre os quais se coloca Laurent, acompanhando Savigny, entendem que a lei aplicável é
a que nasce dos contratos, baseados na existência de uma analogia entre ambos.
Sustenta Laurent que o quase-contrato se forma porque há quase-concurso de vontades,
traduzido pela idéia de uma intenção presumida das partes de submeterem-se à lei que seria a da
nacionalidade comum, e, na ausência desta, a lei territorial. Segundo a compreensão de Laurent ao
propor o sistema no art. 17 do Projeto de Código Civil para a Bégica, o próprio legislador indica tal
analogia entre o contrato e o quase-contrato, porque dá essa denominação a casos que produzem
obrigações da mesma natureza que as contratuais, acrescentando, a respeito destas últimas, ser o
elemento volitivo, também, o fator determinante de formação. Afirma que, por ser a gestão de negócios
quase idêntica ao mandato, deve seguir a mesma lei desse contrato.
Fiore refuta essa teoria, argüindo que não há vontade tácita nem quase-concurso; este não
transforma a relação em mandato tácito cujas obrigações podem compreender-se na categoria das que
derivam de um fato voluntário do homem. W2iSS sustenta que o quase-contrato é, precisamente, um
contrato presumido, pois a lei se limita a presumir o acordo. Pillet nega a assimilação entre o quase-
contrato e a convenção tácita, porque afirma que o gestor não conta com manifestações prévias da
vontade à sua gestão, não havendo, no pagamento do indevido, nenhum acordo de vontades, razão
pela qual, para estabelecer a lei aplicável, necessário se torna averiguar o fim social das leis que fazem
produzir efeito.
No direito internacional privado, é matéria controvertida se há conveniência em manter a classe
especial dos quase-contratos como fonte de obrigação, ou se é preferível contemplá-los
englobadamente, como causas incluídas na categoria da lei.
Modernamente, incluem-se nas obrigações derivadas da lei, além do ato humano praticado sine
jure ou contra jus, certas situações de fato a que a lei atribui efeito de ocasionarem uma relação
obrigacional.
Para efeito de tratamento - é nossa opinião -, as classificações até aqui examinadas não excluem
a possibilidade legítima de se abrigarem sob o teto único das obrigações não contratuais todas aquelas
circunstâncias que não têm na sua origem uma convenção. A legislação italiana acolhe integralmente
tal orientação, ao estabelecer um único elemento de conexão para todas as relações jurídicas não
contratuais, adotado como critério decisivo.
A lei aplicável é sempre a do lugar onde o fato jurídico se completa, no sentido de que a norma de
direito internacional privado submete a disciplina do próprio fato ou da relação que dele se origina à lei
do Estado em cujo território se verificou o fato. Assim, a concreta determinação de tal critério territorial
objetivo depende da estrutura do fato e das indagações de caráter material subordinadas às medidas
da lex fori.
Desse modo, a lei do lugar regulará a gestão de negócios que não derive da relação contratual e,
em particular, os pressupostos de liceidade da intervenção no negócio alheio e as conseqüências da
gestão. O enriquecimento sem causa, especialmente o derivado do pagamento indevido, comportará a
aplicação da lei do lugar, de acordo com as regras que disciplinam a repetição do indébito.
24.7. Enriquecimento sem causa e gestão de negócios
Para facilidade de entendimento examinaremos isoladamente, na sistemática das legislações
modernas, o enriquecimento sem causa e a gestão de negócios, considerando a seguir as principais
manifestações doutrinárias no campo das obrigações delituais.
Os Códigos modernos, em face da questão do enriquecimento sem causa, adotam técnicas
variadas, havendo, como diz Caio Mário, "certa desorientação a respeito, seja no conceituar, seja no
disciplinar, seja no admitir o direito positivo a teoria do enriquecimento indevido". É clara a explicação
do emérito civilista para justificar tais divergências, atribuindo a razão ao fraco desenvolvimento da
matéria no direito romano, faltando ao instituto, em conseqüência, o rigor lógico que caracteriza as
construções jurídicas dos jurisconsultos da época. A falta de um verdadeiro sistema de princípios limitou
as fontes a procurar na eqüidade a solução. E, segundo ainda a lição de Caio Mário, "todas as
hipóteses conhecidas eram envolvidas na epígrafe ampla das condictiones sine causa, denominação
que permitiu aos juristas modernos as generalizar, dizendo: quando alguém recebia indevidamente
alguma coisa, ou quando cessava a razão justificativa de tê-la recebido, ou quando a aquisição
provinha de furto ou de motivo imoral, não tinha o direito de retê-la, por faltar uma causa. Esta, porém,
não era elementar na obligatio, que se contraía independentemente de seu conceito, porém necessária
a que o adquirente conservasse
a propriedade ou a posse da coisa recebida... Sobre esse alicerce, das condictiones, que não
receberam na dogmática romana uma sistematização perfeita, os modernos construíram a teoria do
enriquecimento sem causa".
Numerosos são os Códigos que registram expressamente, com maior ou menor amplitude, as
hipóteses configurativas dos enriquecimentos sem causa, como são os casos das legislações alemã,
suíça e italiana, para caracterizar um grupo que assenta suas premissas numa teoria ampla, pondo
"sob invocação do enriquecimento indevido todas as hipóteses a que falte ou venha a faltar a causa
eficiente da aquisição, instituindo como conseqüência o dever de restituir".
Para se ter noção apropriada do assunto, tal como é ele previsto em várias legislações, isto é,
como fonte da obrigação legal, não se deve desconsiderar a oposição encontrável em alguns sistemas
que separam as diferentes hipóteses do enriquecimento injustificado, com a intenção de proteger a boa-
fé (Código italiano, art. 2.037, alínea 3; Código egípcio, art. 938, alínea 2), ou considerar a incapacidade
do interessado (Código italiano, art. 2.039; Código egípcio, arts. 186 e 196).
Na jurisprudência italiana, antes da promulgação do Código Civil de 1942, o problema do
enriquecimento sem causa colocava-se como fonte de obrigação, mas por meio de disposições
particulares (tais como os arts. 450, 705, 1.307 e 1.842 do Código de 1865), pressupondo
implicitamente a exigência, decorrente da tradição justinianéia, de que ninguém deve enriquecer sem
motivo à custa de outrem. Foi somente com a entrada em vigor da Convenção de Genebra sobre a letra
de câmbio que a noção de enriquecimento sem causa foi adotada como fonte independente de
obrigação legal.
As referências sistemáticas demonstraram existir um panorama propício à aceitação de uma
teoria genérica das relações extracontratuais para efeito de atuação das regras de conflitos, moldada
que vem sendo a doutrina mais recente no pressuposto de que as obrigações não derivadas de
contratos nascem sempre de um evento danoso causador de lesão de um bem jurídico qualquer.
Obviamente os sistemas internos de cada país refletem suas próprias dogmáticas nos critérios
de solução de conflitos quando
o problema se transfere para o plano da normatividade do direito internacional privado, e, aí, dá-se
curiosa mudança da perspectiva hermenêutica, a essa altura tendente a encontrar uma unificação das
estruturas básicas de cada instituto figurante dos quase-contratos e delitos civis, para enquadrá-los
como oriundos de uma fonte comum, que na realidade só pode ser a lei.
As idéias preliminares expostas conduzem-nos ao estabelecimento de uma teoria única do
prejuízo jurídico, como causa eficiente da reparação a que se obriga compulsoriamente aquele que agiu
lesivamente.
Como já mencionamos, há obrigações que derivam de fatos voluntários ilícitos ou delitos,
chamando-se por isso delituais.
24.8. Fato ilícito ou delito /
Fato ilícito ou delito é todo ato voluntário positivo ou negativo que ofende a norma de direito.
Se tal ato ofende direito subjetivo de outrem, causando-lhe algum prejuízo ou dano, é princípio
de justiça intuitiva que o autor deve reparar o dano causado, reintegrando o lesado ao estado anterior
ao evento, se isso é possível, ou, não o sendo, indenizando-o, pelo valor, o prejuízo ou dano que lhe
infligiu.
A situação jurídica em que se coloca o autor de fato ilícito chama-se responsabilidade.
A generalidade dos autores, tanto nacionais como estrangeiros, aponta como requisitos
essenciais da responsabilidade três fatores: 1 °) fato ilícito ou delito, ou seja, fato ofensivo da ordem
jurídica e que, de algum modo, direta ou indiretamente, possa ser imputado ou atribuído a alguém: 2°-)
prejuízo ou dano causado por esse fato e 3°) culpa do responsável pelas conseqüências do fato
danoso.
A terceira hipótese encerra a concepção clássica da teoria da responsabilidade, tal como foi
transmitida do direito romano: não há responsabilidade onde não há culpa.
A teoria clássica da responsabilidade, fundada na culpa, foi efetivamente consagrada pelos
Códigos francês (art. 1.382) e ita-
liano de 1865 (art. 1.151), onde se formula assim o princípio da responsabilidade:
"Todo fato do homem, que causa dano, obriga aquele por culpa de quem o fato aconteceu a
reparar o dano".
A norma fundamental do direito civil italiano atual (art. 2.043) estabelece que "qual unque fatto
doloso o colposo che cagiona ad altro un danno ingiusto obliga colui ha commesso il fatto a risarcire il
danno".
Em obra muito recente, estuda o notável jurista espanhol Jaime Santos Briz, o problema,
chamando a atenção para a "autorizada doutrina moderna, que reconhece também a igualdade de
princípios fundamentais da infração contratual e dos atos ilícitos", advertindo ainda que em ambos os
casos tem lugar a imputação do dano, especialmente segundo o princípio da culpa, "que es uno de los
básicos de todo el derecho de danos".
Para Briz são também idênticos os conceitos "da culpa, da antijuridicidade e da causação". E
acrescenta: "O conceito e classes de danos são, desde logo, comuns, ainda que se tenha de fazer
distinções quanto à maior ou menor freqüência dentro de um ou outro âmbito de umas e outras classes
de danos".
Seja qual for, tecnicamente, deve-se considerar o dano como todo prejuízo que o sujeito de
direito sofra em conseqüência da violação dos seus bens jurídicos, apenas interessando ao direito
positivo enquanto fato que condiciona a aplicação de uma pena ou a constituição dum dever de
indenizar, como conseqüências jurídicas.
Beitzke assinala muito bem, ao examinar o problema dos delitos em direito internacional privado,
que a prática se torna cada vez mas freqüente relativamente aos acontecimentos que envolvem
relações jurídicas de natureza extracontratual, tornandose indispensável repensar conceitualmente as
categorias integrantes das legislações modernas, cada qual imprimindo feição particular aos diferentes
institutos das obrigações não contratuais.
Analisando, assim, alguns aspectos sistemáticos das obrigações extracontratuais e seus
pressupostos básicos, sempre partindo de um ponto de vista fundamental, qual seja, o de que o campo
dos quase-contratos e dos delitos, bem assim as chamadas obrigações puramente legais, não sofrem,
nem podem sofrer,
severas distorções, para o efeito de determinação dos meios técnicos de conexão, passaremos a
examinar os sistemas de aplicação das regras de conflito.
24.9. Circunstâncias tradicionais de conexão
As circunstâncias de conexão constituem a principal preocupação do normativismo conflitual.
Inúmeras são as teorias que nascem das considerações modernas do problema, inspiradas na
casuística e na meditação meramente doutrinária. Contemporaneamente a obra de Bourel aparece
como trabalho mais completo de apreciação do assunto, razão pela qual faremos inicialmente
reprodução comentada de suas teses, muitas delas apoiadas nos conceitos renovadores de Binder.
Para Bourel, com interesse meramente histórico, há três hipóteses vinculativas de direito
aplicável: 1á) conexão no estatuto pessoal, 2á) conexão no estatuto contratual e 3a) conexão no
estatuto territorial. Embora salientando tratar-se de opiniões isoladas, sem arrimo na jurisprudência
mais recente, não prescinde de um exame sumário do assunto, precisamente porque o princípio
genérico e atuante da lei local também atravessa fase de extrema instabilidade doutrinária.
Compreendemos bem a preocupação de Bourel, pois grandes nomes sustentam a força do
princípio personalístico expresso na lex patriae debitoris, estendendo o elemento pessoal de conexão
ao domínio dos delitos e dos quase-contratos. De um lado, Zitelmann e Frankenstein, e, de outro, Rolin
e Poullet. Os primeiros, dando ênfase à lei nacional, que aplicam como regra nas diferentes fontes das
obrigações, os segundos, sem dar ao estatuto pessoal um primado, consideram, todavia, que a lei
nacional do devedor deve prevalecer sobre a lei local, "seja em caso de silêncio desta, seja quando as
disposições concorrentes não são conformes".
Outros autores, ainda na apreciação de Bourel, eliminando a tradicional distinção entre
obrigações voluntárias e legais, procuram paradoxalmente estender ao domínio da autonomia da
vontade e dos quase-contratos matéria de responsabilidade civil, como Weiss, ao propor que o delito
cometido no estrangeiro seja submetido à lei cuja aplicação as partes previram, admitindo assim
que "uma lei territorial possa ser considerada como lei interpretativa de vontade, e, a este título,
suscetível de aplicação extraterritorial". O exemplo de Laurent é igualmente significativo, pois
reconhece que a lei da autonomia não se aplica aos quase-contratos, mas pretende que na ausência de
convenção expressa ou tácita forma-se um quase-concurso de vontades que justificaria a assimilação
do quase-contrato ao contrato. "As obrigações nascidas da gestão de negócios ou do pagamento
indevido repousariam assim, segundo ele, na vontade presumida do gestor ou do accipiens, seja para
obrigar em relação ao primeiro, seja para restituir em relação ao segundo."
Na mesma linha de idéias, Savigny e Regelsberger, mas concluindo pela aplicação da lex
domicilii debitoris, em contrapartida ao direito francês, geralmente se pronunciando a favor da lei
nacional.
Pondo-se firmemente contra tais entrelaçamentos, Bourel salienta com toda razão que a posição
não resiste à crítica, pois a justificação só encontraria guarida em direito superado, "segundo o qual o
elemento característico do quase-contrato residiria na existência se não de um verdadeiro
consentimento, pelo menos num consentimento fictício".
A premissa em que se fixa Bourel é para nós integralmente aceitável; resume-se na afirmação
cabal da inexistência de vínculo conceitual entre as chamadas obrigações contratuais nascidas da
vontade e obrigações legais impostas pelo legislador, descabendo, assim, falar-se, inclusive, em
obrigações não convencionais, para distingui-Ias das obrigações legais.
Digamos, para estimular o debate, que a lex fori tem sido o sustentáculo da maioria dos autores
considerados clássicos. Não se pode, todavia, hoje, manter tal orientação com o absolutismo do
passado, porque, principalmente, será difícil argumentar a favor desse elemento de conexão único para
resolver conflitos em matéria de obrigações extracontratuais. Embora rejeitada pela doutrina mais
moderna, essa teoria encontra repouso hermenêutico no art. 3°, alínea I, do Código Civil francês, e não
foi sem razão que o texto em referência movimentou a opinião de inúmeros exegetas que mantinham a
validade do princípio, a despeito da força prática da lex fori.
Realmente, como afirma Bourel, a competência da lei local, em matéria de obrigações não
contratuais, "constitui uma das raras soluções de direito de conflitos admitida pela maioria dos sistemas
jurídicos". Assinala o mesmo autor que, excetuada a legislação russa, essa regra é aplicada de maneira
muito geral, variando sua utilização apenas quanto ao rigor de observância, algumas vezes mais
atenuada em certos sistemas que a submetem a condições restritivas.
Os direitos germânico e anglo-saxônico são exemplos da utilização eclética dos princípios da lex
fori e da lex loci.
Na rotina histórica, ninguém pode escapar do caso Phillips vs. Eyre, registrado nos anais da
jurisprudência inglesa, em 1870, pela nítida caracterização da aplicação combinada de dois elementos
de conexão: a lex fori e a lex loci delicti. O fato é lembrado por Bourel e, realmente, ilustra claramente a
tese.
A aplicação da lex loci delicti, formulada por Willes, Holmes, Cardozo e Westlake, significa que
nenhuma ação versando sobre danos pode ser levada a efeito a não ser que seja bem fundamentada
de acordo com aquela lei, e no conjunto as Cortes inglesas têm aceitado tal diretriz nessa extensão.
Desta sorte, se um cidadão do Reino Unido domiciliado e residente na Inglaterra causa acidente
enquanto dirige automóvel na França ele é em geral responsável pelas conseqüências somente se
naquela extensão ele é responsável segundo a lei francesa. Por outro lado, esse princípio não é único
nem absoluto como regra no sistema jurídico inglês, devendo-se mencionar Westlake como um dos
importantes defensores da aplicação da lex fori. Procura ele justificar o princípio, insistindo que o
litigante não deveria numa ação de danos obter reparação se a lei pessoal do réu não prevê, argumento
esse que considera mais significativo ou conveniente, se a jurisdição da court in personam se baseou
no domicílio do réu ou sua residência habitual e não na sua mera presença na jurisdição, ainda que
casual.
Na Inglaterra, a lex fori e a lex loci comfssi delicti devem ser concordantes para que um ato ou
omissão possam ser considerados como delituais. Nenhum ato pode ser assimilado na Inglaterra a um
delito se não é tido como tal segundo a lei do país onde o fato foi cometido. Ou, como explica Bourel:
"Nenhum direito à reparação é reconhecido se o ato incriminado, se bem que constituindo um delito de
acordo com a lex loci
delicti comissi, não é acionável perante os tribunais ingleses e, ainda, que esse ato não possa ser
justificável segundo a lex loci delicti".
Cumprindo-se as duas condições - adverte Martin Wolff -, ou seja, "se o ato não é justificável
segundo a lex loci actus e é processável segundo a lex fori inglesa, a regra de conflito inglesa ordena a
aplicação do direito interno inglês, e não a lex loci delicti".
Perguntava Wolff.. "Que lugar é a locus delicti comfssi segundo o direito inglês?" E responde:
"Em princípio, sugeriu-se que os tribunais ingleses aceitariam a teoria do lugar da ação mais do que
qualquer outra doutrina. A razão é que tudo o que um tribunal inglês deseja deduzir da lex loci delicti é
se a conduta do demandado é ou não justificável. Somente a lei do lugar em que o réu agiu é
competente para caracterizar sua conduta. Se agiu legalmente no lugar da ação, está justificado e seu
ato não chega a ser ilegal por causa de efeitos num país estrangeiro onde esse ato teria sido ilegal se
ali praticado".
Daí o esclarecimento oportuno de Bourel: "A condição de 'nacionabilidade' significa que um autor
que age perante os tribunais ingleses em seqüência a um delito cometido no estrangeiro, deve, para ter
êxito, provar que se o ato do réu se produziu na Inglaterra, ele teria constituído um fato punível segundo
o direito interno desse país."
Tal sistema é chamado por Bourel "regra da similitude", e, na sua interpretação, repousa numa
noção ampla da ordem pública, "pois, se os juízes ingleses se referem à lei do lugar do delito, é em
definitivo à lex fori que eles deixam a solução do conflito... Assim, limitado é o domínio da lei local no
direito internacional privado inglês, porquanto essa lei tem por fim somente determinar o caráter
justificável ou não do ato do réu".
No direito alemão, predomina o critério de que a responsabilidade baseada na culpa continua
sendo a base das normas vigentes, apesar de começarem a ganhar terreno novos aspectos
doutrinários da responsabilidade sem culpa, principalmente no que tange à compensação das vítimas
de instalações perigosas, como veremos em outra parte deste trabalho.
No que diz respeito, especificamente, às normas de conflitos, assinalam Binder e Bourel, é que a
lei local continua a ser, na Alemanha, a solução normal no terreno das obrigações extracon-
tratuais. Salientam ambos os autores, todavia, que o art. 38 do novo EGBGB estabelece que, "em
conseqüência de um ato ilícito cometido no estrangeiro, não se pode, contra um alemão, fazer valer
pretensões mais largas do que as que são estabelecidas de acordo com as leis alemãs". Esse critério
foi particularmente acompanhado por Haroldo Valladão, que admite expressamente a "influência
indireta da lei brasileira como lex fori, nas obrigações por atos ilícitos... Daí o preceito do Anteprojeto
(há muito arquivado), aliás na esteira das idéias recentes... estabelecendo, após a regra clássica, a
ressalva de a indenização a ser concedida no Brasil não poder ser inferior à prevista, para o caso, pela
lei brasileira".
Bourel identifica essa Vorbehaltsklausel com a regra inglesa da similitude, considerando-a uma
manifestação da ordem pública. E justifica sua interpretação: "Enquanto a regra inglesa da semelhança
assegura a proteção de todo réu seja qual for, esta proteção não está estabelecida segundo o art. 38 do
novo EGBGB, a não ser em favor dos mesmos réus de nacionalidade alemã. A aplicação do direito
interno alemão constitui, portanto, nesta hipótese, limitação excepcional e não mais genérica ao
princípio da lei local".
Os exemplos expressamente mencionados da legislação e doutrina na Inglaterra e Alemanha
são manifestos modelos da orientação mais geral seguida pela grande maioria dos sistemas jurídicos.
Quanto ao problema da elaboração legislativa das obrigações não contratuais, pode-se distinguir,
pois, de um lado, o grupo francês, que utiliza uma fórmula geral, adotada por extensa corrente, na qual
se coloca o regime brasileiro contido na regra do art. 159 do Código Civil, e o grupo germânico, que, em
lugar de uma fórmula geral, desenvolve os casos específicos dos quais derivam as obrigações de
reparar o dano. A primeira posição parece atender de maneira mais consentânea com a realidade
moderna aos princípios que regem a matéria conflitual das obrigações extracontratuais.
Já assinalamos que, contemporaneamente, os principais autores se obstinam, com grande
empenho, em revelar sua reação contra alguns cânones teóricos considerados prejudiciais a uma
melhor solução dos conflitos de leis nessa área. As posições tra-
dicionais começam a enfraquecer para ceder lugar a uma doutrina moderna hostil à "pretendida
universalização da lei local em matéria de obrigações extracontratuais".
Se, por um lado, podemos apontar Bourel como verdadeiro precursor dessa reação, não
podemos esquecer o papel preponderante exercido por Binder na formação dessa nova mentalidade,
fundada e inspirada em método de pesquisa que permitiu captar no direito comparado a convicção de
que a lei local não é tão universal como se pensava.
Bourel revela que tal constatação se encontra alicerçada especialmente nos quase-contratos,
caracterizando-se nesse domínio "a imprecisão e ancianidade das decisões jurisprudenciais de certos
países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos". No sentido afirmativo da renovação, aponta
Bourel a mais recente jurisprudência suíça e alemã, demonstrativa de que será "preferível falar, a
propósito dos quase-contratos, de um abandono e não de uma generalização do princípio tradicional".
O que distingue a doutrina moderna da tradicional é a preocupação de refutar a excessiva rigidez
da lei local como elemento de conexão. Trata-se, ainda, no dizer incontestável de Bourel, de submeter
os delitos e os quase-contratos não mais à lex loci delicti ou à loci quasi contractus como conseqüência
de determinações a priori de subordinação a uma única legislação, mas a leis diferentes, "variando
segundo as circunstâncias nas quais se coloca o problema da conexão das obrigações
extracontratuais".
Na Suíça, por exemplo, a falta de uma regulamentação legal do estatuto delitual foi devidamente
corrigida na Lei federal de 18 de dezembro de 1987, sobre direito internacional privado. Os atos ilícitos
foram esmiuçados nos arts. 129 a 142, compreendendo vários institutos, como: concorrência desleal,
entrave à concorrência, emissões danosas, atentado contra a personalidade etc. A competência da lex
locf delicti não está convenientemente desenvolvida. Não se faz exceção mesmo que se trate de
idêntico direito pátrio das partes, tanto no caso de estrangeiros na Suíça como, também, se dois suíços
no estrangeiro sofrem acidente automobilístico e um deles aciona o segurador do outro. As pretensões
resultantes de acidentes da circulação rodoviária são regidas pela Convenção da Haia de 4 de maio de
1971.
Em alguns casos se faz sentir, todavia, a tendência à consideração do direito pátrio comum e da
lex fori. Assim, em certa ocasião não foi aplicada a lex locf alemã na responsabilidade do empresário
por culpa de seu preposto, mas sim o direito suíço, como o direito válido no domicílio do preponente,
porque, na responsabilidade por omissão ou por ação de terceiro, trata-se de relacionamentos que cada
um estrutura de conformidade com os hábitos de seu domicílio.
Num famoso caso relatado por Binder, sobre abandono do lar pela esposa e dissolução do
casamento, em que o domicílio conjugal era Copenhague, lugar em que o marido enganado
efetivamente se encontrava, apesar de que os atos que provocaram essa situação se haviam realizado,
pelo menos parcialmente, na Suíça (adultério e carta da mulher ao marido, na qual escrevia não mais
querer voltar), a Corte aduziu para a aplicação do direito suíço, como motivo complementar, o ponto de
vista da lex fori; ao mesmo tempo referiu-se à eqüidade do resultado, pois, pelo direito dinamarquês -
diferentemente do suíço -, não se dava pretensão de ressarcimento. Conclui, ainda, a decisão, que
ambas as partes eram cidadãos suíços e o respectivo dispositivo do direito de obrigações, art. 49,
protege precisamente o direito pessoal e não apenas o direito patrimonial.
Outra decisão declarou aceitável exceção ao fundamento da lex loci em casos particulares. A
sentença mencionou o citado caso de responsabilidade e considerou discutível a aplicação da lex fori
em favor de um réu quando a lex loci dá ao prejudicado mais pretensões do que o seu próprio direito,
portanto, restrição semelhante à que está contida no art. 38 do novo EGBGB, porém dirigida em sentido
geral.
O novo EGBGB contém, para ações delituais, mantendo disposição anterior, apenas uma
determinação e de caráter negativo, isto é, conceituada negativamente (negativo gefasste),
correspondendo à chamada cláusula restritiva (Vorbehaltsklause~, que visa a proteção e o
favorecimento de cidadãos alemães (Staatsangehoeriger).
A prescrição do art. 38 do novo EGBGB, todavia, não é explícita, mas omissa a respeito do
direito do qual devem ser deduzidas as pretensões de alemães que tenham cometido atos delituosos
no estrangeiro, uma vez que o teto da reparação é estabelecido pelo próprio direito germânico.
Contudo, uma aplicação geral da lex fori ou lex patriae do réu entraria em contradição com a lei
de maneira flagrante, porquanto a restrição a favor da norma alemã pressupõe a aplicação primária de
outro direito.
Além disso, a limitação do valor da reparação por atos cometidos no estrangeiro só tem sentido
como direito interno, mostrando que o legislador alemão parte de uma conexão territorial.
Historicamente, a jurisprudência e a doutrina germânicas se mantiveram unidas ao princípio da lex loci
delicti comissi no que tange ao pressuposto teleológico contido no art. 38 do novo EGBGB. Daí por que
não é simples a aplicação dessa disposição, sobretudo porque não pode a norma ser interpretada como
se um réu alemão fosse passível de condenação somente naquilo que no caso correspondente é
permitido pelo seu direito nacional de delitos. Mas, ao contrário, é suficiente quando a pretensão
fundada no direito do lugar estrangeiro do ato não tenha sido objeto da normatividade alemã.
Como bem acentua Beitzke, o sistema alemão é bom exemplo para a aplicação da lei do foro
como maximum standard por motivos de ordem pública. Todavia, aplica-se, em sentido inverso, a lei do
foro como minimum standard se a lei do lugar do delito não estabelece indenização suficiente.
Nesse esquema interpretativo coloca-se a doutrina de Zweigert ao analisar a problemática
conexional nas ações de enriquecimento no direito internacional privado. Sua tese - explica Bourel -
apóia-se na idéia de que a variedade de circunstâncias em que se apresentam opõe-se, no terreno do
conflito de leis, à adoção de uma solução uniforme. E continua: "Fazendo rápida incursão no domínio
do direito comparado, Zweigert constata, com efeito, que as ações de enriquecimento se revestem
geralmente de três aspectos diferentes".
"Em primeiro lugar, um aspecto real. A reivindicação de bens, conseqüência da anulação ou da
caducidade de um contrato, efetua-se na Alemanha segundo as regras do direito de enriquecimento
(art. 816 do BGB)".
"A ação pode em seguida apresentar-se sob a forma 'delitual'. Assim as operações de acessão,
comissão e de especificação que, no direito inglês, são consideradas como delitos (conversion or tort),
acham-se submetidas, no direito alemão, às disposições relativas ao enriquecimento sem causa (art.
951 do BGB)."
"Finalmente, a ação de restituição permitida ao credor contra o devedor, que por motivo
independente de sua vontade não executou obrigação, constitui no direito inglês ação quase-contratual,
correspondendo na Alemanha à promessa de prestação a terceiro (art. 328 do BGB)."
Constata assim Bourel que em Zweigert se torna explícito que a solução do problema está
estreitamente ligada à qualificação, como pressuposto necessário na ação de enriquecimento no plano
espacial. Daí reproduzir a seguinte afirmação de Zweigert: "... a legislação que regula o destino da
prestação do empobrecido ao enriquecido deve igualmente regular o momento de saberse como se
efetivará a contraprestação do enriquecimento ao empobrecido".
Na doutrina italiana, em geral, no que tange à disciplinação das obrigações não contratuais há
certa tolerância no acatamento das regras do art. 25, n. li, das disposições preliminares do Código Civil
vigente, que se refere aos requisitos essenciais e aos efeitos, ou ao conteúdo das obrigações,
conjugando os arts. 16 e 17 do mesmo diploma legal, concernentes à capacidade dos sujeitos e à
forma dos atos quando se possa fazer questão desse último aspecto. Assim, por exemplo, a
capacidade de obrigar-se cambiariamente será regulada pela lei nacional, salvo a aplicação da lei
italiana na hipótese do item 2°- do referido art. 17; e, no que diz respeito à forma das obrigações, por
efeito do art. 16, a lei nacional do autor da declaração cambiária concorrerá com a lei do lugar em que
esta se deu, coincidindo nesse caso com a lei reguladora da substância do ato. Mas, no tocante às
obrigações por atos ilícitos, a tese apoiada é a de que a capacidade para obrigar-se pelos fatos ilícitos
não é contemplada pelo art. 17, dependendo, portanto, da lei do lugar onde o fato se deu, da qual
derivará, outrossim, a qualificação do fato como ilícito e, pois, a existência mesma do direito subjetivo
violado.
O novo Código Civil italiano tornou lei o princípio da lex loci no tocante a todas as pretensões
extracontratuais (art. 25, li, d. pri., na redação de 1942 e antes, art. 15, li, na red. de 1939).
Consuetudinariamente, esse princípio já valia antes, sob o domínio do Código Civil de 1865. Não existe,
porém, nem regra legal nem consuetudinária no tocante ao problema do lugar do cometimento do
crime. Na doutrina italiana, parece predominar o ponto de vista de que a ação humana é o momento
decisivo. Deve-se, todavia, admitir que a praxis não mais estreita do que em outros países
opta igualmente, segundo as circunstâncias, ora pelo lugar da nacionalidade, ora pelo lugar do delito.
No direito brasileiro, conforme observa Haroldo Valladão, "o princípio tradicional aparece nos
Projetos Coelho Rodrigues, art. 29, Beviláqua, 36, Revisto, 35, desaparecendo no Código afinal
qualquer texto sobre a matéria", mas o problema reaparece no projeto arquivado de Código de
Aplicação das Normas Jurídicas, com ênfase ao princípio da lex loci e forte influência da tese
germânica já enunciada, sendo certo que o direito interno material se caracteriza pela exaltação da
teoria da culpa em dupla perspectiva: a primeira fundada no erro de conduta do agente e a segunda na
hipótese genérica de ofensa a um bem jurídico, sem desconsiderar-se a relação de causalidade entre a
antijuridicidade da ação e do dano causado.
Verifica-se da apresentação dessas súmulas doutrinárias que a matéria das obrigações, suposta
em todas as épocas como parte mais estável do direito, a menos suscetível à influência da cultura
ambiente, sofre na atualidade consideráveis transformações, a ponto de abandonar as fontes
tradicionais e clássicas, como ocorre presentemente com o princípio basilar da culpa, aos poucos
substituído pela idéia puramente objetiva do risco criado, limitada à mera causalidade dos fatos.,
As alterações teóricas e interpretativas, reflexo das transformações internas dos diversos
ordenamentos jurídicos atuais, influenciaram com extensa magnitude a visão do problema no campo do
direito internacional privado, especialmente na esfera das obrigações não contratuais.
Pode-se dizer que a exigüidade de legislações afirmativas sobre circunstâncias de conexões
decorrentes de obrigações não contratuais propiciou a pugna doutrinária até aqui ainda acirrada, do
mesmo modo que a busca de novas soluções de direito interno atenuou a eficácia dispositiva das
regras de conflitos. Aquela certeza apontada por muitos autores como Pillet, que afirmava, como
sempre, o mesmo princípio admitido pelo direito internacional, em matéria de delitos e quase-delitos,
vai-se debilitando aos poucos, para ceder lugar a novas proposições, valendo o ponto de vista de
Cheshire como hipótese genérica: "Quando na Inglaterra se propõe a ação baseada num ato ilícito
produzido no estrangeiro, a função do direito internacional privado é especificar o
sistema legislativo segundo o qual são determinados os direitos e responsabilidades das partes".
Abandonar o rigor dos princípios tradicionais de conexão tem sido a meta da mais recente
doutrina, não faltando autores mais ortodoxos a se pronunciarem a favor do abandono total das
soluções até aqui vigentes.
Bourel põe em relevo a distribuição da lei local sobre o plano da determinação do lugar do delito,
havendo grande número de fatos que necessariamente se subordinam a regras próprias, como os
crimes de imprensa, a fraude, a concorrência desleal. Não pode ficar de lado a posição de Binder,
inteiramente revolucionária, que defende critério mais genérico de localização do direito aplicável,
segundo o meio social no qual o delito se acha enraizado. Exemplifica com o dano que, causado numa
colônia de férias americana, no decorrer de uma estada no Canadá, que não se vincula,
obrigatoriamente, à lei canadense do lugar do delito, uma vez que todos os partícipes do episódio
delituoso são americanos. Explica que, todos os elementos essenciais da atividade delitual estando
enraizados no meio americano, a ele pertence a lei que regula esse meio e não àquela do meio
puramente acidental da prática do delito, de resolução do conflito.
A tese binderiana é reforçada em concreto por inúmeros acontecimentos capazes de
suficientemente confirmar tais argumentos, v.g., o delito cometido por omissão, apontado por Beitzke
como uma dentre as inúmeras dificuldades de aplicação da lex loci, mas que, de acordo com o seu
ponto de vista, se resolverse-iam aplicando a lei do lugar do resultado. Justifica-se, sustentando que "é
o dano a fonte principal da obrigação delitual e a questão da responsabilidade e da reparação só pode
ser colocada no lugar da lesão". "As leis sobre responsabilidade civil - acentua - tendem a realizar a
proteção do lesado, e essa tendência protetora parece decisiva também para a conexão em direito.
internacional privado."
Beitzke mostra ainda que uma ação delitual pode lesar vários direitos. Se todos os direitos ou
bens lesados estão situados no mesmo país não existe problema, pois uma só lei é aplicável. Porém,
se os direitos ou bens lesados se acham em países diferentes, para cada dano será necessário recorrer
a uma lei diferente. Isto é claro sobretudo para os direitos que têm somente
um valor estritamente territorial, como as patentes de invenção e as marcas de fábrica. Mas é
necessário aplicar leis diferentes, ainda que se trate da mesma patente ou da mesma marca de fábrica
reconhecidas em países diferentes, porquanto existem, em todo caso, vários direitos de valores
diferentes em países diferentes. Conseqüentemente, existem também danos de direitos de autor em
diversos países, se uma obra protegida é emitida em radiodifusão para ser recebida em vários países.
Não é suficiente dar um direito à reparação de danos que se apoiaria na lei em vigor na estação da
difusão; o autor vítima poderá em compensação pedir a reparação de danos diferentes nos países de
recepção. Não é somente uma questão de cálculo de danos, mas também do valor diferente dos
direitos de autores em países diferentes. Será o mesmo em caso de concorrência desleal que influencie
o mercado nos diversos países. Contudo, a questão parece ser outra se não houver lesão de direitos ou
interesses territoriais, por exemplo, uma difamação por um jornal distribuído em vários países ou por
radiodifusão. A honra é indivisível e está em toda a parte. Se, conseqüentemente, parecer necessário
aplicar somente uma lei à reparação do dano, seria arbitrário deixar a vítima escolher a lei de um país
qualquer dentre os países onde a difamação ocorreu. Só poderíamos aceitar duas soluções: ou bem a
lei do lugar da edição do jornal e da radiodifusão ou bem aquela da residência permanente da vítima. A
primeira solução parece ser em favor do lugar da ação, a segunda é também compatível com a teoria
do lugar do resultado: a lesão da vítima começa com o primeiro ato de publicação no local da
radiodifusão ou da edição do jornal. Parece-me duvidoso que se possam deixar de lado em tais casos
as leis dos países nos quais a difamação foi difundida, porquanto em geral o delito não foi concluído
pela expressão de uma difamação, mas sim estendido pela divulgação.
A atualização inglesa deve-se a Morris, que, em famoso artigo publicado em 1951, propugna a
solução de conflitos relativa aos contratos aplicada aos delitos, denominado método de localização
individual. Três são as justificativas que apresenta em prol de seu ponto de vista: 18) a regra da proper
law of a tort é suficientemente flexível e ampla para adaptar-se às circunstâncias várias nas quais se
produzem os fatos delituais; 21) dá ao problema da determinação do delito determinação racional; 39)
permite análise mais adequada dos fatores sociais colocados em jogo, facilitando o desmembramento
dos delitos complexos, "como seria desejável no direito internacional privado".
No direito tcheco-eslovaco anterior, conservado após a divisão, o dever de prevenir danos, o
enriquecimento sem causa e a responsabilidade por prejuízos imateriais estão regulados em três
Códigos, a saber, o Código Civil, o Código Econômico e o Código do Comércio Internacional.
A responsabilidade decorrente de delitos civis é considerada, na teoria do direito tcheco, em
princípio e funcionalmente uniforme, e a legislação se fundamenta na seguinte concepção: não há
distinção básica entre a responsabilidade legal e a responsabilidade de obrigação ou contratual.
Finalmente, é imprescindível que se assinale a proposição de Bourel, que consideramos, como
foi dito, a grande figura nesse processo de transformação doutrinária e prática dos critérios de
conexões, na indicação do direito aplicável às relações jurídicas decorrentes de obrigações não
contratuais.
Segundo o mencionado autor, a substituição do princípio rígido e abstrato da lei local por outra
fórmula mais branda e mais extensa, tal como a lex causae e a proper law of tort, não deve significar o
abandono puro e simples dos sistemas predominantes, nem a ruptura definitiva com a doutrina
tradicional e a jurisprudência até aqui soberana, mas, ao contrário, tenta demonstrar que as duas
tendências, a antiga e a nova, que atualmente se manifestam no direito internacional privado das
obrigações extracontratuais, "se completam harmoniosamente e permitem assim dar ao problema do
conflito de leis uma solução regional".
24.10. Tarefa do julgador
A primeira tarefa que se impõe ao julgador consiste em determinar a lei aplicável, ou seja, o
princípio básico do direito de conflitos. A esse respeito é razoável atribuir competência à lei local, em
conformidade com a posição da doutrina e da jurisprudência dominantes. A razão de ser dessa
competência é o fato de que a aplicação da lei local às obrigações extracontratuais implica a
determinação da circunstância de conexão ela mesma, ou seja, o lugar do delito ou do quase-contrato.
Considera-se, assim, ter errado a doutrina clássica, precisamente, ao negligenciar esse novo aspecto
do problema, propondo, "segundo método puramente mecânico, conectar o delito e o quase-contrato ao
lu-
gar do cometimento". Por isso, apoiável a doutrina moderna pelo mérito de ter sublinhado os
inconvenientes de tal procedimento e de orientar-se para soluções mais atenuadas. Daí resulta que a
principal tarefa do internacionalista privatista, nesse particular, será a de pesquisar em que medida as
novas teorias podem conciliarse, no plano da localização das obrigações extracontratuais, com os
princípios que servem de fundamento à regra tradicional da lei local.
São, por tais motivos, as considerações extraídas da análise técnica da noção de obrigações
extracontratuais que podem justificar a identificação do elemento de conexão mais apropriado.
Destarte, o pressuposto é de que obrigação extracontratual é geralmente definida como obrigação
legal, isto é, uma obrigação que tem sua fonte num fato jurídico, delito ou quase-contrato, que o
legislador sanciona imperativamente, sem que as partes tenham querido realmente obrigar-se. Essa
definição atrai naturalmente, sobre o plano do direito internacional privado, a aplicação do sistema
jurídico competente para reger o fato gerador da obrigação, de outro modo dito, da lei local. De tal
definição resultam a autonomia e unidade da conexão das obrigações extracontratuais.
Todavia, a conexão autônoma das obrigações contratuais é repelida pelas teses modernas, e
Bourel apóia esse ponto de vista, mostrando que, antes de mais nada, em matéria delitual deve-se
afastar o princípio da conexão indireta "da lei da relação jurídica subjacente", pois nem sempre é
evidente o interesse que se prende a um regulamento simples e rápido do conflito, ocorrendo
freqüentemente que o delito pode constituir atentado a relações tão variadas como as relações de
família, contratuais ou reais, as quais poderão levar a uma acumulação de conexões, fonte de
insegurança para os litigantes e de dificuldades para o juiz.
Por outro lado, toda atividade delitual não se exerce necessariamente no quadro de relações
jurídicas preexistentes. Em inúmeras hipóteses, não existe no momento do cometimento do delito
nenhum nexo entre a vítima e o autor do dano. Disso resulta que o princípio da conexão indireta não
pode servir de base para um regulamento de conjunto do problema de conflito de leis em matéria de
delitos.
Pronunciando-se pelo abrandamento da noção do lugar do delito ou do quase-contrato, Bourel
refere-se à doutrina de Rinder
para acompanhá-la em suas linhas mestras, isto é, admitindo que o fato jurídico não pode ser visto em
si mesmo, objetivamente, mas em relação ao meio social no qual ele se encontra radicado. "Desde que
esse meio coincida com o lugar do ato delituoso, o problema não oferece qualquer dificuldade; o delito
deve ser vinculado ao lugar onde se manifestam exteriormente seus elementos. Se, porém, a atividade
delitual é 'o prolongamento (Auslaufe~ ou a irradiação (Aussfrahlung) de um meio que está submetido a
uma outra legislação que não a do lugar do cometimento', dever-se-á considerar o delito como se tendo
produzido não no país onde seus elementos são transpostos materialmente, mas naquele ao qual ele
se liga do ponto de vista sociológico. Dito de outra maneira, convém substituir a noção rígida e abstrata
do lugar da prática do delito pela do 'meio social no qual o fato se encontra enraizado' (soziale Umwelt
in der die Tat eingebettet ist)."
Aceitando o mesmo critério de localização para os quasecontratos, Bourel e Binder consolidam
com seus argumentos a nova versão metódica para superação do sistema tradicional, ainda sustentado
por grandes nomes, como, por exemplo, Batiffol, que não aceita como válidas as justificações
apresentadas.
24.11. Exame intrínseco do problema
Limitamo-nos até aqui aos enunciados doutrinários. Passaremos agora ao exame intrínseco do
problema, com a intenção de compor os dados mais significativos para o entendimento suficiente dessa
importante matéria.
As recentes tendências doutrinárias apontadas demonstram suficientemente que a subordinação
dos fatos delituais a este ou aquele direito não brota de esquemas apoiados em mero formalismo
lógico, mas ficou patente a necessidade de extrair dos conceitos as soluções mais adequadas de
localização de direito aplicável. Daí a importância de se retomar o problema a partir do exame dos
elementos constitutivos das obrigações nascidas das situações de fato, pois nessas noções iremos
caracterizar algumas peculiaridades da responsabilidade delitual no plano dos conflitos legais.
O estudo dos princípios gerais da responsabilidade oriunda de situações de fato ou de questões
relativas ao fundamento dos limites ao ressarcimento do dano permaneceu por longo tempo no plano
doutrinário e científico, pouco aprofundado. Como vimos, de curto tempo para cá verifica-se uma
retomada dos estudos nesse campo, não obstante a antigüidade da maioria das legislações, algumas
em processo de inovação, existindo, ainda, grandes distâncias a superar no acompanhamento das
radicais e profundas mudanças socioeconômicas.
Um dos aspectos consideráveis a assinalar é que freqüentemente os autores cometem o
equívoco de conceber como condição essencial do ato lícito, por exemplo, a produção de um dano e
negar sua existência se ninguém sofreu prejuízo. É o caso de Stolfi, para quem, produzido um dano
material ou moral, direto ou indireto, tal será o pressuposto do ato ilícito, contestado nesse particular
pela opinião abalizada de Planiol, que entende não se poder considerar o resultado danoso como parte
essencial da definição ou caracterização do ato ilícito, porque o dano é um resultado possível, porém
não constante da falta, porquanto há culpa sem dano como dano sem culpa.
Esse aspecto híbrido do direito da responsabilidade deve preocupar segundo razões técnicas,
sem que se possa, contudo, deixar de reconhecer a existência de dois elementos formadores da
obrigação delitual: o ato ilícito e o prejuízo.
Na opinião de Chironi, duas são as fases de todo ato ilícito: a primeira que lhe dá o fato ilícito,
constituído em seus dois elementos de injúria subjetiva e objetiva e que se completa com a
responsabilidade; a segunda, que nasce com esta e termina com o ressarcimento, o qual se determina
pela existência verdadeira do dano. As duas fases se sucedem e a segunda segue a primeira, no
sentido de que é absolutamente sua causa; por isso há ato ilícito sem dano, não se concebendo,
porém, ressarcimento sem dano.
Desenvolvidos desse modo os termos da definição, admitindo, como é certo, a causa da
obrigação de reparar o dano emergente da mesma, deve-se destacar como pretendemos evidenciar, no
conceito oferecido de obrigações não contratuais, a necessidade de que concorra a violação de uma
regra de direito, seja o elemento objetivo, expresso na imputabilidade do agente em vir-
tude de seu dolo ou culpa, seja o elemento subjetivo, dando por estabelecido que o delito é fonte
imediata da responsabilidade civil.
Pensamos que os elementos constitutivos do fato delitual exercem força correlativa como causa
de reparação, pois não têm sido poucas as decisões dos tribunais no sentido de estabelecer que o ato
culposo é sujeito a valorações e se insere no regime atual da responsabilidade civil como condição
equivalente à da determinação do prejuízo.
Acompanhamos, ainda nesse passo, Bourel, aceitando que de qualquer maneira o prejuízo,
apesar de ser tido como elemento essencial de conexão da obrigação delitual no direito internacional
privado, deve ser recusado, uma vez que "as responsabilidades sem culpa tendem a multiplicar-se com
o aparecimento de técnicas novas e os delitos intencionais não constituem mais uma parte importante
do direito de responsabilidade e conferem ao ato culposo um papel que pode parecer a esse respeito
essencial".
A conclusão vital resultante dessa observação se reflete fortemente no campo do direito
internacional privado, traduzido na hipótese de que um ato, apesar de atrair um direito à reparação ao
lugar de suas conseqüências danosas, não seria considerado como delito se fosse lícito no lugar do
cometimento. Adverte, por isso, Bourel, que "a localização puramente fortuita da culpa e do dano, em
países diferentes, não deve fazer esquecer que o delito constitui, do ponto de vista jurídico, uma
unidade cujos elementos, bem assim o ato gerador como o prejuízo, devem ser conservados como
critérios de conexão do delito".
Sabemos, outrossim, que é doutrina prevalecente na França, Itália, América Latina e entre nós a
de que a base do sistema da responsabilidade civil tem o seu fundamento na culpa. Mas se deve
advertir que para inúmeras situações a jurisprudência teve de fazer concessões à realidade,
necessitando buscar a justificação da responsabilidade extracontratual em outros princípios, de sorte
que há uma adequação entre o sistema tradicional e as novas exigências da vida social.
Analisados os campos nos quais se desenvolve o problema, um mais extenso e fecundo, o da
responsabilidade, e outro mais reduzido, porém igualmente pródigo em conseqüência, o da obrigação
de indenizar sem culpa provada ou presumida, verificamos
que no primeiro domina a idéia de culpa, entendida como erro de conduta, como comportamento
reprovável, que obriga o autor do ato danoso a reparar suas conseqüências, por leve que seja a culpa;
e, no segundo, prevalece, como caráter complementar daquele, a noção objetiva do dever de
ressarcimento, independente de toda idéia de culpa e cuja aplicação se limita aos únicos pressupostos
de danos produzidos como conseqüência da segurança dos membros da sociedade. E precisamente a
desigualdade legislativa e conceítual das obrigações delituais e suas conseqüências, nos
ordenamentos jurídicos diversos, impõe-nos o reexame do assunto, no que concerne ao fundamento do
problema em direito interno e aos elementos de conexão no direito internacional privado.
Partindo do pressuposto de que os quase-contratos devem incluir-se no quadro das obrigações
legais, o mesmo problema se oferece ao intérprete. Verdadeiramente, as várias obrigações legais,
como a inexistência do elemento volitivo, razão por que podemos abordar o tema no direito
internacional privado com a mesma visão metódica até aqui desenvolvida, visto que não parece próprio,
na esfera dos conflitos, falar-se dos quase-contratos; nesse plano, as conseqüências conceituais
despontam coincidentes com a responsabilidade decorrente do ato ilícito.
Isto posto, embora não se tenha discutido a existência, no direito internacional, da gestão de
negócios e do enriquecimento sem causa, indicou-se, pelo menos, o ângulo visual pelo qual essas duas
figuras devem ser consideradas.
Teoricamente, porém, as obrigações quase-contratuais surgem no plano espacial de conflitos
com as mesmas dificuldades de localização do direito aplicável, validando os pressupostos já
enunciados anteriormente. A jurisprudência internacional, embora esparsa, não dificulta a antevisão do
problema, porque tanto a gestão de negócios como o enriquecimento sem causa podem constituir
relações jurídicas de antecedentes num país e conseqüentes em outro.
O importante a consignar-se, neste passo, é que a divergência das correntes tradicionais e
modernas reside na preocupação de não se aceitar como boa a solução de ambigüidade dos direitos
aplicáveis - como admitem as primeiras -, por se considerar essencial a igualdade de tratamento para
as obrigações delituais
e quase-contratuais estruturalmente indissociáveis no seio do direito internacional das obrigações não
contratuais.
As teorias das obrigações não contratuais, cujas linhas mestras acabamos de desenhar,
permitem-nos discernir com mais precisão os dados do sistema e as respectivas partes que o
compõem, de modo a ajustá-las de acordo com as análises formuladas, onde encontraremos a chave
do problema. Nossa tarefa está, portanto, enunciada: descrever a gênese ideal da obrigação
extracontratual, seguindo as fases de sua especificação progressiva. E para isso deveremos buscar
algumas noções fundamentais do direito civil, mas com a finalidade de explicar com elas mais do que
por meio delas, pois a gênese da qual falamos não é derivação lógica das proposições nas quais o
pensamento se formula. É a projeção temporal da ordem de estrutura que condiciona e governa o
problema na sua profundidade, com o sentido de captar-lhe expressão adequada no campo espacial do
direito de conflitos de leis.
24.12. Vetor da obrigação extracontratual
Partimos, assim, do pressuposto de que o fenômeno jurídico constitui, sem dúvida, fenômeno
normativo o mais típico. Na palavra "direito", encontra-se implicada a idéia de regra (directum), e essa
imagem se acha em todas as línguas modernas. A palavra, derivada do baixo latim directum, calcada
no radical rectum, por sua vez oriundo da raiz reg, que reponta nas línguas românicas e anglo-
germânicas, do tronco comum indo-europeu (direito, diritto, derecho, droit, drept, recht, righo, evoca
sempre a idéia genérica de retidão. É direito o que é correto, quer dizer, conforme, adequado, ajustado
à regra - na ordem física e matemática antes (linha reta, ângulo reto, via direta...), na ordem moral e
psicológica em seguida (ação direita, caráter direito, intenção direita...).
O não-direito é o torto, quer dizer, o que não é conforme à regra, conservado na língua inglesa
para designar o delito e igualmente no francês, por exemplo, na expressão torts et griefs ou, ainda, na
expressão mais sugestiva redresser de torts.
Assim, a idéia de direito é, por definição, indissociável da idéia de norma.
Exatamente por isso, talvez, em matéria de responsabilidade, dependente de uma descritiva do
fato delituoso, o problema é
ainda rebelde a uma teoria pura do direito, em razão da força de certos reflexos ideológicos
profundamente enraizados, que falseiam a observação e criam os anacronismos dos instrumentos
conceituais utilizados, não mais correspondentes à realidade em si mesma, mas à realidade subjetiva
de quem se utiliza dos seus conceitos. Daí um certo mal-estar quando se trata de dar a essas noções
sonambúlicas conteúdo objetivo e claro. Como dizem Mazeaud e Tunc, "se há um assunto, que somos
tentados a abordar sem defini-lo, é bem aquele da responsabilidade civil".
Impõe-se, portanto, como método de trabalho, o retorno às próprias coisas, partindo
coerentemente da posição inicialmente tomada, segundo a qual os elementos diferenciadores das
obrigações não contratuais e contratuais são, respectivamente, a responsabilidade e a garantia.
O recurso à reflexão metodológica se explica como saneamento da matéria em questão,
restituindo aos problemas jurídicos colocados sua realidade normativa.
Consideramos o principal erro de abordagem do problema a preocupação doutrinária que faz
abstração da normatividade jurídica propriamente dita, como é exemplo a noção de culpa que,
simplesmente, é transgressão a uma regra ou a uma norma que deveria ser respeitada, quer dizer, o
desvio que apresenta o objeto em relação ao seu modelo, ou o valor negativo, resultante da aplicação
de uma norma ao seu objeto, projetado esse valor no mesmo objeto e assimilada a culpa ao
comportamento delituoso.
Nessa perspectiva, a transgressão de uma norma não aparece como culpa em si mesma, mas
como ocasião eventual de um delito, porquanto, quando se diz que as três condições componentes de
um delito são a existência de um dever de ação ou de abstenção, a violação desse dever e a
imputabilidade dessa infração, na realidade somente a terceira condição é suficiente para definir o ato
ilícito.
Tais considerações preliminares levam-nos desde logo a refletir o tema único das obrigações
extracontratuais, simplesmente como a não-conformidade de um fato a uma norma. Inexiste, nessa
hipótese, qualquer elemento psicológico a interferir no mecanismo do julgamento.
A conclusão significativa que oferecemos se prende à seguinte proposição: as obrigações legais
e quase-contratuais são, com as delituais e quase-delituais, constitutivas de uma mesma estrutura de
vínculos que se forma sem convenção, isto é, o regime da responsabilidade é abrangente de todas
aquelas situações, ao contrário do que estabelecem normalmente os direitos internos comuns.
A tradição jurídica compreende a culpa como fundamento da responsabilidade. Até os últimos
anos, a teoria considerava que, logicamente, a culpa não poderia ser senão fundamento de toda
responsabilidade. Um debate abriu-se, assim, entre partidários da responsabilidade por culpa e da
responsabilidade objetiva.
Antes de mais nada se constata que a responsabilidade, por definição, é a obrigação de reparar
o dano causado a outrem, repousando, portanto, sobre a idéia de prejuízo, o qual se integra no próprio
conceito de responsabilidade. Não se pode conceber uma obrigação de reparar sem dano. O prejuízo
se encontra no cerne de toda responsabilidade, seja ela moral ou jurídica, civil ou penal. Essa noção,
porém, não elucida em sua essência a questão, principalmente se quisermos observá-la no contexto
genérico do direito internacional, porquanto, se há um assunto que depende de normas
especificamente internacionais, este é o da responsabilidade decorrente da obrigação não contratual.
Retomando, pois, o fio lógico do tema, deveríamos salientar que, mais do que considerar a culpa
como fundamento da responsabilidade, seria apropriado apontá-la como fundamento de atribuição de
uma obrigação de reparar.
Ora, o fundamento da responsabilidade e o fundamento da designação do responsável são duas
questões distintas e que não devem ser confundidas. O fato da responsabilidade tem certa
independência em relação ao fato da sanção. Tem realidade própria e deve ter leis próprias. A
designação do responsável não está logicamente implicada na noção do crime e da respectiva sanção.
Uma coisa é o porquê da reparação e outra o como.
24.13. A norma e suas transgressões
Binding, examinando o problema da norma e suas transgressões, escrevia que o direito e o ato
ilícito são uma realidade
objetiva. No mesmo sentido, Levi sustentava na Itália que a responsabilidade civil, responsabilidade
patrimonial e não pessoal, é uma responsabilidade objetiva e não subjetiva. Do mesmo modo pensa
Dorado Montero ao assinalar que a responsabilidade civil por causa de comportamento injusto só se
funda no chamado aspecto exterior e material deste, sem qualquer conexão com a causalidade moral.
Basta que haja dano causado contra direito para que a responsabilidade ou obrigação civil surja.
Este o significado conceitual que adotamos, como único possível a justificar no direito
internacional privado o relacionamento imprescindível dos direitos locais, denominado por Binder de
raízes sociais da responsabilidade.
A opinião de Bourel não é discrepante ao constatar que a análise das diferentes hipóteses de
responsabilidades mostra, com efeito, que o fato delitual raramente se apresenta no estado isolado.
Mais freqüentemente ele se produz no quadro de relações preexistentes de ordem familiar, real,
contratual ou exercido depois de uma sucessão.,
Afirma, então, Bourel que uma conexão secundária de delitos permitiria melhor adaptação da
solução de conflito à variedade e à complexidade de circunstâncias nas quais se colocam os problemas
da responsabilidade. E acrescenta: "Neste sentido, a lei da relação subjacente pareceu preferível à lex
loci delicti, lei que é, na espécie, infinitamente variada, seja a lex loci contractus, seja a lex rei sitae, seja
mesmo a lei nacional ou domiciliar das partes".
Como advertia Kelsen, da mesma maneira que tudo o que o rei Midas tocava se transformava
em ouro, todo objeto ao qual o direito se aplica adquire existência jurídica. Assim, logicamente, o ato
jurídico se define como ato que forma o conteúdo de uma regulamentação jurídica, a qual se constitui
em modelo. Entre esses modelos jurídicos, podem existir os modelos de atos, de fatos humanos, que
consistem em colocar as normas jurídicas, em editar regras de direito: normas jurídicas podem produzir
outras normas jurídicas, da mesma maneira que existem máquinas de fazer máquinas. São geralmente
esses modelos particulares que se designam com a expressão de "atos jurídicos", que para evitar
equívocos chamaremos de "atos jurídicos normativos".
24.14. Atos jurídicos normativos
Ora, o fato jurídico ao qual se compara o ato jurídico normativo, porque ele mesmo produzirá os
efeitos de direito, é um ato cuja superveniência fica condicionada ao surgimento de um certo fato.
Suponhamos, por exemplo, a norma jurídica N tendo um conteúdo do tipo seguinte: desde que os
indivíduos A fazem tal coisa, outra coisa B pode ou deve produzir-se. Se dizemos que B é o efeito do
ato de A, ou que o ato de A é a causa de B, tal não é senão maneira de descrever a relação que a
norma jurídica N estabeleceu entre o ato de A e o de B; tal não é, pois, senão a maneira de descrever o
conteúdo dessa norma, o modo pelo qual ela funciona. Não é certamente o ato de A que produz B, ou
que produz o direito ou a obrigação de sobrevir para B: se B pode, ou deve, produzir-se, desde que A
faça tal coisa, é porque a norma jurídica N estabeleceu uma relação entre o ato de A e B, é porque essa
norma jurídica constitui um modelo no qual B pode ou deve aparecer, desde que tal ato de A se
produziu por si mesmo.
Verifica-se, na simbologia do exemplo acima, que é uma imagem muito enganadora dizer que o
fato jurídico produz efeitos de direito, que ele é um fato gerador de direitos ou de obrigações, à maneira
pela qual o ato normativo é ele próprio produtor ou gerador de direitos ou de obrigações.
Exatamente essa assimilação abusiva é que nos leva a distinguir tradicionalmente entre as
fontes do direito: leis, contratos, quase-contratos, delitos, quase-delitos, como se um delito gerasse
obrigações (obrigações de reparar) ou direitos (direitos à reparação), do mesmo modo que a lei ou o
contrato geram eles próprios direitos e obrigações. A tendência é, freqüentemente, confundir ordem
jurídica, quer dizer, um conjunto de normas jurídicas, e ordenamento, jurídico, que seria, ele próprio, o
conjunto de direitos e obrigações existentes num dado momento, numa dada sociedade.
Talvez o caminho mais intrincado a seguir no processo da aplicabilidade do direito relativo às
obrigações não contratuais seja aquele que nos leva às descrições classificatórias dos fatos jurídicos,
ou, como diria Gama e Silva, definindo as dificuldades: "As situações de fato devem ser qualificadas
mediante o exame de
todos os sistemas jurídicos, que a complexidade daquelas revela ao juiz como teoricamente aplicáveis,
inclusive sua própria lei. Deste processo se incumbe o juiz, que deverá obedecer aos cãnones lógicos
da observação, para a fixação da verdade científica, como em outra qualquer ciência".
A tarefa preconizada por Gama e Silva, embora verdadeira como enunciado, não se concretiza
contra a simples disposição de executá-la, servindo como fecho de opinião a afirmação de Isabel
Collaço de que "toda a qualificação supõe a prévia interpretação da categoria legal a que vai
reconduzir-se o objeto a qualificar, mas envolve, para além disto, a caracterização desse objeto, em
ordem a decidir finalmente da possibilidade da sua subsunção no conceito em causa".
24.15. Domínio das qualificações
Explica-se, pois, por que o domínio das qualificações é um dos mais movimentados do direito.
Certamente não cobre todo o campo da vida jurídica, mas é um dos seus aspectos fundamentais.
Todavia, não chegaremos a afirmar que a qualificação se constitui num diagnóstico necessário, como o
fazem inúmeros autores, porquanto estaríamos admitindo que o direito internacional privado é uma
simples patologia. O direito não pode ser reduzido a uma química. O trabalho do jurista repele tal
pressuposto. A legitimidade das análises jurídicas encontra seu limite no ponto preciso onde o
desenvolvimento faz sentir a presença nítida dos dados sociais revestidos de juridicidade. Por isso
preferimos tratar as qualificações como se fossem a gramática do direito. A qualificação, da mesma
forma que a linguagem, seria menos um instrumento de designação das coisas do que um meio de
comunicação entre os seres e, por extensão, entre os direitos.
Três categorias principais de qualificações intervêm na solução de conflitos de leis em matéria de
obrigações extracontratuais: as qualificações ditas primárias, as qualificações chamadas secundárias e
as qualificações intermediárias.
Na primeira hipótese as qualificações são necessárias como critério de determinação abstrata da
lei aplicável e também desempenham papel instrumental classificativo das competências legislativas,
sejam as correspondentes à lei local, sejam as denominadas competências excepcionais, quando
ocorre uma lacuna
de conexão. Nesse plano a qualificação primária constituiria pressuposto de elaboração legislativa e ao
mesmo tempo teria por objeto definir a própria relação de direito, para submetê-la a esta ou àquela
regra de conflito. Essas duas primeiras espécies de qualificações primárias são verdadeiras
qualificações; delas depende a aplicação de uma lei estrangeira e, a este título, devem elas submeter-
se à lex fori, conforme os princípios geralmente aceitos a esse respeito. As "qualificações propriamente
ditas" para se distinguirem das outras qualificações não submetidas à lex fori.
A segunda hipótese versa sobre qualificações necessárias não mais à elaboração ou à aplicação
da regra de conflito, mas à lei reconhecida competente em razão dessa regra. Chama-se de
qualificações secundárias, porque, posteriormente à determinação teórica da lei aplicável, elas não
intervêm senão para determinar o alcance prático. Trata-se, por exemplo, de apreciar a capacidade
delitual de uma pessoa, ou definir a noção de culpa. Aqui a qualificação não comanda a aplicação da lei
estrangeira; ela é uma simples condição de exercício da lei competente e a esse título deve ser
submetida em matéria de obrigações extracontratuais à lei local.
A terceira e última hipótese prende-se ao caso de existir uma pluralidade de estatutos de
conexão para determinar o lugar do delito ou do quase-contrato. Este seria um plano intermediário entre
as "qualificações propriamente ditas" ou primárias e as qualificações secundárias, no sentido de que,
posteriormente à determinação teórica da lei aplicável, ela se torna prévia à sua determinação prática.
Por seu objeto, entretanto, vincula-se ao primeiro grupo de qualificações; ela, com efeito, vem precisar
o alcance da regra de conflito, cujo conteúdo se verifica insuficientemente estabelecido, cada vez que
os elementos de conexão da obrigação são repartidos em diversos Estados. A determinação da lei local
aparece, assim, nessa hipótese, como uma qualificação prévia, mais à elaboração da regra de conflito
do que à aplicação da lei local; a esse título, a lex fori deve ser reconhecida competente. .
As considerações apresentadas, entretanto, revelam de certa maneira um paradoxo. Enquanto
os elementos de conexão sofrem impacto interpretativo das teorias mais recentes, no que tange às
qualificações existe, ainda, uma certa resistência às novas fórmulas; daí por que Bourel aceita o ponto
de vista de Niboyet, segundo o qual a determinação da lei local é uma questão de qua-
lificação, por ser questão prévia e necessária à atividade da regra francesa de conflitos de leis.
Isabel Magalhães Collaço acredita que o problema das qualificações exige a distinção entre
diversos tipos de regras de conflito. Num primeiro grupo, que chama de tipo I, conserva-se uma
situação típica da vida e declara-se aplicável uma ordem jurídica inteira, ou ao menos uma certa
categoria de preceitos de uma ordem determinada. Num segundo grupo de regras, denominadas tipo li,
declara-te aplicável a uma situação de fato da vida uma categoria determinada de regras jurídicas de
um direito indicado como competente, estando essas últimas regras caracterizadas essencialmente por
sua parte dispositiva típica. O terceiro grupo de normas (tipo III) assinala o objeto da conexão por meio
de um conceito que compreende uma categoria de relações jurídicas definidas pelo seu conteúdo
típico, ou uma questão jurídica parcial. Nesse particular faz expressa alusão a expressões tais como
"obrigações que nascem de contratos" ou "obrigações delituais" etc.
Todavia, a multiplicação do número de normas, dentro de um dado sistema de conflitos, impõe a
alteração dos critérios usuais de conceituação e uma delimitação do âmbito da conexão, revelando ser
mais prático recorrer-se à definição da lei local.
Isabel Collaço nos dá as linhas gerais de solução teórica, anotando que "quando o conceito que
designa o objeto ou o âmbito da conexão da norma de conflitos corresponde, no seu nomen juns, a um
instituto concreto regulado no direito material do foro, não será possível em regra imputar-lhe aquele
exato conteúdo que pertence ao seu homólogo no direito interno. Em casos deste tipo, revela-se à
plena ,luz a necessária autonomia das categqrias a que recorrem as normas de conflitos e logo surge o
problema de traçar os limites próprios que pertencem a essas categorias".
Resulta daí que o intérprete deverá recorrer a um processo lógico; quando se encontra diante de
uma relação a propósito da qual é evidente a concorrência de outras regras além da lex fori, isto 4,
quando há possibilidade de urn conflito de qualificações, deve-se tomar em consideração todas as leis
diferentes que poderiam por hipótese ser aplicadas à relação em questão; qualificar então esta última
relação sobre a base de cada uma dessas leis,
de modo a tornar possível determinar, por meio das diferentes qualificações, a qualificação de
competência, como diria Lea Merrigi.
Essa qualificação deverá servir para interpretar as regras de direito internacional privado, e, por
conseguinte, para determinar a lei competente reguladora da relação considerada. Ora, essa
qualificação, que poderia por exemplo ser a qualificação-tipo de que nos fala Lea Merrigi, constituiria a
síntese de todas elas como concepção universalizante, porquanto não há dúvida de que uma regra de
conflito é criada não para uma só legislação, mas para todas elas.
O problema da qualificação das obrigações extracontratuais reduzir-se-ia assim,
necessariamente, à questão de se determinar o fator de conexão, na medida em que a escolha do
direito aplicável dependesse de classificação. Essa superposição de duas ordens de conceitos, o
conceito de classificação adequado à regra de conexão e os conceitos jurídicos inerentes à situação
concreta, tem como conseqüência a possibilidade de escolher entre dois sistemas de classificação. A
primeira solução consiste em atribuir aos conceitos jurídicos estrangeiros a qualificação conveniente
aos conceitos do foro aplicáveis aos mesmos fatos; a segunda solução supõe que o sistema de
classificação utilizado pela regra de conexão é conhecido da lei estrangeira à qual pertencem os
conceitos jurídicos a qualificar, o que permite emprestar a essa lei o critério de classificação requerido
pela aplicação da regra de conexão.
24.16. Damnum injuria datum
O dano causado injustamente (damnum injuria datum) a coisas alheias, fora do contrato, foi
objeto no direito romano de disposições especiais a partir da Lei das Doze Tábuas. Todavia, nessa
antiqüíssima lei não se deu a unidade que requeria tal delito, mas certos casos foram regulados
isoladamente, de acordo com as necessidades agrícolas daqueles tempos. Eram os danos,
principalmente, causados por incêndios das casas e das colheitas, a devastação de pastos de outras
pessoas etc. Famoso plebiscito, provavelmente ocorrido no ano 467 de Roma, devido ao tribuno Aquilio
(Lex Aquilia de damno), coordenou essa matéria jurídica, sistematizando-a em três capítulos.
No primeiro capítulo, pune-se duramente o autor da morte de um escravo ou de animais
quadrúpedes alheios (quadrupedes pecudes), devendo o culpado pagar o preço mais alto dessas
coisas durante o ano anterior ao delito.
O segundo capítulo refere-se a uma instituição caída em desuso no período clássico, a
adstipulatio.
No último capítulo, sancionam-se os danos que, sem direito, são causados a toda classe de
coisas alheias, seja por incêndio, fratura, ou por qualquer outro modo. Como pena, impunha-se seu
preço máximo no mês anterior.
Para poder exercitar, com êxito, a actio legis Aquiliae, vários requisitos eram necessários, os
quais foram depois interpretados pela jurisprudência, que ia aclarando e ampliando o seu sentido
originário. Em primeiro lugar, devia existir um dano real, causado injustamente. O elemento
antijuridicidade (injuria) é fundamental, pois, se alguém causar dano no exercício do direito, não é
responsável~ Imputam-se-lhe não somente os atos dolosos, mas também todo gênero de culpa
apreciada estritamente, visto que segundo as fontes, in lege Aquilia et levíssima culpa venit. E, como
não podemos cometer injuria, a quem nada tenha feito, o damnum injuria datum supõe sempre fato
positivo, se bem que alguns autores assinalem passagem segundo a qual a Lex Aquilia atingiria
também aquele que simplesmente tivesse concorrido indiretamente para o fato danoso./ Esses fatores
de caráter objetivo se expressam nos capítulos dN•Lex Aquilia da seguinte maneira: occidere, urere,
frangere, rumpere. Isso supõe, por parte do autor do delito, uma ação material e imediata sobre o objeto
danificado. Em geral, pode se afirmar que a Lex Aquilia excluía a culpa por omissão, já que as relações
extracontratuais não podiam nascer do dever jurídico de atuar; logo, o non facere não podia ser fonte
de responsabilidade. Ainda que, em algumas fontes, fala-se na responsabilidade por omissão, ela deve
estar vinculada a um fato positivo anterior, que tenha sido a sua causa determinante.
Concedeu-se a actio legis Aquiliae, a princípio, somente ao proprietário quiritário que dela se
valia contra os que causavam danos e seus cúmplices in solidum, porém os herdeiros do culpado
respondiam até a ascendência pelo enriquecimento que lhes houvesse proporcionado o delito.
As bases estabelecidas pela Lex Aquilia ampliaram-se numa série de medidas posteriores,
chegando à formulação de princípios cada vez mais gerais em relação ao dano pelo fato das coisas.
Multiplicaram-se as pessoas que podiam aproveitar-se da Lex Aquilia, pois do proprietário se passou ao
possuidor de boa-fé, ao usufrutuário, ao usuário e ao credor pignoratício, ao conceder a estes uma actio
legis Aquiliae utilis.
Atendo-se ao espírito da lei, estabeleceu-se por interpretação que não somente se era
responsável por agir diretamente, causando o dano corpore, mas também de modo indireto ou mediato,
sempre que existisse culpa, como, por exemplo, se um animal preso tivesse morrido por esse motivo,
ou se, assustado, despencasse no precipício. Tais danos ocorriam sem contato material, damnum
corpori sed nec corpore datum.
Afastando-se mais da letra da Lex Aquilia, o pretor concede uma actio in factum, em casos em
que não existe propriamente uma lesão real por destruição ou negligência, mas que causa um prejuízo
(nec corpore, nec corpon), como quando se solta um animal ou se dá liberdade a um escravo alheio,
que foge.
Não se pode negar o peso doutrinário da classificação romana das obrigações ex contractu e ex
malefitio, principalmente nos sistemas latinos de direito, às quais se acrescem as que nascem ex variis
causarum figuris, desdobradas pelos glosadores medievais em quasi ex contractu e quasi ex delicto,
ponto de partida das duas artificiosas figuras jurídicas do quasecontrato e quasedelito.
A conotação técnica da chamada culpa aquiliana não se alterou fundamentalmente no direito
moderno, mas se desenvolveu sadiamente num processo de amplificação, de tal modo que o seu
conceito adquiriu certa universalidade na responsabílidade com que todo aquele que violar direito alheio
terá de arcar, mediante reação do sistema objetivo criado para defesa do direito ofendido, reação que
se revela e manifesta com a ação de responsabilidade e ao mesmo tempo de ressarcimento contra o
autor da injuria.
O problema ocupa lugar de realce na literatura jurídica moderna, extensivo ao plano do direito
internacional, pois são as premissas definitórias que certamente permitem o esclarecimento das
incertezas que a todo momento ocorrem quando se trata de fixar critérios de aplicação de direito,
critérios esses que, na vida presente, não podem prescindir de uma orientação metódica genérica,
como fórmula de solução ampla e satisfatória aos princípios básicos do direito, o que leva Jorge Giorgi
a afirmar que "a
culpa em sentido geral é qualquer violação de uma obrigação jurídica, inclusive a violação dolosa".
Sustentamos sempre, a despeito das respeitáveis opiniões em contrário, que a responsabilidade
é conseqüência da violação de um direito não estabelecido por ajuste volitivo, constituindo um plano
único de base com as chamadas, amplamente, obrigações não contratuais.
Vemos, por conseguinte, no conceito de culpa aquiliana a justificativa desse ponto de vista, pois
qualquer violação ao direito alheio, cometida fora da relação contratual, traz como efeito a obrigação de
ressarcir ou reparar o prejuízo causado.
Leonardo Colombo, em recente e aprofundado estudo, estabelece quatro requisitos
fundamentais para que surja a responsabilidade do agente: 1°-) fato do agente (positivo ou negativo);
2°) violação do direito alheio; 3°-) prejuízo efetivo; 4°-) nexo causal entre o ato e a conseqüência.
Segundo a opinião de Colombo, a análise desses requisitos é o único meio de facilitar cabal
compreensão da falta extracontratual nas relações que apresenta com a teoria geral da prestação da
culpa, dissipando as possíveis tergiversações dos princípios essenciais que regem a matéria. E,
perguntando: "Que deve alcançar-se com o estudo dos elementos necessários para que surja a
responsabilidade aquiliana?", responde: "Duas coisas no nosso modo de ver: especificar detida e
explicitamente sua mecânica, e descobrir com o escalpelo da análise profunda, como se revela e como
provoca conseqüências jurídicas. Assim sendo, longe de estar no interesse do investigador reduzir ao
mínimo as condições que devem envolver a atividade do agente para que ela possa qualificar-se de
culpável e ser-lhe imputada, o acertado é esmiuçar tais condições, a fim de compreender científica e
racionalmente suas linhas gerais e cada uma de suas fibras íntimas. Fazendo comparação, diremos
que não basta afirmar que o braço humano, por exemplo, se compõe de epiderme, músculos e ossos,
quando a anatomia ensina que cada uma dessas partes constitutivas se compõe por sua vez de outras
sumamente importantes". E de novo pergunta: "Deve considerar-se satisfeito o espírito ao assegurar
que a responsabilidade extracontratual é a resultante da culpa e do ato ilícito, sabendo, como se sabe,
que a primeira apreciada isoladamente nada significa na falta da imputabilidade, e o segundo é a
síntese de uma série de extremos
(atividade do agente, violação de uma norma legal, dano), dos quais não se pode prescindir?".
O fio condutor dessas posições e as mais modernas, condizentes com os pressupostos de
Colombo, espelham-se nitidamente na doutrina internacionalista expressa nos trabalhos inovadores de
Binder na Alemanha, Bourel na França, Stroemholm na Suécia e Delachaux na Suíça, sem mencionar
Morris, cujo método foge aos cânones comuns.
24.17. Fatos delituais como situações complexas
São as características do material delitual que impõem a tipificação das regras de conflitos de
modo a permitir maior certeza e segurança do direito internacional privado.
O fato delitual tem reflexos significativos no campo do direito internacional privado, pois a partir
de sua qualificação é que a norma de conflitos adquire expressão atuante.
O fato não é acontecimento isolado, autônomo, válido em si mesmo. O delito é sempre resultante
de um procedimento (ativo ou passivo). A expressão "todos os danos devem ser reparados por aqueles
que os causaram" envolve uma situação complexa de variada estrutura. Ainda que nenhuma culpa
fosse exigida como condição ou fundamento da atribuição a alguém da obrigação de reparar, não se
poderia dispensar um fator qualquer no processo de referibilidade do fato delitual, como condição do
mecanismo. O prejuízo pode não ter como efeito uma realidade objetiva, pois é a significação dada a
um fato por referência a um modelo ao qual esse fato se acha ou não conforme, que prevalece para a
determinação de sua natureza jurídica.
Prejuízo é qualquer coisa que não se devia ter realizado ou produzido. É nesse sentido que a
ação lesiva de direito é experimentada intuitivamente como elemento irredutível da responsabilidade. E
o que os autores procuram no fundo exprimir pela idéia de culpa do responsável é, na realidade, a
própria noção de prejuízo.
Como autorizadamente salienta Carbonnier, "exagera-se, talvez, a autonomia entre o sistema da
culpa e os sistemas que a negam".
Nenhum sistema do risco, realmente, haveria se não estivesse amparado por uma idéia de culpa
difusa, uma idéia dos erros cometidos, da qual se tem íntima convicção, se bem que não se possa fazer
a prova e nem sempre identificar o culpado.
Certamente o julgamento de não-conformidade que possibilita o aparecimento do prejuízo é, em
ampla medida, deixado à discrição daquele que invoca o prejuízo, quer dizer, o litigante em ação de
perdas e danos, por exemplo. Nessa dimensão, não existe regulamentação jurídica do prejuízo,
estando cada um livre para julgar o que lhe acontece como sendo ou não um dano, ou uma injuria,
como referência às normas puramente subjetivas.
Não se pode, portanto, pensar no fato delitual a não ser como situação complexa, visto que o
relacionamento que daí surge coloca inevitavelmente numa mesma composição os elementos
normativos, fáticos e valorativos.
Apesar de existir certa regulamentação jurídica do prejuízo, que não aparece em muitos
argumentos dos objetivistas, o que significa para tal indivíduo prejuízo não é necessariamente prejuízo
com relação às normas jurídicas. Convém desde logo, e em toda extensão, onde tal regulamentação
jurídica existe, perguntar quais são as condições jurídicas que possibilitam o' vínculo normativo, isto é,
a conjugação do "legítimo interesse juridicamente protegido" e o "dano jurídico" desse interesse, v.g.,
exigência do caráter "verdadeiro", "atual" etc. do prejuízo alegado.
Cabe às normas jurídicas responder à investigação da ciência do direito, dar as qualificações
necessárias que permitam julgar um indivíduo "vítima", da mesma maneira que outras normas permitem
julgar outro indivíduo "responsável".
Em outros termos, diremos que não são indispensáveis essas alusões às coordenadas
metodológicas para que se compreenda bem a autonomia da concreta posição de um problema jurídico
e a sua íntima relação com o caso concreto, pela qual unicamente aquele se postula concreto (com
uma intenção concreta) e este se revela jurídico (com uma intencionalidade jurídica).
Assim, o fato delitual na perspectiva do direito internacional privado se converte em pressuposto
axiomático-normativo, se bem entendemos a posição daqueles que não aceitam a força da lei como
fator suficiente em si mesmo na determinação do direito aplicável, mas sentem no pensamento
problemático material o esquema dicotômico quaesfio facti quaestio juris.
A relevância dessa conclusão desponta também na crítica de Bourel, ao mostrar que o direito
internacional privado tende a localizar as relações de direito através de uma correspectividade de seus
próprios elementos que se manifesta, principalmente, no ato culposo e no prejuízo que materializa o
delito, sendo esse o método interpretativo adotado por certos autores que pretendem fazer prevalecer o
lugar do dano sobre aquele onde o ato se efetiva ou o fato se consumou.
Por isso, o aspecto censurável dessa orientação é a abstração da variedade de hipóteses nas
quais se manifestam as atividades delituais. Há fatos delituais que se estendem em múltiplos territórios,
acarretando prejuízos variáveis, criando inúmeras dificuldades ao aplicador da norma jurídica na
escolha do direito aplicável, entre os lugares de realização do dano, que podem ser numerosos, como
nos crimes de imprensa e rádio.
A mesma dificuldade pode acontecer se o dano, em lugar de material ou corporal, for de ordem
moral, e, assim, a determinação do lugar do delito que melhor materializa a relação do direito não
permite uma escolha definitiva entre a lei do ato e aquela do prejuízo, devendo-se buscar a solução em
função das circunstâncias sem qualquer preferência a priori pelo lugar do evento ou o lugar do dano,
pois, aduzimos nós, o fato delitual é pela sua própria natureza uma situação complexa, na qual se
inserem também as coordenadas do devedor (responsável), autor do ato ilícito e do credor ou
prejudicado (vítima). Convém, pois, articular, nesse conjunto de dados, os interesses das partes que
desempenham importante papel na determinação do direito aplicável.
O caráter internacional das situações analisadas permite visualizar a aplicação distributiva de
diferentes leis locais, sem qualquer arbitrariedade do ponto de vista jurídico, pois as diferentes parcelas
da atividade delitual constituem, com efeito, os aspectos diversos de inúmeros delitos inteiramente
distintos e nitidamente individualizados e que devem ser apreciados segundo as disposições de cada
um dos estatutos locais aos quais eles se vinculam.
24.18. Extensão da responsabilidade
-A A extensão da responsabilidade e a da reparação do dano têm sido importante temas de debate no
direito internacional pri-
vado, precisamente porque os fatos delituais são situações complexas, ou seja, põem em relação
múltiplos dados sob tutela de sistemas jurídicos diversificados.
As dimensões das obrigações extracontratuais podem variar em extensão e oportunidade, isto é,
tanto no que se refere à vítima direta do evento quanto às pessoas com direito a demandar reparação
por essa causa, pois, como sustenta Acuna Anzorena, se em ambos os pressupostos se admitisse, sem
mais nem menos, que a obrigação do responsável consiste em reparar todo o dano inferido a quem
quer que o sofra, poderia dar-se o caso de que a verdadeira vítima não seria o lesionado, mas sim o
lesionante, e não pelo que possa pesar nele como tortura moral o encargo de consciência, mas como
gravame patrimonial, pois, ao ter de enfrentar tais requerimentos, poderia ver-se na pobreza.
O assunto interessa intrinsecamente ao direito internacional privado, como já tivemos ocasião de
mencionar, apontando a regra do art. 38 do novo EGBGB, acompanhada no Brasil por Haroldo
Valladão, no seu Projeto do Código de Aplicação das Normas Jurídicas (art. 53), prevalecendo nessas
hipóteses as limitações do direito interno do obrigado. Todavia, tal restrição não parece facilitar a
solução do problema, mas, ao contrário, cria a dificuldade normal de se encontrar, segundo medidas
matemáticas, a extensão da indenização ou reparação.
De harmonia com essa opinião, encontramos no sistema civil alemão a distinção entre danos
patrimoniais e não patrimoniais, ou seja, danos imateriais, fazendo com que a espécie e o alcance da
reparação variem segundo a natureza do dano, fazendo sobressair a grande importância que o
princípio da causalidade reveste no campo da reparação por danos. Como assinala Fischer, na maior
parte dos casos, o dano não consiste apenas no prejuízo provocado pela lesão do bem jurídico
imediatamente atingido; quase sempre o acontecimento danoso vai mais longe, trazendo consigo novas
conseqüências.
Ademais, a complexidade do assunto aumenta se tivermos em conta que a responsabilidade do
indivíduo vai muito mais longe, não se restringindo a ato seu, ou à omissão de que tenha diretamente
resultado o evento. Responde ele por ações alheias, tanto de pessoas estranhas, às quais haja
atribuído funções, sem
as cautelas necessárias para exclusão da culpa, quanto de pessoas ou animais cujo procedimento seja
dever seu controlar.
A norma alemã, como se viu, não formula uma regra geral sobre o assunto; não declara de modo
explícito que a lei do lugar do delito se aplica às obrigações que dele dimanem.
Como salientam os comentadores, o legislador alemão, sem justificação possível, preferiu deixar
implicitamente reconhecida a competência da lex loci delicti em vez de fazê-lo em termos expressos.
Os limites da responsabilidade estabelecem necessária reciprocidade com as balizas da
reparação, pois a relação de antijuricidade pode servir para delimitar as conseqüências danosas de
uma determinada conduta.
Para Briz, "o juízo da antijuridicidade serve para qualificar as diversas condições ou
pressupostos que concorrem a um resultado, para estabelecer que somente serão antijurídicas aquelas
condições que infrinjam a finalidade protetora da norma que serve de base, no caso concreto, à
pretensão de indenização. De certo modo, o último fator da imputabilidade é a relação ou juízo de
antijuridicidade. Portanto, é preciso acrescentar esta característica delimitadora da antijuridicidade da
conduta à culpa ou criação de um risco e à causalidade de alguns danos".
Ilustra Briz sua afirmação comparando enunciativamente alguns Códigos Civis que dão relevo a
esses aspectos. Com exceção dos sistemas que adotam a chamada cláusula geral do Código francês,
as demais legislações "mencionam expressamente a nota da antijuridicidade da conduta como
característica necessária prévia à declaração da responsabilidade civil".
Argumentando contra a arbitrariedade na determinação dos limites da reparação, Caio Mário
mostra que, na indenização, envolve-se o prejuízo conseqüente, direta e imediatamente, do dano
causado, razão pela qual "cumpre estabelecer uma relação de causalidade entre a antijuridicidade da
ação e o dano causado. Não basta que o agente cometa um erro de conduta, e que o queixoso aponte
um prejuízo. Torna-se indispensável a sua interligação, de molde a apresentar-se ter havido o dano
porque o agente procedeu contra direito". E acrescenta:
"Uma vez verificados os pressupostos essenciais da determinação de um dever de reparação,
arma-se uma equação, em que se põe o montante da indenização, como correlato do bem lesado. O
que predomina nesta matéria é que a indenização do id quod interest não pode ser fonte de
enriquecimento, não se institui com o objetivo de proporcionar ao credor uma vantagem de lucro
capiendo, porém se subordina ontologicamente ao fundamento de restabelecer o equilíbrio rompido
pela prática do ato culposo, e destina-se a evitar o prejuízo de damno vitando. Numa palavra, a
indenização há de compreender a totalidade do dano, porém limitar-se a ele, exclusivamente."
"Indenizar o prejuízo nem é o mesmo que restaurar o objeto da prestação originária, nem implica
necessariamente na conversão dele no seu equivalente pecuniário. Às vezes sim. Outras vezes, um
não exclui o outro, o que se dá sempre que o credor pode perseguir a res debita e mais as perdas e
danos. Quando for possível, isto é, no caso de a prestação ainda ser viável, cabe ao credor persegui-Ia
e ao devedor executá-la, sem que lhes assista, em princípio, a conversão. Em tal caso, as perdas e
danos podem ser postuladas juntamente com a obrigação principal."
Uma coisa é certa: nenhum direito positivo poderá propor-se mais vasto escopo do que a cadeia
de causalidade que se apresenta como definitiva no passado. Nenhuma legislação pode darse ao
capricho de permitir ao responsável confiar na atenuação futura do dano, o que equivaleria a privar o
ofendido do seu direito de ser indenizado. Todavia, Fischer revela o seguinte exemplo: "Se o obrigado,
em virtude de empréstimo, a restituir uma coisa, é dela desapossado por culpa sua, não poderá eximir-
se de sua obrigação de indenizar o proprietário alegando a possibilidade, meramente abstrata, de a
coisa perdida voltar intacta, um outro dia, às mãos deste. Prevendo esta hipotética possibilidade, o
Código Civil alemão concede ao obrigado a indenizar o direito reconhecido pelo § 255. Se, em todo
caso, ele efetiva a indenização sem ter exercido esse direito e o proprietário recupera mais tarde a
coisa, sem detrimento algum do valor, pode propor a ação de não locupletamento à custa alheia que lhe
confere o § 812, se. I, al. 1 a., do Código Civil, e por meio dela reclamar a devolução do que haja pago;
pois é certo que, se a indenização satisfeita se revela desprovida de causa jurídica, logo os fatos
demonstram a inexistência do dano reparado".
Dessas considerações decorre a conclusão de que a indenização não pode ser mensurada pelo
grau da culpa do agente, mas pela extensão do prejuízo que, em conseqüência, pareceria ser o
elemento de conexão essencial da obrigação delitual no direito internacional privado. Mas não se pode
desconsiderar outras derivações no plano delitual, especialmente o desenvolvimento da teoria do risco
e, portanto, a responsabilidade sem culpa ao lado dos delitos intencionais, não sendo raro
encontrarmos decisões indenizando a vítima em função da gravidade da culpa e da extensão do
prejuízo.
As conseqüências no direito internacional privado se manifestam no sentido de que um ato,
apesar de atrair a tutela jurídica para o lugar das conseqüências danosas, não seria considerado delito
se lícito fosse no lugar da execução, pois a localização puramente fortuita da culpa e do dano, em
países diferentes, não permite esquecer que o delito constitui, do ponto de vista jurídico, uma unidade
onde todos os elementos, tanto o ato gerador como o prejuízo, devem ser conservados como critérios
de conexão do delito. O fundamento da responsabilidade e seu regime sublinham, assim, a importância
respectiva dos dois elementos constitutivos da obrigação delitual, culpa e prejuízo. As dificuldades de
opção entre um e outro desses elementos admitem pensar que a solução do conflito de leis deve tomar
em consideração os dois lugares de realização do delito; a aplicação cumulativa de leis do ato e do
prejuízo estariam, assim, plenamente conformes à exata análise da noção de responsabilidade.
A aplicação da lei no espaço, como em direito interno, depende de circunstâncias e seus efeitos,
os quais atingem tanto aqueles que são natos no país como aqueles que ali se encontram pelas mais
variadas razões, desde o turista até o residente transitório ou definitivo.
24.19. Forum delicti e Forum rei
Partindo do fato de que, segundo as noções gerais sobre a jurisdição, o forum delicti e o forum
rei são igualmente competentes em caso de delito, devemos inicialmente examinar qual dos dois
constitui a jurisdição primordial, não historicamente, visto que o forum rei é o mais antigo, mas, sendo
jurisdição mais normal, é, em conseqüência, dispensado de considerar outra lei que não a sua própria.
Existe a favor do forum delicti a particularidade de
que a parte lesada pode obter reparação mais rápida e fácil, sem ter de seguir o agente do ato danoso
em seu próprio país, ensejando que um dos principais objetos da lei seja mantido: o equilíbrio social e
de interesses dando justa reparação com o objetivo de manter íntegro o princípio da segurança e
certeza de direito. Todavia, as leis que versam sobre reparação de danos devem ser inspiradas em
motivos de justiça ou utilidade pública, e, se a lei pessoal do réu recusa o ressarcimento dos danos que
a lex loci delicti commissi admite, este experimentará uma surpresa, aparentemente justa, se não
pensamos no caso inverso. Tal raciocínio leva-nos a concluir que a lex fori e a lex loci commissi delicfi
devem estar de acordo para que um ato ou uma omissão possam ser considerados delituais. Já vimos
que sobre esse ponto não existe acordo entre os autores e que diversos são os sistemas existentes,
classificados por Bourel em dois grandes grupos: o sistema de opção e o sistema da acumulação.
Os adeptos da primeira corrente partem do princípio de que o delito deve ser localizado em
função do mais característico de seus dois elementos: o ato culposo e o prejuízo. A um deles é dada a
preferência que variará entre a lei do lugar do ato e a lei do lugar do prejuízo.
A segunda corrente, ao inverso da outra, localiza o delito em função de seu elemento, ato
gerador ou prejuízo, o mais característico, apoiando-se no entendimento de que "um delito é cometido
ao mesmo tempo no país onde uma pessoa age e naquele onde se produzem as conseqüências de seu
ato, havendo segundo esse prisma igual aptidão para reger a solução de conflitos, nos lugares do ato
do prejuízo, sem dar qualquer preferência a qualquer deles".
Duas são as teses: a da cumulação propriamente dita e a da cumulação eletiva. Aquela,
sustentada por Fedozzi e Jitta, consta de duas condições indispensáveis para empenhar a
responsabilidade de uma pessoa: primeiramente é preciso existir violação de uma obrigação legal; em
seguida, que o ato tenha causado um prejuízo. Deve-se nessas circunstâncias consultar ao mesmo
tempo a lei do país onde o ato foi cometido, para determinar as condições de responsabilidade, e a lei
do lugar do prejuízo, para estabelecer a existência e a extensão da reparação devida à vítima. A última
hipótese, a chamada cumulação eletiva, é objeto de constantes decisões na justiça alemã, para a qual
o
lugar do delito é cada lugar onde se realizou uma parte da atividade delitual. "O delito é assim
considerado como tendo sido cometido justamente no lugar onde agiu o próprio autor (Hand/ungsoro e
o lugar onde se produziram as conseqüências danosas de seu ato (Erfolgs ou Schadensor~."
Todavia, a pluralidade de concretizações do delito não implica pluralidade de legislações
competentes. O concurso de duas leis locais não significa que ambas validam a aplicação de suas
disposições cumulativamente, como na primeira hipótese, mas permite à vitima eleger uma delas, a
qual será adotada em sua integridade, isto é, quanto às condições e efeitos da responsabilidade. O
delito é assim submetido definitivamente a uma legislação única: a lei do lugar do ato ou a lei do lugar
do prejuízo".
Embora aparentemente semelhantes as duas posições, na verdade elas diferem entre si. A
primeira opta por um critério objetivo e a segunda se decide por um critério subjetivo, indicador da
solução mais vantajosa para a vítima.
O que já foi exposto até aqui autoriza a realçar a transcendência da relação causal como
temática das obrigações não contratuais no direito internacional privado.
24.20. Relação causal
Ainda aqui proliferam os sistemas e as doutrinas. Será mais coerente, porém, com as posições
anteriormente assumidas, examinar, do mesmo modo como faz Briz na esteira de Esser, a causalidade
como fundamento e a causalidade como complemento das obrigações extracontratuais.
Doutrinariamente, a causalidade é problema comum do direito penal e do direito civil, mais
importante, porém, neste último, isto porque, como assevera Briz, o resultado desempenha nas
relações civis papel fundamental, pois o dano é condição essencial da responsabilidade. Deve ela
constar de maneira concreta, enquanto a culpa aparece como noção abstrata.
Examinaremos brevemente a teoria da equivalência das condições e a da adequação, apoiados
ainda no extenso desenvolvimento que Briz faz do assunto.
Diz a teoria da equivalência que toda condição contribuinte de um resultado é causa. Esta é
inerente a cada uma das con-
dições, uma vez que "sem o concurso de todas o resultado não se teria produzido".
A crítica a essa teoria é de que ela se baseia somente na causalidade natural, deixando de lado
a causalidade das omissões, e ainda que "obriga a uma escolha entre as distintas causas, para excluir
aquelas que juridicamente carecem de relevância".
Por outro lado, a teoria da adequação se expressa na seguinte proposição de Esser: "A única
particularidade exigida pela causalidade no direito civil é uma adequação ao postulado da tipicidade ou
à aptidão geral da causa para a produção de conseqüências de uma dada classe", ou, nas palavras
interpretativas de Briz, "a questão que esta teoria coloca é determinar se a conduta do indivíduo é
geralmente apropriada para produzir um resultado da classe dada. A contestação somente pode ocorrer
antes de uma valoração objetiva, atendendo às circunstâncias do caso concreto. Exige-se, pois, certa
tipicidade no curso dos danos, ainda que não seja suscetível de ser identificada numas poucas figuras-
padrão de situações".
Sem tomar partido a favor desta ou daquela teoria, salientamos como primordial o fato de que o
nexo causal é indispensável para que a culpa extracontratual possa ter conseqüências para seu autor,
mas o prejuízo pode ser o resultante final de vários fatos imputáveis, total ou parcialmente, ao autor ou
autores dos mesmos. Tais circunstâncias tornam o problema bastante difícil. Planiol e Ripert sustentam
que na prática pode-se vacilar na determinação das causas de um acontecimento, -e o caráter causal
do ato pode, como todo elemento de fato, ser determinado por presunções e admitir-se a título de
probabilidade. Todos os fatos, porém, aos quais se reconhece a condição de antecedentes necessários
oferecem o mesmo caráter de necessidade; o mais remoto e distanciado, supondo que seja possível
remontar-se até suas origens, terá igual valor ao último.
Baseando suas conclusões no exame da jurisprudência francesa, Josserand mostra com acerto
que a responsabilidade não se exaure no conceito de culpa. Em três sentidos se estende o domínio da
responsabilidade: ato ilegal, ato ilícito e ato excessivo, este último correspondendo atualmente à teoria
do risco.
1°) O ato ilegal é o realizado sem direito, a injúria, no sentido romano da palavra, que importa,
por isso mesmo, em viola-
ção do direito de outrem. Esse ato reclama fatalmente uma sanção, porque ele é objetivamente
incorreto.
2°-) O ato ilícito é o que não se realiza em conformidade com a destinação do direito, com
espírito de instituição, resultando antes do desvio de uma faculdade subjetiva, falseada por seu titular.
Nesse caso, a responsabilidade do titular não decorre mais de circunstâncias objetivas, como a
transgressão dos limites de um direito, mas do mau impulso dado a esse direito. Tal ato é abusivo,
porque, sendo objetivamente correto, é subjetivamente incorreto.
3°) O ato excessivo, realizado em virtude de um direito e conformemente à sua direção, não é
nem ilícito, nem ilegal. Apesar disso, ele pode ser gerador de responsabilidade, se causa um dano
excessivo ou mesmo anormal. É o que ocorre quando uma bomba atômica experimental expande sua
radioatividade a outros lugares, prejudicando a saúde de uma população, ou quando as fagulhas de
uma locomotiva incendeiam os campos ou florestas marginais. São atos eminentemente danosos e,
pois, constitutivos de riscos. Aquele que cria tais riscos deve suportar-lhes a incidência.
Responsabilidade sem culpa e puramente objetiva.
O nexo causal do fato delitual é, portanto, de suma relevância para a determinação do direito
aplicável, seja este o lugar do ato ou o lugar de suas conseqüências. É através da caracterização da
causalidade que se fará a qualificação "como determinação precisa da natureza jurídica de uma
situação de fato que por um ou alguns de seus elementos se relaciona com dois ou mais sistemas
jurídicos".
O fato danoso é, pois, sempre e inevitavelmente a causa direta ou indireta, autorizadora do
ressarcimento, entendendo-se que o dano é o conjunto de repercussões desfavoráveis ou negativas de
um determinado fato, dito por isso mesmo danoso, imputável, com base num elemento de conexão
normativamente estabelecido, a um outro sujeito, ainda que não aquele que tenha ocasionado o fato.
Há, por conseguinte, uma relação necessária entre o fato danoso e o sujeito que por ele
responde, entre o próprio fato e o dano, entre todos esses elementos e a culpa.
Vê-se que uma relação de causa e efeito é condição precípua da responsabilidade.
Ficou bem anotado em nossa exposição anterior que os elementos constitutivos do ato ilícito ou
qualquer outro ato são a ação e o conteúdo ou evento. Entre esses dois elementos é indispensável o
nexo causal.
A causalidade deve, pois, subsistir como causalidade material, isto é, o conteúdo deve ligar-se
geneticamente ou como a sua causa eficiente ao externar-se a energia física de um sujeito, de tal modo
que sem essa exteriorização tal ato não teria realidade concreta.
Por outro lado, não se pode negar nessa relação uma causalidade psíquica, ou seja, aquele
externar-se consciente e voluntário da energia física.,
Essa complexa relação de causalidade geralmente é coincidente nos Códigos Civil e Penal e tem
levado os autores a apaixonantes controvérsias, mas, no fundo, não escapa do âmbito de certos
lugares comuns, v.g., a noção de que o pressuposto da imputabilidade, e da responsabilidade, como
sua conseqüência, é relação de causalidade eficiente, ou seja, um nexo imediato ou direto entre a ação
e o evento.
A amplitude da aplicação do direito ou direitos abrangidos na esfera espacial depende
primordialmente da extensão das relaçõês de causalidade nas obrigações extracontratuais, como
veremos no desenvolvimento do trabalho, ao examinarmos as situações particulares.
O sistema da lex loci delicti para delimitar as relações oriundas de fatos ilícitos não é
unanimemente acatado, recebendo em algumas legislações amparo atenuado. Nessa linha de conta
aparece o princípio da lex fori, a qual contrasta com sua antagonista, a lex loci. Tal princípio foi proposto
primitivamente por Waechter, acolhendo a lição de Savigny, segundo o qual as leis concernentes aos
atos ilícitos teriam valor estritamente coativo, de modo que deveriam incidir não desde logo na tutela da
lei do lugar de cometimento ilícito, mas sob aquela do lugar onde proposta a ação, isto é, a lex fori. Tal
ponto de vista, ao qual aderiram vários autores franceses, parece-nos criticável, desde que se admite
ser a imperatividade das normas sobre ilícitos no Estado do foro questão não impeditiva de reclamar o
império das leis estrangeiras concernentes à matéria.
Entre as legislações que sancionam a obrigatoriedade por matéria de suas próprias normas
relativas ao ilícito civil, desponta
o art. 12 da antiga Lei de Introdução alemã de 1896, hoje art. 38 na Lei de Introdução nova de 1986,
com o mesmo texto, que declara não poder valer na Alemanha contra um alemão direitos maiores do
que aqueles estabelecidos no direito germânico por atos ilícitos no exterior; em outras palavras, o
magistrado alemão recorrerá, genericamente, à lex loci delicti, mas deverá aplicar preferencialmente a
própria lei na medida em que esteja co-involvido um cidadão alemão.
Encontram-se, ainda, limitações gerais às normas estrangeiras relativamente ao conteúdo das
próprias, no direito inglês, em
cujo âmbito subsiste norma consuetudinária na base da qual a ação por ilícito civil (tora) é subordinada
ao modo de ser tanto da lei do lugar de cometimento do ilícito (lex loci delicti) quanto do direito inglês
(lex fon). Essa espécie de acumulação entre lei inglesa e lei estrangeira estava primeiramente projetada
no sentido de que o ressarcimento do dano pudesse ter lugar somente no caso em que subsistisse
ilícito civil na base de ambas as leis,
enquanto, sucessivamente, se produzisse um deslocamento a favor da lex fori e a ação de
ressarcimento admitida com a condi-
ção de tratar-se de ato cometido na Inglaterra, tipificada como ilícito civil.
A jurisprudência inglesa foi seguida pelos juízes escoceses, canadenses e australianos e
encontrou imitadores mesmo em Es-
tados fora da Commonwealth, como o Japão, a China pré-revolucionária, a Tailândia, o Egito, o Iraque
etc.
24.21. Outros elementos de conexão
Além da lex loci e da lex fori outro elemento de conexão proposto é o da lei nacional (lex pafriae)
ou da lei do domicílio (lex domicilú), no caso de prática de um ilícito. Trata-se de cone-
xão ligada à configuração da obrigação extracontratual, como o quase-contrato e o quase-delito.
Contudo, verdadeira revolução de toda essa matéria se operou nos Estados Unidos, onde a nova
teoria sobre conflitos de lei foi elaborada e sentida nos seus efeitos, mais do que no campo
dos contratos, no campo do ilícito civil. Assim, nos Estados Unidos se firmou a tendência de diferenciar
os vários tipos de ilícito civil dos efeitos das leis que devem regular-lhes. Tais fatores produziram grande
insatisfação com a rígida regra da lex loci delicti, que submete indistintamente todos, ilícitos civis a lei
do lugar do ilícito,
induzindo os autores e a jurisprudência a procurar novas soluções, mais elásticas e suscetíveis de
atrelar-se aos casos mais simples da espécie.
Diga-se de passagem, porém, que nos Estados Unidos prevalecia no passado o princípio da lex
loci delicti, que foi codificado no primeiro restatement. Somente em seguida, ao florecer a nova teoria,
em torno dos anos 60, houve uma reviravolta doutrinária e jurisprudencial, em conseqüência da qual
vários autores e magistrados chegaram à conclusão que a lei reguladora do ilícito civil deve ser
individuada, tendo presente, além do lugar de cometimento do ilícito, uma série de outros fatores, como
os contatos mais significativos do caso em questão com outros ordenamentos, o Estado com maior
interesse em ver aplicada a própria lei em certas hipóteses etc., Os decisórios mais signicativos
conforme tal tendência são Babcock vs. Jackson e Reich vs. Purceli, entre numerosos outros, nos
quais, supletivamente considerados, é dado ressaltar que, na maioria das vezes, o recurso à
elucubrada concessão da qual se falou terminou, na prática, por desembocar, na sentença de juiz
americano, na aplicação da lei vigente na própria jurisdição, isto é, a lex fori, que tomou, destarte, o
lugar da lex loci delicti commissi.
No mencionado caso Babcock vs. Jackson (1963), por exemplo, relativo a um acidente
automobilístico ocorrido em Ontário (Canadá) o Supremo Tribunal de New York, em lugar de aplicar a
lex loci delicti, aplicou a lei de New York, apoiando tal caso como mais ligado à sua própria lei, porque
todas as partes eram domiciliadas no Estado de New York e se encontravam somente ocasionalmente
em Ontário, porque o automóvel era licenciado em New York etc.
Do ponto de vista da harmonia das relações internacionais, presta-se a conexão tradicional a
exibir maiores vantagens de simplicidade, de certeza e de previsibilidade, ligadas a seu caráter objetivo.
São vantagens, de qualquer maneira, de segundo grau, que interessam à administração do direito mais
que à matéria particular. É nesse sentido a expressão de Bemard Audit:
"Les événements matériels qui constituent le délit offrent un rattachement objectif; leur
localization - sous réserve de circonstances particulières... est aisée. Lã reconnaissance universelle du
principe peut permettre d'éviter le forum shopping, consistant pour Ia victime d'un dommage à en
poursuivre Ia reparation devant une jurisdiction dont Ia loi lui serait plus favorable, au détriment des
intérêts légitimes du defendeur. Pour les assureurs fréquemment impliqués, Ia certitude et Ia prévisibilité
favorisent un règlement de I'affaire qui ne demande pas un procès préalable sur Ia loi aplicable".
O mesmo autor faz interessantes observações ao comentar a dissociação geográfica dos
elementos materiais do delito, classificando-o em duas ordens: delitos simples e delitos complexos.
Justificando o elemento de conexão lex loci delicti como solução dos interessados, considera-se
implicitamente que todos os componentes materiais do delito estão situados em uma única instância,
mas necessariamente não é o caso. O dano e o fato gerador podem ultrapassa-Ia por distintas
situações: é o caso da difamação por via da radiodifusão, a circulação de um produto defeituoso, atos
de concorrência desleal, de poluição transfronteira. Cada um desses elementos pode situar-se em mais
de um Estado; assim a fabricação de produto defeituoso. Nesses diferentes casos, não somente a
utilização da regra tradicional torna-se difícil, isto é, como determinar o lugar do delito, como seu próprio
fundamento, pois as expectativas e o entendimento das partes podem levar razoavelmente a leis
diferentes.
Essa hipótese poderia, há muito tempo, ser considerada excepcional, porque nos casos
tradicionais de responsabilidade civil, aí compreendidos os acidentes de automóveis, o fato gerador e o
dano imediato estavam necessariamente localizados nos limites de uma lei; o elemento de
estraneidade ligava-se à nacionalidade ou ao domicílio estrangeiro das pessoas implicadas./Como o
demonstram os exemplos acima evocados, as hipóteses de dispersão internacional dos elementos do
delito multiplicam-se na medida do progresso técnico e das comunicações. Cada vez mais o delito
complexo deixará de ser uma dificuldade de aplicação de um caso geral ou os elementos materiais do
delito são agrupados para tornar-se a hipótese normal. Impõe-se, portanto, a pesquisa de uma
circunstância de conexão mais precisa.
Para visualizar o delito complexo, autores antigos como Voét recorriam ao exemplo de um projétil
disparado do lado de uma fronteira e atingindo uma pessoa do outro.
Nos Estados Unidos, onde os conflitos de leis em matéria delitual são muito freqüentes, a
expressão usual de multistate tort engloba de modo natural a hipótese apresentada como complexa; a
localização comum do dano e do ato gerador é mais considerada como realizando uma cumulação de
fatores sobre dada lei.
A Lei suíça de 1987 sintetiza os dois approaches; o art. 129 submete o delito à "lei do lugar onde o
autor cometeu a ação e o resultado se produziu", depois enfrenta a falta de coincidência entre essas
duas circunstâncias de conexão. Contudo, mesmo no caso de dano único, pode ocorrer hesitação
sobre a definição do lugar do delito, desde que este seja prolongado: entende-se daí que, inicialmente,
o evento produzido em lugar determinado, suas conseqüências se fazem sentir em um ou outro locais;
o exemplo típico é aquele do acidente corporal superveniente a uma pessoa em deslocamento e cujas
conseqüências (incapacidade física) continuarão a ser suportadas em seu domicílio.
Em favor do lugar do dano, alude-se a que uma pessoa deve normalmente contar com a
proteção em vigor no lugar onde ela se encontra e sofreu o atentado, que a responsabilidade civil tem
no direito moderno função antes de tudo reparatória. Mas, também, pode parecer anormal que o réu
seja alvo de aplicação da lei da vítima em casos nos quais ele não tinha nenhuma razão de prever a
intervenção dessa lei: por exemplo, no caso de compra, por um turista, de produto defeituoso. O meio
de satisfazer as duas partes seria a aplicação cumulativa das duas leis; mas, também, admitamos que
nesse caso se embala com muita benevolência o autor do ato. Há propostas múltiplas de aplicação
alternativa de uma e de outra lei, a chamada teoria da ubiqüidade eletiva do delito. Contudo, se a
escolha pertence ao demandante - sistema da "cumulação eletiva" -, isso constitui para ele um favor
discutível; mais conviria que a escolha fosse feita pelo juiz em função das expectativas legítimas das
partes.
A extrema dificuldade de uma escolha geral se traduz nas legislações que enfrentaram a
questão. Algumas escolheram o ato gerador, como consta do Código Cível português de 1966, art.
45.1, outras o dano, como a Lei turca de 20 de maio de 1982, art. 25, outras ainda não escolhem ou
delegam a preferência ao demandante. Esta última solução é temperada em algumas legislações pela
exigência de previsibilidade do réu, conforme orientação da Convenção da Haia sobre a
responsabilidade pelo fato dos produtos, art. 7°-, e a lei peruana, no Código Civil de 1984, art. 2.097,
com a seguinte redação:
"Lã responsabilidad extracontratual se regula por Ia ley dei país donde se realice Ia principal
actividad que origina el perjuicio.
En caso de responsabilidad por omisión, es aplicable Ia ley dei lugar donde el presunto responsable
debió haber actuado.
Si Ia ley dei lugar donde se produjo el perjuicio considera responsable el agente, pero no Ia ley
dei lugar donde se produjo Ia actividad o omisión que provocó el perjuicio, es aplicable Ia primera ley, si
el agente debió prever Ia producción dei dano en dicho lugar, como consecuencia de su acto o
omisión".
Enfim, a matéria da responsabilidade extracontratual é bastante polêmica e controvertida,
principalmente pelas dificuldades de escolher uma circunstância de conexão predeterminada e de
validade para todos os casos. Poder-se-ia pender para diferentes opções, como, por exemplo, aquela
em que a situação particular apresenta liames próximos, onde pesquisando a lei mais interessada, ou,
ainda, aquela do meio social onde se localiza a situação global. Acrescente-se, ainda, como hipóteses
viáveis, o lugar do prejuízo, o da conduta em sua origem, o domicílio, a residência, a nacionalidade, o
centro de atividade principal das partes, o lugar onde suas relações, se existirem, têm seu centro.
Uma resolução do Institut de Droif International, adotada em 1969, depois de ter aceitado em
princípio que os delitos estão submetidos à lex loci delicti, acrescentou: "Um delito é considerado como
cometido no lugar no qual a situação está mais estreitamente ligada, tendo em vista todos os fatos
relativos ao delito ocorrido em determinado lugar, depois do início do comportamento delituoso até a
realização do prejuízo".
25. Das Sucessões
25.1. Significação da matéria sucessória. 25.2. Regulação. 25.3. Unidade e universalidade. 25.4.
Estatuto aplicável. 25.5. Questão da capacidade e herança vacante. 25.6. Diretriz brasileira. 25.7. Lei
reguladora da forma. 25.8. Ato autêntico e instrumento público. 25.9. Liberdade de testar. 25.10.
Capacidade. 25.11. Código Bustamante e legislação brasileira. 25.12. Vantagens da lei única.
25.1. Significação da matéria sucessória
A matéria sucessória tem fundamental significado para o direito internacional privado pelo fato de
apresentar liames de diferentes categorias mais gerais com o problema da conexão, isto é, o direito de
família, dos bens e inclusive dos atos jurídicos. Este último porque na maioria dos sistemas se defere
ao indivíduo a probabilidade de regular a transmissão de seus bens. As dificuldades decorrem dos
conflitos com as leis processuais e a diversidade de concepções internas concernentes aos modos de
liquidação.
Do ponto de vista histórico, a França e a Itália são duas fontes importantes para compreender os
passos evolutivos seguidos pelas sucessões, porque tiveram influência universal.
Na antiga França, a questão de saber qual a lei aplicável às sucessões de estrangeiros estava
longe de ter a importância prática que tem em nossos dias, pois o chamado droit d'aubaine, existia
então, e em razão desse direito as sucessões eram mais freqüentemente objeto de confiscos. Contudo,
na época, a indagação mais importante era saber como resolver o problema sucessório de quem
falecesse deixando bens em território de costumes antagônicos. Essa questão tem forte analogia com
aquela que nos preocupa hoje em dia.
Para responder a essa questão, a maioria dos antigos autores fazia distinção entre a sucessão
mobiliária e a sucessão imobiliária.
Esta última era submetida ao estatuto real. O costume em vigor estabelecia que, onde
estivessem situados, ali regeria a lei da devolução dos imóveis. Se um defunto deixasse imóveis
situados em circunscrições territoriais diferentes, haveria tantas sucessões separadas quantos fossem
os costumes (quod sunt bona diversis territoris obnoxias, tot sunt patrimonia).
Quanto às sucessões mobiliárias, aplicava-se a regra mobília sequuntur personam, significando
que governava a lei do domicílio do de cujus.
Essa dupla regra, que prevalecia desde o século XVI, permaneceu incontestada no século XVIII.
Boullenois, Bouhier, Froland, Pothier seguiam-na às vésperas do Código Civil de Napoleão. Mas como
explicar essa divisão? É simples. No apogeu do feudalismo todos os costumes eram reais (vide capítulo
sobre fontes). Cada um deles era senhor absoluto sobre seu território. Tal foi o ponto de partida.
Depois, pouco a pouco, as relações se estabelecendo entre as circunscrições costumeiras, viu-se
introduzir a idéia da personalidade de certas leis. Foi então que essa personalidade, em princípio
acolhida, não sem dificuldade obteve reconhecimento das leis que regiam o estado e a capacidade.
Logicamente foi preciso ir mais longe, e aí acrescentar-se as leis da sucessão. Mas esse progresso era,
então, irrealizável, pois as idéias feudais estavam baseadas antes de tudo na repartição dos bens
imóveis. Por que, entretanto, o mesmo não aconteceu com os móveis? Primeiramente os móveis eram
vistos como bens de valor mesquinho, o que se compreende, considerando que todos os elementos
importantes do património foram elevados à dignidade dos imóveis e constituíam os imóveis fictos,
submetidos ao mesmo regime sucessório que os imóveis reais. Os móveis não influíam, pois, em nada
no estado das fortunas: Vilis mobilium possessio. Além disso, parecia difícil submeter a transferência
desses bens à lei de sua situação, dada a facilidade com que eles podiam ser deslocados. Daí por que
surgiu a decisão de adotar a esse respeito regra diferente e estabelecer o governo da lei do domicílio
de seu proprietário.
O raciocínio, contudo, que conduz a esse resultado não foi o mesmo entre todos os autores
antigos. Os móveis, disseram alguns, não têm sede fixa, e, entretanto, é preciso juridicamente criar-lhes
uma situação; eles devem ser reputados como situados onde o de cujus tinha seu domicílio ao morrer.
Outros raciocinaram diferentemente. Eles procuraram não atribuir situação ao mobiliário, estabelecendo
uma ficção. Os móveis, diziam, são acessórios da pessoa, e é justo aplicar-lhes a mesma lei que
aquela à qual a pessoa está submetida. Assim, de acordo com essa teoria, as regras que regem a
transferência dos móveis são dependências do estatuto pessoal. Em o todo caso, os dois
procedimentos conduzem a idêntico resultado prático, e coincidem em que a regência para os móveis é
da lei do domicílio do seu proprietário.
Procuramos relembrar esses dados históricos porque as duas teorias invocadas ainda estão
presentes em nossos dias e têm importância no direito atual, encontrando-se partidários de uma e outra
direção. É necessário pois, distingui-Ias. Com efeito, se partimos da idéia que os móveis são
considerados situados no domicílio de seu proprietário, somos levado a aplicar hoje sua transferência
àquela situação ficta, isto é, aquela do domicílio do de cujus. Se dizemos, ao contrário, que os móveis
são acessórios da pessoa, fazemos depender a devolução das sucessões mobiliárias da lei pessoal do
defunto, isto é, sua lei nacional ou domiciliar.
Savigny, ao examinar o assunto, pregou, também, a distinção entre bens móveis e imóveis e
encontrou um único fundamento para as sucessões, tanto testamentárias como ab intestato, vale dizer,
a conexão à pessoa do defunto. Para a sucessão ab intestato, assim, acrescentava que entrava em
linha de conta a vontade do defunto, a qual dever-se-ia presumir no sentido de querer subordinar a
sucessão à lei que "melhor respondesse às relações de família", isto é, à lei domiciliar. Há aqui claro
aceno à concessão, ora prevalecente, que considerava as sucessões de qualquer modo conexas ao
direito de família e, portanto, como este, subordinadas à lei pessoal.
Na Itália, como se afirmou, outro importante berço da evolução sucessória, Mancini adotou o
pensamento de Savigny quanto à unitariedade da sucessão e sua subordinação à lei pessoal do
defunto. Tal lei deveria, porém, ser não aquela do domicílio, mas a lei nacional, acentuando que "la
successione si regola secondo
Ia legge nazionale dei defunto, in qualunque paese si trovino sparsi e situate i beni della successione
stessa, e siano i beni di natura mobiliare od fmmobiliare, sostituendo con cio alia vecchia fonzione
feconda d'immense incovenienti: quot territoria, tot hereditates, Ia nuova regola consigliata dalla ragione
per I'intimo nesso dei diritto sucessorio col diritto di famigiia, ed invocata da sommi maestri delia scienza
giuridica...".
Atualmente a Itália nos dá o exemplo de uma nova lei de direito internacional privado, que entrou
em vigor no dia 3 de junho de 1995, e cujo objeto é a determinação do domínio da jurisdição italiana,
colocando os critérios de escolha do direito aplicável e regendo a eficácia dos julgamentos e dos atos
estrangeiros.
A propósito das sucessões, estabelece, em seu art. 46:
"1. A sucessão, por causa de morte é regida pela lei nacional do defunto no momento de seu
falecimento.
"2. O de cujus pode submeter, por declaração expressa em forma testamentária, a integral
sucessão à lei do Estado no qual reside. Esta escolha torna-se sem efeito se, no momento do
falecimento, o declarante não mais reside nesse Estado. No caso da sucessão de um cidadão italiano,
a escolha não prejudica aos direitos que a lei italiana atribui aos legitimários residentes na Itália no
momento da morte do defunto.
3. A partilha sucessória é regida pela lei aplicável à sucessão, a menos que os compartilhantes
não designem de comum acordo a lei de abertura da sucessão ou do lugar de situação de um ou de
vários bens sucessíveis".
25.2. Regulação
De acordo com explicação de Amílcar de Castro, vem sendo controvertida há séculos a questão
de saber se a sucessão deve, ou não, ser regulada por um só direito; e os autores, tanto quanto os
direitos internacionais privados positivos, divergem muito sobre a circunstância de conexão que deva
ser adotada, uns considerando a situação das coisas de que se componha o espólio, outros tomando
como ponto de partida a nacionalidade ou o domicílio do defunto, e outros focalizando a própria
sucessão, como pertinente a determinado meio social. Adotada como circunstância
de conexão a situação das coisas, tem-se de chegar inevitavelmente à conclusão de fracionar a
sucessão; enquanto considerando-se a nacionalidade ou o domicílio do defunto, ou a própria sucessão,
pode-se obter como resultado regê-la por um só direito: o jus patriae, o jus domicilii ou o jus fori, por
exemplo.
25.3. Unidade e universalidade
Para Haroldo Valladão, a "primeira e mais importante das exceções especiais à regra geral da
unidade e universalidade sucessória pela lei do domicílio é a concernente ao tratamento preferencial
dado nas sucessões de estrangeiros, com bens existentes no Brasil, ao cônjuge ou filhos brasileiros."
É princípio que só se aplica aos bens, móveis ou imóveis, sitos no Brasil, quebrando, pois,
decisivamente, aquela unidade e universalidade sucessória.
Continua prelecionando o insigne mestre:
"Ainda a unidade e a universalidade dos credores locais, privilegiados, particularmente aos
credores com garantia reais e aos direitos do Fisco pelo imposto de transmissão causa mortis.
"Não se trata, apenas, da lei reguladora dos direitos dos credores, do ponto de vista substantivo,
da respectiva lex causae, direito de família, de obrigação, direitos reais, incompatíveis com uma lei
sucessória única.
"Analogamente ao que se faz na falência, não é possível, nos juízos sucessórios, obrigar os
credores locais que têm no território bens do de cujus que podem ali ser penhorados ou que lhes foram
dados em especial garantia, a se dirigir a outro juízo, no estrangeiro, não raro em país longínquo, para
lá ir cobrar o seu crédito.
"E quanto aos impostos de transmissão da propriedade, a sua territorialidade é incontestável,
sendo inadmissível que um Estado deva, para receber os impostos de sucessão devidos sobre bens
sitos no seu território, ir se habilitar em processo de inventário e partilha, aberto no estrangeiro, e que
fique sujeito, no assunto, à disposição de leis estrangeiras, quer substantivas quer adjetivas".
Os limites da ordem pública internacional, e da fraude à lei, especialmente a lei brasileira,
quebram também a unidade e universalidade sucessórias.
O problema do lugar da abertura da sucessão com o processo de inventário e partilha vem
finalmente levantar obstáculos intransponíveis ao princípio da unidade e universalidade da sucessão,
dada a regra corrente no processo de todos os Estados, da competência privativa dos respectivos
tribunais para decidir sobre bens, particularmente imóveis, neles situados.
Nota-se, portanto, que a primeira questão fundamental que as sucessões colocam perante o
direito internacional privado é a de determinar a legislação que deve reger a relação hereditária, e uma
lei somente há que ser aquela que regula inteiramente a sucessão, ou, se ao contrário, será preciso ter
em conta a natureza e situação dos bens que compõem o patrimônio do de cujus.
25.4. Estatuto aplicável
Verificamos, acima, que essa questão fundamental se discute há séculos. Desde os pós-
glosadores, o problema da sucessão, admite-se, deveria reger-se pela lei pessoal do defunto. Esse era
o ponto comum e sobre o qual todos estavam de acordo. Porém, qual é a lei pessoal que se deve
aplicar? Nesse passo surgiu o desacordo: alguns se decidem pela lei nacional e outros pela lei
domiciliar. - É, contudo, grave problema o de saber que lei deve reger a sucessão daquele que deixa
bens em diferentes países. Deve-se seguir o estatuto do lugar em que se encontram os bens? Dever-
se-á, ao contrário aplicar o estatuto do lugar de origem?
A característica do direito moderno sobre as sucessões é a concorrência de dois elementos
principais ou circunstâncias de conexão: pode-se tomar como elemento de conexão ou a pessoa do
defunto ou os bens que integram seu patrimônio. Submetendo-se a sucessão à lei pessoal, reger-se-á
por uma lei única, seja qual for a natureza e a situação do patrimônio deixado pelo falecido. Se se toma,
ao contrário, em consideração, com circunstância de conexão, a situação dos bens, regularão várias
leis correspondentes à natureza e situação dos bens constitutivos do patrimônio.
O sistema da unidade responde à doutrina romana da sucessão: uma única lei regula o
ordenamento sucessório, a pessoal, seja qual for a natureza dos bens e o país onde estejam situados.
Dentro do sistema a legislação comparada se divide em dois subgrupos: a lei da nacionalidade e a lei
do domicílio. Na Suíça há uma situação curiosa. Aceita-se como princípio a lei do domicílio, mas se
admite, não obstante, a professío jurís, ou seja, se o testador, por exemplo, não é suíço, porém é
domiciliado na Suíça, e outorga testamento neste país, ou tem bens radicados nele, pode manifestar
em testamento que sua sucessão se regula pelo direito da nacionalidade de origem.
A sucessão ab intestato é a que difere, por ministério da lei, da testamentária, por falta de
disposições válidas. A lei supre a vontade do de cujus e estabelece o modo de suceder, presumindo o
que teria assinalado o testador no caso em que tivesse expressado seus propósitos. As disposições
legais constituem então o testamento.
A doutrina e os direitos positivos aplicam à sucessão ab intestato as mesmas regras que a
testamentária. A lei nacional ou domiciliar determina a causa, lugar e momento em que se abre a
sucessão; determina a vocação hereditária e o quinhão que a cada um corresponde em concorrência
com os outros; conserva as mesmas limitações territoriais de ordem pública que na sucessão
testamentária.
A sucessão ab intestato formula -no direito internacional privado as seguintes questões:
18) Quanto à abertura da sucessão, o momento, lugar e causa devem determinar-se pelo
estatuto pessoal do de cujus.
2,2) A qualidade de herdeiro se determina por sua lei pessoal; determinará se o herdeiro tem ou
não condições para suceder, abstração feita de verificar se a incapacidade é de tipo comum ou se
refere concretamente à sucessão.
3á) A declaração de herdeiros possibilita imediatamente a aceitação ou repúdio da herança.
Desempenha papel importante a vontade humana: enquanto requer capacidade e produz para a
herança certos efeitos, a lei pessoal da primeira e da segunda devem impor-se, e quando se exigem
formas solenes se aplica a regra locus regít actum.
44) Nas operações de administração da herança prevalece, com caráter primordial, a lei pessoal,
enquanto não interfere a ordem pública. Essa lei regerá a existência, caráter da função e nomeação dos
inventariantes.
5á) A aceitação da herança, tanto testamentária como legítima, a benefício do inventário,
geralmente poderá ocorrer no estrangeiro diante dos agentes diplomáticos ou consulares do país
respectivo.
6á) No sentido solene da forma exigida pela maioria dos Códigos, para aceitação poderá
verificar-se no estrangeiro mediante aplicação da regra locus regít actum, com caráter facultativo.
Geralmente, também, um estrangeiro não pode prevalecer-se, em outro país, de sua renúncia à
herança feita de forma privada em um Estado estrangeiro, amparando-se na mencionada regra, porque
as formas de repudiação se estabelecem, antes de tudo, como garantia dos direitos de terceiros.
25.5. Questão da capacidade e herança vacante
Para que uma instituição seja perfeita e válida não basta a capacidade do testador, mas é
preciso, em segundo lugar, a capacidade do herdeiro instituído. A capacidade do herdeiro deve ser
contemplada sob dois pontos de vista: como capacidade pessoal geral e como capacidade especial ou
particular ou capacidade à herança de que se trata.
A partir do momento em que os direitos dos colaterais se esgotam por perder-se o vínculo da
unidade familiar, o Estado tem direito aos bens intitulados, então vacantes, para evitar os conflitos que
nasceriam se abandonados ao primeiro ocupante~ Para justificar o direito do Estado, basta considerar
a tutela e proteção que presta à propriedade, obtendo destarte título suficiente de participação nas
heranças mediante a forma de imposto de transmissão causa mortis. Portanto, é compreensível e
lógico que, quando não existem herdeiros por direito de família, absorva o Estado, por direito social, o
caudal hereditário.
No direito comparado é reconhecido o direito de o Estado suceder ab intestato, à falta de outros
herdeiros. Contudo, o problema de direito internacional privado se coloca de acordo com a qualificação
que se tenha do título com o qual o Estado pode
pretender a herança vacante. Duas hipóteses diferenciais são aludidas:
a) A lei pessoal do de cujus atrai o Estado não como herdeiro, mas como ocupante de coisas
nullius. Reconhecido, porém, o caráter territorial das leis que regulam a ocupação, impõe-se a exceção.
Quando a lei não chama ao Estado como herdeiro, à falta de outros sucessores, possibilita-se o
exercício de um direito de soberania, ocupando e adquirindo os bens vacantes o Estado estrangeiro.
b) No Brasil, à falta de herdeiros legítimos, tem direito a União de herdar os bens de brasileiros,
observando-se as hipóteses dos arts. 1.591 a 1.594 do Código Civil e os 1.142 a 1.155 do Código de
Processo Civil, podendo esses direitos estenderse ao Estado estrangeiro se a lei territorial não se
opuser. No caso de sucessão a favor do Estado, desempenhariam os cônsules, no país de que se
tratasse, as faculdades concedidas às autoridades locais para a aquisição e distribuição daqueles bens.
A Convenção da Haia de 1905 mantém o critério da preferência ao Estado territorial para
herança de bens vacantes em seu território.
Tratando-se de sucessão testamentária os caminhos são diferentes.
A sucessão propriamente dita, ou seja, a sucessão a título universal, produz-se a favor dos
herdeiros, porém o testador pode dispor de seus bens como legado, chamando-se legatário o que
sucede a título universal. O patrimônio do falecido, enquanto objeto da sucessão, denomina-se
herança, porém, no Código Civil brasileiro, o patrimônio deixado pela morte e por fim a herança tem
concepção ampla, pois compreende não só direitos do falecido, e seus bens, como também suas
dívidas e obrigações.
A lei aplicável à sucessão testamentária segundo os sistemas prevalecentes é a nacional ou do
último domicílio do de cujus, qualquer que seja a natureza dos bens e o país em que se encontrem,
tanto na sucessão ab intestato como na testamentária.
A Lei de Introdução ao Código Civil nossa assim dispõe, no art. 10, §§ 1 °- e 2°:
"Art. 10. A sucessão por morte, ou por ausência, obedece à lei do país em que era domiciliado o
defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.
§ 1°- A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em
benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros ou de quem os represente, sempre que não lhes seja
mais favorável a lei pessoal do de cujus.
§ 2° A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder".
O regime das sucessões, entendida essa expressão em sentido amplo, compreendendo
sucessões ab intestato e testamentárias, relaciona-se, em cada país, com a organização da
propriedade e com aquela da família.
25.6. Diretriz brasileira
No que tange à nossa legislação, mostra muito bem Haroldo Valladão que a primeira e mais
importante das exceções especiais à regra geral da unidade e universalidade sucessória pela lei do
domicílio é a concernente ao tratamento preferencial dado nas sucessões de estrangeiros com bens
existentes no Brasil ao cônjuge ou filhos brasileiros.
É, assim, princípio que só se aplica aos bens móveis e imóveis sitos no Brasil, quebrando, pois,
decisivamente aquela unidade e universalidade sucessória.
Contudo, para Serpa Lopes, "esse direito de prelèvement como o princípio territorial do art. 10, §
2°- produzem idênticas conseqüências perturbadoras, porque prejudicam substancialmente o princípio
da unidade sucessorial, decorrente do estatuto pessoal".
No caso do art. 10, § 1 °-, assegura-se vocação hereditária territorial, em contraposição à do
estatuto sucessório do de cujus. É uma norma de direito internacional privado.
O art. 10, diferentemente do art. 14 da antiga Introdução, não consignou referência alguma direta
à sucessão testamentária. Cingiu-se à expressão genérica "sucessão". Entretanto, impossível admitir
outra exegese que não esta: o termo "sucessão" deve ser entendido na sua acepção mais lata,
abrangendo sucessão legítima e testamentária.
Referindo-se às opiniões das maiores autoridades em direito internacional privado, Serpa Lopes,
acentua ser a melhor solução a da assimilação da sucessão legítima e testamentária. Um sistema
diverso para cada uma das ditas formas de sucessão constituiria desarrazoado critério, um disformismo
prejudicial.
Contudo, nem por isso ao estatuto sucessório - o da lei de domicílio do autor da herança - é dado
espargir-se sobre todos os detalhes da sucessão testamentária, que, como sabemos, biparte-se entre a
forma e a substância.
25.7. Lei reguladora da forma
Abordando o tema da lei reguladora da forma dos testamentos, o emérito autor faz interessante
digressão, demostrando que sem nenhum receio pode-se afirmar que a regra locus regit actum nasce
precisamente para obviar o problema dos testamentos feitos em país estrangeiro, engendrada pelos
glosadores, estendendo, posteriormente, as suas raízes pelas demais instituições jurídicas. Inegável,
ainda, esse segundo aspecto de suma relevância: é uma regra universalmente admitida pela doutrina e
jurisprudência, explicando alguns esse universalismo pelo fato de consistir "numa concessão recíproca
dos povos baseada sobre a sua utilidade comum". Reputa-se, ainda, uma regra geral, por dilatar-se a
todos os atos, previstos ou não pelos Códigos, e universal, por determinar a aplicação de uma lei
nacional, e também de uma lei estrangeira.
Entretanto, se reina acordo em alguns desses pontos, e se há uma concordância indiscutível em
relação ao seu valor internacional e universal, o mesmo já não se dá no tocante aos seus limites,
extensão e efeitos.
Assim, controverte-se acerca do caráter da regra, se facultativo ou obrigatório; se a observância
da forma estabelecida pela
lei do lugar é um requisito necessário ou apenas suficiente à validade do ato.
Além disso, no que se relaciona com o testamento, a regra locus regit actum encontra outros
pontos de debates especiais. Defluem esses conflitos de uma intervenção deliberada e direta da lei
reguladora do estatuto sucessório, quando nela se exara a proibição de uma determinada forma de
testamento ou prescreve uma dada forma de testamento, para se lhe reconhecer eficácia.
Tais são os aspectos dessa questão tão relevante quanto difícil. Expostos esses princípios
gerais, voltamos ao âmago do problema em nosso direito: em face do art. 10, que estamos estudando,
qual o princípio regulador da forma do testamento?
De um modo geral, se seguíssemos as linhas geométricas do disposto no referido artigo, a
conclusão seria, na falta de qualquer referência expressa, caber a regência ao estatuto sucessório.
Eduardo Espínola e filho arrimam-se aos arts. 9°, §§ 1°- e 13, da Lei de Introdução, para firmar a
continuidade em nosso direito do princípio locus regit actum, entendendo por forma os requisitos
extrínsecos ou puramente formais do testamento.
Não cremos forte o adminículo buscado no art. 13, referente a como é a prova dos fatos
ocorridos em país estrangeiro, enquanto o testamento é um ato jurídico, de caráter solene, situação mui
diversa da prevista pelo dispositivo invocado.
A conclusão a estabelecer-se em tudo isso é que a regra locus regit actum possui incontestáveis
foros de universalidade, consoante assinalamos de início.
Regra incontestável, somente discutida em seus aspectos acidentais, possível não é conceber-
se que a Lei de Introdução se distanciasse de um critério universalmente seguido, tradicional em nosso
direito.
Destarte, não julgamos acertado dar à palavra "sucessão", exarada no art. 10, o significado lato e
irrestrito que transluz ao primeiro golpe de vista.
Cumpre estabelecer-lhe limites, precipuamente no setor da forma do testamento.
Inquestionavelmente, o § 1 °- do art. 9°- subministra elementos justificativos da aplicação da
regra locus regft actum à forma dos testamentos.
Tal é o princípio nele contido: quando a obrigação destinarse a ser executada no Brasil e
dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira
quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
Estendendo esse critério legal à forma do testamento, e dependendo este sempre de forma
essencial, pode-se admitir a seguinte conclusão análoga: no testamento de pessoa domiciliada no
Brasil e destinado a ser executado no Brasil, será observada a forma prevista na lei brasileira,
admitindo-se, porém, o rito inerente à lei do lugar onde tiver sido outorgado, isto é, os requisitos
extrínsecos do ato. Essa fórmula exige, para maior clareza, uma detalhada elucidação, conseqüente à
ambigüidade do texto de lei de que nos servimos, consoante já tivemos ensejo de assinalar.
Cumpre ser fixado, devidamente, até onde a lei brasileira rege a forma do testamento e qual a
margem concedida à regra locus regit actum.
Necessário se torna, então, uma nítida conceituação dos requisitos extrínsecos do ato em face
da observância da forma prevista na lei brasileira.
Melhor que uma fórmula, um exemplo contribuirá para o esclarecimento da periferia de cada um
desses pontos em atrito. E o caso prático podemos encontrá-lo num conflito havido entre o nosso direito
e'o direito francês. Um francês, residente em nosso país, outorgou um testamento sob a forma cerrada.
Discutiu-se, então, ao ser pedida a sua execução na França, se era o mesmo válido perante a lei
francesa, de vez que fora feito obedecendo ao rito da lei brasileira. O tribunal de Ruão decidiu pela
validade do testamento, sob o fundamento de que o rito determinado pela lei brasileira satisfazia, sob o
duplo ponto de vista da sua forma solene e de sua autenticidade, as condições de validade exigidas
pelo art. 999 do Código Civil francês.
Apesar de o tribunal ter considerado o art. 999, comparado com o art. 969, como significando
depender a validade de um
testamento feito por um francês em país estrangeiro da observância da forma hológrafa ou da forma
autêntica, admitiu que, "para determinar o que se deve entender por ato autêntico, no sentido do art.
999, é necessário não ater-se ao art. 1.317 do mesmo Código e menos ainda à lei de 25 ventose, ano
XI, que subordina a autenticidade à presença de um oficial público, mas consultar unicamente a lei do
país onde foi feito o testamento do francês".
Podemos então fixar a seguinte noção: a lei brasileira contenta-se em que, em relação ao
testamento feito no exterior, observe-se o gênero da forma contemplada no seu direito interno, cabendo
à lei do lugar os elementos internos da forma extrínseca prevista pela lei brasileira.
Vejamos um exemplo: o nosso Código Civil (art. 1.629) admite, como formas ordinárias de
testamento, o público, o cerrado e o particular.
Corresponde às formas ordinárias estipuladas no Código Civil argentino (art. 3.624), enquanto o
Código Civil uruguaio (arts. 790 e 791) admite o testamento solene e menos solene, sendo o primeiro
sob a forma aberta ou cerrada e o último quando, por circunstâncias especiais, são omitidas algumas
das solenidades exigidas na primeira forma.
De acordo com o princípio que lançamos, qualquer das formas ordinárias de testamento
processadas na Argentina - ou no Uruguai, de vez que correspondam, no gênero, às previstas pelo
nosso Código Civil -, é válida no Brasil, a despeito de divergência na parte referente aos requisitos
internos da forma extrínseca, v.g., o número de testemunhas no testamento público, que pelo nosso
Código (art. 1.632, n. I) é de cinco, ao passo que, de acordo com o Código Civil argentino, é de três
testemunhas residentes no lugar (art. 3.656).
Uma outra questão importante, inerente à qualificação, tem surgido ainda sobre esse ponto:
cumpre saber qual a lei competente para determinar a natureza pública do testamento ou a sua forma
autêntica.
O direito francês refere-se à forma autêntica, mas essa expressão tem sido interpretada como
significando o testamento ou-
torgado perante o oficial público. Sucede, porém, não ser esse o critério do direito inglês, consoante o
qual consiste o testamento autêntico numa forma privada, com a presença de duas testemunhas, que
devem, de próprio punho, firmar o testamento na presença do testador, e atestar a assinatura deste.
Lewald, não obstante a prática do ato sem a intervenção do oficial público, considera-o um
testamento autêntico, por assim o qualificar a lei inglesa, sendo admissível na França.
25.8. Ato autêntico e instrumento público
Colocando em face do nosso direito igual problema, temos a assinalar a diferença que intercede
entre ato autêntico e instrumento público.
Autêntico é o ato formado indiscutivelmente pelo seu autor, significando o ato que firmam et
certam habet auctoritatem, mas que abrange tanto o documento público como o privado.
De qualquer modo, porém, se válido é o testamento inglês em face do direito francês, que,
definindo o ato autêntico, considera tal o feito perante o oficial público, também não vemos motivo em
recusar essa peculiaridade da lei inglesa entre nós. A jurisprudência francesa assim o tem entendido e
nada obsta a que entre nós se adote igual orientação
25.9. Liberdade de testar
Em geral a pessoa goza de liberdade para outorgar testamento e manifestar sua vontade em
relação à sucessão de todos os bens, direitos e obrigações. Contudo, na maioria das legislações
exceção feita à inglesa, a autonomia da vontade se encontra limitada por considerações de ordem
familiar e moral, estabelecendo-se reservas concernentes a determinadas pessoas. Assim, nosso
Código Civil preserva a legítima, que é porção de bens que o testador não pode dispor por havê-la
reservado a lei aos herdeiros chamados necessários. Baseados no princípio da autonomia da vontade,
podemos afirmar que o brasileiro que não tivesse herdeiros necessários poderia dispor por testamento
de todos os seus bens ou de parte deles, seja onde for que se
encontrassem e qualquer fosse sua natureza, em favor de qualquer pessoa nacional ou estrangeira
com capacidade para adquiri-los.
25.10. Capacidade
A capacidade das pessoas em geral se regula pela sua lei pessoal (pátria ou domicílio), a qual,
em muitas ocasiões, pode não coincidir com a lei reguladora da sucessão: assim, nos países que
adotam o sistema do fracionamento surgirá essa diversidade em relação à sucessão do patrimônio
mobiliário, radicado no estrangeiro, regível pela lex situs e também com relação ao patrimônio
mobiliário, regido pela lei do domicílio do de cujus, quando a capacidade se reger pela lei nacional do
interessado, como ocorre na França e, igualmente, nos países que seguem o sistema da unidade,
como acontece na Suíça, onde a capacidade, em geral, regula-se pela lei nacional e a sucessão pela lei
do domicílio, não se fez a professio jurls em favor de sua lei nacional.
Seguindo Trias de Bés, podemos afirmar que o critério dominante é o de atribuir a competência
da lei reguladora da capacidade para os atos jurídicos em geral, isto é, a doutrina do ato jurídico em
direito internacional privado, segundo a qual se deve discriminar a lei que rege a capacidade para o ato
e a lei ordenadora de seu conteúdo ou substância, sejam os atos unilaterais como o testamento ou
plurilaterais como o contrato.
A capacidade para dispor por testamento se rege pela pessoa do testador (pátria ou domicílio). A
única dificuldade que pode surgir será no caso de que o falecido mude de lei pessoal, implicando
alteração em sua capacidade para testar. Exemplo: uma pessoa faz testamento aos 16 anos segundo
sua lei pessoal, em seguida muda de nacionalidade, e sua nova lei não autoriza a testar até os 18 anos.
O critério predominante de situação é que deve aplicar-se à lei sob cujo império o ato se realizou. Sem
embargo, combate-se esse critério sob o argumento de que o testamento não se valida enquanto não
falece o testador, e nestas condições, ao aplicar a lei posterior, não se pode a ela atribuir efeito
retroativo. Daí a solução eclética: no caso de que o testador tivesse mudado de nacionalidade, sua
capacidade, bem assim os requisitos internos e os efeitos jurídicos dos atos de última vontade que
houvesse outorgado, reger-se-iam pela lei do país a que
pertencesse no momento de sua morte, entendendo-se que a validade de suas disposições depende de
ser reconhecida sua capacidade pelas duas leis.
Existe, ainda, o critério vigorante no campo doutrinário e positivo, de que a capacidade para
suceder por testamento se rege pela lei pessoal do herdeiro.
25.11. Código Bustamante e legislação brasileira
O Código Bustamante dedica três capítulos à matéria das sucessões. Dedica um às sucessões
em geral e os outros dois aos testamentos e à herança.
1°-) O Código Bustamante, com referência às sucessões ab intestato e testamentárias, à ordem
de suceder, à quantidade dos direitos sucessórios e à validade intrínseca das disposições, aplica a lei
pessoal do de cujus, seja qual for a natureza dos bens e o lugar em que se encontrem.
2°) À capacidade para dispor por testamento aplica a lei pessoal do testador.
3°-) Aplica a lei territorial às regras estabelecidas por cada Estado para comprovar se o testador
demente está em intervalo lúcido.
1 4°-) São de ordem pública internacional as disposições que não admitem o testamento
conjuntivo, hológrafo e o verbal, e as que o declaram ato personalíssimo. Também são de ordem
pública as sobre a nulidade do outorgado com violência, dolo e fraude. São, ainda, de ordem pública
internacional os preceitos sobre forma dos testamentos, com exceção dos relativos ao testamento
outorgado no estrangeiro e ao militar e marítimo no caso em que se lhes outorgue fora do País.
5°-) Aplica-se a lei pessoal do testador à procedência, condições e efeitos da revogação, porém a
presunção de havê-lo revogado se determina pela lei local.
6°-) A capacidade para suceder se regula pela lei pessoal do herdeiro ou legatário. A instituição
da herança e a substituição se ajustarão à pessoal do testador. A nomeação e as dificuldades dos
testamenteiros ou executores testamenteiros dependem da lei
pessoal do defunto e devem ser reconhecidas em cada um dos Estados contratantes de acordo com
essa lei.
7°-) Na sucessão sem testamento, quando a lei chame ao Estado como herdeiro, na existência
de outros, aplicar-se-á a lei pessoal do de cujus, porém, se chamado como ocupante de res nullius,
aplica-se o direito local.
8°) As formalidades exigidas para aceitar a herança a benefício do inventário ou para fazer uso
do direito de deliberar se ajustarão à lei do lugar em que se abra a sucessão.
9°) Aplica-se a lei pessoal do de cujus à nomeação do contador e ao pagamento das dívidas
hereditárias.
Como bem adverte Oscar Tenódo, os preceitos do Código Bustamante vigoram no Brasil através
de um processo de adaptação com a lei ordinária interna. Apenas em um ponto sua aplicação não se
fará: na colisão com o Texto Constitucional sucessório.
Prossegue o emérito e saudoso jurista:
"Num estudo comparativo entre os preceitos convencionais de Havana e o da Lei de Introdução
ao Código Civil, verificamos uma coincidência nos pontos substanciais. Ambos os diplomas legais
adotam o princípio da universalidade das sucessões, pois mandam aplicar a lei pessoal do de cujus,
qualquer que seja a natureza dos bens e o lugar em que se encontram (Cód. Bus., art. 144; Lei de
Introd., art. 10). Refere-se o direito brasileiro apenas à sucessão, ao passo que o Código Bustamante
explicitamente fala nas sucessões legítimas e nas testamentárias, pois igual é o tratamento legal
concedido aos dois tipos de sucessão. Somente se diverso fosse o tratamento, a enunciação
encontraria sua justificativa. Tecnicamente, o critério brasileiro é melhor do que o do direito
convencional.
Limitando-se a falar na lei pessoal do de cujus o Código Bustamante ficou no meio do caminho,
mas de certa forma colocou a matéria na dependência do direito de família, com as peculiaridades
reinantes no direito sucessório. A Lei de Introdução considera como lei pessoal do de cujus a lei do país
em que era domiciliado o defunto, ou o desaparecido. A sucessão por ausência não se afasta das
sucessões em geral para a sua regulação.
"Dispensou-se o legislador brasiléiro de determinar o âmbito da lei das sucessões, colocando a
matéria, ao que parece, na órbita dos princípios gerais da sucessão no direito interno do país do
domicílio do de cujus. Mas poderá surgir controvérsia neste particular, em virtude das legislações não
adotarem as mesmas referências. E o juiz brasileiro poderá ser assaltado pela dúvida, ante a lei a
aplicar, quando o problema for apresentado no Brasil, em relação à sucessão regida pela lei pessoal
estrangeira. O Código Bustamante não comporta neste ponto muitos debates. Inclui na lei pessoal do
de cujus a ordem da sucessão, a quota dos direitos sucessórios e a validade intrínseca das disposições
testamentárias. Mas o faz em caráter simplesmente exemplificativo. Pela redação do art. 144, as
matérias enunciadas têm um tratamento legal determinado, segundo a lei pessoal do defunto. Outras
matérias não especificadas também podem ser incluídas na lei pessoal, circunstância que não poupa
ao intérprete a dificuldade na aplicação da lei das sucessões.
"Num e noutro diploma o problema das qualificações não é estranho à cogitação do juiz.
"Não contém a Lei de Introdução dispositivo especial de ordem pública sobre as sucessões. O
aplicador tem de considerar a regra ampla do art. 17. Os preceitos de proteção contidos no nosso
direito em relação a herdeiros brasileiros e bens situados no Brasil são imperativos, revestidos que
estão de critérios da chamada ordem pública absoluta. O Código de Direito Internacional Privado
contém regras gerais sobre a ordem pública de aplicação a todos os institutos, sem prejuízo da regra
específica contida no art. 145, segundo a qual é de ordem pública internacional o preceito em virtude do
qual os direitos à sucessão de uma pessoa se transmitem no momento de sua morte.
"Torna-se complexa a questão no domínio da ordem pública, de conceito interno, em suas
relações com a ordem pública convencional. Em princípio, fazem parte do sistema jurídico de cada uma
das partes contratantes. Assim, a rigor, não deveremos falar em inaplicabilidade de norma de tratado
por contrária à ordem pública. Aplica-se a orientação ao direito sucessório.
"Embora a sucessão testamentária se reja pela mesma lei da sucessão legítima, pois a Lei de
Introdução não distingue uma da outra, alguns princípios lhe são aplicados especialmente.
A lei domiciliar do testador regula a capacidade de testar é o que resulta do preceito do art. 7°- da
Lei de Introdução ao Código Civil, também consignado em outras legislações. Quase todas as questões
de testar relativas à idade, à sanidade, e outras, se resolvem de acordo com a lei pessoal do testador.
O fundamento da regra é de que a capacidade de testar é pormenor da capacidade exigida para todos
os atos jurídicos.
Podendo ocorrer a mudança de domicílio, precisamos saber, no Brasil, na falta de texto
expresso, qual a melhor solução. Pela sistemática do art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil, que
diz que a capacidade se regula pela lei do país onde a pessoa tem domicílio, a lei domiciliar
contemporânea do ato é, ao que parece, a que deve ser consagrada. O art. 1.268 do Código Civil
dispõe que a incapacidade superveniente ao ato de testar não invalida o testamento, o que mostra que
o legislador atendeu ao momento da disposição e não ao momento da morte".
A exceção de ordem pública também desempenha papel considerável em matéria sucessória,
sobretudo diante da aplicação do estatuto pessoal do de cujus sobre bens situados em outro país. Nas
conferências da Haia a matéria sucessória, apesar do acordo em princípio de submetê-la à lei pessoal
do defunto, tropeçou sempre no obstáculo de recolher, em uma reserva geral de ordem pública ou em
várias reservas especializadas, as disposições de seu regime sucessório que cada um dos Estados
considerava não poderem ficar inaplicadas, a título da lei pessoal do de cujus, se uma estrangeira fosse
competente.
25.12. Vantagens da lei única
No aspecto teórico, porém, são indubitáveis as vantagens que revestem o submetimento da
sucessão a uma lei única. A conexão das sucessões com o regime econõmico de um país mostra com
clareza uma relação, muito clara, entre a legislação sucessória e a que rege as relações familiares.
Segundo a abalizada opinião de Lewald, ao princípio da universalidade da sucessão em direito
internacional não pode corresponderem direito internacional privado mais do que o princípio da
unidade. A sucessão inteira deve estar submetida a uma só legislação; não deve a revelação
sucessória estar submetida a mais
de uma legislação. O caráter das leis sucessórias conduz à mesma conclusão: é quase impossível
desconhecer o laço interno que existe entre o direito das sucessões e o direito de família. Em todas as
legislações, exceção feita àquelas em que sobrevivem idéias feudais, a ordem sucessória está baseada
na organização da família. A história do direito romano das sucessões dá fé disso: cada mudança da
constituição da família teve sua repercussão no direito das sucessões. Não é, pois, lógico submeter as
sucessões à mesma lei que organiza e sanciona as relações de família?
Razões de ordem prática abonam a mesma solução: com o sistema do fracionamento, uma
disposição testamentária pode validar-se para os bens situados em um país e nulificar-se com relação
aos que o defunto possuísse em outro Estado.
Contudo, os conflitos de leis sobre sucessões parecem insolúveis, impondo-se, para atenuá-los,
a celebração de tratados que adotem preceitos mais ou menos uniformes. O principal problema é o da
lei que deve reger a matéria.