5 de outubrode 1994-MariaGabrielaLLansol

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5 de outubro de 1994 1 “Há sempre uma noite terrível para quem se despede / do esquecimento.” O Anjo de Eros ardia, encostado à chaminé; falava baixo; repetia, com tempo , o mesmo som. Olhando a chuva, o meu corpo tinha vontade de apagar todas as luzes e, se alguém viesse de fora e batesse, inocente deste mundo de chama, à porta, o anjo sentiria, inevitavelmente, que ele era estranho ao lugar e à chama. Por a chama ser, como o sexo, uma afirmação da vontade própria, ele contemplava-se nela, ardendo: erguiam-se do lume labaredas com plena consciência de decidir; defender- se do não-ser, pensei, é partilhado por ele e pelos animais e pelas pedras e também pela “noite sacrificada / ao pavor e à alegria”. Porque, afinal, tudo o que se passava “onda que se abre / no corpo” passava-se dentro de mim. Alguém bateu à porta, ainda longe, precisamente onde a grande sala principiava, e perguntou-me com aquela voz com que os jovens hesitam nas perguntas: — Esta é a corte onde Eros vem buscar o seu Anjo? — perguntou-me, metendo um pé à porta, e acrescenta que só 1 As frases entre aspas assim como, transformada, a frase que começa por “Incendias povoações…” pertencem a um poema de Herberto Helder que tem por título “O Lugar”. Começou por ser uma voz rouca por detrás do biombo. Era ao fim da tarde numa Lisboa de 1964, pluviosa, cinzenta. No quarto, cai a sombra. Por detrás do biombo a voz ilumina, aos poucos, a imagem campestre que traz desenhada no pano, em outro lugar de que, então, ignorava o nome: o ponto voraz, «o fim espelhado da terra», como dizia o poema. (A data que lhe atribuo hoje é a do dia em que o enviei para o Jornal de Letras para fazer parte de um dossier sobre Herberto Helder. Na realidade, escrevi-o um ano antes, a 7 de novembro de 1993.)

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trecho do livro Inquérito às quatro confidências

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5 de outubro de 19941Hsempreuma noite terrvelpara quem sedespede / doesquecimento.O Anjo de Eros ardia, encostado chamin! "alava #ai$o! repetia, com tempo,o mesmo som. Olhando a chuva, o meu corpo tinha vontade de apa%ar todas aslu&ese, seal%umviessede"orae#atesse, inocentedestemundodechama, porta,o anjosentiria, inevitavelmente,que ele eraestranho aolugare chama. 'or achama ser, como o se$o, uma a"irma()o da vontade pr*pria, ele contemplava+senela, ardendo, er%uiam+sedolumela#aredascomplenaconsci-nciadedecidir!de"ender+se do n)o+ser, pensei,partilhado por ele e pelos animais e pelas pedrase tam#m pela noite sacri"icada / ao pavor e ale%ria.'orque, a"inal, tudo o que se passava onda que se a#re / no corpopassava+se dentro de mim. Al%um #ateu porta, ainda lon%e, precisamente onde a%rande sala principiava, e per%untou+me com aquela vo&com que os jovens hesitam nas per%untas,.EstaacorteondeErosvem#uscar oseuAnjo/.per%untou+me,metendo um p porta, e acrescenta que s* conhece a noite que#rada da prticado amor, . 0as pressinto . a"irma . que outras rique&as sur%em. . 'enso, paramim, que se uma a#elha me procurasse nos l#ios,ondeprocuraria sa#erseelapousapara me morder, ou para me "alar, mas di%o+lhe somente o que o poeta di&, 'edemtanto a quem ama, pedem / o amor. Ainda pedem / a solid)o e a loucura.1a sala + onde estou so&inha com a chama, e Eros sentado, ou sentada, nacadeira em que ha#itualmente ponho os ps,o sil-nciode pedra / escura, iluminada.2enho, "inalmente, va%ar paracontemplar demoradamenteoencontrodoAnjo com o seu Eros. 3 o meu corpo que incendeia a chama444444444444444444444444444444444444che%ouomomentoemquevoudei$ar dease%uir comoolhar. 5e a chama sair da janela, o meu corpo recondu&i+la+ ao seu lu%ar para quen)oconsumaaa#erturadajanela, edepoisoar e$terior e, por "im, todaarespira()odo6niverso! ponhoam)oqueescrevenojoelhodeEros, m)ode7 0aria 8a#riela 9lansol + :nqurito s ;uatro ovem in"initamente estranha, penso.. :n"initamente estranha tu s, * ?isitante + di& o Anjo ., t)o in"initamentedi"erente do que jul%as que s. :ncendeias povoa(@es, rou#as e matas, e ale%ras omundo, e aterrori&as, e queimas os lu%ares reticentes deste mundo.A. 5e tiveres um vislum#re de quem sou . di&+lhe a jovem ., e de quemme levou a olhar para ti, neste lu%ar da sala,tira+me a vo&, e d+me a arte de durar, de transmutar o corpo, e de ter m)os que crescem.1a sala, onde estou so&inha com a chama 4444444.A As "rases entre aspas assim como, trans"ormada, a "rase que come(a por :ncendias povoa(@esBpertencem a um poema de Her#erto Helder que tem por ttulo O 9u%ar.