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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Ttulo em ingls: Xucuru: memories and history of the Serra do Ororub

    Indians (Pesqueira/PE), 1959-1988

    Palavras chaves em ingls (keywords) :

    rea de Concentrao: Histria social da cultura

    Titulao: Doutor em Histria

    Banca examinadora:

    Data da defesa: 11 03-2008

    Programa de Ps-Graduao: Histria

    Xucuru Indians - HistoryIndians Pesqueira (PE) - HistoryBrazil, Northeast

    Memory, history

    John Manuel Monteiro, Joo Pacheco de Oliveira,Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, Maria CristinaPompa, Robert Wayne Andrew Slenes

    Silva, Edson HelySi381x Xucuru: memrias e histria dos ndios da Serra do Ororub(Pesqueira/PE), 1959-1988/ Edson Hely Silva. - Campinas, SP :[s. n.], 2008.

    Orientador: John Manuel Monteiro.Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. ndios Xucuru - Histria . 2. ndios Pesqueira (PE) .3. Brasil, Nordeste. 4. Memria - Histria. I. Monteiro, JohnManuel. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto deFilosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    crl/ifch

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    AGRADECIMENTOS

    Agradecer , antes de tudo, um ato de humildade. reconhecer, e aqui de

    forma pblica, as muitas pessoas que contriburam de diferentes maneiras e em

    diversos momentos para a realizao e concluso deste estudo, desta etapa de vida.

    tambm, como sempre, correr o risco do esquecimento de nomes. queles/as aquem possivelmente esqueci de agradecer, peo minhas antecipadas e sinceras

    desculpas.

    Sou grato:

    Ao povo Xukuru, na pessoa de D. Zenilda, que tantas vezes me acolheu

    generosamente em sua casa, nas viagens da pesquisa;

    A Jnior, o homem do vitr, meu motoboy nas muitas idas e vindas pelas

    estradas, caminhos e veredas das aldeias espalhadas na Serra do Ororub,dividindo comigo as alegrias e frustraes nas conversas e entrevistas com os

    cabcos vios Xukuru;

    A Zinha, esposa de Jnior, pelas acolhidas tambm sempre generosas;

    Ao Cacique Marcos e s lideranas Xukuru, pela confiana e apoio irrestrito;

    Aos/s entrevistados/as que, ao me receberem abriram a intimidade de suas

    casas, de suas vidas e de suas histrias;

    A Sheila S, Carlos Perez, Gessy Stancke, Maria Elizabeth Bre, Grson

    Togo Teodoro, Snia Coqueiro e ainda a Carlos Augusto R. Freire no Museu do

    ndio/RJ, pela acolhida sempre amvel, pela disponibilidade, pelo amplo acesso aos

    microfilmes e as valiosas indicaes para pesquisas nos documentos do SPI. Tenho

    tambm dvidas de gratido com Gessy Stancke, pelas fotos das panelas Xukuru e

    de documentos do acervo de Curt Nimuendaj no Museu Nacional/RJ, e com Sheila,

    pela explcita solidariedade no meu tempo de estada no Rio de Janeiro;

    A Antonio de Souza Torres Souza, o Souza, pelas fotos antigas e indicaes

    sobre Pesqueira;A Karla Melanias, pela disponibilizao do acervo de suas pesquisas pessoais

    e as indicaes sobre o acervo de Curt Nimuendaj, no Museu do Estado de

    Pernambuco (MEPE), bem como a Jozelito Arcanjo, por me favorecer o amplo

    acesso documentao do MEPE.

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    Ao pessoal do Conselho Indigenista MissionrioRegional Nordeste (Cimi-

    NE): especialmente a Roberto Saraiva, Otto, pelo apoio, amizade e o amplo e

    irrestrito acesso documentao. A Carol, guardi dessa documentao sempre

    disponvel e pelas fotografias que esto no corpo da Tese;

    Ao pessoal da equipe de Educao Escolar Indgena do Centro de Cultura

    Lus Freire, pela disponibilidade das informaes, sempre que solicitadas, e pela

    torcida;

    A Hildo Leal da Rosa e Marclia Gama, no Arquivo Pblico de Pernambuco,

    pelas indicaes e favorecerem o acesso documentao;

    A Ana Paula Pacheco e a Prof. Ftima Nascimento no Setor de Etnologia/

    Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, pelo acesso s panelas

    Xukuru;

    Prof. Marlia Fac Soares, no Setor de Lingstica do MuseuNacional/ UFRJ, pelo acesso documentao microfilmada e s fotografias do

    acervo Curt Nimuendaj. A Adilson Fonteneles, pela gentileza, disponibilidade e

    cuidado com que me auxiliou na reproduo das fotografias;

    A Kelly Oliveira pela cesso das fotos e a Lusival Barcelos; e tambm ao meu

    irmo Manoel Aires pelas leituras, comentrios e observaes na primeira verso do

    texto para o Exame de Qualificao; ao amigo Robson Dantas, igualmente pela

    leitura e ainda pelos livros enviados dos sebos de So Paulo.Aos/s colegas do Projeto Sossanin, da Fiocruz/Aggeu Magalhes: Andr,

    Carlos Pontes, Id, Evani, Tatiane, Glaciene, Ludimila, pela amizade firmada nas

    pesquisas sobre ambiente e sade entre os Xukuru do Ororub, pelo incentivo e a

    carinhosa cobrana da Tese;

    Ao CNPq, pela Bolsa Doutorado Sanduche no Pas, que possibilitou minha

    estada no Rio de Janeiro, em 2005, onde, alm de pesquisar no Museu Nacional,

    sob a orientao do Prof. Joo Pacheco de Oliveira, favoreceu tambm a pesquisa

    no acervo do SPI no Museu do ndio, de grande importncia para a elaborao da

    Tese;

    Ao Prof. Marcus Carvalho, do PPGH/UFPE, pelo permanente incentivo e pela

    amizade. Quero lembr-lo que em grande parte, o responsvel por essa difcil, mas

    recompensadora aventura chamada Doutorado;

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    Ao Prof. Joo Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ), pelas conversas, orientaes e

    indicaes sempre valiosas no Rio de Janeiro durante o perodo da Bolsa Doutorado

    Sanduche no Museu Nacional em 2005, e durante o tempo em que esteve no

    Recife, em 2006/2007, para as discusses e montagem da exposio ndios: os

    primeiros brasileiros;

    Ao Prof. John Monteiro, pela acolhida bastante amigvel e sempre

    incentivadora, as observaes e comentrios valiosos nas apresentaes de

    comunicaes, embries de captulos da Tese, durante os GTs que organizou e

    coordenou por ocasio dos Simpsios Anuais da ANPUH. Meu reconhecimento pela

    orientao, confiana e credibilidade que me foi dispensada;

    A Mariana Franozo, pela gentileza, disponibilidade, solidariedade e empenho

    em resolver as questes burocrticas junto Secretaria da Ps-Graduao em

    Histria no IFCH/UNICAMP.A Cristina Malta, pela ateno, gentileza e disponibilidade com que aceitou o

    meu pedido de correo da Tese;

    Aos Encantados Xukuru, que me acompanharam o tempo todo e durante todo

    o tempo na escrita dessa histria, que deles.

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    DEDICATRIA

    Parameus filhos Potyguara e Tayguara, e o/a adotado/a Mikael e Rafaelle,

    pelo roubo do convvio durante o tempo de escrita do livro, como eles falavam,sobre os ndios;

    Para minha me. Mulher negra, pobre e agricultora precoce. Expulsa, ainda

    adolescente, com sua famlia, das terras em poder de usineiros na Zona da Mata

    Norte em Pernambuco, veio morar nos mangues fronteirios de Olinda e Recife.

    Semi-analfabeta, empregada domstica, mulher de fibra que criou (sabe Deus l

    como!), 18 filhos!

    Para minha companheira Vilma, pelo amor, incentivo e apoio constante,mesmo nos inmeros momentos de mau-humor.

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    Em memria de:

    Seu Co Pereira,

    Seu Herculano,

    Z Cioba,

    Seu Gercino,

    que, como dizem os Xukuru do Ororub, se encantaram.

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    RESUMO

    Este estudo procurou, a partir das memrias orais dos ndios Xukuru e da

    pesquisa em registros escritos, discutir as conexes temporais entre as mobilizaes

    indgenas pelas terras, nos anos 1980, e as ocorridas na dcada de 1950, quando os

    Xukuru conquistaram o reconhecimento oficial com a implantao de um Posto do

    Servio de Proteo aos ndios (SPI) na Serra do Ororub, em Pesqueira/PE Em

    ambos os perodos, os ndios afirmaram seus direitos baseados nas memrias de

    seus antepassados que receberam as terras como recompensa pela participao na

    Guerra do Paraguai, em um contexto de disputas pelas terras do oficialmente extinto

    Aldeamento de Cimbres/Ororub em fins do sculo XIX. A pesquisa das memrias

    possibilitou perceber os elos de uma histria coletiva, de um pertencimento em um

    conjunto de situaes e experincias histricas que conferem uma identidade

    baseada em um espao ancestral comum. Nos relatos das memrias orais dos

    Xukuru do Ororub, possvel perceber outros acontecimentos que expressaram o

    cotidiano, os espaos e momentos de sociabilidades vivenciados na Serra do

    Ororub, o significado de Cimbres como um espao de referncia da memria

    mtico-religiosa para a afirmao da identidade do grupo, as relaes de trabalho

    com os fazendeiros ou como operrios na indstria, em Pesqueira. E ainda nas

    atividades exercidas para sobrevivncia por falta de terras e em razo da seca, nalavoura canavieira na Zona da Mata Sul pernambucana e Norte alagoana ou nas

    plantaes de algodo no Serto paraibano. So fragmentos colhidos de relatos

    individuais, de memrias autobiogrficas, mas que fazem parte de uma histria

    coletiva. As reflexes aqui apresentadas procuraram evidenciar como os Xukuru do

    Ororub, apoiados na memria e na histria que compartilham sobre o passado,

    fazem a releitura de acontecimentos que escolheram como importantes, para afirmar

    seus direitos enquanto um povo indgena, a partir do vivido, do concebido e do

    expressado.

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    ABSTRACT

    This research analyzed the oral memories of Xukuru Indians as well as written

    records in order to understand temporal connections between their fights for land inthe 1980s and those that happened in the 1950s, when the establishment of an office

    of the SPI in Ororub Sierra, in Pesqueira/PE gave the Xukuru official recognition. In

    both periods, the Indians claimed their rights because they recalled that their

    ancestors had received the land as a reward for participating in the War of Paraguay,

    in a dispute for the land of the officially extinct Village of Cimbres / Ororub in the end

    of the nineteenth century. The research brought out elements of these Indians

    collective history as well as of a number of their shared historical experiences, which

    confer them an identity based on a common ancestral space. Accounts of the Xukuru

    of Ororubs oral memories comprise moments that express their everyday life,

    places, and social activities created in Sierra Ororub pointing out the significance

    of Cimbres as a space of reference for their mythical-religious memory, which

    supports the identity of the group in addition to employment relations with farmers

    and experiences as factory workers in Pesqueira. The Indians also report activities,

    performed for survival due to lack of land and drought periods, in sugar-cane

    plantations in Zona da Mata, in the South of Pernambuco and in the North of Alagoas,

    as well as in cotton plantations in Parabas Serto. Such information emerges from

    fragments of individual accounts, from autobiographical memories, which are

    nonetheless part of their collective history. The findings presented here try to

    elucidate how the Xukuru of Ororub, relying on memory and on their shared past

    history, reinterpret events they consider important to guarantee their rights as

    indigenous people, considering what they have experienced, conceived and

    expressed.

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    SIGLAS

    ANPUH Associao Nacional de Histria

    BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento

    CEHM Centro de Estudos de Histria Municipal (Recife)

    Condepe Companhia de Desenvolvimento de Pernambuco (Recife)Cimi-NE Conselho Indigenista Missionrio/Regional Nordeste (Recife)

    CNPI - Conselho Nacionalde Proteo aos ndios

    CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil.

    CMI Conselho Mundial de Igrejas.

    CPT Comisso Pastoral da Terra.

    Dops Delegacia da Ordem Poltica e Social

    Fiam Fundao de Desenvolvimento Municipal do Interior de Pernambuco

    Funasa Fundao Nacional de Sade

    IAHGP Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico de Pernambuco.

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatstica.

    IFCH Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (UNICAMP).

    IR4 4 Inspetoria Regional do SPI (Recife).

    MEPE Museu do Estado de Pernambuco.

    MN Museu Nacional (Rio de Janeiro).

    PFL Partido da Frente Liberal

    PT-PE Partido dos Trabalhadores/Diretrio Estadual de Pernambuco.

    SPI Servio de Proteo aos ndios.

    Sudene Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste.

    UFF Universidade Federal Fluminense

    UFPB - Universidade Federal da Paraba.

    UFPE - Universidade Federal de Pernambuco.

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro.UNICAMP Universidade Estadual de Campinas.

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    LISTA DE ILUSTRAES E FOTOGRAFIAS

    Pg.Seu Gercino.........................................................................................................18

    Localizao da rea Indgena Xukuru em Pesqueira/PE (mapa)..........................19

    Localizao Geogrfica das Aldeias Xukuru (mapa)..............................................26

    Joo Mundu. O caboclo pernambucano do sculo XIX.......................................31

    Cabocla do Paje...................................................................................................32

    Carta de Curt Nimuendaj sobre os Xukuru em 1934...........................................49

    Panelas Xukuru......................................................................................................53

    Bilhete de Jos Romo para Curt Nimuendaj......................................................55

    ndia Xukuru fazendo panela de barro (?)..............................................................56

    O ndio Jos Romo de Siqueira (?)......................................................................57

    Casa de ndios Xukuru em Cimbres (?).................................................................58Famlia Xukuru em Cimbres (?).............................................................................58

    Mapa Geral da Aldeia Xukuru de Ororub.............................................................78

    ndios Xukuru no corredor do Congresso Nacional em Braslia/DF.......................86

    rea Indgena Xukuru Localizao das Aldeias...................................................110

    Mapa Geogrfico Sub-Regies Climticas...........................................................116

    Aldeia Cana Brava................................................................................................135

    Tor na Vila de Cimbres.......................................................................................141

    Festa de N. Sra. das Montanhas na Vila de Cimbres..........................................143

    Romo Jos Barbosa e Antero Pereira na Festa de So Joo, Cimbres 1963...145

    Seu Gercino atuando como Bacurau em Tor na Vila de Cimbres...................152

    Rua da Mandioca..................................................................................................171

    Atual Bairro Xucurus..........................................................................................173

    Casa de Milton......................................................................................................178

    Aldeia Brejinho.....................................................................................................236

    Usurpados os ndios Xigurus (jornal Folha do Povo, 1950)...............................256

    Bispo de Pesqueira: comunistas agem no interior nordestino (jornal Dirio de Per-

    nambuco, 1959)....................................................................................................258

    Cacique Xico em audincia com o Gov. Miguel Arraes (1996).......................265

    Seu Ccero Pereira na Vila de Cimbres.............................................................267

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    Mata na atual Aldeia Pedra dgua......................................................................269

    Mapa Populao Xukuru......................................................................................275

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    SUMRIO

    Pg.

    INTRODUOSeu Gercino, uma trajetria de vida expresso da histria contempornea

    Xukuru. Pelas estradas, nos caminhos e nas veredas na Serra do Ororub: astrilhas da pesquisa.................................................................................................. .16

    CAPTULO IOS CABOCLOS DA SERRA DO ORORUB1.1. A construo do caboclo: a fala oficial, intelectuaise olhares literrios ....281.2. Remanescentes, caboclos mesclados e restos dos ndios Sukur de

    Cimbres ..........................................................................................................34

    1.3. Os curibocas, os mamelucos e os descendentes de ndios: o olhar do

    Servio de Proteo aos ndios (SPI) .....................................................................591.4. A populao misturada: caboclos, mestios e afro- ndios ..........................64

    1.5.Os caboclos que so ndios: a reflexo contempornea sobre o Nordeste

    indgena .....................................................................................................................75

    CAPTULO IIHISTRIA E MEMRIAS DE MEDIAES E GUERRAS2.1.Conflitos, alianas e milcias armadas na Serra do Ororub ........................80

    2.2. Os Xukuru e a Guerra do Paraguai ..................................................................85

    2. 2.1. Os bravos Voluntrios da Ptria do Ororub ...................................882.3. Guerras, histria e memrias ..........................................................................92

    2.4. Memrias Xukuru sobre a Guerra do Paraguai ..............................................97

    CAPTULO IIIVIVNCIAS, LUGARES E MEMRIAS3.1. Meu pai falava que aqui no tinha branco.................................................108

    3.2.Morador tinha em todo canto aqui em cima da Serra ...............................119

    3.3. O stio como espao de sociabilidades ........................................................131

    3.4. Cimbres, um espao de identidade e memrias ..........................................141

    CAPTULO IVVIAGENS DE IDAS E VOLTAS: A CIDADE, O SUL E O SERTO.

    4.1. Sua majestade, o boi .......................................................................................158

    4.2. De agricultores a operrios nas fbricas ......................................................169

    4.3. Viagens para o Sul e para o Serto ........................................................178

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    CAPTULO VQUEM SO ESSES NDIOS? O PERODO DO SPI5.1. Entre o selvagem, o pitoresco, o moderno e o oficial .................................192

    5.2. A visita do sertanista Ccero Cavalcanti: memrias e leituras indgenas .197

    5.3. Os primeiros contatos com o SPI ..................................................................206

    5.4. A conquista do Posto: a viagem a p ao Rio de Janeiro para falar com oMarechalRondon ...........................................................................................212

    5.5. A instalao e o funcionamento do Posto Xukuru: insatisfao e conflitos

    indgenas pela assistncia oficial .......................................................................227

    5.6. Saberes e rotinas administrativas: retratos do Posto e dos Xukuru.........240

    CAPTULO VIISSO AQUI NOSSO! ISSO DA GENTE!: A PARTICIPAO DOSXUKURU NAS LIGAS CAMPONESAS6.1.As Ligas Camponesas em Pesqueira: contra os taturas integralistas ......2496.2.O perigo comunista e os ndios ignorantes ...............................................254

    6.3. As memrias indgenas sobre a Liga Camponesa e a ocupao de Pedra

    Dgua ....................................................................................................................261

    CONSIDERAES FINAISO vivido, o concebido e o expressado: a histria a partir das memrias ........271

    ANEXOCarta de Agnaldo Xukuru da Priso .....................................................................284

    FONTESImpressas ................................................................................................................286

    Manuscritas ............................................................................................................286

    Entrevistas...............................................................................................................287

    BIBLIOGRAFIA....................................................................................................290

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    Quando eu morrer no tem mais o que contar?! Cada um vai contando suas

    histrias...

    Dona Santa, 89 anos, Aldeia Cape, Serra do Ororub

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    INTRODUO

    Seu Gercino, uma trajetria de vida expresso dahistria contempornea Xukuru. Pelas estradas, nos

    caminhos e nas veredas na Serra do Ororub: astrilhas da pesquisa

    Gercino Balbino da Silva, conhecido por Seu Gercino, faleceu aos 83 anos,

    em junho de 2007. Nasceu em 1924, em Cana Brava, uma das muitas localidades

    espalhadas pela Serra do Ororub, na rea rural da cidade de Pesqueira. Na poca,

    as terras do antigo aldeamento de Cimbres, declarado extinto em fins do sculo XIX,

    estavam invadidas por fazendeiros criadores de gado e senhores de engenhos que

    produziam cachaa e rapadura. Os ex-aldeados ndios Xukuru eram chamados de

    caboclos, tendo assim suas identidades negadas e, consequentemente, o direito as

    suas terras. Muitas famlias indgenas perseguidas e expulsas se dispersaram pela

    regio, foram para as periferias das cidades e capitais. Algumas poucas resistiram

    em pequenas glebas de terras, os stios, na sua maioria em locais de difcil acesso.

    A grande maioria passou a trabalhar em suas prprias terras, tomadas pelos

    invasores.

    Uma grande produo de leite era contabilizada no municpio de Pesqueira.Fartura para poucos, misria para muitas famlias Xukuru. poca difcil, rememorada

    por Seu Gercino. Tempos de muita fome, com muitas crianas mortas por

    desnutrio, como demonstram os prprios dados oficiais nos arquivos da Prefeitura

    Municipal. O menino Gercino foi um dos sobreviventes.

    Sem terras para plantar e viver, os pais de Gercino foram morar em Stio do

    Meio, tambm na Serra do Ororub, com os avs do menino, que trabalhavam de

    alugado para um fazendeiro local. Desde criana, Gercino enfrentou uma vida dura.

    Com oito anos, trabalhava no cabo da enxada. Trabalho tambm de alugado,

    ganhando cinco tostes por dia. Metade da diria paga a um trabalhador adulto.

    Assim como as demais famlias indgenas na Serra do Ororub, alm do

    trabalho alugado os familiares de Gercino eram moradores nas terras em mos dos

    fazendeiros. Moravam de favor e plantavam roa: milho e feijo, para a

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    subsistncia. Com o compromisso de plantar tambm o capim para o gado do

    invasor. Muitas vezes, mal dava tempo para a colheita, pois, com o milho ainda

    verde, o fazendeiro soltava o gado, destruindo a roa. Se reclamassem eram

    expulsos, sem direito algum, a casa derrubada e o terreno transformado em plantio

    de pasto. Na lgica capitalista, terras para bois no era lugar de gente!

    Nos tempos em que a seca atingia o Agreste e at a Serra do Ororub, Seu

    Gercino acompanhava seus parentes xukurus que migraram para o Sul, como

    chamavam a Zona da Mata Sul de Pernambuco, para trabalhar nos canaviais, nas

    usinas de cana-de-acar. Na esperana de retornar trazendo um pouco de dinheiro

    para os familiares que ficaram como os mais idosos, mulheres, crianas, todos que

    no puderam ir. Outros iam para o algodo, trabalhar em plantios no serto

    paraibano.

    A viagem para o Sul era muito penosa. Feita a p. Com poucos vveres,eram percorridos muitos quilmetros em dois dias. Pela caatinga seca at a cidade

    de Caruaru e dali continuavam a caminhada pelas matas de Bonito, at a regio dos

    canaviais. Enfrentavam vrios perigos, alm dos ataques de animais, o risco de

    assaltos e emboscadas, principalmente no retorno, quando portavam os valores

    ganhos no trabalho, s vezes de at quatro meses.

    Mas, mesmo com toda a excluso imposta pelos fazendeiros, os Xukuru,

    espremidos em seus pequenos stios, como moradores ou trabalhando nas fazendase nos engenhos, por meio dos mutires, das festas e novenas realizadas em vrios

    locais na Serra do Ororub, vivenciavam intensos laos e situaes de solidariedade.

    Seu Gercino recordou os namoros iniciados durante as novenas, muitos se

    tornariam futuros casamentos.

    Participante no Tor, sempre danado anualmente na Vila de Cimbres, em 23

    de junho, nas festas de So Joo, Ca para os ndios, e em 2 de julho e nos festejos

    de Nossa Me Tamain, para os catlicos romanos Nossa Senhora das Montanhas,

    com doze anos Gercino recebeu a incumbncia de substituir o antigo Bacurau, o

    guia na frente dos que danam o Tor. Exerceu essa funo com maestria,

    desenvoltura e beleza at ser impedido pela doena. Pois, mesmo com o peso dos

    anos de idade, estava l firme como o Bacurau, durante o Tor, aps as reunies e

    nas festas realizadas na Vila.

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    Seu Gercino esteve ao lado do Cacique Xico, de quem recebia

    publicamente expressas manifestaes de muita estima e considerao, nas

    mobilizaes contemporneas dos Xukuru do Ororub em busca de seus direitos.

    Acompanhou Xico nas muitas viagens dos xukurus ao Recife e a Braslia, onde

    foram pressionar a Funai e os demais rgos pblicos, bem como realizar

    articulaes com aliados, parceiros da sociedade civil, nas denncias das

    perseguies, violncias e assassinatos de lideranas Xukuru, nas reivindicaes

    pela demarcao das terras indgenas.

    Era morador na Aldeia Pedra dgua, local considerado sagrado, onde, no

    incio dos anos 1960 ocorreu, com a participao Xukuru, uma ocupao promovida

    pela Liga Camponesa, violentamente reprimida pelas foras golpistas de 1964. Nas

    mobilizaes dos Xukuru do Ororub pelas suas terras, no incio dos anos 1990, com

    a participao de Seu Gercino, Pedra dgua foi a primeira rea a ser retomada deposseiros que estavam desmatando a localidade. E, por isso, o local se tornou um

    marco na organizao e mobilizao indgena nas retomadas de terras em poder dos

    fazendeiros e na reivindicao pela demarcao oficial do territrio. Com a

    demarcao das terras, em 2001, Seu Gercino viu a concretizao do sonho to

    esperado, que vem possibilitando a fartura, o vicejar da vida, a dignidade e uma nova

    etapa na histria do povo Xukuru.

    Seu Gercino(Arquivo CIMI-NE, s/d)

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    A trajetria de vida de Seu Gercino a expresso da histria contempornea

    Xukuru!A histria deum octogenrio, bastante doente, mas lcido e muito ativo, que

    rememorava com sabedoria e vivacidade a histria do povo Xukuru por meio das

    histrias de seus antepassados, da sua prpria histria de vida. Ele partiu. Encantou-

    se... Foi se encontrar, como diz um dos cantos do Tor Xukuru do Ororub, na

    aldeia sagrada, com tantos outros, mortos ou matados: Seu Ccero Pereira, Z

    Cioba, Seu Herculano, Dona Du, Xico, Xico Quel... idosos e idosas, sbios e

    sbias Xukuru do Ororub, que nos ltimos cem anos marcaram a histria de seu

    povo, na busca por seus direitos enquanto um povo indgena. Foi essa histria que

    buscamos pesquisar, compreender e analisar.

    LOCALIZAO DA REA INDGENA XUKURU EM PESQUEIRA/PE

    Fonte: Folha de So Paulo, So Paulo, 07/04/1996, p.11.

    Pelas estradas, nos caminhos e nas veredas da Serra do Ororub: astrilhas da pesquisaEsta pesquisa se insere dentre aqueles estudos que vm sendo realizados

    nos ltimos vinte anos sobre os chamados ndios misturados no Nordeste. Esses

    grupos, que se mobilizam desde as primeiras dcadas do sculo XX, colocando em

    questo crenas e afirmaes sobre o desaparecimento indgena na Regio aps

    extino dos aldeamentos, a partir de meados do sculo XIX, conquistaram

    considervel visibilidade poltica em anos recentes. Constituindo-se, portanto, em

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    um tema a ser discutido na rea de Histria, malgrado ainda preconceitos e o quase

    desconhecimento, expresso pelos escassos estudos sobre o assunto, nessa rea do

    conhecimento.

    A escolha e o interesse para um estudo sobre os Xukuru do Ororub,

    habitantes em Pesqueira/PE, decorreu da forma evidente como, dentre os grupos

    que vivenciaram a chamada emergncia tnica, esse povo ocupou e ocupa um

    lugar de destaque em meio s mobilizaes, disputas e articulaes polticas. Seja

    nos embates com os fazendeiros invasores do territrio reivindicado por esses

    indgenas, seja junto aos rgos pblicos, na busca pelo reconhecimento e garantia

    de seus direitos, ou ainda nas articulaes com a sociedade civil. A partir de uma

    pesquisa documental e em relatos de memrias orais de indivduos Xukuru do

    Ororub, procurou-se compreender como esse povo, a partir das experincias

    vivenciadas, estabeleceu relaes com a histria e expressa as interpretaes quefazem do passado em funo das situaes do presente.

    Os conflitos entre os Xukuru e os fazendeiros se tornaram mais latentes aps

    a extino do Aldeamento de Cimbres, em fins do sculo XIX. Nos anos seguintes os

    Xukuru tiveram a identidade indgena sistematicamente negada, ao serem

    considerados e chamados de caboclos. Oficialmente no tinham o mnimo dos

    direitos reconhecidos, como as penses previstas em lei para os descendentes dos

    ex-combatentes naquela Guerra. Essa situao e as condies em que viviam, comsuas terras espoliadas, motivaram a articulao de apoios para uma mobilizao

    Xukuru, em meados dos anos 1950, em busca da assistncia do SPI que atuava no

    Nordeste desde as primeiras dcadas do Sculo XX, junto aos Fulni-, um grupo

    indgena vizinho. A conquista do reconhecimento pelo SPI, porm, no ps fim aos

    conflitos por terras, uma vez que o rgo governamental no tinha uma poltica

    fundiria para os ndios no Nordeste, permanecendo as disputas nos anos seguintes.

    Em meados dos anos 1980 os Xukuru se mobilizaram e participaram

    ativamente nos debates em torno da Assemblia Nacional Constituinte e para

    elaborao da nova Constituio, no ano de 1988. Apoiados e custeados pelo Cimi-

    NE, grupos de Xukuru, juntamente com os de outros povos indgenas no Nordeste,

    viajaram por diversas vezes a Braslia, onde participaram de encontros de estudos,

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    seminrios, etc., e para fazer presses sobre os deputados que discutiam a

    elaborao da nova Constituio.

    A presena dos Xukuru na Capital Federal, em conjunto com ndios vindos das

    demais regies do Brasil, num momento poltico to significativo, em muito

    impulsionou a organizao e mobilizao Xukuru nas reivindicaes pelas terras.

    Aps retornarem da Capital Federal, assessorados pelos missionrios do Cimi-NE os

    Xukuru promoveram reunies em vrias localidades na Serra do Ororub, para

    relatar os acontecimentos vivenciados em Braslia, bem como tratar sobre os direitos

    indgenas garantidos na nova Constituio. Nesse processo, destacou-se a liderana

    de Francisco de Assis Arajo, o Xico, que, mais tarde, seria escolhido Cacique do

    povo Xukuru.

    No final dos anos 1980 a afirmao, pelos Xukuru, do direito s terras

    reivindicadas, acirrou os conflitos entre os ndios e os fazendeiros, na Serra doOrorub, e nesse perodo os indgenas repetidamente se reportaram a

    acontecimentos do passado, para legitimar os direitos sobre o territrio reivindicado.

    Essas memrias remetem ao sculo XIX quando da participao dos ndios, como

    voluntrios da ptria, na Guerra do Paraguai, e o processo de extino do

    Aldeamento de Cimbres, na Serra do Ororub, em 1879. Ao afirmarem os direitos

    sobre as terras onde habitam, em constantes conflitos com os fazendeiros invasores,

    os Xukuru dizem que esses direitos lhes foram garantidos pelo Governo Imperial,como recompensa pela participao dos seus antepassados na Guerra do Paraguai.

    O estudo, portanto, procurou a partir das memrias orais Xukuru e registros

    escritos, compreender as conexes temporais entre as mobilizaes indgenas pelas

    terras, nos anos 1980, e as ocorridas na dcada de 1950, quando os Xukuru

    conquistaram o reconhecimento oficial, com a implantao de um Posto do SPI na

    Serra do Ororub. Em ambos os perodos, os Xukuru afirmaram seus direitos

    baseados nas memrias que seus antepassados receberam as terras como

    recompensa pela participao na Guerra do Paraguai, em um contexto de disputas

    pelas terras do oficialmente extinto Aldeamento de Cimbres/Ororub, em fins do

    sculo XIX. Procuramos ento evidenciar os nexos estabelecidos pelos ndios, por

    meio de suas memrias orais, com o sculo XIX e os anos 1950/1960, e ainda em

    fins da dcada de 1980, quando ocorreu o acirramento dos conflitos nas disputas

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    entre ndios e fazendeiros pelas terras na Serra do Ororub, aps a participao dos

    ndios nas discusses para a elaborao da Constituio de 1988, que garantiu os

    direitos indgenas. A partir da pesquisa dessas memrias e em fontes escritas,

    buscamos demonstrar como os Xukuru vivenciaram diferentes situaes e

    elaboraram estratgias para afirmao da identidade e reivindicao dos direitos

    sobre as terras.

    Para a elaborao do estudo foram realizadas diversas entrevistas e

    registrados relatos orais das memrias Xukuru. Utilizamos tambm, em alguns

    momentos, alm de uma coletnea de depoimentos Xukuru publicados, as

    informaes coletadas por outros estudiosos que pesquisaram aquele povo com

    diferentes abordagens. Realizamos uma pesquisa documental em diferentes fontes

    manuscritas e impressas dos sculos XIX e XX, somando-se a consulta em jornais

    publicados em Pesqueira e no Recife, entre os anos 1940-1980, disponveis noArquivo Pblico de Pernambuco e microfilmados na Fundao Joaquim Nabuco, no

    Recife. Alm disso, buscamos fontes em outros arquivos, como os documentos

    produzidos por Curt Nimuendaj, disponveis no Museu do Estado de Pernambuco

    (MEPE) e no Museu Nacional/RJ, com informaes sobre os Xukuru contidas em

    correspondncias pessoais, fotografias e relatrios elaborados pelo etnlogo alemo,

    que esteve na Serra do Ororub no incio dos anos 1930. Como tambm

    consultamos, no acervo do Museu do ndio/RJ, a documentao do SPI sobre oPosto Indgena Xucuru e os registros da Inspetoria 4 Regional do SPI, relacionados

    quele povo. Acrescentamos ainda ao texto algumas imagens, no sentido de

    contribuir para uma maior compreenso do assunto estudado.

    A pesquisa em documentos histricos procurou situar os acontecimentos a

    que remetem as memrias Xukuru, todavia sempre importante ter presente os

    interesses na produo desses documentos, em sua grande maioria nem sempre

    favorvel aos indgenas. Nesse sentido, procurou-se evidenciar a importncia dos

    relatos das memrias orais, isso porque,

    (...) o uso das fontes orais permite no apenas incorporar indivduos ou

    coletividades at agora marginalizados ou pouco representados nos

    documentos arquivsticos, mas tambm facilita o estudo de atos e situaes

    que a racionalidade de um momento histrico concreto impede que

    apaream nos documentos escritos. Assim, portanto, as fontes orais

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    possibilitam incorporar no apenas indivduos construo do discurso do

    historiador, mas nos permite conhecer e compreender situaes

    insuficientemente estudadas at agora. (ALCAZAR I GARRIDO, 1992/1993,

    p. 36).

    As entrevistas foram realizadas utilizando questes abertas, para favorecer

    ao/ entrevistado/a um relato mais livre e amplo, interrompido algumas vezes quandonecessrio um melhor esclarecimento dos assuntos narrados. Privilegiamos

    entrevistar os/as ndios/as mais velhos/as, pessoas com idades entre 50 e at mais

    de 80 anos, que em suas narrativas rememoram lembranas de vivncias em suas

    infncias e juventudes, objetivando obter informaes sobre a questo da terra, os

    conflitos com os fazendeiros, as disputas internas, as relaes de trabalho, o

    cotidiano, as formas de lazer, as cerimnias e os ritos religiosos, as memrias sobre

    a Guerra do Paraguai, as mobilizaes para a instalao e as relaes com o Posto

    do SPI, e tambm quais os indcios que aparecem delas na documentao

    pesquisada.

    Na elaborao do primeiro captulo a finalidade foi apresentar e analisar como,

    desde os fins do sculo XIX, aps a extino dos aldeamentos e at os anos 1960,

    as autoridades oficiais e diferentes pesquisadores, em artigos e livros publicados,

    sistematicamente questionaram ou negaram a existncia de uma populao indgena

    na Serra do Ororub, onde atualmente habitam os Xukuru. Encerramos esse captulo

    retomando brevemente, baseados a partir das anlises de Joo Pacheco de Oliveira,a discusso sobre os ndios Nordeste contemporneo.

    Procuramos demonstrar, no segundo captulo, como os Xukuru recorrem s

    memrias sobre a Guerra do Paraguai, para afirmar a legitimidade de suas

    reivindicaes do territrio disputado com os fazendeiros. A opo foi fazer uma

    discusso fundamentada na pesquisa documental e nas falas dos entrevistados. A

    pesquisa documental procurou situar o quadro histrico a que se remetiam as

    narrativas das memrias indgenas.No capitulo terceiro buscamos descrevera Serra do Ororub enquanto espao

    de disputas entre ndios, pequenos agricultores e fazendeiros. A partir de relatos

    orais que os indgenas ouviram de seus antepassados sobre a posse e o uso da

    terra, e de uma bibliografia em que foram citados relatos e esboadas imagens do

    final do sculo XIX e incio do sculo XX, sobre as condies ambientais na Serra,

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    invadida pelos grandes criadores de gado, e nas reas midas, por engenhos de

    cana produtores de rapadura, com o trabalho da mo-de-obra indgena. Foram

    utilizadas as informaes sobre a produo industrial de doces e conservas, em

    fbricas de propriedade dos fazendeiros, instaladas em Pesqueira nos anos 1950,

    com plantios de frutas em partes considerveis das terras indgenas, bem como os

    indicadores de pobreza, fome, mortalidade e desnutrio infantil ocorridas na Serra e

    nas periferias urbanas do municpio, margem do progresso industrial,

    principalmente durante as secas peridicas na regio. Foram evidenciados ainda os

    stios enquanto espaos de sociabilidades por meio das festas, novenas, o trabalho

    em mutiro e as relaes do cotidiano. Por fim, Cimbres foi tratada como espao de

    identidade e de memrias, expressas nas festas religiosas e rituais anuais e,

    principalmente, na dana do Tor.

    O quarto captulo, Viagens de ida e volta: a cidade, o sul e o serto,baseado nas memrias orais indgenas, traz uma discusso sobre os deslocamentos

    de ndios Xukuru que, em virtude das terras para plantar e viver estarem invadidas

    pelos criadores de gado, ou pelos plantios destinados fbrica Peixe, ou ainda por

    causa das secas que periodicamente atingiram a Serra do Ororub, foram trabalhar

    como operrios nas indstrias urbanas em Pesqueira. Ou migraram para trabalhar na

    lavoura canavieira na Zona da Mata Sul pernambucana e Norte de Alagoas ou nas

    plantaes de algodo no Serto da Paraba. A reflexo foi realizada tendopresentes tambm os estudos que tratam das migraes sazonais de trabalhadores

    nas regies de produo do acar.

    Foi abordado, no quinto captulo, o perodo das relaes dos ndios com o

    SPI. Esse captulo inicia discutindo a viso corrente sobre os ndios em Pesqueira,

    partindo das reflexes de um artigo publicado sobre a apresentao do Tor Xukuru

    por ocasio da recepo do novo bispo diocesano. Em seguida tratamos do sentido

    atribudo pelos indgenas visita do sertanista Ccero Cavalcanti na Serra do

    Ororub. Com base em registros oficiais e em memrias indgenas dos primeiros

    contatos dos ndios com o SPI, abordamos a viagem a p realizada por trs xukurus

    ao Rio de Janeiro, onde foram falar com Rondon, conseguindo a instalao de um

    Posto do rgo indigenista na Serra. Discutimos ainda, a partir da documentao do

    rgo indigenista e relatos indgenas, as relaes com o Posto Xucuru e os conflitos

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    resultantes da instalao do Posto no Stio So Jos e no em Brejinho, de onde

    partiram os ndios que foram ao Rio de Janeiro.

    No sexto e ltimo captulo, a partir de registros das memrias orais indgenas,

    jornais, da documentao do Dops e relatrios oficiais do perodo, discutiremos a

    mobilizao e participao dos Xukuru nas Ligas Camponesas em Pesqueira, na

    ocupao da rea da Pedra dgua. Foram evidenciadas as memrias indgenas

    sobre a participao em uma polcia indgena, na organizao camponesa e na

    ocupao da citada rea, em um quadro social de explorao, conflitos, violncias e

    expulses de antigos moradores pelo avano agroindustrial na Serra do Ororub.

    Para a elaborao das consideraes finais, partimos das constataes em

    um texto publicado pelo Governo do Estado de Pernambuco, em 1981, no qual os

    Xukuru so descritos como remanescentes de caboclos totalmente aculturados,

    confrontando as afirmaes do texto oficial com a abordagem histrica das situaesevidenciadas em nosso estudo. Evidenciamos principalmente a mobilizao Xukuru

    que apoiados pelo Cimi-NE, aps participarem do processo da Assemblia Nacional

    Constituinte, em fins da dcada de 1980, passaram a reivindicar os direitos s suas

    terras, garantidos na Constituio aprovada em 1988. Liderados pelo Cacique

    Xico posteriormente os Xukuru iniciaram as retomadas das terras sob o domnio

    dos fazendeiros, justificando seus direitos baseados nas memrias, pois as terras

    foram recompensas pela participao de seus antepassados como voluntrios naGuerra do Paraguai. As memrias Xukuru se situam na dinmica das experincias

    histricas, a partir do vivido, o concebido e o expressado.

    As anlises em nossa pesquisa foram aliceradas pelas reflexes deestudos

    sobre as memrias e as suas relaes com a Histria, em autores clssicos como

    Maurice Halbwachs, como tambm nas idias recentes de Michael Pollak e Verena

    Alberti, sobre o assunto. Permeia a abordagem ainda uma viso em uma abertura

    para o dilogo multidisciplinar com as recentes discusses antropolgicas sobre os

    ndios no Nordeste, que favorecem o estudo proposto.

    A bibliografia utilizada em funo da documentao primria e das obras

    datadas analisadas, bem como das abordagens que adotamos, se baseia na

    produo mais recente a respeito dos temas presentes no estudo e sobre os povos

    indgenas. Nesse sentido, alm das produes atuais e os vrios artigos publicados

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    em peridicos que de alguma forma trataram de assuntos relacionados nossa

    pesquisa, recorremos tambm a dissertaes e teses acadmicas. No caso

    especfico sobre os Xukuru, foram de grande valia o estudo de Vnia Fialho (SOUZA,

    1989) e o de Kelly Oliveira (OLIVEIRA, 2006).

    Populao: ~ 10.000 indivduos em 2.165 famliasSerra do Ororub, Pesqueira/PE a 215 km do Recife.

    (Fonte: Projeto de Capacitao e Assessoria Tcnica/PCAT-Xukuru, 2007)

    No primeiro estudo originalmente uma pesquisa para o Mestrado em

    Antropologia, a pesquisa foi baseada na observao participante e em entrevistas,

    alm de fontes documentais dos sculos XIX e XX. A partir do conceito de campointersocietrio elaborado por Joo Pacheco de Oliveira e na idia de drama social

    proposta por Victor Turner, foi analisada a afirmao de uma etnicidade Xukuru em

    meio s situaes de conflitos (os dramas) geradas no processo de identificao

    entre 1988 e 1991 para a demarcao oficial do territrio Xukuru. Para a autora, os

    LLooccaalliizzaaoo GGeeooggrrffiiccaaddaass AAllddeeiiaass XXuukkuurruu

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    dramas sociais vivenciados remetem a um processo histrico explicativo da

    formulao do modo de ser, da etnicidade/identidade Xukuru.

    J no segundo estudo, originalmente uma pesquisa realizada entre 2004 e

    2006 para o Mestrado em Sociologia, a autora analisou o processo de organizao

    poltica e simblica Xukuru e a formao de lideranas indgenas e as inter-relaes

    dos agentes envolvidos nesse processo. A pesquisa, baseada em entrevistas e

    fontes documentais, contemplou o perodo desde os primeiros contatos com o SPI na

    dcada de 1940 at os anos 1990.

    Ambas as pesquisas, se referiram s questes e temas expressados nas

    memrias orais Xukuru: como a idia do caboclo, a Guerra do Paraguai, o perodo da

    tutela do SPI, as migraes indgenas e as Ligas Camponesas, que no foram

    aprofundados em razo da natureza e das propostas dos objetos daqueles dois

    citados estudos. Em nosso estudo retomamos e procuramos ento discutir a partir deuma abordagem histrica esses temas.

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    CAPTULO I

    OS CABOCLOS DA SERRA DO ORORUB

    Cad os meus cabcos,Eu mandei chamar,

    Cabcos vios, do Orub.(Canto do Tor dos Xukuru do Ororub)

    Chamavam a gente dos cabcos. Os cabcos da Serra.(Jos Gonalvesda Silva, Z Cioba, 82 anos, Bairro Portal, Pesqueira).

    Chamavam os cabcos da Serra do Ororub. No era Xukuru, era Ororub.

    (Cassiano Dias de Souza, 75 anos, Aldeia Cana Brava).

    Aqui chamava os cabcos. Nesse tempo, chamava os cabco, mas no tinha valor no. Era tudouma coisa sem valor. (Manoel Balbino Silva, Man Preto, 73 anos, Aldeia Cana Brava).

    Eles chamavam os cabcos. Os cabcos de Cana Brava. Os cabcos... era assim. At maltratava svezes. Dizia que os cabcos daqui tudo era ladro. (risos) Os fazendeiros tinha esse dizer. Que oscabcos tudo era ladro! (risos). Eu disse, No. Menos eu! Nunca roubei nada de ningum!.(Brivaldo Pereira de Arajo, Z Grande, 82 anos, Aldeia Cana Brava).

    1.1. A construo do caboclo: a fala oficial, intelectuais e

    olhares literriosA partir da segunda metade do sculo XIX intensificou-se a defesa oficial do

    desaparecimento dos ndios em Pernambuco e da extino dos aldeamentos. Quem

    eram os ndios? Como eram vistos pelas autoridades provinciais e quais as bases da

    poltica indigenista oficial naquele perodo. As afirmaes do Diretor Geral dos ndios

    sobre os habitantes dos antigos aldeamentos nos apontam respostas:

    Em geral os ndios so inclinados a embriagus; ao furto e a devassido; a

    preguia os domina; a pesca e a cassa so a sua habitual occupao; tem

    gnio bellicoso, e so valentes, o que prova que ainda se ressentem de suaselvageria. Elles so susceptveis de educao e ensino. Perdem-se bons

    msicos, etc., etc..1

    Essas imagens sero repetidas em vrios discursos oficiais, reproduzidas em

    1Ofcio de Francisco Caboim (Baro de Buque), Diretor Geral interino dos ndios da Provncia dePernambuco, em 15/11/1870, ao Presidente da Provncia de PE. APE, Cd. DII-19, fl.175.

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    escritos literrios e estudos acadmicos posteriores. A extino dos aldeamentos

    estava baseada na idia de assimilao dos ndios, como enfatizava a mesma

    autoridade: Hoje talvez fosse mais conveniente confundir esse resto de ndios com a

    massa da populao;e o governo dispor de suas terras como milhor lhe parecesse;

    porque isto de Aldas uma chimera.2 (Grifo nosso). Com essa idia de que as

    aldeias eram uma chimera, uma fantasia, e que por isso no havia mais razo para

    existirem. Posseiros, senhores de engenho e latifundirios, sobretudo aps a Lei de

    Terras de 1850, como se constata na documentao pesquisada, ampliaram suas

    invases nas terras dos antigos aldeamentos em Pernambuco.

    O discurso oficial nesse perodo justificava a medio, demarcao e

    loteamento das terras indgenas, como forma de solucionar conflitos entre os ndios e

    os invasores, o que legitimou arrendatrios tradicionais que paulatinamente tinham

    se apossado das terras dos aldeamentos. Encontramos sistematicamente, nas falasoficiais, a afirmao de que os ndios estavam confundidos com a massa da

    populao. Somava-se negao da identidade dos ndios, muitos pedidos de

    invasores dos territrios indgenas e autoridades, para declarao legal da extino

    dos aldeamentos, em razo do suposto desaparecimento dos grupos indgenas

    (PORTO ALEGRE, 1992/1993; SILVA, 1995; 1996).

    Os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos passaram a

    ser chamados de caboclos, condio muitas vezes assumida por eles para escondera identidade indgena diante das inmeras perseguies. A essas populaes foram

    dedicados estudos sobre seus hbitos e costumes, considerados exticos, suas

    danas e manifestaes folclricas, consideradas em vias de extino, como

    tambm aparecerem nas publicaes de escritores regionais, cronistas e

    memorialistas municipais que exaltam de forma idlica a contribuio indgena nas

    origens e formao social de cidades do interior do Nordeste.

    Escritores e vrios estudiosos, como Gilberto Freyre, Estevo Pinto, Cmara

    Cascudo, dentre outros, reafirmaram o desaparecimentodos indgenas no processo

    de miscigenao racial, integrao cultural e disperso no conjunto da populao

    regional. Discutiremos, a seguir, alguns desses textos que, a partir dessa

    perspectiva, se referiram aos Xukuru, na ordem cronolgica em que eles foram

    2Idem, nota anterior.

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    publicados, desde as primeiras dcadas do sculo XX at os anos 1960, perodo

    contemporneo ao recortado para o incio do nosso estudo.

    A imagem do caboclo aparece em obras literrias sobre fatos pitorescos,

    recordaes, estrias das regies Agreste e Serto pernambucano. Como

    personagens tpicos e curiosos que buscavam se adaptar s novas situaes de

    sem-terras, vagando em busca de trabalho para sobrevivncia, a exemplo Joo

    Mundu, no conto O caboclo, publicado por Estevo Pinto no livro Pernambuco no

    sculo XIX. Esse livro, de 1922, uma coletnea decrtica de costumes e descries

    de tipos populares. No referido conto, o autor respondeu a sua prpria pergunta:

    Quem era Joo Mundu? O caboclo pernambucano, o cruzado de elementos

    dispares e formadores, a soldagem que se dilua na fluidez dos termos cariboca,

    mamaluco, tapanhuma, carij.... (PINTO, 1922, p.105).

    No texto, lemos ainda:Seus avs, cariris ou sucurus, occupavam-se em fazer os arcos e tacapes,

    fabricavam partazanas da branca ubiritanga e cortavam, donde lhes parecia

    melhor, da sapucaia ou do genipapeiro, os eixos de moer e o remos de

    canoa...Joo Mundu, no! Custava-lhe muito menos enfiar as continhas de

    cco, enfeixar as vassouras de piaaba e perfurar os canudos de cachimbo

    (PINTO, 1922, p.106). (Grifamos).

    Segundo esse trecho, no se sabia ao certo de onde viera o caboclo Joo

    Mundu. Apenas que chegara maltrapilho e cheio de piolhos. Fizera um casebre debarro, coberto com palhas de carnaba, adaptado s suas necessidades e hbitos

    no mnimo exticos: Como cabide, um prego; como leito, uma rde. A moblia? A

    esteira. A baixella? A caneca. No local da nova moradia a terra era exuberante e ao

    redor da casa existiam muitas frutas silvestres; todavia, diz o autor: o caboclo morria

    de fome e terminava na misria. (PINTO, 1922, p.106). Esse era o seu destino.

    Quem era Joo Mundu? Para Estevo Pinto, era a imagem do caboclo, do

    habitante do interior: Joo Mundu era o sertanejo pernambucano da primeira

    metade do sculo XIX. Mas tambm de indiscutveis origens indgenas, Filho dos

    tapuios de frechas farpadas, dos paparics de Ararob ou dos carijs de Rodelas,

    trazia nas veias as supersties ferrenhas de seus antepassados. O autor

    metaforicamente se referiu aos Parati, habitantes, juntamente com os Xukuru, na

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    Serra do Ororub (Cimbres), e aos Fulni- (Carnijs)3, todavia relacionando esses

    ltimos ao Serto de Rodelas, regio com reconhecida presena de populaes

    indgenas. Mais adiante em seu texto, reafirmava o autor a idia do processo de

    miscigenao racial: Joo Mundu descendia dos bugres. Ponto de conjuno de

    dois elementos formadores, um authocthene e outro aliengena. (PINTO, 1922,

    p.107).

    Observemos em seguida a figura de Joo Mundu pintada a bico de pena,

    representando a imagem de um caboclo sertanejo descrita por Estevo Pinto.

    Joo Mundu, o caboclo pernambucano do sculo XIX.O cruzado de elementos dspares.

    Desenho que ilustra a crnica O caboclo (In: PINTO, 1922, p.106)

    Para Pinto (1922), da coragem e virtudes do caboclo Joo Mundu e dos seus

    antepassados restara o culto ao nativismo e da literatura indianista, de um ndio

    idealizado do passado. Todavia, no presente:

    Tal herana de tangas fez Joo Mundu viver constantemente espoliado. Se

    era lavrador dividia a cana com o senhor de engenho e descurava do

    terreno, porque sem segurana de um contacto, podia ser expulso a

    qualquer hora. A mesma coisa se morador. (PINTO, 1922, p.109).

    O autor finda seu texto explicando a razo de Euclides da Cunha ter

    3Citando o gelogo norte-americano John C. Branner que estivera entre os ndios em guas Belas noltimo quartel do sculo XIX, Estevo Pinto escreveu; segundo Branner, a tribo nativa de guasBelas, denominada pelos aliengenas de Carnij, chamava-se a si prpria de Fulni, usando aindauma espcie de designativo para distinguir-se dos demais grupos de silvcolas do Brasil (PINTO,1956, P.61).

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    enfatizado ser o sertanejo um forte, dizendo Pinto com isso que o lugar ocupado por

    Joo Mundu, a imagem do caboclo, era tambm idealizada. Trata-se de uma viso

    em que historicamente os expropriados eram justificados e justificveis nas suas

    condies, em um cenrio no qual eles eram meros espectadores, e por esse motivo

    condenados ao desaparecimento no suposto curso linear da formao da sociedade

    e da histria do pas.

    Outro escritor que se referiu aos caboclos foi Luis Cristovo dos Santos. No

    livro Caminhos do Paje, de 1954, no conto Vingana de caboclo, lemos: Entrou

    em silncio, colocou a enxada ao canto da saleta humilde e pendurou o ai de caro

    no gancho de madeira fincado na parede. E em outros trechos: Cabocla olhava

    tudo aquilo, tambm em silncio, o corao sangrando. Por isso cabocla ficou

    quieta. Ento cabocla rememorou tudo. (SANTOS, 1954, p.87-89). (Grifamos). O

    citado ai de caro uma bolsa tpica ainda hoje fabricada e usada pelosKapinaw, habitantes em Buque, cidade prxima a Pesqueira. Na descrio de um

    drama sobre amor, traio e despedida, a personagem no foi nomeada, apenas

    chamada de cabocla.

    Para Luis Cristovo dos Santos o Agreste e Serto eram povoados de

    caboclos, como expressa a legenda da fotografia abaixo que consta em um dos seus

    livros.

    Cabocla do Paje, apanhando gua na cacimba. Ser me de vaqueiros e de cabrasvalentes. Fotografia impressa no livro Caminhos do Paje(SANTOS, 1954, p.94).

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    Em outro livro publicado em 1970, intitulado Caminhos do Serto: crnicas,

    contendo fotografias em preto e branco de homens e mulheres sertanejos,

    encontramos descries das lembranas das caadas do pai de Lus Cristovo em

    Pesqueira:

    E continuou caando, j agora por tudo que fosse stio dos caboclos

    xucurus, que plantavam roas nas quebradas da Serra do Ororube bebiam

    aguardente, depois das novenas de maio e da Senhora Santgueda,

    resadas na capelinha de Pai Simplcio. (SANTOS, 1970, p.47) (Grifamos).

    A citada capelinha a dedicada a So Jos e est localizada na atual Aldeia

    So Jos, habitada pela antiga Famlia Simplcio, da qual era membro Petronilho

    Simplcio, o primeiro funcionrio do Posto do Servio de Proteo aos ndios/SPI

    entre os Xukuru.

    Na crnica O sabi da Serra, ainda no mesmo livro, o autor recordou lugares

    onde estavam os caboclos,

    Defronte, se levantava a majestade verde da Ororub, cuja lombada era

    cortada pelo sinuoso caminho, antiga vereda dos xucurus, que levava a

    gente para o aude da Pedra dgua, para a engenhoca de Seu Mingo,

    tambm para as laranjeiras dos Afetos de Seu Verssimo, ou para o sitio

    So Jos do caboclo Arcelino, e, cujo riacho havia um poo azulado onde

    eu mergulhava, pulando dos galhos de uma ingazeira. (SANTOS, 1970,

    p.67). (Grifamos).Na mesma crnica, lemos ainda:

    Furando para mais longe desembocava na vila de Cimbres, ... Padre Rafael,

    festejava a Senhora SantAna, ao som do bombo da zabumba, batendo o dia

    todo, enquanto os caboclosbebiam cachaa, mode esquent a cruviana e

    a sanfona gemia...(SANTOS, 1970, p.68). (Grifamos).

    Na pesquisa documental e nas entrevistas realizadas para elaborao de nossa

    pesquisa, essas localidades citadas nas crnicas de Luis Cristovo aparecem como

    antigos lugares de moradias e espaos de presena de famlias Xukuru.Lendo os trechos aqui transcritos, cabe perguntar: quem eram esses autores

    aqui citados? Quais os destinatrios de suas obras? Qual o alcance delas sobre o

    pblico leitor? Quais influncias que as imagens, metforas, descries por eles

    usadas trariam sobre o conhecimento a respeito dos ndios?

    O ento escritor Estevo Pinto, no texto O caboclopublicado no comeo da

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    dcada de 1930 e anteriormente analisado, reafirmou a idia do caboclo como

    resultado do amlgama das raas, que gerou um tipo curioso, situado entre um

    passado primitivo longnquo dos seus ancestrais e a situao dos novos tempos: o

    caboclo. O significado intelectual e a relevncia da produo desse autor sero

    analisados nos tpicos seguintes.

    Os livros de Lus Cristovo dos Santos tiveram uma boa acolhida da crtica, do

    pblico leitor e o escritor recebeu vrios prmios literrios. Uma breve anlise de sua

    biografia revela suas vinculaes com as elites sociais do interior de Pernambuco.

    Em 1953, ele publicou Carlos Frederico Xavier de Brito: o bandeirante da goiaba

    Trata-se de um livreto de 29 pginas, contendo a biografia laudatria e bajulatria,

    como bem expressa o subttulo, do fundador da fbrica de doces Peixe. O texto foi

    escrito por ocasio do centenrio de nascimento do Coronel da Guarda Nacional,

    considerado o grande industrial pioneiro de Pesqueira, patriarca da Famlia Britotradicional invasora das terras do Aldeamento de Cimbres, como discutiremos nos

    prximos captulos.

    O livro Caminhos do Paje (SANTOS, 1954) foi prefaciado pelo

    reconhecidssimo escritor Jos Lins do Rego. Tal prefcio, alm de ter sido publicado

    em jornais de grande circulao no Recife, foi tambm reproduzido no jornal A voz

    de Pesqueira. Lus Cristovo era natural de Pesqueira, onde seu pai foi farmacutico.

    O autor viveu parte de sua infncia no Serto pernambucano, na cidade de Custdia,retornando posteriormente ao lugar aonde nascera. Estudou Direito no Recife. Como

    advogado e promotor pblico nas dcadas de 1950/60, conheceu e atuou em

    fazendas, vilas, povoados e cidades do Agreste e Serto pernambucano. Seus livros

    de crnicas evocam suas lembranas, com narrativas sobre diversos personagens

    todos ambientados nas regies onde atuou: coronis, polticos, fazendeiros, padres,

    cangaceiros, cegos, cantadores, dentre outros. E tambm aparece a figura do

    caboclo, visto ora como base da formao social e cultural, ora como pria de uma

    sociedade sertaneja caminhando com passos largos para a civilizao.

    1.2. Remanescentes, caboclos mesclados e restos dosndios Sukur de Cimbres

    Para o verbete caboclo contido no Vocabulriode Pernambucano, Pereira da

    Costa fez uma pesquisa do uso da palavra desde os primeiros tempos da

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    colonizao do Brasil e seu emprego por administradores, missionrios e viajantes,

    pelos sculos seguintes, concluindo que,

    O vocbulo, porm, que outora tinha uma expresso depreciativa, injuriosa

    mesmo ao infeliz aborgene como vimos, constitue hoje, e vinda

    naturalmente j de longe, uma dico familiar de affecto, intima, carinhosa

    mesmo: Meu caboclo; caboclo velho; que bonita cabocla!Phrase e ditadospopulares: Somos caboclos na mesma aldeia; Espingarda em mo de

    caboclo; Caboclo no quer mingo; mingo no caboclo; Caboclo gato pe

    ovo?(PEREIRA DA COSTA, 1976, p.145). (Grifos do autor).

    Na definio do vocbulo Tor, ainda na mesma obra, o autor depois de

    afirmar ser um tipo de flauta feita de taquara usada pelos ndios, escreveu: antiga

    dana dos ncolas, e tradicionalmente ainda em voga, nomeadamente, entre os

    semi-selvagens de Cimbres (Idem, p.754). (Grifamos).

    O conhecido e aclamado como folclorista, jornalista, escritor e historiadorautodidata Francisco Augusto Pereira da Costa, chamado apenas Pereira da Costa,

    foi um pesquisador incansvel e publicou uma vasta obra, resultado de uma paciente

    e longa pesquisa sobre a histria de Pernambuco. De origem muito humilde, Pereira

    da Costa s conseguiu concluir o Curso de Direito aos 40 anos. (ANDRADE, 2002).

    Foi funcionrio pblico e deputado estadual. Suas pesquisas favoreceram o seu

    reconhecimento pblico como um homem de cincia (SCHWARCZ, 1993),

    tornando-o scio do Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Pernambucano

    (IAHGP).

    Em 1916, Pereira da Costa comeou a divulgar, na Revista do IAHGP, os

    seus Apontamentos para um vocabulrio pernambucano. A publicao foi

    interrompida, por falta de recursos, na letra B. Aps a sua morte, em 1923, seus

    familiares doaram os originais completos do que veio a ser publicado, na ntegra,

    pelo IAHGP, em 1937, como Vocabulrio Pernambucano. O livro uma espcie de

    coletnea minuciosa de verbetes e expresses corriqueiramente faladas e escritas

    no Estado de Pernambuco e regies circunvizinhas.

    Se confrontarmos o que escreveu Pereira da Costa sobre o verbete caboclo

    e aquilo que encontramos em documentos oficiais do ltimo quartel do sculo XIX e

    tambm na produo literria contempornea ao autor, constatamos que o

    pesquisador pernambucano estava possivelmente equivocado quando afirmou ser

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    caboclo uma expresso familiar de affecto, intima, carinhosa. A prpria expresso

    citada por Pereira da Costa: Caboclo gato pe ovo?, denota a viso com a

    atribuio, no mnimo, de imbecilidade ao chamado caboclo.

    A referncia que o Tor era uma expresso dos semi-selvagens de Cimbres

    revela que Pereira da Costa comungava com a idia cultivada no IAHGP, pois:

    Quando se tratou de tematizar a questo racial, o Instituto mostrou, na sada via

    branqueamento, a mesma atitude que caracterizava at ento a sua atuao

    (SCHWARCZ, 1993, p.125). Na definio do autor sobre o Tor temos a defesa da

    superioridade da raa branca, sendo os ndios moradores de Cimbres vistos como

    brbaros, o que os aproximava da outra viso do desaparecimento indgena, na

    figura irracional e primitiva do caboclo. Outros autores contemporneos e confrades

    de Pereira da Costa no IAHGP comungavam dessas idias.

    No artigo A religio dos ndios e dos negros de Pernambuco, publicado em1922 na Revista do IAHGP, Pedro Roeser, depois de discorrer sobre as prticas

    supersticiosas dos Carijs de guas Belas, que danavam o Tor e guardavam

    silncio total sobre o ritual sagrado do Ouricuri, reproduziu um relato do Vigrio da

    Freguesia de Cimbres, Pe. Raphael de Meira Lima, sobre os caboclosde Cimbres:

    Esses ndios conservam a tradio de uma dansa religiosa, chamada o

    Tor, a qual elles executam todos os annos, na villa, nas vsperas de S.

    Joo e de So Pedro. Apresentam-se vestidos com um efeite de palhas e

    ramos, trazendo a mais uma grande canna de assucar nos hombros. Assim

    passam uma noite com uma dansa montona, repetindo a mesma cantiga,

    acompanhada ao som de 2 ou 3 pifanos.

    Para o Padre Raphael, as manifestaes indgenas no passavam de

    divertimentos que eles tinham como uma cerimnia religiosa de devotos:

    Elles no h dvida, do ou pretendem dar taes divertimentos como uma

    cerimnia religiosa, tanto mais que h quem faa promessa para dansar o

    Tor em honra de N. Snra. Das Montanhas, a quem tem elles muita

    devoo. Dizem elles, que esta imagem appareceu no tempo da cathechesedos religiosos de S. Felippe Nery, que l tinha um convento. (ROESER,

    1922, p. 200-201).

    Ao trecho transcrito do Vigrio de Cimbres, Pedro Roeser nada acrescentou

    ou fez qualquer comentrio. Para Roeser, a descrio dos caboclos de Cimbres,

    chamados pelo Padre Raphael de esses ndios, o que podemos interpretar como

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    pejorativo, falava por si s, como uma ltima palavra no seu texto. Roeser concluiu o

    artigo enfatizando a ignorncia causadora de feitiarias e bruxarias, que poderia

    fazer duvidar da inteligncia normal do ndio ou do africano e se no fosse o caso

    de existirem tambm (e ainda) as mesmas crenas e crendices absurdas dos

    indgenas no seio do homem moderno, em sua mais adiantada civilizao.

    O Abade do Mosteiro Beneditino de Olinda, Pedro Roeser, publicou seu longo

    artigo repleto de citaes, em 1922. E o fez com a sua pretensa autoridade de

    tambm ser um homem de cincia, j que era scio do IAGHP. Possivelmente ele

    era visto como representante do universo intelectual catlico romano, em um

    ambiente que reunia a elite pensante de Pernambuco que, no incio da dcada de

    1920 era tributria de idias do ainda to prximo sculo XIX. No seu texto, quando

    tratou sobre os ndios, o religioso estava em consonncia com a discusso do

    IAGHP, ou seja, a opo por uma viso civilizatria na qual os ndiosdesapareceriam, transformados em caboclos como expressavam outros textos

    publicados por scios daquele Instituto.

    A Revista do IAGHP publicada no ano de 1935 trouxe um artigo de Mrio

    Melo, intitulado Etnografia pernambucana: os xukurus de Ararob. O autor iniciou o

    texto comentando da satisfao de ter sido procurado por Curt Nimuendaj, de quem

    recebera, de Carlos Estevo, ento Diretor do Museu Goeldi em Belm/PA,

    informaes de tratar-se de um grande etnlogo. Melo comentou ainda que oetnlogo Alfred Mtraux, Diretor do Museu de Tucumn, na Argentina, de passagem

    pelo Recife falara do alemo Nimuendaju como um nome mundialmente conhecido

    e acatado nos meios cientficos pelos seus trabalhos.

    Voltando da Sucia, de passagem pelo Recife, Nimuendaj procurou Mrio

    Melo e, segundo este, o alemo estava desejoso de estudar os remanescentes

    indgenas de Pernambuco. Depois da conversa, o etnlogo resolveu comear suas

    investigaes por Cimbres, onde existiu um aldeiamento (MELO, 1935, p.43).

    (Grifamos). Dizia ainda Melo que, logo aps ter regressado de Ararob,

    Nimuendaj o procurara, para transmitir-me suas impresses dos xucurus, pois ele

    estivera em contacto com os descendentes dos xucurus (MELO, 1935, p.44).

    (Grifamos). Foi, portanto, com base nas informaes de Curt Nimuendaj que Mrio

    Melo redigiu o seu artigo aqui citado.

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    Escreveu Melo: Existem ainda cerca de 50 indivduos, j cruzados alguns,

    porm que conservam estigmas dos amerndios, como tais facilmente reconhecveis,

    apesar de ausncia completa de semelhana com o mongol. (MELO, 1935, p.45).

    (Grifamos). O autor pernambucano fez mais uma comparao com os Carnijs de

    guas Belas, acentuando que, contrariamente queles, os de Cimbres vivem

    desagrupados e j no conservavam tradies, nem religio. Quase que

    perderam a lngua, mas guardavam ainda algumas palavras, faladas com o

    portugus em forma de gria. (MELO, 1935, p.45).

    Sobre a religio, Mrio Melo escreveu que se tratava de uma espcie de

    idolatria, por infiltraes do catolicismo. E ainda: Sabem, perfeitamente, que

    descendem da tribu xucur, que ocupou aquela regio, tem orgulho da sua

    procedncia e se julgam superiores aos outros habitantes, guardando rancr dos

    brancos por lhes haverem tomado as terras. (Id., ib.). Melo, depois de citarinformaes histricas da formao Aldeia do Ararob, afirmou que as

    investigaes de Nimuendaj eram de primeira importncia, em razo da

    identificao dos remanescentes indgenas, criando um neologismo para expressar

    sua viso sobre a situao: ocorria uma defamiliarizao. (Grifamos).

    Aps registrar a produo de esteiras e de grosseira cermica, Melo afirmou

    a no filiao dos xucurus com outra famlia indgena. Mrio Melo teceu

    consideraes sobre o processo de fabricao dos utenslios de cermica,concluindo: no andaram em contacto com outras tribus mais adiantadas. O autor

    pernambucano terminou seu artigo reiterando a necessidade de meios pblicos que

    favorecessem estudar e identificar os remanescentes indgenas, encontrados em

    pequenos grupos na Serra Negra, na Serra de Tacaratu, em Rodelas, no Serto,

    pois se tratava de um material precioso que vai desaparecendo sem deixar

    vestgios. (1935, p.45) (Grifamos).

    O conhecido Secretrio Perptuo do IAGHP, editor da sua Revista e assim

    tambm um homem de cincia, Mrio Melo, alm de professor, foi um jornalista

    muito atuante na imprensa. Bacharel em Direito, deputado estadual, notabilizou-se

    ainda como fillogo, escritor, folclorista, pesquisador da historia e geografia de

    Pernambuco. Escreveu dezenas de artigos sobre diversos temas e publicou livros

    em sua maioria exaltando o herosmo pernambucano nas revoltas liberais de 1817 e

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    1824. Alm do citado artigo sobre os Xukuru, publicou outros a respeito dos Fulni-,

    em jornais do Recife e na Revista do Arquivo Municipal de So Paulo. J em 1928,

    no Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Esprito Santo, ele sensibilizara

    os presentes para a defesa dos Carnijs, por se tratarem de uma relquia histrica.4

    Quando afirmou, ao longo do texto e nas concluses de seu artigo sobre os

    xucurus, a necessidade de estudar osremanescentes indgenas que, nas citadas

    localidades do Agreste e Serto pernambucano estavam desaparecendo sem deixar

    vestgios, Mrio Melo fez comparaes entre o primitivo/degenerado, o

    brbaro/moderno. O autor expressou, nesse e em seus demais artigos publicados,

    uma perspectiva que via os ndios como vtimas do progresso inerente civilizao.

    Uma civilizao da qual ele prprio se julgava um representante, um observador

    enquanto estudioso e que naturalmente era construda sobre as runas de grupos

    inadaptveis. Os remanescentes de ndios eram os caboclos em degenerao.Essa imagem foi defendida por outros pesquisadores fora da rbita intelectual do

    Recife.

    Em Pesqueira, Jos de Almeida Maciel, que ainda hoje considerado o maior

    historiador local, desde os fins da dcada de 1910 publicou regularmente um

    considervel nmero de crnicas em jornais daquela cidade. No final dos anos 1940

    comeou a escrever sobre a histria do municpio, na qual tratou dos Xukuru. Para

    esses artigos realizou pesquisas em documentos cartoriais, tais como inventrios,testamentos e escrituras de imveis. Alm de fontes orais, ele pesquisou tambm a

    documentao da Cmara de Cimbres e Pesqueira, organizada e publicada no Livro

    da criao da Vila de Cimbres, 1762-1867. Todos os seus textos, aps seu

    falecimento, foram reunidos e publicados ao longo da dcada de 1980 pelo CEHM,

    no Recife.

    O ento vereador em Pesqueira Jos de Almeida Maciel apresentou em,

    1948, Cmara Municipal, um projeto para restaurao do prdio do Senado da

    Cmara, localizado na antiga Vila de Cimbres, que se encontrava em estado de

    abandono e provvel runa. Na justificativa do seu projeto, publicada em um jornal

    local lemos: Os Xukurus habitavam a extensa serra do Ororub (ou Urub), os

    Paratis espalhavam-se pelos contrafortes da mesma, isto , pelas serras do Gavio,

    4Dirio de Pernambuco, Recife, 20/06/1928, p.1.

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    Jardim, Guerra, Barra da Ona, etc..5 (Grifamos). Naquele mesmo ano, comentando

    como apareciam nas atas da Cmara de Cimbres as disputas poltico-administrativas

    distritais, Maciel escreveu:

    Subsistem as tradicionais festas da padroeira Na. Sa. das Montanhas e de

    So Miguel a que comparecem caboclos na indumentria indgena,

    realizadas em Junho e Setembro de cada ano, com grande afluncia de fiis

    de vrias localidades, principalmente de Pesqueira.6 (Grifamos).

    Ainda em 1948, Maciel foi o responsvel por responder ao questionrio

    enviado pelo IBGE aos municpios brasileiros, em que algumas das questes eram

    relacionadas s populaes ndgenas. Jos Maciel publicou suas respostas e

    comentrios em uma srie de artigos no jornal A voz de Pesqueira. Respondendo a

    questo sobre a existncia de tribos indgenas no municpio, afirmou o pesquisador:

    No mais existem tribos indgenas no municpio. H remanescentes, em grande

    nmero que habitam a serra do Ororub, chamados caboclos da serrae que falam

    o idioma portugus, mesclados ligeiramente de termos da lngua nativa. (Grifamos).

    Em resposta a uma outra questo, escreveu que: No consta ter havido

    deslocamentos de tribos neste municpio: o que se vem operando como correr dos

    tempos, o cruzamentoe consequentemente a assimilao. 7 (Grifamos).

    Em relao s festividades cvicas e religiosas ocorridas no mbito municipal,

    escreveu Maciel: Em Cimbres os caboclos remanescentes dos Xucurus, em

    indumentria semelhante a primitiva, danam o tor nas tradicionais festas dapadroeira e de S. Miguel.8 (Grifamos). E sobre as crenas religiosas: Nenhuma

    crena antiga de origem indgena ou africana, existe no municpio a no ser a secular

    devoo dos caboclos, remanescentes dos Xucurus a N. S. das Montanhas de

    Cimbres.9 (Grifamos).

    O ento renomado pesquisador municipal no reconhecia a existncia de

    ndios na Serra do Ororub, tampouco em Cimbres, antigo centro da implantao

    administrativa colonial na regio do Agreste, onde fora fundada a Misso do Ararobentre os ndios Parat e Xukuru, em meados do sculo XVII. Para ele, os ndios

    5A voz de Pesqueira. Pesqueira, 04/07/1948, p.3.

    6A voz de Pesqueira. Pesqueira, 07/09/1948, p.2.

    7A voz de Pesqueira. Pesqueira, 21/11/1948, p.2.

    8A voz de Pesqueira. Pesqueira, 28/11/1948, p.4.

    9A voz de PesqueiraA voz de PesqueiraA voz de PesqueiraA voz de Pesqueira. Pesqueira, 05/12/1948, p.1.

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    estavam vinculados a um passado distante, herico, como o da Guerra do Paraguai.

    O que existia em Pesqueira eram os descendentes, remanescentes dos Xukuru.

    A pedido do Bispo de Pesqueira, em 1951, o ento exaltado pesquisador Jos

    de Almeida Maciel realizou, em um clube social daquela cidade, a rememorada e

    longa palestra Vila de Cimbres, na qual esteve presente a elite social e intelectual

    do municpio. O texto da citada palestra foi tambm publicado em vrios nmeros do

    jornal A voz de Pesqueira. Em um dos trechos dos artigos publicados, o autor

    afirmou sua discordncia com aqueles que enfatizavam a incapacidade indgena e

    escreveu que, alm de trabalharem na agricultura, os ndios tinham participado com

    bravura na Guerra do Paraguai, sendo eles valentes como se pode ser, servindo de

    exemplo o pouco nmero dos que voltaram do Paraguai, tendo ido voluntariamente

    cento e tantos, e morrendo destes a maior parte no ferro inimigo, em defesa da

    ptria.10 Maciel prosseguiu exaltando a participao dos nossos xucurus,destacando tambm o herosmo dos nossos ndios como soldados combatentes

    naquele conflito.

    O autor evidenciou a importncia dos ndios em tempos pretritos, no passado

    em que bravamente estiveram, espontaneamente, guerreando a servio da ptria, ou

    seja, em uma causa que seria supostamente comum de todos os brasileiros. Essa

    postura fica clara quando, no mesmo texto, o pesquisador escreveu sobre a

    presena indgena na Festa de So Miguel em Cimbres. Segundo ele, o eventoocorria

    Anualmente com afluncia vultosa de fiis de toda a regio, aquela quase

    trissecular, acompanhadas de formaes de ndios (hoje, dos seus

    descendentes, os caboclos) com indumentrias caractersticas, conjunto de

    pfanos e zabumbas, e de banda musical prpria ou de Pesqueira.11

    (Grifamos).

    Para o pesquisador, os participantes da festa no perodo de sua palestra no eram

    mais os ndios do passado e, sim, os agora caboclos.

    Quando escreveu, em 1950, exaltando a longevidade da Guarda Nacional,

    Jos de Almeida Maciel lembrou a importncia da instituio na Guerra do Paraguai,

    ressaltando o valoroso Batalho 30 de Voluntrios. Nesse artigo, Maciel

    10A voz de Pesqueira. Pesqueira, 22/07/1951, p.4

    11A voz de Pesqueira. Pesqueira, 19/08/1951, p.3.

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    mencionou no mais os ndios como soldados, afirmando que o citado Batalho fora

    composto de caboclos da nossa serra de Ororub e da aldeia de Comunati, de

    guas Belas12 (Grifamos).

    Pesquisador notvel e reconhecido como historiador do municpio, nascido em

    Pesqueira, em 1884, Jos de Almeida Maciel foi um tradicional comerciante,professor municipal e Major da Guarda Nacional. Como poltico, foi vereador, Vice-

    Prefeito e Prefeito de Pesqueira e Presidente do Conselho Municipal. Foi cassado

    em 1930 e reeleito vereador em 1947. Era integralista, um conservador catlico

    romano praticante e devoto. Em reconhecimento por suas pesquisas, foi eleito Scio

    Correspondente do IAHGP, a partir de 1951. Cronista que publicou muitos artigos em

    jornais locais e da Capital, era um autodidata que se dedicou incansavelmente

    pesquisa sobre a histria de Cimbres e Pesqueira, mritos exaltados em comentrionecrolgico de Mrio Melo.13

    O pesquisador pesqueirense foi aclamado pela sua vasta produo,

    conhecimentos histricos e geogrficos do municpio e da regio em seu entorno.

    Por essa razo, ele detinha um considervel capital simblico, uma vez que o

    campo de produo erudita deve ser compreendido enquanto sistema que produz

    bens culturais (BOURDIEU, 1992, p. 105). Sua autoridade de historiador foi

    reconhecida pelas elites intelectuais e sociais locais, como comprovou sua palestra

    sobre Cimbres a convite do Bispo de Pesqueira, tambm uma autoridade municipal.

    Assim, ele participava do sistema das relaes constitutivas do campo de produo,

    de reproduo e de circulao de bens simblicos. (BOURDIEU, 1992, p. 105).

    Seu reconhecimento como um especialista na histria municipal resultava dos

    seus conhecimentos e favoreceu as suas relaes com as autoridades e instituies

    como a Igreja Catlica Romana local e o IAHGP. Isso por que:

    Todas as relaes que os agentes de produo, de reproduo e de difuso,

    podem estabelecer entre eles ou com instituies especficas (bem como a

    relao que mantm com a sua prpria obra), so medidas pela estrutura do

    sistema das relaes entre as instncias com pretenses a exercer umaautoridade cultural (ainda que em nome de princpios de legitimao

    diferentes).(BOURDIEU, 1992, p. 118).

    12A voz de Pesqueira. Pesqueira, em 04/06/1950, p.4

    13Grande perda para Pesqueira. Jornal do Commercio, Recife, 18/05/1957, Crnica da Cidade, p.6

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    naquele perodo. Os ndios, nos escritos de Maciel, foram relegados a um passado

    idlico. E, uma vez desaparecidos, no presente restavam seus descendentes em

    degenerao, os caboclos. Outros pesquisadores da poca expressaram idias

    semelhantes.

    Acompanhando a trajetria intelectual de Estevo Pinto, constatamos que ela

    alcanou o auge entre as dcadas de 1930 e 1950, perodo no qual o autor publicou

    um grande nmero de artigos e os livros sobre os indgenas. Nascido em Macei, em

    1895, Pinto veio para o Recife cursar Direito e nesta cidade constituiu famlia. Scio

    do IAHGP, a partir de1922 comeou a publicar seus primeiros artigos histricos em

    jornais recifenses. Trabalhava, assim como outros intelectuais da poca, como

    professor, nos tradicionais ginsios da capital, nos quais conviveu, por exemplo, com

    Gilberto Freyre, Manuel Correia de Andrade, Waldemar Valente, Costa Porto, Amaro

    Quintas, dentre outros. Em sua casa trabalhou Nna, ndia fulni- que esteve com afamlia de Estevo Pinto por mais de quarenta anos (ROCHA, 1992, p.8).

    Possivelmente essa presena indgena nos limites domsticos tenha motivado,

    influenciado e colaborado em muito para os estudos do autor sobre os ndios,

    particularmente os Fulni-.

    O primeiro volume de Os indgenas do Nordeste, com o subttulo Introduo

    ao estudo da vida social dos indgenas do Nordeste brasileiro, uma minuciosa

    pesquisa bibliogrfica e documental ilustrada com mapas, quadros e fotografias. Foipublicado por Estevo Pinto, em 1935. O segundo volume, trazendo o subttulo

    organizao dos indgenas do Nordeste brasileiro, veio a pblico em 1938 e, alm

    de mapas e quadros, trouxe diversos desenhos, gravuras e estampas, reproduzidas

    de livros de viajantes que estiveram no Brasil. Esse volume baseado

    principalmente nas informaes dos cronistas coloniais e viajantes, tratando, em

    quase sua totalidade, dos tupis do litoral.

    Apenas no primeiro volume o autor se referiu aos sucurs. A primeira

    referncia aparece quando foi tratada a classificao dos ndios no Brasil. Estevo

    Pinto localizou vrios grupos como cariris e, dentre eles, Os sucurs, que se

    encontravamnos rios do Meio, da Serra-Branca, de So Jos e de Tapero, todos

    tributrios do Parnaba, assim como nos afluentes do alto Piranhas, na serra do

    Arub e em Cimbres(Pernambuco). A segunda referncia encontra-se no Mapa da

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    distribuio dos principais grupos indgenas do Brasil; na lista de nomes que

    acompanha o tal Mapa encontramos os Sucurs (PINTO, 1935, p.138; 151)

    (Grifamos).

    Observa-se um erro possivelmente de grafia, pois o correto seria rio Paraba e

    no Parnaba (PI), j que as localidades citadas como lugares de moradia de

    sucurs esto em uma regio reconhecida historicamente como paraibana.

    Percebe-se tambm que, ao informar sobre os ndios, o autor usou o verbo no

    passado: se encontravam. O mesmo verbo est ainda relacionado serra do

    Arub e Cimbres, o que expressava o no reconhecimento, pelo autor, da efetiva

    presena indgena no perodo da pesquisa que resultou no livro publicado em 1935.

    Na concluso do primeiro volume do seu estudo, Estevo Pinto escreveu:

    Condies bio-sociolgicas concorrem, sobremodo, para a obra de

    miscigenao dos portugueses, qual, alis, no era indiferente o Estado. Ocaboclo do nordeste, o resultado desses cruzamentos, que uma

    antropologista chamou de homogensico-paragensico. O nosso

    xantodermo, braquicfalo, mediano na estatura, de cabelos negros e face

    larga, mostra ainda alguns dos caracteres mais comuns do tipo amerndio.

    (PINTO, 1935, p.255). (Grifamos).

    As afirmaes do autor expressam explicitamente a idia do desaparecimento

    do ndio, fundamentada na mistura de raas iniciada com a colonizao portuguesa

    no Nordeste; assim, o caboclo xantodermo, ou seja, aquele com a pele de cor

    amarelada ou ocre, resultante dessa miscigenao, ainda que carregasse traos

    fsicos do seu antepassado indgena, significava o fim deste. Isso explica porque o

    autor no considerou a existncia contempornea ao seu estudo de ndios em

    Cimbres, referindo-se aos sucurs no passado.

    A obra Os indgenas do Nordesterecebeu efusivas acolhidas de estudiosos da

    poca, dentre os quais elogios de Gilberto Freyre e Pedro Calmon, que saudaram a

    erudio, a capacidade de interpretao e sntese do autor. O antroplogo Herbert

    Baldus fez tambm uma resenha crtica favorvel, publicada na Revista do Arquivo

    Municipal de So Paulo, em 1938. (ROCHA, 1992, p.193-196; 280). Com Os

    indgenas do NordesteEstevo Pinto passou a ser conhecido no Brasil e no exterior,

    realizando conferncias, participando de congressos, publicando artigos. Naquele

    mesmo ano, o autor realizou uma viagem de pesquisa para o Servio do Patrimnio

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    Histrico e Artstico Nacional, resultando em um artigo intitulado As mscaras de

    dana dos Pankararu, com o subttulo remanescentes indgenas dos sertes de

    Pernambuco. O artigo foi publicado no Recife e republicado em revistas na

    Argentina, em Lisboa e no Journal de la Socit des Americanistes. (ROCHA, 1992,

    p.196).

    Nos anos seguintes, Estevo Pinto publicou outros artigos em peridicos

    nacionais e na imprensa pernambucana e, em 1952, foi a Paris, onde fez uma

    conferncia sobre a Antropologia no Brasil, na Sorbonne. Entre 1953 e 1955, Pinto

    publicou, em jornais do Recife, artigos sobre os Fulni-, ora defendendo que eles

    vivenciavam uma cultura em transio ou que estavam ameaados de extino.

    Encontramos na documentao do SPI um telegrama da 4 Inspetoria Regional,

    informando que Estevo Pinto, em 1953, estava realizando pesquisas sobre o

    vocabulrio Fulni-16.No