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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Jos Benedito de Almeida Jnior
A FILOSOFIA CONTRA A
INTOLERNCIA:
Poltica e Religio no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau
SO PAULO2008
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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Jos Benedito de Almeida Jnior
A FILOSOFIA CONTRA A
INTOLERNCIA:
Poltica e Religio no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia doDepartamento de Filosofia daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade de
So Paulo, para obteno do ttulo deDoutor em Filosofia.
Orientadora: Profa. Dra. Maria das Graas de Souza.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeo a Professora Doutora Maria das Graas de Souza
que abriu as portas da pesquisa acadmica e, com infinita pacincia, acompanhou o
desenvolvimento dos meus trabalhos. Somente com sua ajuda e seu apoio tive a
oportunidade de ingressar nesta carreira. No h, Graa, palavras que possam fazer jus
grandeza do universo que voc descortinou para mim.
Agradeo aos colegas professores, funcionrios e alunos do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Uberlndia que, nestes trs anos de convvio,
apoiaram de modo decisivo minha insero no Departamento e o desenvolvimento deste
trabalho.
Agradeo aos funcionrios da Universidade de So Paulo, especialmente nas
pessoas da Mari e da Maria Helena, pelo cuidado para conosco. Tambm agradeo aos
professores a quem devo minha formao.
Agradeo a dois colegas em especial, os professores e amigos Lus Felipe Sahd e
Ricardo Monteagudo que forneceram referncias bibliogrficas fundamentais e deramsugestes precisas para esta pesquisa.
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DEDICATRIA
Este trabalho s pde ser realizado graas ao envolvimento direto das pessoas a
quem qualquer agradecimento muito pequeno.
Aos meus pais Jos Benedito e Diomar, a quem devo minha vida e que apoiaram
a busca pelo meu caminho.
minha esposa Ivete, cujo amor alimenta meu esprito. Sua presena me faz
sentir o desejo de continuar, a cada dia, merecendo-a.
Aos meus filhos Carolina, Gabriel e Jlio que tiveram a infinita pacincia de
agentar as ausncias e, algumas vezes, as presenas do pai.
Ao meu sogro Jos Lino (in memoriam) e minha sogra Ivone Batista que, ao
assumir todos os cuidados com o lar, permitiu-me concluir este trabalho.
Aos meus familiares: Sherri, Hugo, Helaine, Adilson, Irene, Clvis, os sobrinhos
e a todos que tm pacincia nos autos de Natal.
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RESUMO
ALMEIDA JNIOR, Jos Benedito. A filosofia contra a intolerncia: poltica e religiono pensamento de Jean-Jacques Rousseau. 2009. 242 f. Tese (Doutorado). Faculdade deFilosofia Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 2008.
Este trabalho tem por objetivo provar que, em primeiro lugar, a despeito das crticas doscontemporneos de Rousseau e das interpretaes de alguns estudiosos de seu
pensamento, no h qualquer trao de anti-cristianismo em sua obra e nem mesmo aafirmao da existncia de uma antinomia entre cristianismo e poltica. Em segundo
lugar, que Rousseau concebe um tipo de religiosidade pessoal peculiar, que pode serdefinida como tesmo cristo, pois ao mesmo tempo em que assume parte doselementos da religio natural aceita a Bblia e Cristo como fundamentos de sua f. Emterceiro lugar, que Rousseau apresenta a Religio Civil como soluo original paratratar o problema gerado pela intolerncia religiosa na Era Moderna, pois este exigeuma nova concepo das relaes entre religio e poltica que no poderia serencontrada na filosofia poltica anterior. A Religio Civil, portanto, uma soluo,
porque atinge os pontos centrais do problema: preciso que o soberano seja toleranteem matria de religio, da a formulao dos dogmas positivos; mas intolerante paracom os intolerantes, sejam os fanticos ateus ou os fanticos devotos, da a necessidadedo dogma negativo; por fim, assumindo o papel de religio oficial, no deixa as leis
relegadas prpria sorte.
Palavras-chave: Filosofia, Poltica, Religio, Tolerncia, Rousseau.
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ABSTRACT
ALMEIDA JNIOR, Jos Benedito. Philosophy against the intolerance: politic andreligion in the Rousseaus thought. 2009. 242 f. Thesis (Doctoral). Faculdade deFilosofia Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de SoPaulo, So Paulo, 2008.
The objective of this work is to prove, firstly, that in spite of the criticisms ofRousseaus contemporaries and the interpretations of some scholars of his thought,there is no trace of anti-Christianism in his work and not even the affirmation of theexistence of an antinomy between Christianism and politics. Secondly, Rousseau
conceived of a type of particular private religiosity which may be defined as Christiantheism, for at the same time in which he assumes part of the elements of naturalreligion, he accepts the Bible and Christ as foundations of his faith. Thirdly, Rousseau
presents Civil Religion as an original solution for dealing with the problem created byreligious intolerance in the Modern Age, for this demands a new conception of therelationship between religion and politics that could not be found in previous political
philosophy. Civil Religion is therefore a solution because it touches on the centralpoints of the problem: it is necessary that the sovereign be tolerant in the matter ofreligion, thus the formulation of the positive dogmas; but intolerant toward theintolerant, whether the fanatics be atheists or devoted followers, thus the need for thenegative dogma. Finally, assuming the role of official religion, do not leave the laws
relegated to luck itself.
Key-words: Philosophy, politic, religion, tolerance, Rousseau.
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SUMRIO
Introduo 08
Cristianismo e cidadania: uma reconciliao impossvel? 23
O Deus de Rousseau 89
A Filosofia contra a Intolerncia 156
Concluso 225
Referncias 236
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Introduo
Jean-Jacques atravessou Paris em uma carruagem modelo cabriol que, sendo
aberta, no era adequada para quem estava tentando passar incgnito. Depois de muita
insistncia dos amigos, resolveu partir da Frana para que pudesse fugir da perseguio
que o aguardava. Provavelmente, j tomado pelo delrio que acompanha os perseguidos,
achou que muitas pessoas o cumprimentavam sem que conhecesse nenhuma delas. No
caminho entre La Barre e Montmorency passou por um carro de aluguel, ocupado por
quatro homens de preto que, como aquelas pessoas desconhecidas, o saudaram sorrindo.
Mais tarde soube por Thrse que, pelo aspecto que apresentavam e pela hora que
chegaram, deveriam ser os meirinhos encarregados de prend-lo.
A cena acima descrita fazia parte de um ambiente poltico no qual a perseguio
de uma pessoa por causa de suas idias e de seus livros sobre religio, at mesmo suas
correspondncias particulares, era uma possibilidade concreta. O conflito que se
estendia desde as 95 teses de Lutero pregadas na porta da catedral de Wittenberg,
atingiu Rousseau tambm. Mesmo acreditando que demonstrara sua f crist na
Profisso de F do Vigrio de Saviae de ter proposto uma soluo para o problema da
intolerncia religiosa com a Religio Civil no Contrato Socialfoi vtima da perseguio
intolerante, tanto na Frana catlica, quanto na Genebra protestante. Em ambos os
pases, suas obras foram censuradas e expediram-se ordens de priso as quais os amigos
lhe aconselharam no se entregar, pois no poderia esperar por um julgamento justo.
Fugir era a nica sada que lhe restava se quisesse ter alguma oportunidade de se
defender, como de fato o fez nas Cartas Escritas da Montanhae na Carta a Christophe
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de Beaumont. No entanto, a partir de 1762, Rousseau no ter mais paz, pois a
intolerncia, seja dos populares, seja dos intelectuais o colocaro em um estado tal que
somente agravaria seus delrios de perseguio. Desabafando de sua situao no incio
dosDevaneios do Caminhante Solitrioafirma que seus inimigos erraram no modo de
persegui-lo, pois o condenaram a um isolamento total, de onde conseguiu a paz que no
teria se tivesse alguma esperana de vir a ser compreendido por seus contemporneos.
Em 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero pregou as 95 teses nas portas da
Catedral de Wittengerg dando incio, no seio da Igreja Catlica, ao movimento que
ficou conhecido como Reforma Protestante. O motivo principal de sua revolta foi a
pregao do dominicano Tetzel que levou ao extremo a venda das indulgncias para
financiar a construo da Igreja de So Pedro em Roma. Lutero defendia a tese de que o
perdo dava-se pela vontade divina que julga a f dos homens e no pela aquisio de
indulgncias, reacendendo, mais uma vez, a polmica entre a salvao pela f e a
salvao pelas obras. Lutero no tinha a inteno de romper com a Igreja, mas de
reform-la, no entanto, foi excomungado em 03 de janeiro de 1521. A partir da nascia a
Reforma Protestante.
Na Frana, o protestantismo se expandiu rapidamente e tambm foi palco de
alguns dos episdios mais crticos da intolerncia religiosa. Os escritos de Lutero foram
impressos e vendidos na Frana entre 1519 e 1520, mas em 1521 o Parlamento decidiu
que somente seriam impressas e comercializadas as obras que tivessem a aprovao da
faculdade de teologia. Por outro lado, formou-se o grupo de Meux que tinha como
objetivo inicial o de propor uma reforma para a Igreja que vinha sendo marcada por
constantes abusos. Dentro deste grupo encontrava-se o Bispo Guilherme Brionnet e
Guilherme Farel. A tese do purgatrio, da salvao pelas obras e, especialmente, a da
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eucaristia foram publicamente questionadas, levando, em 1526 o Parlamento a proibir
qualquer traduo francesa das Escrituras, a divulgao de teses no autorizadas pelos
telogos da Igreja e ordenando a dissoluo do grupo.
No era somente Lutero quem propunha reformas na Igreja Catlica. Vrias
eram as correntes que no estavam de acordo com os rumos que tomava o Vaticano.
Depois da ruptura com Lutero a Igreja comea o Conclio de Trento, o qual teve por
objetivo propor reformas que deveriam recolocar a Igreja em seu rumo. Dentre os
aspectos mais destacados desta reforma, encontra-se alguns sinais de tolerncia para
com os reformados. Assim, no se pode falar em Contra-Reforma, mas em Reforma
Catlica, uma vez que este movimento no nasceu exclusivamente como uma resposta
Reforma Protestante, mas j estava em gestao dentro da prpria Igreja.
A Reforma Protestante se expandiu por toda a Europa chegando Genebra
especialmente com Guilherme Farel que passou por Berna, Neuchatl e outras cidades
da regio estabelecendo-se em Genebra. Chamou para esta cidade o jovem humanista
francs que havia sido obrigado a deixar sua terra por ser simptico s idias de Lutero e
lhe ofereceu ali abrigo e oportunidade. No entanto, com o passar dos anos, as
divergncias entre Farel e Calvino sobre a disciplina eclesistica foram tais que os
habitantes obrigaram ambos a deixarem a cidade. Farel foi para Neuchatl e Calvino
para Estrasburgo. O Conselho de Genebra, porm, pediu que Calvino retornasse para l
em 1541, onde permaneceu at sua morte em 1564.
Calvino publicou a Christianae Religionis Institutio em 1536 e, apesar da
resistncia oficial o nmero crescente de converses foi cada vez mais constante. Houve
tambm a adeso de membros da aristocracia, sendo o caso mais significativo o de
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Gaspar Coligny. O clima efervecente j levava aos conflitos entre catlicos e
protestantes e teve como ponto culminante a violenta reao Conjurao de Amboise
em 1560. O dito de Saint-Germain, em 1562, teve por objetivo restituir a paz civil
entre catlicos e huguenotes. Esta primeira tentativa de conter as guerras fratricidas de
intolerncia religiosa logo demonstrou-se insuficiente. Apesar das derrotas dos
calvinistas, estes formaram uma espcie de Estado dentro do Estado, tendo como capital
La Rochelle, chamada de Jerusalm Martima que se firmou sob a autoridade de
Gaspard de Coligny, da rainha de Navarra, Joana dAlbret, e de seu filho Henrique.
A tenso entre os reformados e os catlicos aumentava, no somente entre a
populao, mas tambm entre a nobreza, apesar do tratado de Saint-Germain assinado
por Catarina de Mdici em 1570. A guerra entre a Espanha de Filipe II e os rebeldes
flamencos deu ocasio para que Coligny tentasse convencer o rei Carlos IX a apoiar os
rebeldes. Os catlicos franceses no aceitaram a iniciativa do rei apoiar os protestantes e
o pressionaram a retirar o auxlio, aproveitando a ocasio da derrota das tropas francesas
em Mons. A rainha me, Catarina de Mdici, catlica, considerava o assunto encerrado,
mas percebeu que seu filho estava disposto a apoiar Coligny. Ento, aproveitando-se da
acusao que caa sobre este de ser o responsvel pela morte do Duque Francisco de
Guise, em 1563, se envolve em uma conspirao com o Duque Henrique de Guise para
assassin-lo. A conspirao no foi bem sucedida e Coligny ficou apenas ferido. Como
o rei ordenou que se investigasse o atentado a crise se agravou, pois logo descobririam
os responsveis pelo atentado. Uma suposta conspirao huguenote para vingar o
atentado contra Coligny, deu motivo para que Catarina e outros convencessem Carlos
IX a massacrar a suposta rebelio, como acontecera em Amboise. Aps algum tempo o
rei d autorizao para o massacre que ficou conhecido como o massacre de So
Bartolomeu. A partir de 24 de agosto, em todos os bairros de Paris e em outras
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cidades desencadeia-se uma carnificina que duraria at o dia 30 de agosto em sua
forma mais intensa, mas durante meses ainda houve aes deste tipo.
A partir da o protestantismo sofre um forte refluxo na Frana, mas justamente
neste perodo ascende ao poder Henrique IV, filho da rainha de Navarra Joana dAlbret.
Assim chegaram os protestantes ao poder e o primeiro grande ato de Henrique IV foi a
assinatura do dito de Nantes em abril de 1598. Apesar de reconhecer o catolicismo
como religio oficial, garantia espao para a religio reformada, a igualdade perante a
justia, o direito aos cargos pblicos e manter praa fortes sob o comando dos
protestantes.
Evidentemente, este foi um perodo de ascenso do protestantismo aumentando
o nmero de convertidos e templos. Porm, com o assassinato de Henrique IV em 1610
os protestantes perceberam que a situao ficava novamente contra eles. Alguns
preconizaram a lealdade coroa, outros propuseram a luta armada, como foi o caso de
Henri de Rohan, cuja resistncia ficou conhecida como as guerras do senhor de Rohan
e resultou no massacre dos rebelados. Com a ascenso do cardeal Richilieu ao poder, a
perseguio aos protestantes ficou cada vez mais intensa, culminando na destruio das
fortificaes protestantes de La Rochelle e Privas deixando a eles, como proteo,
somente a benevolncia e a f do prncipe. Ocorre, a partir das aes de Richilieu, um
esvaziamento do dito de Nantes at que quando de sua revogao em 1685, pelo dito
de Fontainebleu, ele j no era seno meras palavras. Este esvaziamento foi feito por
meio de decretos do Conselho e declaraes reais que foram retirando os direitos de
culto, de construo de colgios, sobrecarregando os que no se convertiam e
beneficiando os convertidos ao catolicismo. Depois, proibiu-se a converso ao
protestantismo e, tambm, o acesso s funes pblicas aos reformados. Por fim, o
episdio das dragonadas resultou em uma converso em massa ao catolicismo atingindo
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mais de 38 mil abjuraes em um perodo de um ano, uma vez que quem se mantivesse
no culto reformado deveria hospedar os soldados em suas casas.
O perodo conhecido como Deserto, uma aluso ao xodo dos hebreus, foi
marcado pela clandestinidade na qual foram lanados os protestantes. O primeiro
perodo ficou conhecido como Deserto Herico, de 1685 at cerca de 1760,
caracterizado pela perseguio aos que resistiam aos limites impostos pelo dito de
Fontainebleu. O dito exigia que todos fossem catlicos, sendo que os reformados
foram obrigados a abjurar e proibidos de deixar o pas. A resistncia passiva
caracterizava-se pelo fato dos novos convertidos evitarem, o quanto podiam, participar
de prticas catlicas e a resistncia ativa, por sua vez, caracterizava-se pela realizao
de cultos e assemblias clandestinas, sofrendo, por diversas vezes, represses violentas.
A partir de 1760 a represso comeou a arrefecer e os reformados passaram a praticar
seus cultos e ritos como o batismo, a comunho e os casamentos com mais liberdade,
todavia, somente com o dito de Tolerncia de 1787 os reformados tiveram o
reconhecimento de sua existncia civil mesmo sem obterem a liberdade de culto, ainda
que a represso tivesse sido praticamente extinta.
Rousseau, portanto, foi vtima de censura e condenao, na Frana, bem no
momento em que a perseguio estava cedendo lugar tolerncia. Segundo o prprio
Rousseau, a ascenso poltica dos jansenistas, tanto na Igreja quanto no Parlamento de
Paris, levou tendncia do endurecimento contra a liberdade religiosa e teria sido esta a
razo de sua perseguio. Em Genebra, alm das questes de f os motivos scio-
polticos levaram sua perseguio. Genebra tinha por volta de vinte mil habitantes e
era caracterizada, do ponto de vista poltico, por ser uma repblica e, do ponto de vista
religioso, pelo calvinismo. Nem todos os que habitavam esta cidade tinham direitos
polticos plenos. A populao era dividida nos seguintes grupos: patriciado, burguesia,
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habitantes, nativos, estrangeiros e sditos. O patriciado ou aristocracia, e os burgueses
eram os nicos que tinham os direitos polticos e econmicos, portanto podiam votar e
serem eleitos para os rgos de administrao da cidade, exceto para o Pequeno
Conselho do qual participavam somente as famlias tradicionais. Os burgueses haviam
comprado seus direitos e se estabeleceram historicamente em Genebra em decorrncia
da fuga das regies onde havia intolerncia. Os habitantes eram estrangeiros que haviam
comprado o direito de residncia em Genebra, mas este direito podia ser revogado a
qualquer momento. Os nativos eram filhos dos estrangeiros, tinham direitos econmicos
restritos e no participavam de forma alguma do poder, alm disso, sobre eles recaam
pesados impostos. Os estrangeiros moravam temporariamente em Genebra, muitas
vezes, esperando obter direitos na condio de habitantes. Por fim, os sditos, eram
soldados mercenrios ou camponeses dos territrios submetidos Genebra e eram
proibidos de adquirir os direitos de burguesia.1
Em suma, havia dois grupos dominantes em Genebra que dispunham de direitos
polticos e dominavam o poder. Por um lado uma aristocracia financeira e de outro a
burguesia. Os dois principais rgos do governo eram o Conselho Geral ou Conselho
dos Duzentos composto por duzentos e cinqenta cidados e exercia o papel legislativo;
o Pequeno Conselho, composto por vinte e cinco pessoas, exercia o papel de executivo.
A aristocracia genebrina dominava o Pequeno Conselho e utilizou este rgo para
concentrar ainda mais poder para si. No incio do sculo XVIII o Caso Pierre Fatio
levou a uma dura represso contra a burguesia que tentara restaurar seus direitos que
lentamente vinham sendo perdidos. Novas tentativas de revolta ocorreram durante este
sculo e como reao a elas a aristocracia fechou-se ainda mais no domnio deste
conselho.
1ROUSSEAU, J. J. Cartas Escritas da Montanha. Traduo de Maria C. P. Pissarra, Maria das Graasde Souza. So Paulo: EDUC, UNESP, 2006, pp. 31 32.
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Rousseau herdara a condio de burguesia de seu pai, e, desde que adquirira
fama, tornara-se um nome para a luta contra a concentrao de poder pela aristocracia.
Sua condenao foi mais um golpe do patriciado contra a burguesia. Condenar
Rousseau e suas obras era mais um sinal do poder do patriciado sobre os interesses dos
burgueses. Ao final das Cartas Escritas da MontanhaRousseau incita seus conterrneos
burgueses a lutarem pelos seus direitos a fim de que no se tornassem escravos nem do
patriciado, nem da Frana.
Quando Rousseau foi condenado, a reao da burguesia foi muito tmida,
somente alguns familiares seus quiseram obter mais informaes sobre o processo e no
tiveram sequer uma resposta do Pequeno Conselho. O Procurador Geral havia expedido
uma sentena que trazia um problema a ser resolvido. Rousseau poderia ou no ser
preso em Genebra? No havia dvida quanto ao direito de censura s obras, mas o
problema da ordem de priso permanecia polmico:
Em 19 de junho de 1762, Jean-Robert Tronchin, o Procurador Geral,pronunciou a condenao estabelecida pelo Pequeno Conselhocondenando o Emlio e o Contrato Social a serem lacerados equeimados pelo executor da alta justia, na porta do Hotel de Ville,como temerrios, escandalosos, mpios, tendendo destruio dareligio crist e de todos os governos. Ao mesmo tempo, decretavaque, caso Rousseau viesse cidade ou s terras da Senhoria, deveriaser detido, para ser em seguida pronunciado sobre sua pessoa aquiloque lhe era atribudo. 2
O problema se concentrava no fato de que Rousseau abjurara a religio
calvinista quando tornou-se catlico. Depois, participou de um rito solene no qual
acreditava ter retornado sua condio de cidado de Genebra, mas Tronchin via uma
irregularidade neste procedimento, pois ele no poderia ter renunciado solenemente sua
religio, ento, tambm no poderia retornar a ela, por isso: Se o autor no goza mais
2ROUSSEAU, J. J. Cartas Escritas da Montanha. Traduo de Maria C. P. Pissarra, Maria das Graasde Souza. So Paulo: EDUC, UNESP, 2006, p. 45.
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dos direitos da cidade, no poderia, na minha opinio, ser condenado pelos direitos da
cidade, uma vez que suas obras no foram compostas, nem impressas nesta cidade,
tendo sido apenas, para ser mais exato, enviadas para c pelo editor.3
Neste primeiro momento, somente o caso Pictet-Duivillard chamou a ateno
para a situao de Rousseau e demonstrou a disposio do patriciado de impor-se
burguesia at mesmo se tivesse que condenar um aristocrata. O coronel Pictet era um
patrcio que ao escrever para o livreiro Duivillard, membro da burguesia, criticou a
deciso do Pequeno Conselho e apontou o que acreditava serem as verdadeiras causas.
Para ele, a condenao de Rousseau era uma forma de o patriciado manifestar sua
admirao por Voltaire em razo de seu desejo de agradar a corte de Versalhes e
reparar, por uma tentativa manifesta, o mal que teria feito a Genebra o famoso artigo de
DAlembert na Enciclopdia. Esta afirmao causou grande incmodo aos membros do
Pequeno Conselho que condenou tanto o autor como seu destinatrio. Rod considera
que a punio foi extremamente dura, especialmente porque a carta era privada. Ambos
foram obrigados a pedir perdo a Deus e Senhoria, a ver a carta ser queimada, ter seus
direitos honorficos suspensos por um ano e no caso Duivillard, somente seis meses,
mas neste mesmo perodo foram suspensos seus direitos de membro do Magnfico
Conselho dos Duzentos e de burguesia, por fim, foram encarregados das custas e
despesas do processo. Rod reproduz um trecho da carta de J. - L. Dupan a seu amigo
Freudenreich a qual demonstra o estado de nimo da aristocracia aps as condenaes:
Dir-se- que a religio o que menos lhes interessa (a Rousseau,Pictet e Duivillard) eles do-se por satisfeitos que sua vaidade e seuorgulho estejam satisfeitos. Seu maior prazer consiste em dizer:Genebra a nica cidade onde os comediantes no so recebidos, e
fomos ns quem os impedimos. Rousseau escreveu contra oscomediantes, um nobre cavaleiro, ele pode dizer e escrever tudo,
3ROUSSEAU, J. J. Cartas Escritas da Montanha. Traduo de Maria C. P. Pissarra, Maria das Graasde Souza. So Paulo: EDUC, UNESP, 2006, pp. 45 46.
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mesmo que seja contra a religio. Pictet insulta Voltaire, o inimigonasce da superstio, do abuso da religio, da intolerncia e porconseqncia de todos os eclesisticos do mundo, logo Pictet podesem cometer crime algum, divulgar libelos sediciosos contra oConselho.4
O processo contra Rousseau, porm, estava longe de terminar. Sentindo-se
abandonado por seus amigos renuncia ao seu direito de burguesia em 12 de maio de
1763. Somente ento, a burguesia manifesta, de fato, sua inteno de defender Rousseau
das acusaes perpetradas pelo Pequeno Conselho. Os burgueses apresentaram as
representaes, isto , o direito de exigir justificativas das decises do Pequeno
Conselho ou apresentar-lhes exigncias. Este conselho, por sua vez, atribua-se o direito
negativo, que lhe dava a prerrogativa de examinar a pertinncia todas as questes que
seriam levadas ao Conselho Geral e decidir se seriam ou no encaminhadas. O interesse
dos representantes era o de anular o processo ou leva-lo ao Conselho Geral, mas nem
uma nem outra exigncia foi atendida e o direito negativo se imps sobre todas as
representaes que foram apresentadas.
Em meio ao crescente conflito, Marcet de Mezires escreveu uma carta a
Rousseau na qual afirma ter encontrado a irregularidade que poderia anular a sentena
contra ele. Trata-se do artigo 88 das Ordenaes Eclesisticas. Conforme Rod: Marcet
acrescentou um ps-escrito no qual afirma que ao folhear as Ordenaes Eclesisticas
descobriu um artigo que estabeleceria a ilegalidade de ordem de priso, ao menos no
que concerne religio. 5No artigo 88 l-se:
Se houver algum que dogmatize contra a doutrina estabelecida, eseja chamado para justificar: se ele se retrata, que se o tolere semescndalo nem difamao; se ele perseverar, que seja admoestadovrias vezes para tentar convenc-lo. Se, mesmo assim, considerar-senecessrio utilizar uma severidade maior com ele, que seja
4ROD, douard.Laffaire J. J. Rousseau. Paris: Perrin et Cie. Librarie diteurs, 1906, p. 18.5ROD, douard.Laffaire Rousseau. Paris: Perrin et Cie. Librarie diteurs, 1906, p. 146.
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interditado Santa Ceia e que o magistrado seja avisado para que seassegure sua punio. 6
As Ordenaes Eclesisticas eram a constituio da Igreja de Genebra que
instituram as funes dos quatro ministrios: a pregao, o ensino, a disciplina e a
caridade. Doze ancios e os ministros formavam o Consistrio que era o rgo
encarregado de zelar pela f e pelos costumes aplicando penalidades, cuja intensidade
poderia ser de uma simples advertncia at a excomunho. Os casos mais graves
poderiam ser encaminhados aos conselhos polticos de Genebra.
A idia, portanto, era a de que Rousseau no deveria ter recebido uma punio
civil antes de ser interrogado pelo Consistrio, tal como foram os casos de Jean Morelli
e de Nicolas Antoine. Apesar destes argumentos, tanto Rod, como Braillard no
acreditam que tenha havido irregularidades no processo contra Rousseau, mas
discordam da sentena que foi dada ao autor do Emlio. Para Braillard o que sei bem
que se eles no perpetraram um crime contra as leis, eles cometeram uma falta contra a
civilizao, eles atentaram equidade, ao direito de pensamento e ao interesse da
religio, que eles pretendiam defender. 7Tronchin, por sua vez, afirma que o processo
no foi irregular. Para ele, afirmar que Rousseau deveria ter sido antes citado ao
Consistrio desconhecer o esprito do artigo que prescreve regras ao prprio
Consistrio e no fixa as competncis dos tribunais, por isso, uma norma do Consistrio
no poderia se impor aos Conselhos. O objetivo das Ordenaes no era atar as mos
do poder civil e obrig-lo a no reprimir os delitos cometidos contra a Religio, seno
aps o Consistrio tenha conhecido este delito e tentado persuadir o culpado de se
retratar. Trata-se de uma questo de definir a esfera de cada um dos poderes. O
Consistrio no teria, portanto, poder maior do que o Governo, por isso, no haveria
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ROD, douard.Laffaire Rousseau. Paris: Perrin et Cie. Librarie diteurs, 1906, p. 146.7BRAILLARD, J. J. J. Rousseau Jug par les Genevois daujourdhui.Neuchatel: Jules Sandoz; Paris:Sandoz et Fischbacher, 1879, pp. 202 203.
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entre eles, sobre qualquer assunto, subordinao do governo ou dos Tribunais do
Consistrio.
Se o Consistrio no age, sua inao amarraria o Conselho? Ou, pelomenos, ficaria ele reduzido funo de delator junto ao Consistrio?No foi isso que entendeu a Ordenao quando, depois de ter tratadodo estabelecimento do dever e do poder do Consistrio, concluiu quea potncia civil permanece inteira, de sorte que ela no seja em nadaderrogada em sua autoridade, nem tampouco no curso da justiaordinria por nenhuma queixa eclesistica. Essa Ordenao nosupe, pois, absolutamente, como se faz com as Representaes, quenessa matria os ministros do Evangelho sejam juzes mais naturaisque os dos Conselhos. Tudo que da alada da autoridade emmatria de religio, da alada do governo. o princpio dos
protestantes e , particularmente, o princpio de nossa Constituio,que, em caso de conflito, atribui aos Conselhos o direito de decidirsobre o dogma. 8
Em resumo, quatro Representaes foram enviadas ao Pequeno Conselho. A
primeira foi em 25 de junho de 1762, feita por alguns parentes de Rousseau, que
solicitavam informaes mais detalhadas sobre o processo, pois a sentena falava na
condenao das obras, mas no em priso para o seu autor. Como seus parentes no
tinham projeo poltica, no obtiveram qualquer resposta. Alguns dias depois, uma
quinzena de cidados foram at o Primeiro Sndico e o Procurador Geral para saber se
uma ordem de priso havia sido, de fato, expedida contra Rousseau sem obter qualquer
resposta significativa. A partir da no mais tentaram qualquer outro esclarecimento
junto s autoridades e, por causa disso, Rousseau, sentindo-se abandonado por seus
concidados renunciou ao seu direito de burguesia.
Rousseau renuncia ao seu direito de cidado em 12 de maio de 1763, numa carta
endereada ao Primeiro Sndico: Minha ptria, tornado-me estrangeiro no pode me
tornar indiferente; fico ligado a ela por uma doce lembrana e no esqueo dela nem de
8ROUSSEAU, J. J. Cartas Escritas da Montanha. Traduo de Maria C. P. Pissarra, Maria das Graasde Souza. So Paulo: EDUC; UNESP, 2006, pp. 266 267; O.C., Gallimard, v. III, p. 770.
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seus ultrajes. 9O Pequeno Conselho aceitou a renncia de Rousseau, mas o efeito foi
que os partidrios de Rousseau, finalmente, decidiram tomar a iniciativa para tentar
reverter a censura e a condenao.
A segunda Representao data de 18 de junho de 1763 e foi assinada por
algumas dezenas de Cidados e Burgueses, os quais, baseados no Regimento de
Mediao, apresentaram ao Primeiro Sndico uma muito humilde e respeitosa
Representao na qual argumentavam, em primeiro lugar, que Rousseau no tivera um
julgamento, em segundo lugar, que o tribunal fora ilegal, pois no tinha sndicos e, por
fim, do recolhimento e da recusa de restituir vinte quatro exemplares do Emlio aos
senhores Jean e Isaac Bardin. A resposta a essa segunda representao foi dar satisfao
aos senhores Bardin e, quanto aos outros temas, foi uma recusa enrgica dos seus
argumentos.
Em 08 de agosto de 1763 apresentou-se uma terceira Representao, desta vez
assinada por mais de uma centena de cidados. Em 10 de agosto o Pequeno Conselho d
uma resposta lacnica, declarando que tudo o que tinha de ser dito a respeito deste
assunto fora feito na resposta de 25 de julho. Dez dias mais tarde, uma carta assinada
por 480 cidados e Burgueses e endereada ao Primeiro Sndico, solicitava que a
questo fosse enviada ao Conselho Geral, pois este era o nico intrprete das Leis. Esta
carta toca no assunto mais delicado que era, justamente, a concentrao do poder pelo
Pequeno Conselho. Na resposta encaminhada por Tronchin, em 31 de agosto de 1763,
afirma que o Pequeno Conselho tinha a prerrogativa de decidir se a Representao
seguiria ou no para o Conselho Geral, portanto, utilizava o seu direito negativo.
Tronchin no discute a pertinncia ou no de o Pequeno Conselho arrogar-se intrprete
9ROUSSEAU, J. J. Introduo s Cartas Escritas da Montanha. Oeuvres Compltes. V. III. Paris,Gallimard, 1964, p. CLXIV.
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das leis, mas afirma que este tinha o direito de decidir se aquela Representao poderia
ou no seguir adiante.
A quarta Representao foi feita em 29 de setembro, insistindo nos argumentos
da segunda Representao e refutando o direito negativo neste caso, mas foi desprezada
pelo Pequeno Conselho, porque, Tronchin fizera publicar anonimamente as quatros
primeiras Cartas Escritas do Campo, defendendo as atitudes do Pequeno Conselho e a
legitimidade dos Tribunais sem Sndicos. Em 23 de outubro publica a quinta e ltima
carta na qual defende o direito negativo, evidentemente, depois de ter lido o teor da
quarta Representao.
Os aliados de Rousseau, Moultou, dIvernois e De Luc insistiram para que ele
mesmo se envolvesse em sua defesa. De Luc enviou-lhe um exemplar das Cartas
Escritas do Campo juntamente com uma carta na qual insiste que somente Rousseau
reunia condies de responder tanto ao escrito annimo quanto s negativas do Pequeno
Conselho. Na carta em que Rousseau responde positivamente a De Luc h uma
curiosidade: ela est datada de janeiro de 1763, o que levou J. Spink a supor que
Rousseau pretendia agir em sua defesa desde o incio daquele ano. No entanto, Derath
observa que isto no seria possvel, pois ele ser refere s Cartas Escritas do Campoque
s foram publicadas em setembro de1763. Assim, o erro da data pode ser explicado pelo
equvoco comum que se comete quando um ano se inicia. A partir de ento, passa a
redigir as Cartas Escritas do Campoe defender-se da intolerncia em Genebra.
Rousseau escreveu contra a intolerncia religiosa. Ousou desafiar os
preconceitos de sua poca, especialmente dos fanticos religiosos e dos ateus; desafiou
os filsofos que encastelados na razo, reduziram os homens a raciocnios esquecendo-
se da complexidade da existncia humana: os impulsos da natureza, os sentimentos, a
conscincia, a f, a razo. Se as suas idias induziram contra ele um forte clamor de
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indignao e, mesmo hoje, parecem polmicas, ao menos, ele teve a coragem de diz-
las em seu belo estilo e, apesar desta mscara, resultado de um talento do qual no podia
livrar-se, deu ao pblico todas suas idias, sentimentos e aes com a maior
transparncia que lhe era possvel, acreditando que poderiam fazer uma revoluo
entre os homens, se algum dia, renascer entre eles o bom senso e a boa f.
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CAPTULO 1
Cristianismo e cidadania: uma reconciliao
impossvel?
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H duas posturas fundamentais que se formam frente relao entre o
cristianismo e a cidadania no pensamento de Jean-Jacques Rousseau: a primeira, de
modo geral, de seus contemporneos, afirma que Rousseau atacara o cristianismo e que
o considerara como inconcilivel boa poltica. Os exemplos mais sintomticos dessa
postura so a de Tronchin, o autor das Cartas do Campo, que reforou a condenao de
Rousseau em Genebra; e a de Beaumont, autor da Carta Pastoral, que serviu para
condenar o Emlioem Paris. Por conseqncia, tal interpretao leva-nos concluso deque impossvel ser bom cristo e bom cidado ao mesmo tempo.
A segunda postura a dos estudiosos atuais, cujas anlises coincidem, em parte,
com a dos contemporneos de Rousseau. Para tais intrpretes, o cristianismo e a
cidadania so inconciliveis em sua obra porque o cristianismo incompatvel com a
cidadania, uma vez que inspira valores contrrios s necessidades do Estado. Assim,
esto de acordo com a interpretao de que Rousseau teria atacado o cristianismo por
ser destruidor da ordem civil. Alguns representantes de tal idia so Yves Touchefeu
e Robert Yennah
A partir destas consideraes, duas questes podem ser propostas, a primeira:
podemos afirmar a incompatibilidade entre cristianismo e cidadania no pensamento de
Rousseau? Ora, percebe-se que Rousseau ataca o cristianismo no captulo Da Religio
Civilsob determinados aspectos, especialmente, o poltico. com base nesse captulo
que os crticos modernos e os atuais, afirmam tal ataque e, conseqentemente, a
impossibilidade de conciliao entre cristianismo e cidadania. A segunda questo trata,
especialmente, dos problemas tericos relativos revelao e aos milagres, a respeito
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dos quais escreveu Rousseau na Profisso de F do Vigrio de Savia, e que
desagradou tantos aos protestantes de Genebra, quanto aos catlicos de Paris.
A postura de Rousseau desagradou a ambos, porque catlicos e protestantes
insistem na discusso acerca da dogmtica, especialmente em torno daqueles dois
temas, isto , a revelao e os milagres, mas poderiam ser acrescentados temas to
espinhosos quanto esses, como: a salvao pela f e pelas obras, a Santssima Trindade,
o livre arbtrio, o inferno e ainda mais outros. Rousseau concebe em toda religio duas
partes distintas, sendo uma delas aquela que se refere ao contedo moral da religio,
aquela que prescreve as normas de conduta, cujo resultado o comportamento social do
indivduo; a outra parte aquela na qual as seitas estabelecem seus dogmas os quais as
distinguem das demais.
Esse segundo aspecto o menos importante a respeito dos debates sobre o papel
social da religio, pois quaisquer que sejam as posturas dogmticas das diferentes seitas,
todas apresentam semelhanas no que se refere moral baseada nos preceitos bblicos.
Rousseau acredita que possui o direito de discutir a parte dogmtica sem que com isso
possa ser acusado de anticristianismo ou mesmo incitador de revolues como lhe
acusara o arcebispo de Paris. A distino das duas partes da religio permite
compreender como ele pode ao mesmo tempo afirmar que cristo e cidado, como o
fato de acreditar na divindade de Cristo e do Evangelho, no significa que seja mau
cidado ou que no considere legtimo defender a sua ptria de um inimigo que venha a
agredi-la.
Como Rousseau se declara cristo, surgem questes que precisam ser
esclarecidas: se Rousseau considera cristianismo e cidadania incompatveis, mas se
declara cristo e cidado de Genebra, ento ele no leu o que escreveu; se Rousseau
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ataca o cristianismo, ento ele , evidentemente, um mau cristo. Assim, nosso primeiro
captulo percorrer trs temas: se Rousseau se declara cristo; se ele afirma a
incompatibilidade entre cristianismo e cidadania; se ele atacou o cristianismo.
preciso observar, em primeiro lugar, que Rousseau no quer impor seu
cristianismocomo o modelo subjacente ao da religio natural, afinal de contas essa foi
justamente a origem de todo o problema da intolerncia. Seu objetivo outro: ao
afirmar a religio natural como de fato universal e propensa tolerncia no est
dizendo que as religies reveladas so prejudiciais, mas aquilo que os homens fazem
delas que as tornam nocivas ao elo social. Alm disso, insiste no Emlioque, cada um
deve seguir a religio de seus pais e de seu pas. Assim, cristo por uma questo
geogrfica - problema adiantado por Montesquieu no Esprito dasLeis por uma
questo de f, e no cr, por conta destas convices, que o cristianismo deveria ser
religio de todos os seres humanos da face da Terra.
O debate com DAlembert ilustra seu pensamento a respeito da relao entre
religio, costumes e geografia, pois nele, vemos Rousseau criticar o autor do verbete
Genebra, publicado no VII volume da Enciclopdia. Nesse artigo, DAlembert
afirma, em tom de elogio, que em Genebra a maioria dos pastores pratica um
socinianismo perfeito. Rousseau afirma tratar-se de um pseudo-elogio, uma vez que
considera a classificao de sociniano ofensiva aos pastores de Genebra:
Vrios pastores de Genebra tm apenas, segundo Vossa Senhoria, umsocinianismo perfeito. Eis o que declara em voz alta, diante daEuropa. Ouso perguntar como ficou sabendo disso. S pode ter sidoatravs de suas prprias conjecturas, ou atravs dos testemunhos deoutrem, ou pela palavra dos pastores em questo. (...) Mas senhor,
quando queremos honrar as pessoas, devemos faz-lo maneira delas,e no nossa; para que elas no se ofendam com razo, dos louvores
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nocivos, que, por terem sido feitos com boas intenes, no deixam deferir o estado, o interesse, as opinies ou os preconceitos dos que soseu objeto. 10
DAlembert escreveu uma resposta a Rousseau. O autor do artigo Genebra
insiste que seu elogio nada tem de ofensivo. E explica-o sob trs perspectivas: a
primeira, que considera o socinianismo uma conseqncia do prprio esprito da
religio protestante; em segundo lugar, conforme suas palavras Mesmo que no fossem
socinianos, seria preciso que eles se tornassem tais, no para honra de sua religio, e
sim para a honra da sua filosofia11
; no entanto, o terceiro argumento parece-nos o mais
relevante, pois se remete ao problema da tolerncia, ou seja, se os pastores se
ofenderem por terem sido chamados de socinianos devem entender que esse elogio no
foi feito do ponto de vista dos protestantes, mas de um catlico: Os pastores de
Genebra diro que no reconhecem a Igreja romana como seu juiz; mas ho de tolerar,
aparentemente, que eu a considere como o meu. Com este arranjo ficaremos
reconciliados uns com os outros e terei dito a verdade sem ofend-los. 12
O cristianismo no antinmico poltica, em sua essncia, mas querer torn-lo
uma religio oficial ferir ao mesmo tempo o carter essencial do cristianismo e
conhecer bem pouco os fundamentos da poltica.
O seguinte trecho do Contrato Social induziu muitos leitores a afirmarem a
oposio entre cristianismo e cidadania: Foi nessas circunstncias que Jesus veio
estabelecer na terra um reino espiritual; separando, de tal sorte, o sistema teolgico do
poltico, fez que o Estado deixasse de ser uno e determinou as divises intestinas que
10ROUSSEAU, J. - J. Carta a DAlembert. Traduo de Roberto Leal Ferreira. Campinas: UNICAMP,1993, pp. 35 36.11ROUSSEAU, J. - J. Carta a DAlembert. Traduo de Roberto Leal Ferreira. Campinas: UNICAMP,
1993, p. 190.12ROUSSEAU, J. - J. Carta a DAlembert. Traduo de Roberto Leal Ferreira. Campinas: UNICAMP,1993, p. 190.
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jamais deixaram de agitar os povos cristos. 13Touchefeu afirma esta oposio em dois
captulos: As duas religies: a religio do homem e a do cidado ou a cidadania contra
o cristianismo e O cristianismo contra a cidadania: uma antinomia permanente.
No primeiro desses captulos afirma:
Jean-Jacques poderia ter explicado que com o cristianismo, osentimento religioso receberia enfim sua forma pura. No, ele destacaprimeiro o carter degradador dessa nova religio que rompe aunidade do Estado. Dessa forma, ele retoma a acusao lanada pela
historiografia filosfica: o cristianismo destruiu o imprio romano.Rousseau saber diz-lo de forma decisiva: quando a cruz expulsoua guia, todo o valor romano desapareceu. (OC III, 467). A forma deescrever indica que Jean-Jacques solidrio a um ponto de vista queexiste em seu tempo, discretamente nos escritos de Montesquieu,brilhantemente sob a pena de Voltaire, magistralmente na grandeobra do historiador britnico Gibbon. [...] Jean-Jacques conduz suaanlise de modo categrico ao explicar que se o cristianismo cindiu oimprio romano, porque, em sua essncia, destruidor da ordemcivil. 14
H o problema de conciliar esta postura poltica frente questo da relao entre
religio e Estado, especificamente, no caso do cristianismo, com o da postura pessoal de
Rousseau ou de sua profisso de f. Touchefeu apresenta uma soluo geogrfica para o
problema: Rousseau, o vigrio de Savia, Julie e Saint-Preux, moram prximos a
Genebra, mas no exatamente nela.
O fato de Jean-Jacques fazer apelo a esse Vigrio para apresentar suaprpria Profisso mostra que ele no confunde sua convicoreligiosa e sua cidadania genebrina. No que essencial, sua f sedistingue da forma particular que toma a religio de Genebra. Ela se
13ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 145; O. C., Gallimard, v. III, p. 462.14TOUCHEFEU, Yves.LAntiquit et le christianisme dans la pense de Jean-Jacques Rousseau.Oxford: Voltaire Foundation, 1999, pp. 244 245.
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desliga tambm, de alguma forma, da cidadania republicana.Certamente, Genebra no est longe: o vigrio savoiano sabe que acidade est l, prxima, aos ps das montanhas que ouvem suasmeditaes. Como Julie e Saint-Preux, ele vive prximo Genebra,mas seu universo no um universo cvico. 15
Seguindo o raciocnio de Touchefeu, Rousseau no tem compromisso com o
culto calvinista de Genebra, portanto, no trai sua verdadeira f, uma vez que considera
os cultos pblicos, cristos, vazios de significado religioso, mas no se comporta de tal
forma que demonstre a falta de crena na religio oficial dos genebrinos. Parece-me que
se quer indicar uma atitude de respeito aos concidados, uma vez que no se acusa suacrena, mas realiza, nessa atitude de afastamento respeitoso, uma declarao de
independncia ao mesmo tempo poltica e geogrfica.
Para Touchefeu, portanto, h uma ciso no homem, conforme a antropologia
rousseausta, evidenciada pelas inmeras dualidades presentes em toda a sua obra. Tal
ciso estaria presente nas reflexes do vigrio, mas a soluo encontrada seria, na
perspectiva de Touchefeu, conservadora, pois as noes de verdade e igualdade
cultivadas pelo vigrio, no resultariam numa vontade de modificar a sociedade injusta,
parece-lhe que o vigrio se conforma em no perturbar a ordem pblica:
O Vigrio no acredita nas cerimnias, mas respeita com venerao oritual do catolicismo (OC iv 627-628). Quando se trata de questesde civilidade, sua palavra torna-se decisivamente conservadora (iv629). (...) O Vigrio guarda em seu corao as imagens de concrdiae de igualdade, ele se prende s figuras da Antigidade, mas ele nopretende atualizar esses chamados em um engajamento poltico, eno aspira a retornar a um universo republicano: ele no perturba aordem pblica e respeita as leis. 16
15TOUCHEFEU, Yves.LAntiquit et le christianisme dans la pense de Jean-Jacques Rousseau.
Oxford: Voltaire Foundation, 1999, p. 244.16TOUCHEFEU, Yves.LAntiquit et le christianisme dans la pense de Jean-Jacques Rousseau.Oxford: Voltaire Foundation, 1999, p. 290.
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O que Touchefeu chama de conservador justamente aquilo que o impede de
perceber que no h dualidade nessa postura, a profisso de f do desmo no significa
uma postura poltica. O problema da resistncia ou do combate ruptura do verdadeiro
pacto no se passa no campo da religio, mas do direito poltico. H uma projeo do
pesquisador que o faz associar o desmo a uma postura aberta ou progressista de
sociedade e o cristianismo romano a uma postura fechada ou conservadora. Assim, o
desta deveria, necessariamente, lutar contra as desigualdades, mas como no isso que
o vigrio faz, ento conclui que haja uma postura ambgua.
Deixando a questo da postura pessoal de Rousseau, concentremo-nos no que
mais significativo, ou seja, na expresso cristianismo, utilizada por Rousseau, no
captulo, Da Religio Civil, pois os intrpretes no conciliam o Emlio e o Contrato
Socialsob esse aspecto. Cristianismo significa a f na mensagem de Cristo, por meio de
seus apstolos e, via de regra, tambm no Antigo Testamento. As religies institudas,
isto , as Igrejas com suas estruturas de poder no representam o cristianismo.
preciso diferenciar, portanto, o cristianismo da mensagem de Cristo, daquele
da igreja romana e das igrejas protestantes: ele anti-social, porque no tem a mesma
mensagem das religies nacionais (deus ou os deuses pertencem a um povo escolhido),
mas uma mensagem de que todos os homens da face da terra so irmos. O problema
que isto no se encontra declarado no captulo do Contrato Social em questo, por isso,
se no compararmos a leitura da Religio Civilcom outras obras corremos o risco de
realizarmos uma interpretao fragmentada do pensamento de Rousseau.
Alguns intrpretes utilizam os trechos mais contundentes daReligio Civilpara
demonstrarem que, segundo Rousseau, o cristianismo romano leva intolerncia, mas
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esquecem de que o mesmo se passa com as religies nacionais. Quando define os tipos
de relao entre religio e Estado ele aponta, como aspecto positivo dessas religies, o
fato de unirem os dogmas e ritos ordem civil; o amor s leis ao culto divino, mas
como desvantagem pontua as seguintes caractersticas:
, porm, m, pois, fundando-se no erro e na mentira, engana oshomens, torna-os crdulos, supersticiosos, e submerge o verdadeiroculto da Divindade num cerimonial vo. Ainda m quando,tornando-se exclusiva e tirnica, transforma um povo em sanguinrioe intolerante, de forma que ele s respira a atmosfera do assassnio e
do massacre, e cr estar praticando uma ao salutar ao matar todosaqueles que no admitem seus deuses. Isso pe tal povo num estadonatural de guerra com todos os demais, situao essa muitoprejudicial sua prpria segurana. 17
Assim, podemos concluir que a intolerncia no decorre das caractersticas do
cristianismo, seus dogmas, ritos e cultos, mas decorre de um fenmeno presente desde a
Antigidade, ou seja, da mtua sujeio entre religio e poltica. Se Rousseau acusa o
cristianismo de ser intolerante, faz o mesmo com as religies nacionais.
Por outro lado, dizer que o cristianismo anti-social afirmar seu verdadeiro
carter: pela primeira vez o gnero humano estava conhecendo uma religio, cujo
objeto de inspirao nada tem a ver com o comportamento de cidado, apenas com o
homem e com seu criador, portanto, sua ateno no est voltada ao que terreno e
histrico.
No captulo Da Religio Civil lemos no conheo nada mais contrrio ao
esprito social. Ora, tal trecho no pode ser interpretado de qualquer maneira ou pelo
17ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes SantosMachado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 147; O. C., Gallimard, v. III, p. 465.
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primeiro sentido que aparente. Contrrio ao esprito social no significa que o
cristianismo rompe os laos entre os homens, nem que o cristo vire as costas aos seus
concidados, mas noligaocorao dos homens ao Estado. Assim, os valores sociais
cristos, como a caridade, a humildade e outros no so, em nenhum momento,
atacados pelo pensador genebrino, ao contrrio, tais valores fazem com que o
sentimento de humanidade se estenda a todo o gnero humano. Conforme o segundo
Discurso, quem desumaniza os homens afilosofia:
a filosofia que o isola; por sua causa, diz ele, em segredo, ao verum homem sofrendo: perece, se queres; quanto a mim, estouseguro. Nada alm dos perigos da sociedade inteira, atrapalha osono tranqilo do filsofo e o arranca do leito. Podem impunementedegolar um seu semelhante sob sua janela, ele s ter de levar asmos s orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para impedir anatureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que seassassina. 18
A interpretao de que Rousseau um crtico do cristianismo, no seria
equivocada se considerssemos seus textos de maneira literal, mas numa anlise mais
sutil, observa-se que se trata de uma oposio entre as religies institudas ou reveladas
e a cidadania moderna. Quando Rousseau analisa a ruptura que a vinda de Jesus Cristo
teria provocado entre o cidado e o fiel no se pode ler o texto de forma linear.
Perguntemos: a qual cristianismo se refere? A qual cidado se refere? As respostas so:
o cristianismo que provoca a ruptura o da religio instituda e no o do verdadeiro
evangelho, esse, em essncia, no incompatvel com a cidadania, tal como veremos
18ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 260; O. C., Gallimard, v. III, p. 156.
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em nossa anlise da Profisso de f do vigrio de Savia. Por outro lado, a cidadania
que desaparece a dos povos que conheceram a unidade entre religio e poltica, por
isso, no poderiam mesmo ter sobrevivido ciso que a universalidade do cristianismo
provocou. Quando a cruz expulsou a guia, fazendo desaparecer a romanitas, foi um
antigo modelo que ruiu para dar lugar a outro, cujas caractersticas e problemas so
totalmente novos.
Alguns intrpretes julgaram que Rousseau anticristo, porque esta religio
tornara a cidadania plena impossvel nos povos em que se propagou. Tal interpretao
nos parece equivocada, porque Rousseau cristo e no culpa nem Cristo e nem o
Evangelho pelo fim de um modelo isto , o Imprio Romano - que, por ser obra
humana, no poderia mesmo ser eterno. Alm disso, podemos dizer que analisar com
franqueza os limites do cristianismo no ser anticristo.
A expresso quando a cruz expulsou a guia, todo valor romano desapareceu
sintetiza a idia de ter sido o advento do cristianismo decisivo para encaminhar o
Imprio Romano ao seu final, mas antes parece mais um efeito de retrica que levou
muitos intrpretes a um equvoco histrico. A cruz expulsou a guia por volta do sculo
IV quando a verdadeira cidadania romana j havia desaparecido h muito tempo,
soterrada pelos usos e costumes do tempo do imprio romano. Rousseau tinha clareza
da diferena entre estes dois perodos da histria romana e s podemos atribuir duas
causas para o uso desta expresso: ou foi um efeito retrico ou foi, como ele mesmo
assume nas Cartas Escritas da Montanha, um erro de interpretao que ele cometeu.
De qualquer modo, se o cristianismo contribuiu para a queda de Roma, isso no
significa que foi a nica causa, pois como afirma Rousseau no Contrato Social, no
captulo cujo sugestivo ttulo anuncia:Da morte do corpo poltico:
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Tal a tendncia natural e inevitvel dos governos, mesmo dos maisbem constitudos. Se Esparta e Roma pereceram, que Estado poderdurar para sempre? Se quisermos formar uma instituio duradoura,
no pensemos, pois, em torn-la eterna. Para ser bem sucedido no preciso tentar o impossvel, nem se iludir com dar obra dos homensuma solidez que as coisas humanas no comportam. 19
No cabe, aqui, analisar as outras causas da queda de Esparta e Roma, que
podem ser encontradas, por exemplo, no primeiroDiscurso, mas de concluir que se o
cristianismo contribuiu para a queda do Imprio Romano, no foi o nico responsvel.
Por outro lado, h uma ltima passagem do texto de Rousseau cuja interpretao tem
levado muitos crticos a afirmarem que o cristianismo , em essncia, contrrio boa
cidadania: trata-se da afirmao de que os verdadeiros cristos so feitos para serem
escravos:
Engano-me ao aludir a uma repblica crist, pois cada um desses doistermos exclui o outro. O cristianismo s prega servido edependncia. Seu esprito por demais favorvel tirania, para queela cotidianamente no se aproveite disso. Os verdadeiros cristosso feitos para ser escravos, sabem-no e no se comovemabsolutamente, porquanto esta vida curta pouco preo apresenta aseus olhos. 20
Esse pargrafo conclui outros anteriores, nos quais Rousseau reafirma a idia de
que o cristianismo favorvel tirania. Como as Repblicas so caracterizadas pela
liberdade, a tirania caracterizada pelo domnio desptico, conclui que o cristianismo
no favorvel s Repblicas. O que se deduz desses axiomas?
19ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 108; O.C., Gallimard, v. III, p. 424.
20ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes SantosMachado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 149; O.C., Gallimard, v. III, p. 467.
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Que o cristianismo no pode ser o fundamento do contrato social (em relao ao
Estado) e do princpio de ao pblica (em relao aos Governos) por duas razes: em
primeiro lugar, porque as instituies religiosas que pretendem ser as nicas
representantes de Cristo promoveram guerras entre si em virtude de pretenderem
submeter s leis civis ordem religiosa. Em segundo lugar, porque, em essncia, o
cristianismo no favorece a boa poltica, uma vez que no oferece resistncia interna
aos tiranos e externas aos inimigos da ptria.
Para entendermos mais este paradoxo, isto , apesar de todos os seus elogios
Repblica de Genebra, especialmente na dedicatria do segundoDiscurso, para afirmar
que no possvel haver uma repblica crist,faz-se necessrio considerar o momento
no qual Rousseau est escrevendo e os leitores a quem se dirige. Mesmo sendo cristo
est consciente de que as leis civis no devem ser regidas pelos princpios religiosos de
uma instituio positiva, porque as leis no devem se filiar a um credo em particular sob
o risco de provocar cises fatais no seio da sociedade. A essncia do cristianismo pode
at ser contrria poltica, mas no sociedade, pois se o afirmasse encontraramos as
passagens nas quais ele diria que o cristianismo deveria ser banido das sociedades para
no desestrutur-las. Ora, tal iniciativa seria absolutamente contraditria ao esprito de
tolerncia que aparece em sua obra.
Ento, as relaes entre cristianismo e poltica no so marcadas por uma
antinomia, mas por uma ciso. Esta constatao no uma crtica ao cristianismo, mas
um elogio ao seu verdadeiro esprito; a crtica dirigida aos contemporneos de
Rousseau que ainda procuravam nesta religio os fundamentos do Estado. Rousseau
cido e incisivo em salientar o quanto o cristianismo pode ser prejudicial ao Estado uma
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vez que se queira fazer dele religio oficial e no por causa de sua essncia. No h,
portanto, qualquer anticristianismo no pensamento de Rousseau.
No Contrato Social, mais especificamente no captulo Da Religio Civil, h
inmeros trechos que remetem a essa suposta antinomia entre cristianismo e poltica.
Percorramos tais trechos e analisemo-los:
Resta, pois, a religio do homem ou o cristianismo, no ocristianismo de hoje, mas o do Evangelho, que completamentediverso. Pois nessa religio santa, sublime, verdadeira, os homens,filhos do mesmo Deus, reconhecem-se todos como irmos, e asociedade que os une no se dissolve nem com a morte. Mas essareligio, no tendo nenhuma relao particular com o corpo poltico,deixa as leis unicamente com a fora que tiram de si mesmas, semacrescentar-lhes qualquer outra, e, desse modo, fica sem efeito umdos grandes elos da sociedade particular. Mais ainda, longe de ligaros coraes dos cidados ao Estado, desprende-os como de todas ascoisas da terra. No conheo nada mais contrrio ao esprito social. 21
Ora, tomado, rigorosamente, em seu objetivo, o cristianismo parece, nessas
palavras iniciais de Rousseau, de fato opor-se em tudo noo de cidadania, porm,
preciso assinalar que o objetivo desse primeiro trecho distinguir o cristianismo do
evangelhodo cristianismo de hoje, ou seja, o que est escrito nas Sagradas Escrituras e
o que as instituies religiosas, que pretendem ser as porta-vozes dessa religio, dizem.
A idia central nesse trecho que lemos , portanto, mostrar que em nenhum momento se
pode utilizar o Evangelho para justificar o poder temporal das Igrejas. Nesse mesmo
sentido, os pargrafos imediatos queles prosseguem:
21ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 148; O.C., Gallimard, v. III, p. 465.
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Dizem que um povo de verdadeiros cristos formaria a sociedademais perfeita que se poderia imaginar. Contra essa suposio s vejouma grande dificuldade uma sociedade de verdadeiros cristos nomais seria uma sociedade de homens.
Afirmo at que essa suposta sociedade, com toda a sua perfeio, noseria nem a mais forte, nem a mais duradoura, pois fora de serperfeita, faltar-lhe-ia coeso, estando seu vcio destruidor na suaprpria perfeio.
Cada um desempenharia seu dever, o povo estaria submetido s leis,os chefes seriam justos e ponderados, os magistrados ntegros eincorruptveis, os soldados desprezariam a morte, no existiria nemvaidade, nem luxo. Mas passemos adiante.
O cristianismo uma religio, inteiramente, espiritual, preocupada,unicamente, com as coisas do cu, no pertencendo a ptria do cristo
a este mundo. verdade que ele cumpre o seu dever, mas o faz comuma indiferena profunda quanto ao bom ou mau sucesso de seustrabalhos. Contanto que nada tenha a censurar em si mesmo, poucolhe importa se tudo vai bem ou mal c embaixo. Se o Estado estflorescente, dificilmente ousa gozar da felicidade pblica, temeorgulhar-se da glria de seu pas; se o Estado perece, bendiz a mo deDeus que pesa sobre seu povo. 22
Os dois primeiros pargrafos no distinguem o cristianismo protestante do
cristianismo catlico. Descrevem as possveis conseqncias de uma sociedade
perfeitamente crist. Apesar das crticas explcitas ao catolicismo isto no foi suficiente
para que os crticos genebrinos de Rousseau entendessem que suas palavras no se
dirigem aos protestantes, mas somente aos catlicos. Nas Cartas Escritas da Montanha,
aps afirmar que o catolicismo intolerante, ao contrrio das religies protestantes,
conclui:
Os reformadores atuais, pelo menos os ministros, no conhecem ouno mais amam sua religio. Se a tivessem conhecido ou amado,quando da publicao de meu livro, teriam, em unssono, lanado um
22ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 142; O.C., Gallimard, v. III, pp. 465 466.
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grito de alegria, teriam todos se unido comigo, posto que eu s atacavaseus adversrios. 23
Observe-se que o terceiro pargrafo descreve uma sociedade crist tal comodeveria ser se todos seguissem as instrues do Evangelho. Contudo, no primeiro
pargrafo, vemos que essa no seria uma sociedade de homens. A antropologia de
Rousseau nos mostra que sua concepo de homem compreende a do estado de natureza
e a do estado civil. Os homens aos quais ele se refere so os do estado civil, os quais
perderam a tendncia natural para a bondade e passam a viver em funo de glrias e
bens terrenos. Qual o problema em relao a essa sociedade perfeita? Por que ela no
pode existir de fato?
Como se v nos pargrafos posteriores, trata-se do problema j assinalado no
Discurso Sobre a Desigualdade, no qual Rousseau demonstra que a natureza humana
boa em si mesma ou, ao menos, com tendncia para o bem, no consegue se manifestar
plenamente na sociedade civil onde os vcios se instalaram no corao humano. Assim,
no a coeso da sociedade de cristos que invivel, mas uma sociedade de cristos
mergulhada em meio a um mundo onde os vcios j se instalaram. Uma vez adentrando
o estado civil, dois tipos de situao podem abalar a paz entre os homens:
aproveitadores internos e o inimigo externo. Para o primeiro caso, ocorreria que muitos
homens no sendo cristos de fato aproveitar-se-iam da mansido de esprito exigido
dos fiis de Cristo, tal como vemos no pargrafo seguinte:
Para que fosse pacfica a sociedade e para que se mantivesse aharmonia, seria preciso que todos os cidados, sem exceo, fossemigualmente bons cristos, mas, se, por infelicidade, encontrar-se entre
23ROUSSEAU, J. - J. Cartas Escritas da Montanha. Traduo de Maria C. P. Pissarra, Maria das Graasde Souza. So Paulo: EDUC; UNESP, 2006, p. 186; O.C., Gallimard, v. III, p. 716.
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eles um nico ambicioso, um nico hipcrita por exemplo: umCatilina, um Cromwell certamente esse nico faria tbua rasa deseus piedosos compatriotas. A caridade crist no permite facilmenteque se pense mal do prximo. Desde que ele, por qualquer artimanha,aprenda a arte de impor-se e de apoderar-se de uma parte daautoridade pblica, ser um homem constitudo em dignidade Deusquer que o respeitem. Logo mais, hei-lo uma potncia Deus querque ele seja obedecido. O depositrio desse poder abusa? o aoitecom o qual Deus pune seus filhos. Toma-se como obrigao deconscincia expulsar o usurpador: ter-se- de perturbar a calmapblica, usar de violncia, verter sangue tudo isso no condiz com adoura do cristo e, depois, que importa ser livre ou escravo nestevale de misrias? O essencial alcanar o paraso, e a resignao nopassa de mais um meio para isso. 24
O segundo caso o de um inimigo externo que, aproveitando-se do esprito
cristo, contrrio a toda violncia e a todo o apego material, sabendo que o cristo no
utilizaria a fora e muito menos da morte do inimigo para proteger seu territrio que,
afinal de contas, no passa de mais um elemento da vida terrena da qual devemos nos
desapegar. Assim, sem defesa, os povos cristos seriam facilmente dominados:
Sobrevm uma guerra estrangeira, os cidados marcham semdificuldade para o combate, nenhum deles pensa para o combate,nenhum deles pensa em fugir; cumprem seu dever, mas sem paixopela vitria; melhor saber morrer do que vencer. Que importa sejamvencidos ou vencedores? A Providncia no sabe, melhor do queeles, o que lhes convm? Pode-se imaginar o partido que um inimigoorgulhoso, impetuoso e apaixonado pode tirar desse estoicismo! (...)A meu ver, foi um belo discurso o dos soldados de Fbio eles nojuraram morrer ou vencer, juraram voltar vencedores e cumpriram
seu juramento. Jamais cristos teriam feito semelhante juramento,pois acreditariam estar tentando a Deus. 25
O cristianismo seria incompatvel com a cidadania, pois o verdadeiro cristo no
ofereceria resistncia diante da injustia tanto do inimigo interno quanto do inimigo
24ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 148; O.C., Gallimard, v. III, p. 466.
25ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes SantosMachado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 148; O.C., Gallimard, v. III, p. 466.
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externo. Novamente, o cristianismo bom em si, mas as circunstncias do mundo que
o tornariam inadequado para a formao de uma sociedade justa; afinal de contas, para
que haja justia na sociedade preciso punir os maus e derrubar os tiranos, que
injustiam toda a sociedade ao violar o contrato social. A suposta antinomia estaria,
portanto, entre o cristianismo e as condies reais das sociedades:
Engano-me ao aludir a uma repblica crist, pois cada um desses doistermos exclui o outro. O cristianismo s prega servido e dependncia. Seuesprito por demais favorvel tirania, para que ela cotidianamente no seaproveite disso. Os verdadeiros cristos so feitos para ser escravos; sabem-no e no se comovem absolutamente, porquanto esta vida curta pouco preoapresenta a seus olhos. 26
Rousseau argumenta que os cruzados no eram exatamente soldados cristos, ou
melhor, no lutavam em nome da cristandade, mas em nome do padre, como cidados
da Igreja. Quando lutavam pela terra santa no se tratava de conquistar algum territrio
no cu, mas um territrio concreto aqui mesmo na Terra. A respeito do incio do
cristianismo em Roma, Rousseau afirma que os cristos tinham por dever mostrarem-se
valorosos diante dos reis pagos, justamente para que no fosse esse mais um motivo de
perseguio, mas assim que os imperadores tornaram-se cristos teria desaparecido essa
necessidade de mostrar seu valor como soldado e o cristo teria se recolhido a sua
condio de escravo.
Nesse mesmo sentido, deve ser interpretada a passagem das Sagradas Escrituras
na qual Cristo tentado a dizer se o seu seguidor deve ou no pagar impostos. A
resposta peremptria: sim. Talvez, essa convico seja mais forte em virtude de o
cristo estar submetido a um rei pago e ter a necessidade de provar duas coisas: sua
26ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 149; O.C., Gallimard, v. III, p. 467.
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obedincia e seu desapego pelas coisas materiais. No antigo Israel este era um problema
poltico constante: parte dos judeus como os fariseus - admitia o domnio romano
desde que houvesse liberdade de culto e outra parte como os zelotas exigia a
liberdade completa, viver sob a lei dos judeus e no sob a dos romanos. No entanto, na
medida em que o imperador cristo como poder ele mesmo estar apegado s coisas
materiais? Seria como conviver com um dilema constante: ter de zelar pelo patrimnio
pblico e pelo seu prprio desapegando-se dele.
Essa dualidade entre desapego ao mundo material e a necessidade de viver sob
um Estado encontra uma possvel resposta no estoicismo. Ao retomarmos seus
princpios, especialmente em Sneca, temos uma perspectiva para essa resposta. Sneca
foi um homem rico e, durante certo tempo, gozou de grande poder em Roma. Como
conceber um estico rico e com poder? Tal como ele mesmo nos diz, no se trata de
abandonar completamente essa vida material, mas de saber utilizar a matria que est
nesse mundo inclusive o corpo e as riquezas sem se tornar escravo dela. Para
Sneca, o corpo humano um mal necessrio, uma priso, uma passagem; enganam-se
aqueles que vivem para o corpo e no para a alma, pois ela eterna, ao passo que o
corpo transitrio. Porm, em virtude de sua necessidade, no se deve negligenciar as
necessidades do corpo, por outro lado no se deve ser seu escravo, pois se nos
entregamos s suas volies tambm estragamos a alma.
Algumas perguntas ainda so necessrias para uma interpretao cuidadosa
desses trechos do Contrato Social: qual motivo teria levado Rousseau a insistir tanto
nesta antinomia? Aps tantas crticas religio crist, Rousseau insiste que as leis por si
mesmas no se sustentam, que prescindem de um carter sagrado, o que nos leva a
concluir que se o cristianismo antinmico em relao cidadania, o esprito religioso,
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ou a religio em si, no. Por que um cristo, como Rousseau o , desqualificou sua
prpria f para encontrar os fundamentos do contrato social?
Quanto primeira questo, acreditamos que preciso compreender essas crticas
de Rousseau ao cristianismo, as quais, diramos, hiperblicas, tendo em vista os leitores
de seu tempo e aqueles a quem ele pretende responder: exatamente os que defendiam a
idia de que sem o cristianismo a cidadania impossvel. Para responder tais opositores,
no se pode assumir uma postura moderada, ao contrrio, preciso desmontar tese por
tese dos adversrios que tinham por objetivo resgatar a antiga aliana entre Igreja e
Estado. E esse o ponto chave: ao criticar o cristianismo diretamente e no somente a
Igreja Catlica, apesar das palavras declaradas nas Cartas Escritas da Montanha,
Rousseau retira a esperana de que qualquer outra igreja crist venha a querer assumir o
papel que coube anteriormente Igreja Catlica. Ento, era preciso eliminar quaisquer
possibilidades de que o contrato social viesse a depender de uma religio histrica.
Estas consideraes levam segunda questo: de fato, o contrato social, baseado
unicamente na natureza humana, no necessita de qualquer religio histrica para ser
firmado e validado, mas o respeito e o amor pelas leis estabelecidas pelo contrato no
podem tirar suas foras da racionalidade que o identifica como necessrio, porque os
homens no dirigem suas aes e seus desejos unicamente pela razo, por isso,
preciso apelar a um recurso que esteja acima de qualquer raciocnio em particular para
que venham a amar a lei. Em suma, o fato de o contrato social ser vlido apenas por sua
natureza, no significa que ele ser respeitado, dado o grau de corrupo das
sociedades, por isso necessria a religio: para fazer o povo amar as leis e no para
valid-lo.
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Algumas reflexes decorrem destas anlises: no captulo sobre as leis h
explicaes mais slidas sobre a necessidade de sacralizar a lei, isto , encontrar na
religio a aceitao das leis e no os seus fundamentos; a partir da questo posta acima,
outras se apresentam: por que Rousseau, mesmo sendo cristo, afirma que o
cristianismo no pode ser o alicerce social? Rousseau , de fato, cristo? Quais so os
pressupostos bsicos do vigrio a respeito da cidadania e como podemos entender o
Rousseau leitor da Bblia?
Por que Rousseau no se contentou com a postura do vigrio de Savia? Por que
no admitiu ao modo de Bayle, Locke e Voltaire a ruptura definitiva entre religio e
cidadania? Algo em sua anlise dos fundamentos da sociedade poltica o levou a buscar
um fundamento sagrado para as leis. Esse fundamento, por sua vez, no poderia ser uma
religio positiva qualquer, pois emergiria disso, novamente, o fenmeno da intolerncia.
Ento, era preciso encontrar um recurso que, ao mesmo tempo, fizesse com que as leis
tivessem um fundamento sobre-humano, mas nenhuma instituio seria a guardi
particular desse fundamento.
Um paralelo interessante a respeito das relaes entre cristianismo e poltica
pode ser feito a partir das relaes entre cristianismo e o desenvolvimento das cincias,
conforme Rousseau elaborou em sua Resposta ao Rei da Polnia, Duque de Lorena.
Para Rousseau, o desenvolvimento da teologia crist, com base na filosofia, levou os
doutores da Igreja a aviltarem a simplicidade sublime do Evangelho e reduziram a
doutrina de Jesus Cristo a silogismo.Aps essa afirmao, salienta que o povo hebreu
no foi o povo no qual germinou a cincia dos modernos. Por outro lado: na instalao
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da nova lei, no foi a sbios que Jesus Cristo quis confiar sua doutrina e seu
ministrio. 27
A religio crist se propagou como uma religio da humildade, da simplicidade,
que logo se espalhou pelo imprio romano incomodando a antiga religio e seus padres
doutores. Para deixar a situao de oprimidos, os cristos tambm resolveram pegar a
penae comearam a estudar e a escrever para defender a verdade de sua f. Essa foi a
atitude que levou os cristos a suplantarem as religies pags em filosofia e retrica,
mas os verdadeiros costumes cristos foram se perdendo e dando lugar cincia e
erudio.
Depois, nas disputas das doutrinas de interpretao do Evangelho e sua relao
com a filosofia grega, os cristos passaram a perseguir-se uns aos outros com tal gana
de derrotar os inimigos, que mais lembrava seus antigos perseguidores. Por volta do
sculo X, dir Rousseau, a Igreja mergulha num estgio de ignorncia absoluta em
relao aos debates, mas encontra a paz interna. Com o restabelecimento das letras, as
dissenses no pararam mais e todos os conclaves e conclios fracassaram em
restabelecer a antiga ordem, justamente porque o orgulho intelectual j se tornara muito
maior do que o amor cristo. Essas disputas intelectuais entre os catlicos, inflamadas
pelo restabelecimento das cincias e das artes, levaram formao terica e poltica do
protestantismo. Como entre esses, tambm no se observou qualquer consenso;
nasceram novas vaidades intelectuais que tambm suplantaram de longe a caridade e a
humildade que tanto proclamavam, as disputas tornaram-se perseguies e o que
importava era impor silncio aos derrotados. Do campo terico, as disputas chegaram
ao campo poltico levando s guerras de intolerncia: a disputa sempre terminava por
27ROUSSEAU, J. - J. Resposta ao Rei da Polnia. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 390; O.C., Gallimard, v. III, p. 45.
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injrias, e a perseguio foi seu fruto constante. S Deus sabe quando terminaro todos
esses males.28
Uma das fontes de Rousseau para formular suas concepes a respeito do
impacto do cristianismo da Igreja Romana na poltica foi, sem dvida nenhuma,
Maquiavel. Em primeiro lugar, Rousseau interpreta o Prncipe como uma obra de
leitura indireta, ou seja, parece estar dirigindo seu discurso ao prncipe, quando na
verdade estaria dirigindo-o aos povos. No Contrato Social, declara: [...] o que
Maquiavel fez ver com evidncia. Fingindo dar lies aos reis, deu-as, grandes, aos
povos. O Prncipe, de Maquiavel o livro dos republicanos. 29
Para Rousseau, o verdadeiro pensamento do florentino aparece nos Discursose
na Histria de Florena; para ele no h dvida que foram as circunstncias pessoais
nas quais Maquiavel vivia que o levaram a escrever o Prncipede forma enviesada:
Maquiavel era um homem honesto e um bom cidado; ligado, porm, Casa dos Mdicis, foi forado, durante a opresso de sua ptria, adisfarar seu amor liberdade. A escolha de seu execrvel heri porsi s manifesta suficientemente sua inteno secreta: a oposio entreas mximas de seu livro sobre o Prncipe e a dos Discursos sobreTito Lvio e de sua Histria de Florenademonstra ainda que esseprofundo poltico s teve at hoje leitores superficiais oucorrompidos. A corte de Roma proibiu severamente seu livro; ela ,creio firmemente, a mais bem pintada por ele. 30
Maquiavel analisa as relaes entre religio e poltica em seusDiscursos Sobre
a Primeira Dcada de Tito Lvio, No captulo dcimo segundo do livro I, refere-se
28ROUSSEAU, J. - J. Resposta ao Rei da Polnia. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 393; O.C., Gallimard, v. III, p. 48.29ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 95; O.C., Gallimard, v. III, p. 409.
30ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. ColeoOs Pensadores.Traduo de Lourdes Santos
Machado. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 95; O.C. Gallimard, v. III, p. 1480.
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Igreja Catlica de um ponto de vista crtico. Para Maquiavel h uma profunda
dependncia entre a religio, manifestada em seu culto externo aos deuses, e a
manuteno do Estado; exigir o respeito aos deuses e o cumprimento dos ritos pblicos
uma maneira de evitar sua corrupo. Nesse ponto sua anlise retorna ao fenmeno
romano. Conforme Touchefeu:
Rousseau se situa numa filiao que reconduz a Maquiavel. Em seuDiscurso sobre a primeira dcada de Tito Lvio, o pensadorflorentino consagrou longos desenvolvimentos questo religiosa, a
qual ele trata como uma questo poltica. Ele elogia Numa por terregrado harmoniosamente o estatuto da religio na nova cidade, masele situa a religio na dependncia estreita das lutas polticas e deixaentender, ao final de contas, que a superioridade manifestada nahistria pelo povo romano no se explica seno pelo respeito queguardaram aos seus deuses. 31
Quando se refere ao cristianismo, Maquiavel poupa o seu fundador, mas ataca
diretamente a instituio que diz ser sua representante na Terra:
Se a religio se tivesse podido manter na repblica crist tal como oseu divino fundador a estabelecera, os Estados que a professavamteriam sido bem mais felizes. Contudo, a religio decaiu muito.Temos a prova mais marcante dessa decadncia no fato de que ospovos mais prximos da Igreja Romana, a capital da nossa religio,
so justamente os menos religiosos. Se examinssemos o espritoprimitivo da religio, observando como a prtica atual dela se afasta,concluiramos, sem dvida que chegamos ao momento da sua runa edo seu castigo. 32
31TOUCHEFEU, Yves.LAntiquit et le christianisme dans la pense de Jean-Jacques Rousseau.
Oxford: Voltaire Foundation, 1999, p. 243.32MAQUIAVEL, N. Comentrios sobre a primeira dcada de Tito Lvio. Traduo de Srgio F. G. Bath.Braslia: UNB, 1994, p. 62.
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Vemos que Maquiavel apresenta o movimento que Rousseau admitir, mais
tarde, em relao ao esprito primitivo da religio crist: o cristianismo atual se mostra
completamente corrompido, a tal ponto que quanto mais perto de Roma, menos
religioso se torna o esprito do povo, o que vale dizer, quanto mais prximo do centro
de poder e da produo de conhecimento, modelos que a Igreja Catlica adotou, menos
se parece com o verdadeiro esprito que animou as comunidades crists primitivas.
Maquiavel vai ainda alm e afirma que h duas razes para duvidar que a
felicidade da Itlia dependa da Igreja de Roma. A primeira razo trata do mau exemplo
de comportamento dado pela corte romana, cujos costumes corrompidos eram de
conhecimento geral. A segunda razo o fato de que a presena temporal do poder da
Igreja no permite que a Itlia se unifique, pois na mesma medida em que no toma, ela
mesma, a iniciativa de unificar toda a pennsula, o que, para Maquiavel, nem teria fora
para faz-lo, tambm impede que outro o faa, mantendo a Itlia numa regio
fragmentada politicamente e sujeita tanto aos conflitos internos como ao assdio dos
inimigos:
(...) se a Igreja nunca foi to forte como para poder ocupar toda aItlia, no permitiu que qualquer outro pas dela se apossasse; fezassim com que esta nao no se pudesse reunir sob um s chefe,mantendo-se dividida entre vrios prncipes e senhores. Da adesunio e a fraqueza, que a reduziram a presa no s de brbarosferozes, mas do primeiro que quisesse atac-la. 33
Rousseau, leitor de Maquiavel, poupa, igualmente, o cristianismo primitivo ou,
de maneira mais abstrata, o esprito primitivo do cristianismo e ataca profundamente a
estrutura da Igreja Romana, considerando-a afastada dos princpios daquela religio
original e causa de inmeros males polticos que afligem os Estados modernos.
33MAQUIAVEL, N. Comentrios sobre a primeira dcada de Tito Lvio. Traduo de Srgio F. G. Bath.Braslia: UNB, 1994, p. 62.
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Da mesma forma que esses autores, Montesquieu tambm considera que os
princpios da religio crist no so inadequados para a consolidao dos Estados, ao
contrrio, para ele, o cristianismo uma religio adequada para levar os homens s
virtudes morais e civis, pois: A religio crist est afastada do puro despotismo: que,
sendo a brandura to recomendada no Evangelho, ela se ope clera desptica com a
qual o prncipe faria justia e exerceria suas crueldades. 34
No Esprito das Leis, Montesquieu salienta que as regras gerais devem ser
consideradas em relao s circunstncias, e que desses dois pesos surge o equilbrio
necessrio ao Estado. Assim, considera que a religio catlica mais conveniente s
monarquias, ao passo que as religies protestantes s repblicas. De qualquer forma,
no considera o cristianismo, por princpio, antinmico em relao ao Estado. Nas
Consideraes sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadncia,
Montesquieu faz uma outra anlise deste problema, a partir de uma perspectiva
histrica, apresentando os argumentos dos que acusavam o cristianismo de ser a causa
da decadncia de Roma e dos que diziam ser o cristianismo sua salvao:
Uma vez que, enquanto o Imprio se enfraquecia, a religio crist sefirmava, os cristos recriminavam os pagos por essa decadncia, eestes pediam contas dela religio crist. Diziam os cristos que
Diocleciano havia destrudo o Imprio ao se associar a trs colegas,pois cada imperador queria fazer despesas to grandes e manterexrcitos to fortes como se estivesse sozinho. (