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2 Crianças, televisão e valores morais Neste capítulo encontra-se uma revisão de literatura sobre os temas envolvidos na pesquisa. Primeiramente apresento os resultados de pesquisas realizadas anteriormente sobre crianças e televisão. Em seguida discuto alguns conceitos relacionados ao estudo da moralidade, apresento algumas pesquisas sobre o tema, e, finalmente, a concepção de criança que orienta o trabalho. 2.1 Crianças e televisão: pesquisas anteriores Os primeiros estudos sobre a relação entre crianças e televisão, nos Estados Unidos e em países Europeus nasceram não de uma preocupação acadêmica, mas de uma demanda da sociedade, preocupada com os efeitos deste novo meio de comunicação, seja pelo seu conteúdo violento, sexual, que induz ao consumo seja pelos danos causados pela sua forma problemas de visão, do joelho ou coluna pelo prolongado tempo em uma posição, etc., ou ainda para preservar uma “alta cultura”. A urgência em agir e em proteger as crianças para não serem vítimas dessas situações acabou por modelar as futuras agendas de pesquisa sobre o tema. Isto aconteceu, não apenas com a televisão, mas com os estudos sobre mídia de uma maneira geral, com os gibis e romances rosa, o rádio, o cinema e cada novo meio que surgia. (DUARTE, 2007; PECORA, et.al, 2007) Pecora, Murray e Wartella (2007) realizaram uma revisão de 50 anos de pesquisas sobre televisão e crianças nos Estados Unidos, iniciando no final da década de 1940, junto com o advento da própria televisão, até os primeiros anos do novo milênio. Segundo Pecora (2007), a cada década o número de pesquisas aumentava e novos temas eram incorporados: dos primeiros estudos médicos, no final dos anos 1940, passando pelos impactos na escola, padrões e

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Crianças, televisão e valores morais

Neste capítulo encontra-se uma revisão de literatura sobre os temas

envolvidos na pesquisa. Primeiramente apresento os resultados de pesquisas

realizadas anteriormente sobre crianças e televisão. Em seguida discuto alguns

conceitos relacionados ao estudo da moralidade, apresento algumas pesquisas

sobre o tema, e, finalmente, a concepção de criança que orienta o trabalho.

2.1 – Crianças e televisão: pesquisas anteriores

Os primeiros estudos sobre a relação entre crianças e televisão, nos

Estados Unidos e em países Europeus nasceram não de uma preocupação

acadêmica, mas de uma demanda da sociedade, preocupada com os efeitos

deste novo meio de comunicação, seja pelo seu conteúdo – violento, sexual, que

induz ao consumo – seja pelos danos causados pela sua forma – problemas de

visão, do joelho ou coluna pelo prolongado tempo em uma posição, etc., ou

ainda para preservar uma “alta cultura”. A urgência em agir e em proteger as

crianças para não serem vítimas dessas situações acabou por modelar as futuras

agendas de pesquisa sobre o tema. Isto aconteceu, não apenas com a televisão,

mas com os estudos sobre mídia de uma maneira geral, com os gibis e romances

rosa, o rádio, o cinema e cada novo meio que surgia. (DUARTE, 2007; PECORA,

et.al, 2007)

Pecora, Murray e Wartella (2007) realizaram uma revisão de 50 anos

de pesquisas sobre televisão e crianças nos Estados Unidos, iniciando no final da

década de 1940, junto com o advento da própria televisão, até os primeiros anos

do novo milênio. Segundo Pecora (2007), a cada década o número de pesquisas

aumentava e novos temas eram incorporados: dos primeiros estudos médicos,

no final dos anos 1940, passando pelos impactos na escola, padrões e

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estereótipos de gênero e etnia, violência, consumo (primeiros estudos na década

de 1960), pesquisas sobre obesidade, a partir dos anos 1980, imagem corporal e

distúrbios alimentares, a partir da década de 1990, até as crianças multitarefas e

a interação delas com a TV e outros meios, além da mediação dos pais e co-

telespectadores no início deste milênio.

Nestes 50 anos, tanto a televisão quanto as crianças transformaram-se

drasticamente. Para a autora houve uma sutil mudança nas pesquisas sobre o

tema entre as décadas de 70 e 80, quando a televisão e outros meios de

comunicação de massa passaram a ser vistos como produtos culturais. As

pesquisas começaram a utilizar as teorias de Piaget e Bandura, embora as

tradicionais pesquisas de efeito não tenham desaparecido. A autora afirma,

ainda, que a década de 1980 foi marcada por livros que apontam uma mudança

de natureza na infância, a partir da televisão e dos demais meios de

comunicação de massa, que transformam suas atividades de lazer (Postman,

Meyrowitz e Elkind).

Pecora traça também um panorama da programação televisiva voltada

para o público infantil nestes 50 anos. No inicio era uma programação destinada

a preencher os horários ociosos e de pouca audiência do público adulto,

geralmente na hora do almoço ou no final da tarde, aos poucos o sábado de

manhã foi sendo incorporado e o número de horas semanais da programação foi

aumentando. Surgiram os desenhos animados, aperfeiçoaram-se as técnicas, a

criança passou cada vez mais a ser vista como consumidora. Na década de 70,

em consonância com as discussões da época, minorias étnicas passaram a ser

representadas, como em Globetrotters, passou a haver também uma maior

diversidade de gênero, antes dominado pelo sexo masculino. Surgiram a TV à

cores, nos anos 1960, depois a TV à cabo, nos anos 1980, e os canais com

programação 24 horas destinada às crianças.

A violência é um tema muito presente nas pesquisas estadunidenses

sobre crianças e televisão. Murray (2007) faz uma revisão de literatura sobre o

tema, onde apresenta resultados de diversos estudos – pesquisas de campo, de

laboratório, estudos quantitativos e longitudinais. Entre as principais conclusões:

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crianças que assistem a conteúdos violentos na televisão demonstram um

aumento de comportamento agressivo e este efeito é duradouro. O conteúdo

violento afeta atitudes, valores e o comportamento dos telespectadores,

causando agressividade (uso da força para a resolução de problemas),

insensibilidade (tolerância de níveis de violência na sociedade) e medo (mean

world syndrome/risk of victimization).

Se por um lado a TV foi vista como um perigo para as crianças, mal a

ser combatido, por outro, havia também quem a visse como potencial para o

bem social, como a cura dos males da sociedade, entre eles a delinqüência

juvenil.

Segundo Pecora (2007) houve, desde o início, um número considerável

de esforços em usar a televisão como uma ferramenta educacional. Fran Norris,

o criador de um dos primeiros programas educativos, na década de 50,

vislumbrou a possibilidade de um “jardim de infância no ar”, ao ver sua filha

cantando os jingles da televisão. Muitos desses programas se pareciam em vários

aspectos com um jardim de infância, com artesanato, histórias, teatro, músicas,

etc. Foi na década de 1960, no entanto que surgiram experiências mais

significativas neste aspecto, com “Mister Roger´s Neighborhood” e “Sesame

Street”.

O programa “Sesame Street” foi objeto de muitas pesquisas nos

Estados Unidos, entre estudos longitudinais, surveys nacionais e pesquisas

experimentais, que comprovaram um impacto positivo na aprendizagem das

crianças. (HUSTON, et. al., 2007)

O projeto “Early Window” (WRIGHT, HUSTON, et al., 2001 ), dos

pesquisadores do CRITIC - Center of Research on the Influences of Televisiono n

Children – por exemplo, foi um estudo longitudinal de 3 anos, com 232 crianças

de 2 e 4 anos, de famílias de baixa renda. Entre as conclusões do estudo está o

fato de que, na relação criança/televisão/desempenho escolar deve-se levar em

conta, não apenas o número de horas que a criança passa assistindo à televisão,

preocupação central de muitos pais, pediatras e também de pesquisas

anteriores, mas o conteúdo dos programas assistidos. Os pesquisadores

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encontraram uma associação positiva entre assistir a programas educativos e ter

um bom desempenho em testes escolares e de vocabulário. Já assistir a

programas de entretenimento (destinados ao público adulto ou infantil)

contribui negativamente para o desenvolvimento intelectual, talvez, segundo os

pesquisadores, por deslocar tempo de atividades educacionais e sociais, ou por

não exigir um esforço mental e envolvimento da criança. Assistir a programas

educativos desde cedo, segundo a pesquisa, parece ter efeitos duradouros e

influenciar as futuras escolhas de programas. Os pesquisadores falam de um

efeito bidirecional: crianças que obtiveram um bom desempenho nos testes, em

uma das quatro ondas, passavam, no período seguinte, a ver mais programas

educativos, assim como crianças que obtiveram um baixo desempenho,

passaram a assistir mais desenhos animados e programas gerais. Os autores

lembram, entretanto, que o foco da pesquisa foi “habilidades escolares”, mas

que crianças aprendem muitas outras coisas com a televisão, além disso, a

televisão não pode ser vista isolada de seu contexto e variáveis importantes não

foram controladas, como o nível de escolaridade dos pais, o incentivo a ver

televisão, o trabalho da escola, etc.

Outra pesquisa, Topeka Study, foi realizada com 271 crianças entre 3 e

5 anos de idade, também em perspectiva longitudinal. O desenvolvimento do

vocabulário foi notado em pré-escolares independente da formação dos pais,

gênero ou encorajamento dos pais para que o programa fosse assistido. O

mesmo desenvolvimento, entretanto, não foi observado entre as crianças a

partir dos 4 anos. Crianças que assistiram Sesame Street também eram as que

mais se dedicavam à leitura de livros de maneira espontânea, diferente dos que

lêem apenas ou que são indicados pela escola. (RICE et al., apud

HUSTON,BICHAN, LEE, WRIGHT, 2007)

O programa Sesame Street foi adaptado para outros países onde

obteve altos índices de audiência, assim como nos Estados Unidos, mas não

deixou de receber pesadas críticas. Entre elas a de pretensão de universalidade e

um caráter verticalizado da educação (CAPARELLI, 1982). No Brasil, foi produzido

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pela rede Globo de televisão, em convênio com a TVE-Rio, com o nome de Vila

Sésamo.

No Brasil temos produzido um número considerável de pesquisas

sobre a relação de crianças e televisão, seja abordando diretamente essa relação

(PEREIRA, 2003; SALGADO, 2005; FERNANDES, 2003; DUARTE, 2008;

SACRAMENTO, MIGLIORA 2007; MOURA e GARCIA, 2007; ANDRADE, 2008;

TAVARES, 2009; DELORME, 2008), seja indiretamente ao enfocar a interação de

crianças com as mídias em geral, ou ainda ao refletir sobre a televisão e a

sociedade com um todo (FISCHER, 2007; BELLONI, 2004; JOBIM E SOUZA,

GAMBA JR., 2002; MACHADO, 2000 e outros)

Aqui apresentarei algumas pesquisas nacionais recentes que, de certo

modo, ajudaram a desenhar meu foco de pesquisa. Rita Ribes Pereira (2003) e

Raquel Salgado (2005) pesquisaram a relação de crianças de 5/6 anos com a

televisão, em uma escola de Educação Infantil, a primeira focando os anúncios

veiculados entre a programação e a segunda, os heróis dos desenhos animados.

Ambas defendem a necessidade de diálogo entre adultos e crianças, pautado em

uma relação alteritária. Segundo Pereira, a publicidade (que apareceu na fala das

crianças da pesquisa muito mais pelo merchandising do que pelos comerciais)

tradicionalmente é vista como a grande vilã dos apelos ao consumo, mas sua

força reside na falta de diálogo sobre o tema. “Não há como pensar o significado

que a mídia televisiva – e, nela, a publicidade – vem assumindo no cotidiano das

crianças, sem trazer para a reflexão, junto disto, os reordenamentos das relações

entre adultos e crianças, seja na família, seja na escola.” (2003, p. 246)

Salgado, por sua vez, discute os novos contornos que vêm assumindo

as relações entre adultos e crianças, a partir dos heróis dos desenhos animados,

cada vez mais representados por crianças, fortes, poderosas, corajosas, em

contraste com adultos indefesos e incompetentes, geralmente salvos por elas.

Há também a diferença entre os heróis de animação japonesa, cujos poderes são

resultados de um esforço pessoal, obstinação, sofrimento, mérito, ao contrário

dos heróis ocidentais, geralmente agraciados com poderes mágicos. Segundo a

pesquisadora, “os desenhos animados têm desnudado o fato de que tanto a

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infância quanto a vida adulta não podem mais ser concebidas e tratadas como

mundos que conservam características rígidas e perenes” (2005, p. 233). Se por

um lado crianças se desfizeram de algumas amarras, como a de ser

representadas por uma imagem inocente e indefesa, cria-se outras, pelas idéias

que perpassam a cultura lúdica envolvida nas narrativas dos desenhos animados

(como nos jogos Yugioh), pautadas no incremento da produção e circulação de

capital e bens simbólicos, na expertise, no empreendedorismo, no consumo cada

vez maior de informações (que servem de passaporte para o jogo e conferem

status ao jogador). Para Salgado, temos uma desafiante tarefa, enquanto

educadores,

“que não se restringe a aprender a manipular com

mestria as ferramentas tecnológicas hoje disponíveis, como o

computador, a Internet e os jogos eletrônicos, ou assistir aos

programas televisivos como mero entretenimento ou

passatempo, mas remete ao resgate do diálogo entre as

gerações, mediado pelas novas tecnologias e discursos

midiáticos.” (ibdem, p. 237)

A pesquisadora sugere que esse resgate se dê através do lúdico,

tomando-o como espaço do trabalho pedagógico, penetrando no mundo de

brincadeiras e fantasias de crianças.

Adriana Hoffmann Fernandes (2003) pesquisou a relação de crianças

com desenhos animados. A pesquisa foi realizada em duas escolas, uma pública e

uma particular, localizadas no Rio de Janeiro e as crianças tinham entre 9 e 10

anos. Utilizando-se da teoria das mediações de Orozco Gomes como referencial

teórico e metodológico, a autora chega à conclusão de que os usos culturais da

TV e as interações com os colegas da escola foram mediadores valiosos na

produção de sentidos sobre os desenhos animados. “O olhar do outro foi

constitutivo do olhar que as crianças lançaram para a TV. Nos diálogos, nos

gestos, nos sorrisos os sentidos circulavam, modificavam-se e recriavam-se”. (p.

163) Fernandes acredita que os professores podem ampliar as possibilidades de

mediação, assim como neste caso os colegas de turma foram os mediadores

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privilegiados, oferecendo para as crianças mais momentos de troca, discussão e

criação.

Entre 2004 e 2005, o Grupem desenvolveu uma pesquisa intitulada

“crianças e televisão”, partindo de um spot televisivo que convidava crianças

entre 8 e 12 anos, da Região Sudeste, a enviar cartas, desenhos ou mensagens

eletrônicas contando o que pensam a respeito do que vêem na tevê. (DUARTE,

2008) O grupo recebeu cerca de 1.000 respostas. Segundo as análises desse

material, as crianças têm muito a dizer sobre a televisão e querem ser ouvidas,

fazem críticas pertinentes e bem elaboradas, analisam a televisão com muita

competência, demonstram um conhecimento profundo sobre ela, não apenas de

seus programas, mas também de sua lógica interna de funcionamento. Elas

afirmam gostar de quase todos os gêneros, mas queixam-se do excesso de

violência veiculado nos telejornais, apesar de afirmarem sua importância. Para

essas crianças a principal função da TV é a difusão de idéias e informações,

embora reconheçam que nem tudo o que ela ensina seja bom e que existam

canais e programas educativos, que o fazem de maneira mais eficiente, correta e

“com menos violências” (DUARTE, LEITE E MIGLIORA, 2008, p. 99). Além disso, as

crianças citam os valores como o principal aprendizado.

Em uma segunda fase, a pesquisa do Grupem deu origem a duas

frentes de trabalho, uma pesquisa qualitativa de acompanhamento da

experiência de crianças com filmes e televisão através de oficinas

(SACRAMENTO, 2008) e uma quantitativa que mapeou práticas de uso e de

convivência das crianças com a televisão, nível sócio-econômico, consumo

cultural e possíveis fontes de mediação da relação delas com a TV (MIGLIORA,

2007).

A primeira delas, sob responsabilidade de Winston Sacramento,

buscava compreender como um grupo de aproximadamente 30 crianças, de

idade entre 8 e 13 anos, que nunca havia estado em uma sala de cinema, se

relacionava com produtos audiovisuais. Após 10 meses de contatos regulares,

com idas ao cinema e exibições de diferentes filmes, o pesquisador identificou

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atravessamentos dos modos de ver televisão frente aos modos de ver cinema.

Segundo o autor,

“os resultados dessa pesquisa parecem indicar que o consumo em larga escala de uma programação pensada, desenhada e produzida a partir das especificidades do formato televisivo tem levado as crianças, aqui pesquisadas, a mobilizar dispositivos técnico-perceptivos, formas de atenção e de monitoramento específicos da gramática televisiva, para outros formatos audiovisuais como o cinema.” (2008, p. 85)

Rita Migliora, responsável pelo estudo quantitativo da segunda fase da

pesquisa do Grupem, realizou uma pesquisa de audiência, utilizando um

questionário auto-administrável, respondido por 718 crianças com idades entre 8

e 12 anos, estudantes de escolas dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais

(oito públicas e três particulares). Entre as conclusões do estudo, a de que, ao

contrário do que se costuma crer, as crianças não estão abandonadas à TV. A

maioria delas vê TV acompanhada de pelo menos um adulto da família, e isto

não se dá por falta de opção, já que a maioria também declarou possuir mais de

um aparelho em casa. Nas palavras de Migliora:

“Ao que tudo indica, assistem acompanhadas por escolha. Não se pode afirmar que isto significa, necessariamente, uma melhor apropriação do conteúdo dos programas veiculados na tevê ou uma maior consciência crítica sobre o que estão assistindo, mas sugere que esta apropriação se dá de forma mais ampla e diversa do que se supunha, ou seja, sem interação com outros espectadores no momento de ver; o consumo de tevê parece ser compartilhado pelos membros destas famílias.” (2007, p. 103)

A autora sugere também que quando a escola faz da TV e dos

programas televisivos um dos seus temas de debate, em vez de prescrever

formas de ver ou desqualificar os programas assistidos pelos alunos, “cria boas

condições para que as crianças ampliem e qualifiquem as considerações que têm

a respeito do que vêem.” (p. 104) Além disso, a televisão se configurou como

uma das únicas formas de consumo cultural para muitas crianças da pesquisa.

Isto nos faz refletir, como educadores, não só a respeito da desigualdade de

oferta e de consumo cultural, mas sobre o papel da escola, em incluir ou deixar

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de fora o único (quando não o único, sem dúvida o mais presente) consumo

cultural das crianças.

Andrade (2008) pesquisou a atenção e dispersão na relação de

crianças com a TV. Foram selecionados trechos de diversos gêneros de

programas televisivos, além de comerciais publicitários, e exibidos para crianças

de 10 a 13 anos, estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental, de uma escola

pública. As crianças, que já haviam preenchido um questionário em uma primeira

fase da pesquisa, foram entrevistadas individual e coletivamente. Para efeito de

análise, foram separadas em três grupos de acordo com o acesso a bens

culturais. Durante as exibições dos programas elas podiam escolher entre

avançar o trecho ou continuar assistindo. As idéias de atenção e dispersão foram

analisadas a partir das ações de estranhamento, aceitação e rejeição dos

programas. Ações diferentes para um mesmo gênero de programa foram

notadas e estavam relacionadas aos grupos divididos de acordo com o acesso

aos bens culturais (o grupo com maior acesso aos bens culturais apresentou

maior rejeição à telenovela, enquanto nos outros grupos a aceitação foi maciça).

Os programas educativos foram rejeitados pela maioria das crianças, que

disseram também não gostar do canal onde eram exibidos.

Tavares (2009) realizou, entre 2005 e 2007, uma pesquisa com crianças

do 5º ano do Ensino Fundamental, em duas escolas municipais do Rio de janeiro,

localizadas em bairros que se diferenciavam por apresentar o maior e o menor

número de equipamentos culturais da cidade. O objetivo era identificar de que

forma a linguagem televisiva estava presente na sala de aula e em que medida

esta presença contribuía para a construção das identidades das crianças. A

linguagem da televisão esteve presente nos modos de falar, de escrever, de se

vestir, nas roupas, nos cadernos, etc, “independente da vontade e do trabalho

desenvolvido pelas instituições e/ou pelos professores.” (p. 73) Segundo a

pesquisa, a linguagem televisiva impacta o entendimento de mundo, a idéia de

grupo, a linguagem, o imaginário e as brincadeiras das crianças. Os pais

interferem fortemente nas relações das crianças com a TV, o entorno da escola e

o nível sócio-econômico também fazem alguma diferença, ainda que sutilmente.

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Já os professores, interferem pouco nesta relação, mas impactam

profundamente a maneira como a linguagem televisiva se manifesta na sala de

aula.

Delorme (2008) fez um estudo de cunho etnográfico em uma turma de

primeiro ano de uma escola municipal do Rio de Janeiro, visando compreender

as relações que crianças estabelecem com notícias de telejornais, suas

preferências, sentimentos, recortes que fazem do que vêem, além de

repercussões das notícias em suas vidas. As crianças, entendidas como seres

ativos, aptos a opinar, produtores e consumidores de cultura, foram estudadas

em suas narrativas, em interação com a escola e com seus pares. Em

consonância com pesquisas anteriores, (DUARTE, 2008; TAVARES, 2009) Delorme

afirma que as crianças assistem aos telejornais acompanhadas pelos adultos da

casa, demonstram conhecer aspectos próprios da gramática televisiva, queixam-

se das cenas de violência real, reconhecem a importância dos telejornais como

fonte de informações. Além disso, a autora destaca alguns aspectos que

caracterizam a vida das crianças pesquisadas na cidade do Rio de Janeiro, como o

medo da polícia e a imagem de jornalistas e policiais andando sempre juntos; o

sonho de se tornarem profissionais da televisão, quando adultos; o sentimento

de (in)visibilidade causado pela mídia, pela falta de representatividade de suas

comunidades e o ressentimento delas por não serem consideradas por suas

famílias e pela escola sujeitos participativos, capazes de conhecer, acompanhar,

compreender e questionar a realidade do mundo onde vivem.

Procurei apresentar algumas pesquisas, nacionais e internacionais,

que se dedicam à televisão e crianças. Essas pesquisas geralmente dividem-se

em análise dos produtos (do conteúdo dos programas televisivos ou de

anúncios), estudos de efeito, geralmente quantitativos e longitudinais que

buscam identificar os impactos da televisão em comportamentos das crianças

(como o comportamento agressivo ou aprendizagem), estudos de audiência,

também quantitativos, e de recepção, de cunho qualitativo. Estes últimos

buscam entender como pequenos grupos de espectadores se relacionam com o

conteúdo televisivo: como significam, interpretam, dão sentido, avaliam,

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analisam, etc. É na esteira das pesquisas de recepção que se inscreve esta

pesquisa. A seguir discutirei brevemente a questão dos valores morais e

apresentarei algumas pesquisas sobre o tema.

2.2 – Valores Morais

Ao mesmo tempo em que observamos a crescente oferta de

programas televisivos elaborados exclusivamente para o público infantil, fala-se

em crise de valores, crise ética, em todos os setores da sociedade. Família e

escola discutem seus papéis e de quem é a tarefa de educar. A metáfora dos

limites é amplamente utilizada para sinalizar a necessidade de se pensar a

educação e preparar as crianças para agir em sociedade (LA TAILLE, 2006). Para

Georgen (2007), fala-se tanto em moral hoje porque os problemas morais

assumem dimensões assustadoras: a contradição entre a abundância e a miséria

gera um ambiente de barbárie, a falta de trabalho exclui multidões, a agressão

ao meio ambiente gera uma vulnerabilidade de proporções inusitadas que

ameaça a existência da própria humanidade, as doenças, epidemias, pandemias,

a vergonhosa onda de corrupção. Segundo o autor, “a sociedade capitalista

neoliberal assume diretrizes morais que invertem o imperativo da ética

kantiana3, condicionando o bom funcionamento do sistema ao uso do homem

como meio”. (p. 743)

O primeiro passo para uma discussão a respeito de valores morais é

definir o que são valores morais. Para Nucci (2000), “uma parte grande da

controvérsia envolvendo a educação moral diz respeito à definição de

moralidade. Em sua acepção cotidiana, moralidade refere-se simplesmente às

normas de condutas certas e erradas. No entanto, a questão é o que significa o

certo e o errado morais e quais critérios serão usados para julgar o erro nas

condutas.” (p. 74)

3 “age de forma tal, que nunca use a humanidade, seja em tua pessoa seja na pessoa de outrem,

como meio mas somente e sempre como fim” (KANT, apud FREITAG, 1992, P. 50)

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Para Freitag (1992), da pergunta formulada por Kant - como devo agir

– derivam uma série de outras, como: como posso julgar a minha ação ou a dos

outros? Que valores, princípios devo usar para orientar esta ação? Como ter

certeza que agi/agirei da melhor forma? Para tratar estas questões de uma

maneira mais abrangente, a autora opta por um estudo multidisciplinar e busca

elementos na herança filosófica grega e da Ilustração, na teoria sociológica crítica

e na psicologia genética, utilizando como fio condutor deste estudo a autora

recorre à tragédia grega de Sófocles – Antígona4. Vale a pena nos determos

sobre sua linha de raciocínio.

Segundo a autora, as tragédias gregas tinham um caráter de educação

do público, ao encenar os vários pontos de vista de um problema, permitindo

que o público forme sua própria opinião, além da função de expressão artística

do dramaturgo e da função catártica, por meio da identificação das pessoas do

público com um ou outro personagem da peça.

“As situações não são sempre tão unívocas como no

caso de Antígona, nem tão dramáticas. Mesmo assim, envolvemo-

nos a cada momento, em cada situação concreta de vida, em

conflitos morais e optamos permanentemente pela saída certa ou

errada; surgem alternativas que por vezes podem ser fatais, outras

vezes, com um pouco de sorte, podem implicar novas

oportunidades, novos espaços de liberdade individuais e coletivos.”

(p. 274)

Freitag encontra na tragédia, nos diálogos platônicos e no sistema

filosófico de Aristóteles a expressão máxima da teoria moral entre os gregos,

onde a ação moral é indissociável da ação política e a virtude máxima é a

temperança. A justiça sintetiza o valor moral supremo. A felicidade e os

interesses da cada um são princípios norteadores da ação moral. Agir

corretamente é agir de acordo com a lei. A ordem social estabelecida, no

4 Antígona é filha de Édipo e irmã de Polinice, Etéocles e Ismena. Polinice e Etéocles morrem ao

lutarem entre si. Creonte, irmão de Jocasta e tirano de Tebas, enterra Etéocles, que o apoiava,

como herói e proíbe o enterro de Polinice, deixando Antígona e Ismena no dilema entre

obedecer a lei dos Deuses e a tradição de enterrar seus mortos ou a lei dos homens, da polis.

(Freitag, 1992, p. 21)

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entanto, não é posta em questão, uma vez que mulheres, trabalhadores,

crianças e escravos continuam excluídos das decisões políticas. (IBID,p. 30)

A Psicologia traz uma mudança de paradigma para a questão da

moralidade, embora não garanta o resgate do indivíduo responsável, já que o

Comportamentalismo, a Gestalt e a Psicanálise, cada um a seu modo, teriam

completado o “trabalho de demolição” do indivíduo autônomo, iniciado por

Hegel e reforçado pelo discurso sociológico. Freitag apresenta as teorias de

Piaget e Kohlberg, que, segundo a autora, trabalham justamente “para resgatar a

noção do indivíduo moralmente consciente, dotado de razão e responsável por

seus julgamentos” (IBID, p. 167)

Kohlberg deu continuidade ao estudo piagetiano da moral, realizando

estudos longitudinais e interculturais, acrescentando dilemas morais à

metodologia e realizando projetos de educação moral. O pesquisador reformula

a teoria de seu precursor, ampliando de 3 para 6 estágios da consciência moral.

Como o trabalho de Kohlberg volta-se prioritariamente para adolescentes e

jovens adultos, nos limitaremos aqui à teoria de Piaget.

Jean Piaget (1977) investigou o julgamento moral nas crianças. Para

isto analisou o respeito às regras e normas de conduta, tanto do jogo social,

entre as crianças, como as prescritas pelos adultos. Segundo Piaget, “toda moral

consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser

procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras” (p. 11). O

pesquisador parte de pequenas histórias envolvendo problemas morais como o

roubo, a mentira, os desajeitamentos e as punições, contadas às crianças, e

chega à conclusão que existe um realismo moral, onde o respeito, por exemplo,

é unilateral (e não mútuo), as regras são exteriores e de caráter místico

(sagradas, imutáveis), a responsabilidade é objetiva, ou seja, o julgamento das

ações recai sobre o seu conteúdo, suas conseqüências, seus aspectos

quantitativos e não sobre as intenções dos sujeitos ao praticá-las.

Para Lauro de Oliveira Lima, o conceito de moral ultrapassa o de

conjunto de regras de uma sociedade, de acordo com as circunstâncias

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históricas, políticas, geográficas e ideológicas, mas “algo essencial, resultante das

necessidades de equilíbrio do relacionamento.” (1980, p. 39, grifos do autor)

Yves de La Taille discute o uso dos termos “moralidade” e “eticidade”.

Em um dos artigos do autor (2001) eles são utilizados como sinônimos, dada sua

origem etimológica, em outros (LA TAILLE e TOGNETTA, 2008; LA TAILLE et al.,

2004;LA TAILLE, 2000;) o autor utiliza o termo “moral” como referente aos

deveres (como devo agir?) e reserva o termo “ética” para a “vida boa” (que vida

quero viver?). Segundo La Taille, essa é uma diferença convencional. Outra forma

de convenção seria adotar “moral” para se referir ao fato e “ética” para uma

reflexão sobre este. No uso cotidiano dessas palavras o termo “moral” vem

sendo cada vez mais substituído pelo termo “ética”. De acordo com o autor, isso

se deve apenas pelo fato deste último soar de forma mais liberal e sofisticada

enquanto o primeiro tem um peso autoritário, “moralista”. Em educação, por

exemplo, a experiência da “Educação Moral e Cívica” nos currículos durante a

ditadura militar, ajudou a carregar a palavra moral desse sentido de

autoritarismo e dogmatismo. Seja qual for a opção, os dois termos estão sempre

intimamente relacionados.

Puig (1998) utiliza o termo moral de uma forma bem ampla (não

apenas referente aos deveres em oposição à “vida boa”, ou separando fato de

reflexão, nem polarizando indivíduo e sociedade). O autor defende a construção

de uma personalidade moral, onde a moral não é algo pressuposto, mas “um

produto cultural cuja criação depende de cada sujeito e do conjunto de todos

eles”. (p. 70) A construção da personalidade moral é um processo em que

intervêm elementos socioculturais preexistentes, ao mesmo tempo em que cada

sujeito atua de modo responsável, autônomo e criativo, com o objetivo de

alcançar um modo de vida ótimo em um determinado meio, social, histórico e

cultural.

Nesse processo, intervêm elementos e dinamismos diversos:

diferentes meios sociais, em uma perspectiva ecológica – família, escola,

trabalho, espaços cívicos, meios de comunicação – que proporcionam inúmeras

experiências morais, com problemas morais contextualizados. Para resolver

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esses problemas, ou conflitos, o indivíduo utiliza como recursos as capacidades

psicomorais – como autoconhecimento, conhecimento dos outros, juízo moral,

compreensão crítica, sensibilidade, disposição para o diálogo, etc. – e os guias

culturais de valor, produtos culturais que medeiam a ação sociomoral, servindo

de ferramentas que pautam e regulam as formas de vida de uma coletividade e

lhes dão significado.

O conjunto dos guias de valor forma o que Puig chama de cultura

moral de uma sociedade. O autor descreve alguns elementos dessa cultura: as

idéias morais (conceitos, teorias, máximas, valores), as tecnologias do eu (um

leque de práticas reflexivas e voluntárias que o indivíduo lança mão para

transformar-se, como a escrita de um diário ou a prática da confissão), além dos

modelos, pautas normativas (costumes, normas, leis) e instituições sociais.

Neste complexo processo de construção da personalidade moral, os

meios de comunicação de massa e entre eles a televisão, são meios sociais,

chamados por Puig de noomeio5, por possibilitarem a observação, o

conhecimento e a intervenção em meios a que propriamente não se pertence. O

autor acredita que constituem uma fonte muito relevante de experiências

morais: “além de oferecer vários problemas impossíveis de serem experienciados

diretamente, ou problemas desconhecidos, o que veiculam se relaciona com

tudo o que ocorre nos meios habituais de vida dos sujeitos.” (1998, p. 160)

Além dos meios de comunicação de massa e as redes comunicativas

fazerem parte do conjunto de diferentes meios sociais em que o sujeito se

encontra simultaneamente, os programas televisivos estão carregados de idéias

morais, modelos e pautas normativas, constituindo-se importantes guias

culturais de valores.

2.2.1 - Algumas pesquisas sobre moralidade e crianças

Yves de La Taille e colaboradores fizeram uma busca em base de dados

por artigos, teses e dissertações sobre o tema da moralidade, entre 1990 e 2003.

5 Ao lado dos micromeios, macromeios, mesomeios e exomeios. (p. 159)

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Os autores concluem que, embora a produção de textos sobre ética e educação

tenha aumentado nos últimos anos do período analisado, ela ainda é pequena,

pelo menos não equivalente à preocupação atual e à demanda dos professores.

O número de pesquisas empíricas é pequeno (apenas 10 entre os 28 artigos

encontrados e nenhum deles vinculado diretamente às práticas educativas) (LA

TAILLE et al., 2004).

Vale e Alencar (2008) realizaram uma pesquisa com 30 crianças de

uma escola municipal do Espírito Santo, sendo 10 crianças de 7 anos, 10 de 10

anos e 10 de 13 anos, igualmente divididas quanto ao sexo. As pesquisadoras

apresentaram um dilema moral que envolvia falta de generosidade e fizeram

entrevistas buscando saber se a criança deveria ser punida ou não, porque e

como, em caso afirmativo, e se a professora não deveria castigá-la apenas nesta

situação ou em qualquer outra, em caso negativo. Entre os resultados, as autoras

destacam que

“a maioria dos participantes não só compreende e valoriza a generosidade como é capaz de diferenciar a falta dessa virtude de transgressões claramente morais. Os entrevistados de 7 anos que não sugeriram a punição para o personagem não generoso consideraram a ausência de generosidade como conduta de pouca gravidade, comparando-a com transgressões julgadas como merecedoras de punição. Tais entrevistados, no entanto, não explicitaram que essas transgressões se diferenciam da falta de generosidade pelo seu caráter de obrigatoriedade, como o fizeram os participantes de 10 e 13 anos.” (p. 243)

La Taille (2001) entrevistou 90 crianças, sendo um terço composto por

crianças de 6 anos, um terço de 9 anos e um terço de 12 anos, igualmente

divididas quanto ao sexo, para saber o lugar que a polidez ocupa na construção

da moral. As entrevistas eram constituídas de algumas perguntas abertas e

situações-problema. O autor conclui que a polidez pertence ao universo das

crianças de 6 a 12 anos, que a avaliam como conduta de certa gravidade, mas

optam pela educação (e não pelo castigo), principalmente no caso das crianças

de 9 e 12 anos. A falta de polidez é para as crianças menores um indício para se

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julgar o caráter moral de uma pessoa (associando-a à falta de honestidade,

solidariedade e coragem), mas deixa de sê-lo para as crianças mais velhas.

Souza e colaboradores (2008) realizaram uma pesquisa a respeito do

julgamento de crianças sobre ações e sentimentos de personagens de dois

contos de fadas. Os pesquisadores realizaram entrevistas com 76 crianças de

idade entre 5 e 10 anos das cidades de São Paulo e São José dos Campos.

Segundo a pesquisa, a qualidade dos juízos parece evoluir com a idade, mas as

diferenças só são significativas quando comparadas idades mais distantes. As

crianças menores tendem a avaliar as ações baseadas em opiniões e fatos

encontrados explicitamente nas histórias, não mencionando os sentimentos dos

personagens. As crianças maiores, por sua vez, tendem a fazer mais inferências e

são capazes de identificar sentimentos opostos que coexistem, sem contradizer-

se. Isto está de acordo, segundo os pesquisadores, com a perspectiva piagetiana,

na qual se faz necessário colocar-se no lugar do outro para compreender as

ações e sentimentos desse outro.

Tendo apresentado algumas pesquisas sobre crianças e moralidade,

faz-se necessário explicitar a concepção de crianças que orienta este trabalho.

2.3 – Crianças

Muito se tem discutido sobre o conceito de infância ou das infâncias,

melhor dizendo, constituindo-se esse um campo multidisciplinar. Segundo

Kramer (2002), há no Brasil, nos últimos vinte anos, um esforço em “consolidar

uma visão da criança como cidadã, sujeito criativo, indivíduo social, produtora da

cultura e da história, ao mesmo tempo em que é produzida na história e na

cultura que lhe são contemporâneas.” (p. 43)

A Sociologia da Infância vem pensando as crianças como atores sociais

plenos, produtores de cultura e capazes de interpretar e interagir com adultos e

com seus pares. Estes estudos procuram compreender a sociedade a partir do

fenômeno social da infância, respeitando a diversidade dentro do grupo

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geracional e estabelecendo uma relação alteritária entre adultos e crianças.

(SARMENTO, 2005)

Neste contexto, a psicologia do desenvolvimento, de uma forma geral,

e, mais especificamente a teoria piagetiana, têm sido alvo de muitas críticas.

Penso que as crianças são sujeitos criativos, produtores de cultura e de

história, capazes de interagir com adultos e com seus pares, embora não negue a

perspectiva do desenvolvimento. Ao olharmos para um bebê, uma criança de

cinco anos e outra de dez, por mais que entendamos que cada um desses

sujeitos interage com seus pares, com os adultos, que ressignifica, reinterpreta e

produz cultura, as diferenças pela maneira como essas interações acontecem

ficam gritantes. Um bebê, uma criança de cinco e uma de dez anos são muito

diferentes, visivelmente e qualitativamente diferentes e essas diferenças são

fortemente marcadas pela ausência, pela falta de características dos mais novos

em relação aos mais velhos.

Assumir isso não significa colocar as crianças em inferioridade em

relação aos adultos, nem tomar os níveis de desenvolvimento como etapas

estanques e rígidas, com idades estabelecidas. Penso que reconhecer que as

crianças se desenvolvem não requer que olhemos para elas apenas sob o ponto

de vista do que elas ainda não são capazes, assim como reconhecer que as

crianças são sujeitos não significa negar que elas se desenvolvem.

Essa é a concepção de crianças que orienta a pesquisa: sujeitos

ativos, produtores de cultura, capazes de interagir plenamente com seus pares e

com adultos, mas que não deixam de estar em desenvolvimento.

Jorge Larrosa (1998) fala da complexa relação entre adulto e criança e

da ideia que muitas vezes temos de que a infância é um enigma. Tal ideia sobre o

enigma ou o mistério infantil é, na verdade, mais uma forma de presunção dos

adultos que, ao falarem do que ainda não sabem, estão reforçando as muitas

coisas que sabem. Adultos – pedagogos, professores, pediatras, psicólogos,

produtores de programas infantis, todos sabem muito sobre as crianças, seus

modos de pensar, de agir, seus gostos, suas preferências etc. Para o autor,

pensar a criança como um outro é muito mais do que pensar sobre o que

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sabemos dela ou o que ainda estamos por saber. “A alteridade da infância é algo

muito mais radical: nada mais e nada menos do que sua absoluta

heterogeneidade no que diz respeito a nós e a nosso mundo, sua absoluta

diferença”. (p. 70)

Penso que o grande desafio em pesquisa com crianças é construir uma

relação alteritária, sem abrir mão da posição de adulto. É não encará-las como

enigma nem ter a ilusão de que tudo se sabe sobre elas, não tratá-las como

ingênuas, não olhar apenas para o que lhes falta e ao mesmo tempo não

adultizá-las ou supor que não existam diferenças.

A criança está olhando para nós e para nosso mundo pela primeira vez,

e isso nos traz muitas inquietações. Por esse motivo, ela brinca com nosso lixo,

faz mil confusões com nossa linguagem e com nossas coisas, que estão já

“arrumadinhas”, presas às suas utilidades. É disso que Walter Benjamin fala em

muitos fragmentos de Rua de Mão Única e Infância em Berlim, quando menciona

as confusões com as palavras e as travessuras do Corcundinha (1995). Por isso o

conceito de infância está centralmente relacionado ao conceito de história do

filósofo. A relação entre adulto e criança é a relação das antigas com as novas

gerações, do passado, presente e futuro. Essa tensão entre as gerações está

presente na escola, nos brinquedos, no teatro, no cinema, nos livros infantis, nos

programas televisivos.

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