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REPENSAR A TELEVISO:UMA VISO POSITIVA SOBRE O PAPEL DA TELEVISO COMO ELO SOCIAL, VECULO DE CULTURA E ESPAO DE LAZER Miguel Ruivo

ndiceIntroduo . . . . . . . . . . . . . . . Televiso: Origem e Evoluo Histrica Televiso, Cultura e Sociedade . . . . . Televiso e Entretenimento . . . . . . . Televiso e Publicidade . . . . . . . . . Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . Bibliograa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 3 7 19 24 29 31

IntroduoMuito se tem falado acerca da televiso, mas muito raramente para valorizar os seus aspectos positivos, ou seja, aquilo que ela tem de bom e o contributo que ela pode ter em termos educativos, num sentido cultural ou simplesmente

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informativo. Ao contrrio daquilo que defendido por muitos autores, iremos tentar demonstrar que a televiso pode ser um meio democratizador das sociedades de massa contemporneas. Neste trabalho procuraremos demonstrar, contrastando opinies de diferentes autores e pensadores da televiso que, respeitando as suas limitaes, a televiso apresenta aspectos positivos subvalorizados por muitos. Dedicamos ainda uma parte deste trabalho publicidade na televiso. No tratando qualquer outro tipo de programao televisiva em especco, dirigimos um captulo deste trabalho publicidade televisiva, uma vez que uma das maiores crticas apresentadas vulgarmente televiso o suposto excesso de publicidade que esta transmite (seja atravs da publicidade comercial propriamente dita, seja atravs do discurso de carcter directa ou indirectamente publicitrio de grande parte da programao). A base terica deste trabalho assentar, deste modo, no contraste das ideias defendidas por autores que nos apresentam uma imagem denegrida da televiso, tais como Giovanni Sartori em Homo Videns Televiso e Ps- Pensamento, Pierre Bourdieu em Sobre a Televiso e Joo de Almeida Santos em Homo Zappiens e as ideias defendidas por autores como Umberto Eco em Apocalpticos e Integrados, Marshall McLuhan, o primeiro pensador da televiso que viu nela grandes potencialidades, e Dominique Wolton. Este ltimo, em Pensar a Comunicao e, sobretudo, em Elogio do Grande Pblico Uma Teoria Crtica da Televiso, defende o pael democratizador da televiso como meio de comunicao de massas, mais do que qualquer outro autor. Ao questionarmos o papel da televiso na sociedade e a relacionarmos com o conceito de cultura, no podemoswww.labcom.ubi.pt/agoranet

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deixar de abordar tambm a obra de Douglas Kellner, A Cultura da Mdia, na qual o autor, embora no falando directamente sobre a televiso, nem outro media em concreto, abordando, em vez disso, produtos mediticos especcos, relaciona as produes televisivas, entre outras, com o conceito actual de cultura e suas subsequentes repercusses na nossa sociedade. Este autor, tal como Eco na obra referida, no assume a posio radical de Sartori ou Wolton, reconhecendo vantagens e desvantagens neste meio de comunicao, e nas produes mediticas, em geral.

Televiso: Origem e Evoluo HistricaO aparecimento da televiso foi um marco decisivo na histria dos media. Desde ento, e at aos dias de hoje, continua a cativar as audincias e, indubitavelmente, a ter um importante destaque entre os meios de comunicao de massas. De facto, este aparelho a quem alguns apelidam de janela aberta para o mundo, cada vez mais diverso e abundante, simultaneamente assumindo um papel de interveno e representao social local, regional e planetria. Comecemos, ento, por perceber a origem do termo que baptizou este aparelho, que, a nosso ver, no deixa de ser interessante, j que mais no seja, a ttulo de curiosidade, num mbito histrico ou sociolgico (ou mesmo, porque no, lingustico). A palavra televiso surge antes do objecto que, hoje em dia, vulgarmente designa. Este vocbulo foi utilizado pela primeira vez em 1900, quando da Exposio Universal de Paris, referindo-se, inicialmente, transmisso distncia de imagens animadas e sonorizadas. Desde ento, o sentido do termo sofreu algumas alteraes. Citando a denio dada por Isabelle Gougenheim e Yves d Hrouville emAgora.Net # 4

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A Televiso(2003: 7): (...) palavra formada em 1900 por tele (do grego tle ao longe, por extenso distncia) e viso (do latim visio aco de ver, imagem das coisas). Inicialmente empregada no sentido geral de transmisso da imagem distncia, o termo conhece a partir de 1913 um uso cientco e raro (conjunto dos procedimentos e das tcnicas que permitem a transmisso de imagens aps transformao em ondas hertzianas). Durante os anos vinte toma um sentido tcnico com os primeiros ensaios concretos de transmisso de imagens. Interrompidos pela segunda guerra mundial, os progressos tcnicos conduziram no m dos anos cinquenta a uma extraordinria expanso do processo, e a palavra televiso torna-se ento corrente. Por extenso, designa o conjunto de actividades relativas produo e difuso de programas por meio dessas tcnicas (televiso pblica/privada, programas de televiso, televiso digital de terra, etc.). Por metonmia usado para designar o aparelho receptor de televiso, ao princpio em concorrncia com televisor, posteriormente com o anglicismo tv e T.V. (...). Tendo-se tornado um dos mais importantes factos sociais e econmicos do mundo contemporneo, a televiso engendrou uma terminologia nova com mltiplos termos derivados e compostos, tais como telespectador, teledifundir, telegnico, telelocutora, telelme... Foi em 1923 que o britnico John Logie Baird, descobriu a tcnica da transmisso de imagens animadas e sonorizadas, atravs de ondas hertzianas. A tcnica de Baird, no entanto, comportava apenas dezasseis linhas. Em 1928, nos Estados Unidos, e trs anos mais tarde, na Frana, alguns ensaios do lugar a progressos tcnicos. A primeira emisso televisiva ocial acabou por ser transmitida, a partir do transmissor da Torre Eiffel, em 1935, mais precisamente, no dia 25 de Abril, s vinte horas e quinze minutos. O primeirowww.labcom.ubi.pt/agoranet

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programa ocial surge um ano mais tarde, em Inglaterra. Em 1939, o transmissor pioneiro da Torre Eiffel transmite j quinze horas semanais de programao. Dez anos mais tarde, so emitidos j, em Frana, dois jornais televisivos, por dia, nascendo, desta forma, o conceito de telejornal. em meados do sculo XX, que comea a histria da televiso para todos. Produtores de cinema e os responsveis pelos teatros comeam a temer este novo adversrio que comea a surgir nos lares de cada vez mais espectadores. A televiso torna-se, assim, em menos de uma dcada num meio de comunicao de massas. Comea a ser-lhe tambm reconhecido um importante papel de interveno social e poltica. Quando, em 1960, John F. Kennedy eleito presidente dos Estados Unidos da Amrica, jornalistas e polticos armaram, quase unanimemente, que a sua eleio em muito se deveu s suas prestaes televisivas. Desde esta data que a televiso considerada como um dos meios de propaganda poltica mais determinantes, assumindo a sua capacidade de construir e/ou destruir reputaes de candidatos s eleies. Em 1975, surgem mais inovaes no campo tcnico, com a criao, nos EUA, do Home Box Ofce (HBO), um novo canal pago que transmite apenas lmes, e que marca a entrada da televiso na segunda era: a era da televiso por cabo. A televiso comea, assim, a ser acessvel por cabos coaxiais, e j no pelas habituais ondas hertzianas, sendo estes retransmitidos por satlites. A partir daqui comeam a surgir outros canais temticos, com as mesmas caractersticas tcnicas, mas com apostas em diferentes reas temticas, como o desporto, a informao, a msica e os programas infantis. Estes canais temticos, ou especializados, tornam-se cada vez mais numerosos e cada vez maior o seu nmero de adeptos, que v neles um ptimo complemento aos canais generalistas que j existiam.Agora.Net # 4

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Quase no nal do sculo XX, a televiso entra ainda numa terceira era: a era da televiso digital. Com esta nova tcnica, a traduo das imagens e dos sons realizada digitalmente, isto atravs da linguagem informtica. nesta era que surgem os DVD e os CD-Rom, aumentando, deste modo, a famlia dos discos compactos. Imagens, sons, textos ou grcos so, a partir daqui, acessveis por pedido, atravs do televisor de cada um. Um novo conceito surge associado televiso, com a criao da televiso digital por satlite, que surge nos EUA em 1994: a interactividade. Este novo conceito vem abrir novas perspectivas televiso enquanto meio de comunicao. De repente, tudo se torna acessvel apenas com um televisor: desde os mais variados tipos de programao televisiva a diversos servios at aqui reservados ao computador. Ao entrar no sculo XXI, o espectador que passa a marcar o encontro com a televiso. ele que dita e escolhe aquilo que quer ver. Se antes do aparecimento da televiso, nenhum outro media apresentou tantas potencialidades, tambm verdade que, do mesmo modo, nenhum outro media inspirou tantos receios. Se verdade que a televiso tem um enorme nmero de adeptos, desde a sua primeira era, e que continua a ganhar seguidores, independentemente de constantes evolues ao nvel dos outros media, tambm constatamos um signicante nmero de contestadores da televiso, que nela vem apenas desvantagens e perniciosos resultados do seu uso. Estas acusaes contra a televiso comeam a surgir na dcada de 60, e prendem-se, principalmente, com factores que dizem respeito sua relativa dependncia, a sua tendncia e gosto excessivo pelo espectculo, a sua demagogia, a demasia do seu apelo emoo, o seu desprezo pela cultura, a exposio de mltiplas violncias e as suaswww.labcom.ubi.pt/agoranet

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preferncias pelo entretenimento, em detrimento da informao. Desde universitrios a congressistas, so inmeros aqueles que denunciam, na televiso, a mistura, nas mesmas emisses, de publicidade, informao e show business.

Televiso, Cultura e SociedadeCultura uma palavra difcil de denir, uma vez que aquilo que para uns pode signicar cultura, para outros pode assumir um signicado oposto. A cultura tem, no entanto, um lugar de destaque cada vez maior nas preocupaes das sociedades contemporneas. O conceito de indstria cultural, que notabilizou o Instituto de Pesquisas Sociais da Escola de Frankefurt, apresenta uma denio visionria da extenso da lgica de produo capitalista ao domnio da cultura e deu origem a uma linha de pensamento que tem, ainda hoje, um considervel nmero de seguidores. O tema da cultura , ainda, ponto central nos cultural studies, estudos interdisciplinares inspirados no conceito de cultura imaginado pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci. Cultura tambm o domnio das representaes simblicas, terreno do indeterminado, daquilo que de difcil apreenso por instrumentos de medida sistemtica, e do qual as cincias duras, como a economia, muitas vezes desconam. Podemos ainda dizer que cultura um espao que, ao contrrio dos prognsticos dos que teorizam a emergncia do chamado sistema mundial, paradoxalmente se fortalece com a intensicao dos processos de globalizao, e por a em diante. Em todas as concepes de cultura que encontramos, a ideia que nos transportam a de que a cultura assume sempre determinados contornos especcos, com implicaes para as teorias e as prticas sociais daqueles que a denem.Agora.Net # 4

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A cultura ocupa, hoje em dia, um lugar muito importante, mas pouco problematizado, nas produes televisivas, cinematogrcas e musicais contemporneas. Douglas Kellner fala, inclusivamente, na cultura dos media, num livro publicado, exactamente intitulado A Cultura da Mdia. Outro autor, Dominique Wolton, fala da emancipao cultural que teve lugar na nossa sociedade que se tornou possvel graas generalizao do acesso aos meios de comunicao como a televiso na sua obra, sobretudo no polmico livro Elogio do Grande Pblico Uma Teoria Crtica da Televiso. Opondo-se a estes conceitos, o jornalista e cientista poltico italiano Giovanni Sartori, defende que a cultura televisiva se vem opor cultura da escrita, sobrevalorizando a imagem em relao palavra, apresentando-se ainda como um atentado cultura e democracia, em geral, no seu livro Homo Videns Televiso e Ps- Pensamento. Embora no to drstico e pessimista como este, o autor portugus Joo de Almeida Santos fala tambm nos perigos da dependncia em relao televiso, e de como esta se apresenta como um entrave cultura, e no uma aliada, na sua obra Homo Zapiens O Feitio da Televiso. Nestas obras, as relaes entre cultura e poltica so um tema recorrente, e todos, de acordo com a sua posio face ao assunto, partilham um interesse em tentar compreender as implicaes da produo televisiva contempornea no futuro da democracia e da sociedade em geral. Para Sartori, a televiso degrada a democracia; Wolton, pelo contrrio, identica na televiso um instrumento de realizao democrtica; Kellner, por outro lado, reconhece a polissemia e a complexidade da cultura dos media, o que implica o reconhecimento de obstculos democracia, com sinalizaes, no entanto, de que possvel que a dita cultura dos media

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venha a contribuir para o aprofundamento democrtico da nossa sociedade. A obra de Sartori remete-nos, ainda, para a obra do cientista social francs Pierre Bourdieu que, tal como o autor italiano, denuncia a degradao crescente da informao produzida pela televiso. No incio da sua obra, Sartori adverte-nos que o seu intuito, ou a sua esperana, no a de deter o curso inevitvel dos acontecimentos, que de algum modo esto a levar para a saturao das sociedades pela imagem. O seu objectivo prende-se com a inteno de chamar a ateno de pais e educadores, agentes capazes de disseminar uma postura crtica, para que, pelo menos, se crie uma espcie de barreira ou resistncia, ao domnio da chamada nova classe, ou seja, aquela que detm a gesto do poder televisivo. A obra de Sartori, apresenta-se, deste modo, como uma espcie de paneto poltico que denuncia uma mudana dramtica que est, segundo o autor, a aluir a natureza humana, que est representada pela decadncia do homo sapiens, e a sua substituio pelo homo insipiens, em consequncia do predomnio da imagem sobre a escrita, no mundo dominado pela televiso e pela comunicao electrnica em geral. O homo sapiens distinguir-se-ia dos animais, pela sua capacidade de abstraco simblica, de acordo com a denio cunhada por Lineu em 1758; enquanto o homo sapiens seria capaz de reectir sobre si mesmo atravs da linguagem, o homo insipiens, ou o homo videns, tal como ele denido por Sartori, estaria associado perda dessa capacidade simblica; enquanto o homo sapiens seria capaz de reectir sobre si mesmo atravs da linguagem, o homo insipiens teria perdido essa capacidade, tornando-se numa presa do imediatismo da imagem. O livro de Sartori no deve ser, no entanto, entendido margem do contexto da conjuntura poltica do seu pas, naAgora.Net # 4

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exacta medida em que ele proveniente de uma nao politicamente dominada por Berlusconi, magnata dos media, eleito mais do que uma vez presidente da Repblica, no obstante as acusaes de corrupo que pesavam sobre ele. Sartori circunscreve, ainda, a sua crtica ao jornalismo, gnero este que seria responsvel pela degradao crescente da qualidade da informao poltica divulgada pela televiso. O autor descreve, deste modo, o material divulgado pelos telejornais como conformista e acrtico. Em resposta aos que acreditaram que uma ordenao pluralista e competitiva estimulada pela concorrncia de televises particulares reverteria a tendncia baixa qualidade da informao veiculada, Sartori constata a uniformidade da programao, o nivelamento por baixo da informao por esta transmitida. O autor adverte ainda que quem tem a gesto do poder televisivo se defende das acusaes, descarregando a culpa sobre os ouvintes. E a sua contestao ao argumento defensivo de quem controla a televiso um dos pontos incisivos do livro: no que diz respeito televiso, mais do que a outras coisas, o produtor que produz o consumidor. Os mecanismos de aferio e criao de audincias estariam, deste modo, a articular e dar voz a segmentos medocres da sociedade, compostos de indivduos apticos e alheios, que existiram nas mais variadas sociedades ao longo dos tempos, mas que agora, em vez de dispersos e desarticulados, teriam sido alados posio de comando. Para o autor, , metaforicamente falando, como se o avio estivesse pilotado por algum que no tem nenhum conhecimento tcnico para isso. A teledemocracia estimula um dirigismo suicida, de acordo com a posio do autor italiano, congurando, assim, uma situao de ausncia de comando que deturparia os princpios democrticos. Apresentando, como j foi referido, uma posio simewww.labcom.ubi.pt/agoranet

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tricamente oposta de Sartori, o autor francs Dominique Wolton, apresenta na sua obra Elogio do Grande Pblico Uma Teoria Crtica da Televiso, assim como, em parte, numa outra obra sua intitulada Pensar a Comunicao, uma viso da televiso enquanto uma espcie de arena da cultura contempornea. Originalmente publicada em 1990, a primeira obra referida de Wolton , curiosamente, historicamente anterior ao trabalho de Sartori, publicado inicialmente em 1997. Para Wolton, a televiso aberta, em oposio segmentao produzida primeiramente pelo advento da TV por cabo e, futuramente, pela disseminao da Internet, saudada enquanto elemento democratizador da sociedade. A importncia que a televiso assume nas sociedades contemporneas, no que diz respeito produo de narrativas que do signicado aos acontecimentos do mundo, daquilo que se passa nossa volta, da nossa vida quotidiana e da dos outros (os que esto perto e os que esto longe), leva-nos a relevar o papel da televiso enquanto elo social. nesse sentido que Wolton defende, nas suas obras referidas, a televiso generalista, uma vez que esta se adapta heterogeneidade social da sociedade de massas. Esta televiso generalista, defende o autor, obriga-nos a reconhecer a existncia do outro, o que se torna fundamental nas sociedades cada vez mais multiculturalistas de hoje. Os programas que so pensados para um pblico cultural e socialmente variado, contribuiro, deste modo, para gerarem um sentido de representao social e cultural e de interligao, e interaco, de diferenas a estes nveis. Tendo isto em conta, Wolton defende que a televiso generalista, enquanto servio pblico, contribui para a pacicao, a identicao e a coeso socio-cultural. Apesar do subttulo do livro, uma teoria crtica da teleAgora.Net # 4

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viso, possa, eventualmente, sugerir o contrrio, o trabalho do autor francs legitima, em larga medida, o meio de comunicao de massas mais popular da segunda metade do sculo XX. No deixa, no entanto, de ser curioso que um intelectual francs se aventure a provocar, com tamanha inciso, os cnones de alta cultura do pensamento do seu pas. Aqui reside, deste modo, a polmica gerada pelo referido livro. O trabalho de Wolton, tal como o de Sartori, no de todo alheio ao contexto histrico-poltico vigente na poca em que surge. A obra encerra, historicamente, a dcada de oitenta, uma dcada em que as televises pblicas, at ento monopolistas em grande parte dos pases europeus, incluindo a Frana, ganharam, subitamente, a concorrncia de emissoras comerciais. A entrada do capital privado e, atravs da programao, em certa medida, estrangeiro (especialmente norte-americano), gerou controvrsia em sociedades sociais-democratas de bem-estar social, acostumadas ao controle centralizado e metropolitano da cultura nacional. Wolton reconhece, contudo, as limitaes do modelo e do meio de comunicao. No entanto, mais do que preocupado com a anlise emprica da programao, o seu foco concentra-se no que ele denomina como nvel terico ou conceptual. Sintomaticamente, apesar das suas posies antagnicas, tanto Wolton como Sartori, partilham a opinio de que os produtores, e no os telespectadores, seriam os responsveis pela qualidade da programao televisiva. Wolton nota, efectivamente, que as pesquisas de audincia se restringem a medir reaces a programas transmitidos aos quais o pblico limitado. O baixo nvel de programao no seria, portanto, inerente ao meio, este sim, mago de anlise na obra do intelectual francs. Wolton refere na sua obra, como exemplo da sua tese dewww.labcom.ubi.pt/agoranet

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que sistemas privados podem ser inteligentes e atender ao interesse pblico e nacional, a televiso brasileira. O autor d este exemplo enquanto ilustrativo da sua defesa em relao televiso generalista, isto , os canais de sinal aberto, enquanto tendo o poder de engendrar elos sociais, em contraste com a fragmentao introduzida pela televiso temtica, ou seja, canais especializados da TV por cabo. Wolton defende o exemplo dado pelas novelas brasileiras, advertindo, contudo, possveis riscos de interpretao excessiva entre realidade e co. Discordamos, apesar de tudo, com Wolton, no que diz respeito sua defesa pela televiso generalista, em detrimento dos canais temticos da TV por cabo, que provocam, segundo o autor francs, uma segmentarizao do pblico. Nada temos contra a televiso generalista, antes pelo contrrio. Tal como Wolton, pensamos que esta constitui um verdadeiro elo social, e permite que cada indivduo se reconhea a si mesmo e aos outros, atravs da difuso de representaes sociais que chega at todos. , no entanto, da nossa opinio que os ditos canais temticos contribuem, tambm, em larga escala, para a difuso da informao e, como tal, assumem um papel cultural bastante importante junto dos espectadores. Do mesmo modo, estes canais so extremamente ricos no que diz respeito ao entretenimento dos espectadores. Podemos mesmo dizer que, com estes canais, o espectador distrai-se ao mesmo tempo que se informa e vice-versa. Com estes canais, o espectador tem ainda a possibilidade de escolher especicamente o tipo de programao a que quer assistir, visto que, partida, ele sabe j que tipo de programao esperar de cada canal temtico. , sobretudo, por estas razes que defendemos canais temticos como o Histria, o Odisseia, o People & Arts, os canais de lmes e a MTV.Agora.Net # 4

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Contrastando com as posies radicais tomadas por Sartori e Wolton, ambos desenvolvendo a sua tese num nvel de abstraco terica que evita anlises empricas da programao, Douglas Kellner, na sua referida obra, procura justamente interpretar materiais mais concretos. O professor norte-americano no se limita a analisar a televiso, focando-se na cultura dos media, recaindo a sua anlise sobre os lmes de Spielberg, Spike Lee, Oliver Stone, em desenhos animados como os cartoons da MTV Beavis and Butt-Head, em estrelas como a Madonna, em sries televisivas como Miami Vice (uma das sries de culto dos anos 80, protagonizadas pelo actor Don Johnson), e ainda no trabalho de tericos como Jean Baudrillard. Embora este autor no fale especicamente sobre a televiso, nem outro media em particular, ele acaba por ser til ao nosso trabalho, e por isso consideramos pertinente a sua referncia, uma vez que este acaba por relacionar as produes televisivas, entre outras, com o conceito actual de cultura e suas subsequentes repercusses na nossa sociedade. O referido livro de Kellner encontra-se, deste modo, dividido em trs partes com trs captulos cada e o seu trabalho insere-se no debate contemporneo sobre a cultura. Kellner reconhece a diversidade das abordagens existentes, identicando diferentes liaes tericas, propondo uma postura heterodoxa, no sectria, aberta a contribuies provenientes de rinces tericos diversos. Trata-se, pois, de um projecto que se consolidaria num estudo cultural, multicultural e multi-perspectivo. O seu objectivo seria, assim, alcanado atravs da realizao da crtica diagnstica de obras escolhidas em funo da sua repercusso polticocultural no momento em que foram lanadas. Finalmente, a obra de Kellner aborda ainda as especicidades que awww.labcom.ubi.pt/agoranet

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questo da identidade, elaborada anteriormente, assume na ps-modernidade, opondo-se, neste caso, perspectiva de Baudrillard, defendendo, mas procurando superar as proposies dos romances cyberpunk de co cientca, que extrapola tendncias do presente para o futuro e problematiza o ambiente ps-moderno saturado de tecnologia e de relaes mediadas pela Internet, na esperana de fundamentar a possibilidade de um algo novo mais ecolgico, feminino, comunitrio e inovador (2001: 377-381). Diante a dimenso da tarefa por ele proposta, em contaste com o relato directo e contundente dos autores europeus referidos, a obra de Kellner torna-se circular e repetitiva. Apresenta, no obstante, a vantagem de se situar explicitamente diante de diversas linhagens de pensamento, procurando aproveitar elementos aqui e descartar outros ali. O ecletismo nesta obra uma vantagem, apesar do facto da sua realizao nem sempre corresponder aos objectivos denidos pelo autor. Kellner descreve a rdio, a televiso e outros produtos da indstria cultural como fornecedores de modelos sociais. Para este autor, a cultura dos media, tal como representada pelo conjunto de produtos provenientes desses meios, oferece modelos daquilo que signica ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura dos media fornece ainda, segundo o autor, denies de identidades tnicas, raciais e de gnero. Esta cultura produz parmetros para a denio do que bom ou mau, moral ou imoral (2001: 295-298). Ao disseminar essas referncias, esta cultura constitui, para Kellner, um repertrio global comum, um terreno minado, uma arena privilegiada de lutas sociais e conitos polticos contemporneos. Disposto a dissecar essa cultura dos media, a um sAgora.Net # 4

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tempo, mantendo a preocupao modernista com o contedo ideolgico de objectos concretos, e a polissemia de sentido reconhecida por abordagens ps-estruturalistas, Kellner enfrenta a tarefa de analisar as contadies expressas, nomeadamente, em lmes de guerra ou lmes de terror. Assim, lmes como Poltergeist e outras produes aparecem no como sinnimo completo de alienao ou de resistncia, mas como trabalhos que podem ser interpretados de mais do que de uma maneira, contemplando tanto signicados opressores, por um lado, como elementos libertadores, por outro (2001: 182 e ss.). Tal como acontece com as obras dos autores europeus referidos, no podemos alhear-nos do contexto poltico-social em que se insere o trabalho do autor norte-americano. Estas produes referidas por Kellner situam-se numa determinada conjuntura poltica, do predomnio do reaganismo, tal como referido pelo autor, e carregam tanto as reprodues discriminatrias de raa e gnero, por exemplo, como tambm componentes que acenam com elementos libertrios levantados por diversos movimentos sociais. O trabalho de Kellner procura, deste modo, sintetizar e ltrar diversas tradies do pensamento ocidental. A sua sistematizao critica as distines entre alta e baixa cultura, reconhece as diferenas entre signicados codicados e descodicados, salientando a importncia de se levar a recepo em conta, e problematiza, pelo menos em certa medida, o signicado da ideia de cultura, trazendo tona, por exemplo, as diferenas entre a concepo de erudita e antropolgica. No entanto, Kellner deixa de problematizar, nas suas anlise concretas, as dinmicas especcas de produo de sentido. O resultado que se obtm que os signicados dos vrios produtos ou das vrias produes abordadas acabam por parecer reduzidos a combinaes de contedoswww.labcom.ubi.pt/agoranet

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ideolgicos pr-supostos. Poderia dizer-se que o seu estudo se situa numa espcie de fronteira e, como tal, voltando questo que se prende com a denio de cultura que referimos no incio, talvez avanar essa fronteira implique com a problematizao da noo de cultura. O debate sobre a natureza da cultura faz parte do domnio da antropologia. Da acepo funcionalista de Bronislaw Malinowski, escola sociolgica estrutural inglesa impulsionada pelo trabalho de Radcliffe Brown, ao estruturalismo francs e ao culturalismo americano, o pensamento antropolgico clssico problematizou as relaes entre dimenses tericas e prticas da vida, sagradas e profanas, simblicas e pragmticas, histria e estrutura, reproduo e mudana, que a bibliograa contempornea questiona e avana. A saturao das sociedades por meios de comunicao electrnica, ou por meios de comunicao de massas, no impede, e at, inclusivamente, estimula, como podemos concluir a partir dos trabalhos de Sartori e Wolton, nomeadamente, e para referir os extremos que encontramos, o questionamento de noes de progresso e evoluo, que durante um certo perodo orientaram o estudo das culturas. O enfrentar de questes colocadas pelo debate em torno da noo de cultura talvez ajude a resolver falsos dilemas que perpassem produtos dos media, e contaminam os diversos estudos aqui referidos. Por exemplo, a tecnologia, a televiso ou os media, em geral, tambm eles manifestaes de intrnsecas da cultura, aparecem muitas vezes como foras externas, quase que entendidas como autnomas, que pairariam acima, e ameaariam controlar a vida social. Talvez o enfrentar dos desaos conceituais provocados pela aluso cultura ajude a inovar teorias e prticas sobre poder, criao, discriminao e libertao. Ao defenderem a tese de que a televiso vicia, no senAgora.Net # 4

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tido de sobrepor a imagem palavra e, inclusivamente, constituir uma ameaa para aquilo que entendemos como comunicao, e da ideia de esta transmitir uma viso distorcida da realidade e ser, como tal, um veculo anti-democrtico de transmisso de ideias e ideais, do nosso parecer, que autores como Sartori, Bourdieu ou Almeida Santos (cujo discurso nos parece ainda mais inspido) esto tambm a subvalorizar as capacidades do prprio Homo Sapiens que tanto defendem. Aquilo que por eles referido acerca da televiso poder conter algo de verdadeiro, isto , em certa medida, h aspectos em que o que por eles generalizado, se pode vericar, de facto, em alguns casos, mas isso ser apenas uma verso redutora de uma realidade, uma pequena parcela de um todo. Quando muito, apenas uma face da moeda. Tendo em conta determinadas limitaes da televiso, tal como tambm as reconhece Wolton, cabe tambm ao telespectador, aos indivduos a que a ela assistem (entendendo cada um por si, na sua individualidade, e no uma massa annima e indistinta), terem o discernimento para escolherem aquilo que vem e, perante o que vem, conseguirem emitir uma opinio crtica, sem se deixarem guiar cegamente por nada que lhes seja incutido. No podemos partir do princpio que o receptor das mensagens veiculadas pela televiso seja uma mera inbox sem ltros. Preservemos e tenhamos, pois, conana na inteligncia do ser humano. A ele lhe cabe decidir se quer ser Homo Videns ou Homo Zappiens, ou, pelo contrrio manter a sua prpria identidade, as suas prprias ideias, assim como uma posio crtica pessoal sobre tudo o que v e ouve, sobre, anal de contas, tudo o que o rodeia. Entendemos, deste modo, a televiso mais do que como um simples meio de comunicao de massas, mas anteswww.labcom.ubi.pt/agoranet

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como um janela aberta para o mundo, que d a conhecer ao indivduo uma srie de aspectos sobre o mundo que o rodeia, seja a nvel cultural ou meramente informativo, em suma, conhecimentos, que doutra forma no lhe seriam facultados. Recordemos, pois, o conceito de aldeia global, primeiramente defendido por Marshall McLuhan, associado ao desenvolvimento dos meios de comunicao, defendido por Umberto Eco em Apocalpticos e Integrados, de acordo com o qual o surto de um acrscimo quantitativo da informao faz chegar a todos aquilo que de outra forma no seria possvel. O pblico que assiste televiso aprende com ela, informa-se, educa-se e cria os seus prprios juzos de valor de acordo com as suas crenas, com os seus valores e tambm de acordo com a sua prpria personalidade. O modo como autores como Sartori criticam a televiso despersonaliza o ser humano. No a televiso que o faz.

Televiso e EntretenimentoOutro aspecto que parece ignorado por Sartori o papel que a televiso tem como meio de entretenimento do ser humano. A televiso tambm entretm, distrai o ser humano, transmite-lhe prazer e serve de escape ao quotidiano que o rodeia. Entendamos, ento, tambm a televiso como espao de lazer. Este lazer nem sequer necessita obrigatoriamente, alis, conemos que na maioria dos casos no o seja, um lazer irracional. Queremos com isto dizer que o indivduo pode, simultaneamente, cultivar-se, informar-se, ao mesmo tempo que se entretm. No isso que acontece quando assistimos, para dar alguns exemplos, a lmes ou sries televisivas (por cada indivduo seleccionados, como bvio), ou mesmo programas informativos como os do canal HisAgora.Net # 4

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tria ou do Odisseia? Estes canais, parece-nos, no existem na televiso de Sartori. Programas como desenhos animados, telenovelas, transmisses desportivas, espaos musicais, reportagens de diferentes lugares e diferentes culturas, ou mesmo publicidade, parecem tambm no ser transmitidos pelo aparelho televisivo daquele pensador, tal como no o so no de Pierre Bourdieu, autor do livro Sobre a Televiso. No so estes programas que contribuem altamente para a cultura e, simultaneamente, para o entretenimento do ser humano? Como poderemos entender, ento, a televiso como uma ameaa cultura? Do mesmo modo, como poderemos perceber a televiso como uma ameaa democracia se renunciarmos o direito que temos evoluo tecnolgica, no mbito dos meios de comunicao, fruto natural da evoluo dos tempos e da prpria humanidade? Democratizao no ser tambm termos acesso a toda a informao e, a partir dela, formularmos os nossos juzos de valor? Este princpio da televiso como veculo democrtico de informao e, como tal, transmisso de ideias, defendido por Wolton nas suas obras. Com o cinema e a indstria de Hollywood surge, em 1927, o primeiro entretenimento de massas, uma vez que este se torna muito mais acessvel ao grande pblico do que os teatros do sculo XIX. Foi, no entanto, a televiso que, a partir de 1950, quando se transforma no media de todos, que deu origem ao surgimento das indstrias de entertainment, modicando para sempre o conceito de show business. A particularidade da televiso, relativamente aos outros meios de comunicao de massas acessveis at ento, prende-se com o facto desta ter a possibilidade de levar at casa das pessoas uma vasta diversidade de espectculos de divertimento, desde lmes a emisses desportivas ou musicais, passando por talk shows, sitcoms, concertos, vdeos musiwww.labcom.ubi.pt/agoranet

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cais, etc. Tal como diz Marshall McLuhan no texto Viso, Som e Fria: A televiso (...) difere do cinema quanto imediao com que capta e transmite o visvel. A cmera de TV como o microfone em relao voz. (2002: 159). A televiso cria, deste modo, uma indstria totalmente dedicada ao entretenimento do grande pblico. Atravs do perfeito domnio das emoes universais, fazendo rir ou chorar, a televiso adquire uma tcnica, que , simultaneamente, uma arte. E atravs da sua tcnica e da sua arte que a rainha dos media audiovisuais continua, at hoje, a seduzir os seus adeptos, apropriando-se dos grandes espectculos colectivos como o cinema, o desporto, a cano, e transgurando-os de modo a responderem s leis do pequeno ecr. Em muito a televiso contribuiu para o desenvolvimento do entertainment, permitindo-lhe, mais que nunca e, sobretudo, atravs de um pblico muito mais abrangente, impor o seu estilo, assim como as suas maneiras de fazer e pensar actividades que, a priori, poderiam parecer-lhe alheias: informao, educao e publicidade. Os media audiovisuais como a televiso contribuem, tambm, para a criao do nosso imaginrio. Eles do origem a uma srie de representaes sociais veiculadas atravs de determinados tipos de programao tais como as telenovelas (tal como o exemplo dado por Wolton acerca das telenovelas brasileiras), ou as sries ou sitcoms (como o caso da popular srie dos anos 80, Miami Vice, alvo de estudo de Douglas Kellner), e no tanto atravs dos reality shows, to atacados pelos crticos da televiso. Reconhecemos, obviamente, que muitos destes reality shows televisivos pecam por falta de qualidade, e h, de facto, uns melhores que outros. Alguns formatos conseguem tornar-se em programas de qualidade a nvel cultural e de entretenimento. ExemploAgora.Net # 4

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disso o recente Operao Triunfo, importao de origem espanhola, que celebrou a msica e os novos talentos artsticos nacionais, e cujo nvel de qualidade se vericou tambm ao nvel das audincias. Outros h, no entanto, em que a qualidade escasseia, e nos quais no se celebram qualquer tipo de talentos ou habilidades artsticas admirveis, e ainda cuja repetio da mesma frmula consegue saturar qualquer um. Exemplos por excelncia so todos os Big Brother, em todas as suas verses e repeties e, sobretudo, todas as suas imitaes e primos coxos. Nunca foi, no entanto, nossa inteno de defender toda a programao televisiva. Nada tem apenas aspectos positivos, o que errado ver apenas o lado negativo das coisas, recusando, cegamente, ver o lado positivo. E isto que fazem os crticos da televiso referidos, ao verem apenas ameaas perniciosas associadas a este media. As representaes sociais transmitidas pela televiso passam tambm pelo star system que povoa a televiso. Estas estrelas ou celebridades so-nos apresentadas directa ou indirectamente como modelos sociais de algo a seguir, ou no, pelos espectadores. Estas personagens mediticas, os beautiful people, como lhes chama Joo Almeida Santos (2000: 13), tornam-se dolos, adorados por uns, odiados por outros, eles transformam-se em cones sociais. Tal como diz Marshal McLuhan: Cinema, rdio e televiso situam certas personalidades num novo plano de existncia. Elas existem no tanto em si mesmas, mas como tipos da vida colectiva sentidos e percebidos por um meio de massa. (2002: 161). Este fenmeno tambm preocupao de Kellner ao focar a sua anlise em celebridades como a Madonna, que ser talvez o melhor objecto de anlise em termos comparativos com a televiso, uma vez que ela est para o star system como a televiso est para os media audiovisuais:www.labcom.ubi.pt/agoranet

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amadas por uns e odiadas por outros, ambas alvo de crtica pelos supostos intelectuais puristas e vidos defensores do bem contra o mal nas sociedades contemporneas, elas so inquestionveis, e indestronveis rainhas no seu domnio, na sua arena meditica. Kellner dedica, alis, o oitavo captulo da sua referida obra integralmente polmica diva meditica (2001: 335-364). Situando-a entre o moderno e o ps-moderno, Kellner aborda o fenmeno Madonna como uma corrente cultural em que a imagem da cantora ditaria padres de moda a seguir, mas tambm transmitiria uma determinada ideologia, uma forma de pensar e agir caractersticas, tal como acontece com as representaes sociais que nos so transmitidas pela programao televisiva. Madonna ser, para Kellner, to social e poltica quanto musical, seno mais ainda. No difcil tentar estabelecer um certo paralelismo em relao quilo que se passa com a televiso. Tal tipo de representaes sociais veiculadas pelos media audiovisuais, tais como a televiso, no pode ser visto da maneira negativista como os crticos as vem. Cabe ao espectador assistir a elas com uma mente aberta, e, sobretudo, um esprito crtico, e delas tirar de proveitoso apenas aquilo que desejar. Ele no tem de seguir cegamente o caminho ou o comportamento veiculado por estas personagens mediticas; ele deve avali-lo segundo a sua prpria cultura, a sua maneira de pensar ou, simplesmente, os seus interesses pessoais, e utilizar a informao sua maneira. Estas guras do show business, podem, ainda, apenas serem vistas ou interpretadas como tal: entertainers de massas, cuja nalidade principal , precisamente, entreter o pblico que assiste ao seu espectculo.

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Televiso e PublicidadeA publicidade teve a sua origem, nas nossas sociedades, na imprensa escrita, muito embora ela j existisse antes do nascimento da imprensa moderna. O verdadeiro nascimento da publicidade ter tido lugar na antiga Grcia, quando, na gora, os atenienses debatiam os assuntos pblicos com os seus concidados; em suma: quando estes exerciam a retrica. Do mesmo modo, no incio da era crist, os apstolos gloricavam os ensinamentos de Cristo, com o intuito de propagar a boa nova. No tempo de Carlos Magno, os sbios da Esccia e da Irlanda percorriam as cidades anunciando-se como os mercadores da cincia. Todos os exemplos referidos demonstram como a publicidade tem a sua origem nos desgnios da poltica e da religio. So, ento, os primeiros jornais (os primeiros media) que a emancipam, canalizando-a para servir outros desgnios. Assim, a publicidade torna-se, no perodo que se segue revoluo industrial, e graas imprensa, uma aliada da economia de mercado. Como tal, ela perde um pouco da sua aura e do seu prestgio para se tornar, no sculo XX, decididamente utilitria e comercial. Enquanto derivada da propaganda, a publicidade encontra-se, deste modo ao servio dos comerciantes, mas continua a utilizar as mesmas receitas de seduo e argumentao. , no entanto, depois dos anos 30, com o desenvolvimento dos media e das cincias humanas, que a publicidade atinge a maturidade. A partir deste marco, os media e a publicidade crescem ao mesmo ritmo. Eles apoiam-se mutuamente para conquistar novas posies na sociedade; eles desenvolvem os mesmos argumentos e apelam aos mesmos valores perante aqueles que questionam a sua aco, e, inclusivamente, a sua existncia.www.labcom.ubi.pt/agoranet

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Finalmente, a publicidade acaba por valorizar-se em contacto com outras disciplinas as relaes pblicas e o marketing , ao mesmo tempo que se alimenta das doutrinas da psicologia e da psicologia social, das suas sondagens e teorias, pelo menos at ao incio da dcada de 80. Efectivamente, at ao surgimento do marketing o conjunto de tcnicas que permitem concretizar, por investigao e antecipao, um ajustamento mais ecaz entre a oferta e a procura a publicidade propaga-se sem aprendizagem: ela acaba por funcionar mais como uma arte do que com uma tcnica, isto , como uma prtica sem teoria, mais uma improvisao do que um saber, quanto mais um saber-fazer. Com o desenvolvimento e a popularizao das cincias sociais, a publicidade eleva-se ao nvel de disciplina independente, com fundamentos comprovados, prossionais conrmados, e uma deontologia reconhecida. entre as dcadas de 30 e 80, com o orescimento dos media, nomeadamente, da televiso, que comea a assumir um lugar de destaque, que a publicidade se propaga em todo o seu esplendor at atingir os formatos, e o estatuto, que hoje lhe conhecemos. A televiso assume, sem dvida, um lugar de destaque na histria da publicidade. Ela transforma-se numa verdadeira arena para uma produo, quase escala da cinematogrca, de pequenos lmes publicitrios. Esta publicidade evolui de tal forma, ao ponto de, hoje em dia, ela no se destinar apenas para preencher os intervalos de programao com pequenas mensagens, ou apelos, comerciais. Ela faz parte da prpria programao, embora ainda seja alvo de inmeras crticas, que se recusam determinantemente a consider-la enquanto arte (e no entanto, foi assim que ela nasceu...), e acusando-a de se vestir com falsos esplendores de um ideal, o ideal de uma felicidade partilhada, de um consumo cujos benefcios soAgora.Net # 4

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oferecidos cada vez a um maior nmero de pessoas. Um exemplo dessas crticas vem da parte de Joo de Almeida Santos, ainda na obra anteriormente referida. Acerca da publicidade televisiva, diz o autor: (...) neste mundo invertido da publicidade, onde o produto adquire a natureza de fetiche milagroso, capaz de nos oferecer este mundo e o outro, e valioso, no por qualidades intrnsecas, mas por qualidades e atmosferas que subrepticiamente a publicidade lhe associa. Em publicidade, um produto surge sempre associado a algo que nada tem a ver com ele. A algo que pode fascinar, atrair, espantar, fazer sonhar e que, por essa via, induz atraco por um produto que lhe est marginalmente associado. Tambm aqui se poderia falar de instrumento de opresso simblica, de iluso programada, de inverso substitutiva do valor de uso pelo valor simblico. De fetiche. (2000: 78). A propsito dos anncios publicitrios na televiso, diz ainda Marshall McLuhan: Os anncios no so endereados ao consumo consciente. So como plulas subliminares para o subconsciente, com o to de exercer um feitio hipntico, especialmente nos socilogos. Este um dos mais edicantes aspectos da vasta empresa educacional a que chamamos publicidade (1995: 257). Estas crticas, assim como outras semelhantes, parecem ignorar, no entanto, no s a prpria origem da publicidade, como tambm a transgurao desta em comunicao meditica: previamente uma tcnica para fazer valer os mritos de um bem de consumo (produto ou servio), ela estende agora a sua inuncia para l do que se vende ou se compra, tornando-se numa aspirao colectiva, a chave de felicidade e um ideal de sociedade, que no s representa essa mesma sociedade, como contribui para a sua evoluo, nomeadamente atravs do quebrar de tabus sexuais e raciais nas mais diversas campanhas publicitrias que vewww.labcom.ubi.pt/agoranet

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mos na sociedade actual. Muitas campanhas publicitrias dos nossos dias parecem promover estilos de vida ou comportamentos sociais a par dos prprios produtos. Este fenmeno no tem de ser visto de um ponto de vista negativo. Como nota o prprio Kellner, a publicidade , nos dias de hoje ... um mecanismo importante e geralmente negligenciado de socializao, alm de ser um meio de controlar a demanda do consumidor (2001:318). A publicidade estar, ento, ... to preocupada em vender estilos de vida e identidades socialmente desejveis, associados aos seus produtos, quanto em vender o prprio produto ou melhor, os publicitrios utilizam construtos simblicos com os quais o consumidor convidado a identicar-se para tentar induzi-lo a usar o produto anunciado (Kellner, 2001: 324). Podemos concluir, deste modo, que a publicidade pode ser um instrumento social extremamente importante, nomeadamente quando transporta determinados valores e comportamentos sociais e desperta a conscincias das pessoas para determinadas temticas sociais, chegando por este meio a mensagem mais rapidamente aos seus destinatrios. Alm da questo da rapidez na transmisso da mensagem h ainda que considerar que a publicidade est disponvel para o acesso de todo o tipo de destinatrios que, quer queiram, quer no, so bombardeados diariamente com as mais diversas mensagens publicitrias. A publicidade televisiva , na grande parte dos casos, um mundo imaginrio e criativo, de modo a que o espectador seja seduzido e agarrado por uma relao de dependncia forte. Isto no pode ser, no entanto, analisado pura e simplesmente de um ponto de vista redutor ao conceito de fetiche, como o que d Almeida Santos. Por detrs deste processo aparentemente simples, esconde-se, tambm, muito trabalho, dinheiro e consideraes jurdicas subtis. Todo oAgora.Net # 4

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processo submetido a uma regulamentao muito estrita e a um constante controlo por parte de vrias instituies especializadas para o efeito. Contudo, diz-se muitas vezes, tambm, que h demasiada publicidade na televiso, o que nos poder levar a questionar as referidas questes regulamentares. No entanto, a impresso que, por vezes, possamos ter de excesso de publicidade na televiso, porque o tom, a forma e o discurso publicitrios invadiram, de certo modo, o conjunto dos programas. A publicidade est em toda a parte, hoje em dia e cada vez mais, e isso acaba por reectir-se tambm na televiso. No ser, ento, o excesso de publicidade, mas sim a omnipresena de mensagens com carcter mais promocional do que informativo que enervar o pblico. Mas isto no se verica apenas ao nvel da publicidade, mas sim alargado a toda a programao televisiva, e mesmo a toda a comunicao social, nomeadamente, no que diz respeito aos discursos polticos. A publicidade desempenha, ainda, um papel essencial ao garantir a credibilidade do programa perante o seu pblico, e ao qualicar o elo que une o telespectador com a sua estao, a pontos de algumas estaes temticas no hesitarem em fazer propostas de taxas muito atraentes para animar, e assim tambm validar, o contedo do seu canal. A presena de mensagens publicitrias conhecidas funciona, desta forma, como uma espcie de garantia da qualidade da estao que as difunde. Queremos com tudo isto defender a presena da publicidade na televiso, uma vez que ela pode assumir papis sociais, e no s comerciais, bastante importantes. Claro est que no poderemos categorizar do mesmo modo toda a publicidade. H publicidade e publicidade, e existem, como em outras reas, boas e ms produes. O que est errado, awww.labcom.ubi.pt/agoranet

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nosso ver, a generalizao das crticas negativas em relao publicidade televisiva, alis tal como as crticas negativas em relao televiso que tendem tambm a ser erradamente generalizadas. Estas crticas, tal como as que, cegamente no reconhecem potencialidades na televiso enquanto meio de comunicao, no conseguem perceber o valor positivo que a publicidade, nomeadamente a publicidade televisiva, pode assumir na nossa sociedade.

ConclusoDando por concludo o presente trabalho, questionamo-nos se os aspectos positivos que conseguimos associar televiso, enquanto meio de comunicao, no sero de modo algum reconhecidos pelos intelectuais que apresentam uma viso denegrida desta rainha dos media. Como ser possvel que nela no consigam reconhecer um importante papel na sociedade nos dias de hoje? Com certeza que reconhecemos as suas limitaes. bvio que, tal como referimos, nem todo o seu contedo bom, isto , nem toda a sua programao digna da nossa defesa. Mas isso no nega as possibilidades ou as potencialidades deste meio de comunicao. Isso no quer dizer que no haja muitos produtos de qualidade nas suas transmisses. OK, nem toda a programao televisiva boa. E desde quando que isso faz com que a televiso seja m? Ningum diz que a literatura m, e, no entanto, no queiram que acreditemos que tudo aquilo que se escreve bom, porque no . Assim como cabe a cada um de ns escolher os livros que queremos ler, do mesmo modo, cabe a cada indivduo escolher a programao televisiva a que quer assistir, e quela a que assiste, julg-la de acordo com as suas crenas e a sua maneira de pensar. H, no entanto, tal como vimos, alguns autores, como,Agora.Net # 4

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sobretudo, Dominique Wolton que conseguem vislumbrar as potencialidades deste meio de comunicao. O ufanismo popular com que o autor francs defende este media, leva-o a consider-lo como um meio democratizador das massas e no o contrrio como defende o autor italiano Giovanni Sartori. No quer com isto dizer que concordemos com todas as ideias de Wolton, como, alis, tentamos demonstrar ao longo do trabalho, nomeadamente no que diz respeito defesa que o autor faz da televiso generalista em detrimento dos canais temticos. Este apresenta, no entanto, pontos de vista bastante pertinentes acerca da televiso e, tal como ns, reconhece as limitaes do meio, sem, no entanto deixar de lhe ver inmeras potencialidades ao nvel das sociedades em que vivemos. A televiso , ainda, arena do debate acerca da cultura e do prprio conceito de cultura, subjacente s preocupaes e aos estudos do autor americano Douglas Kellner. Entendamos a televiso como um veiculo de cultura que faz chegar at ns informaes que de outra forma no chegariam, ou mais dicilmente chegariam. O conceito de aldeia global defendido por Marshall McLuhan e Umberto Eco v-se, desta forma, reectido aqui. Se analisarmos separadamente cada produto televisivo, tendo em conta sempre o contexto socio-cultural e poltico em que este est inserido, como faz Kellner no seu trabalho, poderemos chegar a diferentes concluses, de acordo com o objecto estudado e, talvez assim, consigamos ser mais objectivos a distinguir os bons dos maus produtos. Quem dita, no entanto, o que bom ou o que mau? Outra questo que se coloca, por conseguinte, que no estaro os autores como Sartori a desprestigiar a evoluo tecnolgica da humanidade, em termos, claro, da comunicao? Viveramos ns melhor sem televiso? E sem rdiowww.labcom.ubi.pt/agoranet

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ou telefone ou a prpria imprensa escrita? E sem telemveis, por exemplo? O que pensar Sartori acerca da Internet? E da nova vaga da chamada televiso interactiva, em que o espectador chamado a participar activamente em relao quilo a que assiste, emitindo a sua opinio? Recordemos, mais uma vez que para Sartori, assim como para Bourdieu e, em certa medida, para Almeida Santos, o telespectador no ter tal coisa. Haver limites para a evoluo tecnolgica, falando, claro, em termos dos meios de comunicao? Questes que cam certamente sem resposta, ou melhor, que cada um responder sua maneira e ter a sua prpria viso do assunto. A sua prpria perspectiva. A sua prpria opinio. Porque somos todos Homo Sapiens. Ou no?

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