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1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Psicologia Psicopatologia I Professores Marta D’Agord e Volmir dos Santos Etiene Silveira Ortmann, Fernanda Schmitt Ribeiro, Gabriela Damasceno Ferreira, Joana Horst Regina e Thiago Spillari Souza O CASO DAS IRMÃS PAPIN Resumo do filme “Entre Elas” / “Sister my Sister” O filme inicia mostrando duas crianças pequenas brincando - possivelmente Lea e Christine – e, em seguida, a mãe delas chega e pega uma das crianças no colo (Lea), separando-as. Após, aparecem cenas na casa da Senhora Lancelin que mostram a conseqüência do sangrento crime realizado pelas irmãs Christine e Lea Papin à Sra. e à Srta. Lancelin. Estas últimas serão referidas nesse trabalho como mãe e filha, respectivamente. Logo em seguida, Christine aparece trabalhando na casa da Senhora Lancelin. Lea bate à porta da casa e Christine vai atender. As duas irmãs se abraçam muito. Christine leva Lea até sua patroa e a Sra. Lancelin lê as referências de Lea. A Senhora Lancelin, então, contrata Lea, dizendo que aceitará ficar com as duas. A patroa estabelece as regras de trabalho e explica que, nos domingos, terão direito à folga até às 16 horas. As duas sobem e vão para o quarto. Lea fica muito feliz ao saber que as duas ficarão no mesmo quarto e pergunta a Christine como ela havia conseguido que a patroa permitisse isso. Christine responde que ela havia dito à patroa que elas não precisariam mais do que um cantinho. Um detalhe importante é que nesse quarto só havia uma cama, um pouco maior do que uma cama de solteiro. Paralelamente, a patroa pergunta à sua filha o que ela havia achado de Lea. A filha não responde. A mãe, então, diz que ela interessa-se pela sua opinião e fala que as suas amigas sentirão muita inveja delas, pois têm duas empregadas pelo preço de uma. Além disso, elas seriam suas costureiras também. Segue uma cena onde as irmãs servem o almoço. Antes de Lea sair da cozinha com o prato de comida, estava bastante nervosa. Ela vai à mesa e serve a patroa e a sua filha. As duas, principalmente a mãe, encaram Lea muito firmemente, enquanto ela as serve de cabeça baixa. Quando Lea retorna à cozinha, a mãe prova a comida e diz que está maravilhosa, que é a melhor vitela que já comeu. Diz, ainda, que esta é a melhor cozinheira

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Psicologia

Psicopatologia I

Professores Marta D’Agord e Volmir dos Santos

Etiene Silveira Ortmann, Fernanda Schmitt Ribeiro, Gabriela Damasceno Ferreira,

Joana Horst Regina e Thiago Spillari Souza

O CASO DAS IRMÃS PAPIN

Resumo do filme “Entre Elas” / “Sister my Sister”

O filme inicia mostrando duas crianças pequenas brincando - possivelmente Lea e

Christine – e, em seguida, a mãe delas chega e pega uma das crianças no colo (Lea),

separando-as. Após, aparecem cenas na casa da Senhora Lancelin que mostram a

conseqüência do sangrento crime realizado pelas irmãs Christine e Lea Papin à Sra. e à

Srta. Lancelin. Estas últimas serão referidas nesse trabalho como mãe e filha,

respectivamente.

Logo em seguida, Christine aparece trabalhando na casa da Senhora Lancelin. Lea

bate à porta da casa e Christine vai atender. As duas irmãs se abraçam muito. Christine

leva Lea até sua patroa e a Sra. Lancelin lê as referências de Lea. A Senhora Lancelin,

então, contrata Lea, dizendo que aceitará ficar com as duas. A patroa estabelece as regras

de trabalho e explica que, nos domingos, terão direito à folga até às 16 horas.

As duas sobem e vão para o quarto. Lea fica muito feliz ao saber que as duas

ficarão no mesmo quarto e pergunta a Christine como ela havia conseguido que a patroa

permitisse isso. Christine responde que ela havia dito à patroa que elas não precisariam

mais do que um cantinho. Um detalhe importante é que nesse quarto só havia uma cama,

um pouco maior do que uma cama de solteiro.

Paralelamente, a patroa pergunta à sua filha o que ela havia achado de Lea. A filha

não responde. A mãe, então, diz que ela interessa-se pela sua opinião e fala que as suas

amigas sentirão muita inveja delas, pois têm duas empregadas pelo preço de uma. Além

disso, elas seriam suas costureiras também.

Segue uma cena onde as irmãs servem o almoço. Antes de Lea sair da cozinha com

o prato de comida, estava bastante nervosa. Ela vai à mesa e serve a patroa e a sua filha. As

duas, principalmente a mãe, encaram Lea muito firmemente, enquanto ela as serve de

cabeça baixa. Quando Lea retorna à cozinha, a mãe prova a comida e diz que está

maravilhosa, que é a melhor vitela que já comeu. Diz, ainda, que esta é a melhor cozinheira

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que já teve. A patroa repete à filha que suas amigas ficarão com inveja, e que não pode

esperar para oferecer um jantar em sua casa. Comenta, então, que têm duas pérolas em

casa. Quando Lea retorna à cozinha, Christine a elogia, dizendo que ela havia feito tudo

certo, e lhe diz que percebeu, através da expressão da Sra Lancelin, que ela ficara muito

satisfeita.

Depois aparece uma cena em que Lea e Christine estão organizando a cozinha, e

Lea diz a Christine que se sente assustada com a patroa, devido à forma como é observada

pela Sra. Lancelin e à forma como tem o seu trabalho verificado por ela. Christine diz que

não se sente assim, que gosta disso, e comenta: “Afinal, essa é a sua casa, e ela tem que

zelar por ela”. Diz que a patroa sabe o seu lugar, e que não atrapalha seu trabalho, apenas

checa tudo ostensivamente.

Após, uma cena é mostrada onde aparece a patroa com uma luva branca checando

os móveis dos cômodos da casa para ver se ainda há poeira. Ela encontra sujeira em uma

parte do corrimão da escada e apenas dá o pano a Lea, sem olhá-la nos olhos. Lea,

imediatamente, agacha-se e limpa o corrimão. Mais tarde, a Senhora Lancelin faz um chá

em sua casa para suas amigas. Lea serve as convidadas, que a olham bem firmemente, a

cada passo. Quando Lea retorna à cozinha, Christine novamente a elogia.

Aparece uma cena das irmãs dormindo e o galo cantando. Christine pula

rapidamente da cama e se veste. Então começa a dizer que Lea tem que levantar. Ela

resmunga um pouco e Christine a descobre. Lea acorda e senta-se na cama. Lea pede a

Christine que conte uma história antes de descerem. Christine começa a contar, e Lea diz

que ela está contando muito rápido, pedindo, em seguida, que ela conte mais devagar.

Christine sorri, pega a escova de cabelo e começa a pentear o cabelo de Lea enquanto

conta a história.

A história que Christine conta era uma cena da infância das duas, quando uma

carruagem estava prestes a atropelar Lea. Christine vem correndo e empurra Lea, e as duas

caem juntas no chão, na lama. As duas fizeram um machucado que começa no braço da

mais velha e segue no pulso da mais nova. As duas colocam seus antebraços colados e

olham para as cicatrizes, mostrando como elas complementam-se perfeitamente. Christine

conta que uma cigana havia lhes dito que estariam unidas pela vida toda, pelo sangue -

parte da história que Lea pede a Christine, entusiasmadamente, que repita.

Aos domingo, as duas iam encontrar sua mãe, e sempre lhe levavam dinheiro. Em

um domingo, porém, Christine começa a se queixar, dizendo a Lea que, quando era

pequena, a mãe delas odiava seu choro e logo a abandonou. Conta que teve que trabalhar,

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ganhar dinheiro e que a mãe pegou tudo. Ela fala a Lea que cada vez que se acostumava

com algum lugar, sua mãe a mudava para outro.

Num outro dia, chega uma carta da mãe delas a Lea, na qual a mãe pede que Lea

arrume seu cabelo, que não o use mais solto, como costumava. Pede que Lea peça ajuda a

Christine para isso, mas que fale para a irmã ser gentil. Christine vê a carta e começa a

brigar com Lea, gritando com ela. Pega Lea, coloca-a na frente do espelho e, com suas

mãos, faz bruscamente o penteado que sua mãe queria que Lea fizesse. Gritando, Christine

pergunta a Lea se é assim que ela quer. Lea, chorando, grita que não, que não gosta do

cabelo com aquele penteado.

No domingo seguinte, Christine diz que não vão levar todo o dinheiro para a mãe.

Lea fica em silêncio, mostrando-se um pouco contrariada, mas Christine tira uma quantia

do dinheiro e guarda. Lea não fala mais nada. Quando voltam do encontro com a mãe,

aparece uma cena em que Lea está triste; Christine lhe diz que a mãe a perdoará, pois a

ama, sempre a amou. Christine propõe a Lea que elas fiquem com o dinheiro e diz que, se

ela aceitar, poderá escolher o que quiser para fazer com o dinheiro. Lea repete: “O que

quiser?”, e Christine afirma que sim. A partir desse momento, as duas não vão mais ao

encontro da mãe aos domingos. Após, em outra cena, Lea seduz Christine, e as duas têm

uma relação sexual. Lea mostra-se muito erotizada e, ao mesmo tempo, infantil.

Ocorre uma cena com as patroas em que a filha está de aniversário. Quem está na

mesa é apenas a mãe e a filha, além das criadas, que estão ao redor. A mãe coloca uma

ópera, canta os parabéns, apaga a vela pela filha e abre o presente que havia comprado para

ela: um porta-retrato com a fotografia das duas. A filha está com uma cara patética o tempo

todo, provavelmente odiando a comemoração.

Depois disso, Christine e Lea procuram um fotógrafo e tiram a mesma foto que as

patroas haviam tirado. O fotógrafo tenta conversar com as duas; Christine é ríspida e Lea é

simpática. O fotógrafo, então, pergunta se elas são gêmeas e elas respondem que não, que

têm cinco anos de diferença, sendo Lea a mais nova. O fotógrafo comenta que Lea deve ser

a preferida da mãe. Christine parece não gostar do comentário.

De volta a casa, Lea está limpando os móveis da sala e a filha da patroa, Isabelle,

esta ali também. Ela come um chocolate e dá um para Lea. Depois se dirige a Lea e lhe dá

uma escova, sentando-se à frente para que Lea a penteie. Christine vê a cena e fica

enfurecida. A Senhora Lancelin também vê a cena e chega dando uma ordem a Lea, que se

retira.

As irmãs aparecem depois no quarto e discutem. Christine diz que, quando a filha

da Senhora Lancelin se casar, ela vai querer levar Lea com ela. Christine afirma que Lea é

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tudo que tem e tudo que terá na vida. Começa a chorar e Lea diz que não vai abandoná-la.

Christine conta, então, sobre sua irmã mais velha, Verônica, e fala que ela a abandonou.

Christine fala de uma cena em que tentava abraçar a irmã e a mesma virou-se de costas e

foi embora. Neste momento, Lea propõe a Christine fingir que ela, Lea, é a irmã mais

velha. Lea coloca um pano em sua cabeça, para ficar mais parecida com uma freira, e as

duas fazem uma encenação.

Depois que as irmãs começam a manter relações sexuais e de maior intimidade,

ocorrem falhas quanto aos cuidados da casa. Por diversas vezes, a patroa comenta com a

filha que não sabe o que está acontecendo com as irmãs, as quais, por exemplo, andavam

salgando demais a comida. Em uma ocasião, a patroa comenta com a filha que não sabe

mais o que tanto elas fazem naquele quarto, pois já fazia meses que não iam mais se

encontrar com a mãe aos domingos, nem iam à missa, apenas permanecendo trancadas no

quarto. Outro fato que desagradou à patroa foi quando o ferro de passar roupa estragou, e

ela disse que descontaria do salário delas.

Em uma outra cena, as irmãs estão medindo o vestido de casamento da Senhorita

Lancelin. A mesma está em cima de uma cadeira, usando vestido; a sua mãe está atrás,

dizendo como queria que as duas irmãs cortassem o vestido. As duas irmãs estavam

agachadas à frente da Senhorita Lancelin, medindo e cortando o vestido em algumas

partes. Lea e a filha da patroa trocam olhares e Christine e a Senhora Lancelin ficam

enciumadas, e começam a brigar entre si. A senhora Lancelin diz a Christine que dá

próxima vez terá de procurar uma costureira, pois elas estavam fazendo tudo errado. As

duas sobem para o quarto, e Christine diz que não tinha cometido nenhum erro, pois não

achava que havia cortado o vestido errado. Christine, então, diz a Lea que a filha da patroa

quer lhe roubar dela, pois quando casar vai levá-la com ela. Lea diz que nem sabem se

realmente a Senhorita Lancelin vai casar mesmo, uma vez que essa história estava se

enrolando havia anos. Christine diz que Lea é tudo para ela e que não suportaria perdê-la.

Num fim de tarde, a Senhora e a Senhorita Lancelin vão comprar coisas no

mercado enquanto as irmãs estão em casa trabalhando. Lea está passando a roupa que a

Senhorita Lancelin usará num jantar à noite, quando o ferro queima novamente, queimando

a roupa da filha da patroa e deixando sua casa sem luz. Lea grita por Christine quando isso

acontece, e ela assusta-se, tanto que o copo que estava lavando quebra em suas mãos.

Christine sai correndo e Lea lhe conta o que aconteceu, aterrorizada com o que a patroa

poderia fazer a elas.

Elas, então, ficam no quarto até que ouvem o barulho das patroas retornando. Ao

entrarem em casa, a mãe diz à filha que está sentindo cheiro de queimado, e diz que não é

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possível que tenham queimado novamente o ferro. A casa está toda escura e a patroa fica

enfurecida, não entendendo o que está acontecendo. A filha vai à cozinha para ver se

encontra as criadas, e apenas vê o copo quebrado. A mãe começa a subir a escada. Ao

mesmo tempo, no quarto, Christine diz a Lea que vai descer, pois se não o fizer elas

subirão primeiro. Lea pede que Christine não vá, mas ela diz que tem que ir, e sai.

Descabelada, Christine aparece, e a patroa começa a gritar com ela, perguntando o que

estava acontecendo. A Sra Lancelin alega que elas haviam deixado a sua casa às escuras, e

pergunta que cheiro de queimado era aquele. Christine, muito nervosa, responde que o

ferro queimou, mas que não havia sido culpa da irmã. A Senhora Lancelin diz que é um

absurdo e lhe pergunta se a blusa foi queimada. A discussão fica pior, e Christine pede para

que a patroa pare, muito nervosa. A patroa segue falando muitas coisas e Christine diz que

elas vão embora. Nesse momento, a Senhora Lancelin ri de Christine e lhe diz que não

teriam para onde ir, pois não haveria quem que as abrigassem. Neste meio tempo, Lea

aparece, descabelada também. A patroa grita: “O que abriguei aqui meu Deus?”.

A Senhora Lancelin cospe no rosto de Christine, e Christine ataca a patroa,

arrancando os olhos dela. Neste momento, Lea ataca a filha da patroa. As duas cometem

atrocidades com a senhora e senhorita Lancelin: arrancam os olhos, tiram os dentes,

perfuram com uma faca as regiões inferiores das duas, especialmente as nádegas. Após o

assassinato, as irmãs lavam bem as mãos. Quando a polícia chega, encontra as duas

peladas e abraçadas em cima da cama.

O filme conta que Lea pegou vinte anos de prisão e Christine foi condenada à

guilhotina, mas teve sua pena abrandada e foi para o manicômio, onde morreu depois de

quatro anos.

1. O Processo

Neste trabalho, entende-se por processo a dinâmica das experiências de vida das

duas irmãs que resultaram na expressão dos traços de personalidade, dos sintomas e das

defesas psíquicas encontrados a partir da análise do caso das irmãs Papin. A partir dessa

formulação de processo, identificamos alguns traços de personalidade nas irmãs Papin. No

que diz respeito à irmã mais velha, Christine, observamos que ela tinha um cuidado

excessivo em relação à sua irmã mais nova – Lea. Havia uma preocupação de Christine em

proteger, cuidar, amar, afagar, orientar e suprir as necessidades de Lea - de forma muito

semelhante a um amor maternal. Além disso, Christine apresentava-se perfeccionista - não

admitindo nenhuma falta ou falha no trabalho – e muito discreta em relação à vida das

patroas - traços que eram muito admirados por sua patroa. Ainda sobre o seu

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relacionamento com Lea, Christine mostrava-se muito persuasiva, influenciando

diretamente as percepções e as opiniões da sua irmã.

Lea apresentava-se um pouco diferente. Sua personalidade era marcada por uma

passividade em relação à vontade da sua irmã. Além disso, era notável a sua infantilização

na relação com a irmã, quando, por exemplo, Lea pedia para Christine contar-lhe histórias

e arrumar o seu cabelo. Outra característica marcante de Lea é a sua preocupação constante

em agradar a irmã, muitas vezes assumindo e compartilhando algumas percepções. Um

exemplo claro dessa posição de Lea ocorre em uma cena do filme em que Christine

demonstra uma mágoa em relação à irmã Verônica, a mais velha das três, por esta não lhe

amar como ela gostaria. Lea, em seguida, veste-se de maneira igual à Verônica e, fingindo

ser ela, tenta suprir o cuidado e o amor que Christine não recebeu.

As irmãs eram consideradas empregadas perfeitas, descritas pela patroa como

“verdadeiras pérolas” e “criadas-modelo”. Algumas características presentes em ambas as

irmãs eram limpeza, honestidade e conhecimento amplo dos seus serviços.

Silenciosamente, elas trabalhavam bem e duramente o dia inteiro, dispondo de apenas

algumas horas para descansar. As duas irmãs eram resistentes a qualquer forma de censura

ou de observação por parte da patroa. Christine e Lea não suportavam receber ordens. Isso

era ainda mais visível no caso de Christine, que, com seu jeito mais altivo e desconfiado,

não admitia receber quaisquer repreensões advindas da mãe ou da patroa. Pode-se observar

isso em uma cena em que Christine estava costurando a bainha de um vestido para a filha

da patroa com o auxílio de Lea. Ao receber críticas da patroa em relação ao seu trabalho,

Christine fica perturbada, o que a leva a estragar o vestido. Logo em seguida, Christine

sobe para o seu quarto, brava, e reclama da patroa para Lea, comentando que ela estava

costurando perfeitamente e que a patroa estava implicando com ela sem motivos. Lea,

inicialmente, discorda da irmã, mas, após a argumentação de Christine, acaba convencida

de que o trabalho estava sendo, realmente, bem feito.

Quanto aos sintomas da relação entre as irmãs, pôde ser observado um isolamento

social de Christine e de Lea, que, não possuindo amigos ou namorados, preferiam refugiar-

se no seu quarto, o qual era denominado pelas duas como “nossa casinha”. Também

observamos delírios de perseguição em relação à patroa. Nesse tipo de delírio, Christine

sente-se perseguida pela patroa, acreditando que ela implicava com o seu serviço sem

motivos, e que iria mandar Lea trabalhar na casa de Isabelle após o seu casamento. Sendo

assim, a ameaça de separação torna-se real aos olhos de Christine. Entendemos que se trata

de um delírio, pois mesmo as atitudes da patroa correspondendo, de fato, ao conteúdo do

delírio – a patroa realmente averiguava obsessivamente a execução das tarefas domésticas -

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, Christine as percebia de forma patológica. Há um exagero e uma interpretação enviesada

dessas atitudes, entendidas como persecutórias e invasivas, indo além dos assuntos

domésticos. Além disso, percebemos que os delírios foram constituídos ao longo do filme,

mas tiveram o seu apogeu no final, quando a patroa, ao saber de mais uma das falhas das

irmãs no que diz respeito às tarefas da casa, ameaça demiti-las e diz que, com isso, as duas

iriam se separar. Esse episódio culminou com o assassinato da patroa e da sua filha pelas

irmãs Papin.

Há também delírios de ciúme, tanto em relação à mãe (medo da perda de Lea para

a mãe) quanto em relação à Isabelle (medo da relação de Lea com ela). O delírio de ciúme

em relação à mãe manifestava-se como uma ameaça de rompimento do relacionamento das

duas irmãs. Ele pode ser observado nas cenas em que Christine dizia para Lea não dar mais

dinheiro à mãe e que ela não devia arrumar o seu cabelo da forma como a mãe queria.

Além disso, nota-se, durante toda a história, a indisposição de Christine em ter de visitar a

mãe aos domingos, tentando sempre convencer a irmã de que elas não precisariam mais

fazer isso. Christine propunha a Lea passeios somente entre as duas, o que, posteriormente,

foi aceito por Lea.

Esses delírios de ciúme em relação à mãe ocorrem, justamente, pelo fato de o

relacionamento das irmãs ser caracterizado pelo cuidado maternal de Christine e pela

demanda infantil de Lea. Assim, percebe-se que, no delírio, a mãe competia, de alguma

forma, com Christine. Isso se mostrou bem claro quando a mãe sugeriu que Lea mudasse o

seu penteado, o qual, até então, agradava Christine. Esta, ao saber do pedido da mãe, ficou

enfurecida, acalmando-se apenas quando Lea lhe prometeu que continuaria usando o

penteado que lhe agradava. No caso dos delírios de ciúme em relação à Isabelle,

verificamos que eles ocorreram posteriormente, quando Isabelle, que tinha uma idade bem

próxima à de Lea, começou a se aproximar desta. Em uma cena, por exemplo, Christine

ficou muito perturbada com uma troca de olhares entre as duas. Em outra, ela derrubou

pratos na cozinha ao ver Lea penteando o cabelo de Isabelle.

Com relação a defesas do ego, apenas uma pode ser observada intensamente: a

projeção. A projeção é uma operação através da qual o sujeito expulsa de si e localiza no

outro (pessoa ou coisa) qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele

desconhece ou recusa nele (Laplanche, 1991). É possível que a percepção de Christine em

relação a sua patroa, a qual era vista como muito exigente e perfeccionista, na verdade, se

desse em função de uma característica sua projetada na senhora Lancelin. Lea, por outro

lado, é bastante exigente consigo mesma, tendo um cuidado excessivo na realização das

tarefas domésticas. Não conseguindo, entretanto, executar as tarefas com total perfeição,

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ela utiliza-se do mecanismo de idealização, vendo a irmã como um protótipo da perfeição.

Em uma cena, Christine mostra o enxoval que está fazendo para Lea, e esta diz “Ahh, que

bonito Christine. Ninguém costura tão bem como você. É realmente lindo”.

Em termos de mecanismos de defesas, pode-se pensar também na identificação.

Christine identifica-se com a patroa e Lea com Isabelle. Elas reproduzem o modelo mãe e

filha, onde Isabelle é subjugada à mãe, não conseguindo articular o seu próprio desejo.

Pode-se pensar que, na dupla Christine-Lea, a mais nova também não consegue expressar o

seu próprio desejo, submetendo-se ao desejo da irmã. Como exemplo disso, em uma cena

do filme, Lea está separando o dinheiro para dar a sua mãe, quando Christine retira uma

parte da quantia, alegando “a mãe não precisa ficar com tudo...nós podemos guardar um

pouco”. Lea, embora demonstre insatisfação com a atitude da irmã, permanece em silêncio,

conformando-se.

2. Estrutura

O diagnóstico estrutural deve ser dado em função da relação transferencial

estabelecida entre o paciente e o terapeuta, ou seja, esse deve ocorrer a partir do lugar no

qual o paciente, através do seu discurso, coloca o terapeuta. Entretanto, como não estamos

abordando esse estudo de caso a partir de um paciente real, mas sim através de um filme,

torna-se impossível definir um diagnóstico levando em consideração a relação

transferencial paciente-terapeuta. Dessa forma, as nossas hipóteses diagnósticas se baseiam

na posição em que o sujeito analisado se coloca frente ao outro.

Sendo assim, uma das hipóteses de diagnóstico estrutural defendida pelo grupo para

Christine é a de uma estrutura perversa, se pensarmos na maneira como ela se posiciona

em relação à sua irmã, Lea. Observamos que, na interação com Lea, Christine tenta

colocar-se no lugar da mãe, agindo de forma maternal – excessivamente carinhosa e

protetora. Ao longo do filme isso ficou evidente, como em uma cena, por exemplo, em

que Christine arruma o cabelo da irmã como se fosse sua mãe. Em outra, conta historinhas

para a irmã. O que nos chamou a atenção foi a posição infantilizada na qual Lea se coloca,

e a forma com que Christine aproveita essa demanda de carinho e de proteção para assumir

a posição de mãe.

A perversão se dá, então, porque Christine coloca-se em uma relação fora do seu

lugar de irmã na constituição familiar, subvertendo uma ordem e objetalizando Lea. Assim,

Christine, mesmo tendo o conhecimento da lei familiar, ignora-a, fingindo desconhece-la.

Além disso, há ainda a transgressão a uma Lei que funda e mantém o social: a lei do

incesto. Segundo Roudinesco (1998), o incesto pode ser entendido como uma relação

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sexual, sem constrangimento nem violação, entre parentes consangüíneos e adultos. O

primeiro grau de parentesco é o que a lei caracteriza como incesto, ou seja, entre mãe e

filho, pai e filho, irmã e irmão. Dessa forma, além de burlar a lei da ordem familiar, as

duas irmãs também transgridem a lei do incesto.

Na verdade, conforme expõe Calligaris (1986), o sujeito perverso faz do outro

antes um instrumento do que um objeto para a sua montagem perversa. Entretanto, o mais

importante é que nessa montagem ele sabe que esse lugar, de fato, não é seu, mas mesmo

assim o usurpa. Da mesma forma, na dinâmica edípica, o perverso toma o lugar do pai, ou

seja, ele apropria-se do saber suposto ao pai (saber que dá conta do desejo da mãe

primordial – Outro), utilizando esse saber para sua satisfação. A instrumentalização da

irmã mais nova ocorre quando Christine anula o sujeito em Lea, considerando o desejo da

irmã apenas quando este vai ao encontro de suas próprias vontades.

Ao mesmo tempo em que Lea é o instrumento, Christine é quem detém o saber

sobre como utilizá-la como instrumento para a sua própria satisfação. Nesse sentido, um

traço bem marcante de Christine é a sua persuasão, pois percebemos, no decorrer do filme,

uma grande capacidade argumentativa de Christine, que faz com que os desejos de Lea

acabem sempre atrelados à sua vontade. Sendo assim, Christine apropria-se de um saber

suposto para utilizar o desejo de Lea por uma figura materna como instrumento para a sua

montagem perversa, ou seja, como meio para a inversão da lei familiar e para o

estabelecimento do incesto.

Segundo Dor (1991), o perverso, ao desmentir a castração, reconhece que existe a

real diferença dos sexos, entretanto, recusa-se a aceitar as implicações dessa diferença.

Como conseqüência, a causa do desejo do perverso não se dá no reconhecimento e

aceitação da diferença sexual, uma vez que esse não se assume como faltante. Sendo

assim, o perverso encontra o seu gozo na transgressão da Lei, já que a lei que o rege é a lei

do seu próprio desejo. A problemática do desafio na perversão é, na verdade, o desafio da

lei do pai. Isso ocorre, pois é a partir da lei do pai que o sujeito neurótico reconhece a lei

do desejo do outro. De modo contrário, como o perverso desafia a lei do pai,

conseqüentemente, ele transgride a lei do desejo do outro quando esta vai de encontro à lei

do seu próprio desejo.

No entanto, conforme sugere Dor (1991), o agir perverso só encontra o gozo por

meio de um terceiro cúmplice, que pode ser entendido como uma ameaça à castração, uma

vez que esta traz consigo a submissão à Lei. Assim, o cúmplice, estando submetido à Lei,

lembra o perverso, de alguma forma, de que essa Lei existe e garante, dessa forma, o seu

gozo. Percebemos, ao assistir o filme mais minuciosamente, que as irmãs Papin, após

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assumirem para si mesmas seu enlace conjugal, passam a trocar carícias não apenas em seu

quarto. Assim, as duas se expõem a uma possível descoberta por parte da patroa e da sua

filha do romance que as une. Há uma cena em específico em que Isabelle vê as duas irmãs

se acariciando na escada, entretanto, ela nada diz. Ao mesmo tempo, a senhora Lancelin

começa a desconfiar do que as duas ficam fazendo quando estão trancadas no quarto

durante todo o dia e, igualmente, nada fala. Nesse fragmento, percebe-se que há uma

convocação de Christine ao olhar de cumplicidade das patroas. Uma vez que o gozo do

perverso se dá na transgressão da Lei, é necessário que haja esse terceiro que saiba dessa

transgressão. Há, portanto, a necessidade do olhar de um cúmplice.

Entretanto, como nos coloca Dor (1991), esse cúmplice é silencioso, pois o

perverso, em sua estratégia, testemunha um possível segredo que, a qualquer momento,

pode ser revelado. Todavia, tal segredo é imaginário, e diz respeito à posição subjetiva do

neurótico, na qual ele está sempre em dívida, ou seja, sempre em falta com alguma coisa.

Através dessa ameaça de revelação, o perverso consegue manipular o seu cúmplice para

que ele se mantenha nessa posição de expectador do seu desafio à Lei e que, ao mesmo

tempo, nada possa falar. Desse modo, a Senhora Lancelin e sua filha, enquanto

testemunhavam a montagem perversa, nada podiam dizer, pois Christine detinha o saber

sobre um possível segredo que denunciaria as duas.

Por um lado, o grupo cogitou também a possibilidade de Christine ser psicótica,

mas tal possibilidade inicialmente foi descartada, uma vez que se Christine realmente o

fosse, ela agiria como a mãe de Lea, sem saber que não é. No seu delírio ela acharia que de

fato é a mãe de Lea e quando confrontada com a Lei (que para o psicótico não está

simbolizada), ou seja, quando a mãe presente assumisse seu lugar e confrontasse seu

delírio, Christine surtaria. Entretanto, não é isso que acontece. Christine consegue passar

alguns finais de semana junto de Lea e da mãe, sem surtar. Sendo então perversa, Christine

tenta burlar a lei ao fazer com que Lea se afaste da mãe, não a visitando mais, como de

costume, nos finais de semana.

Por outro lado, levando em consideração outros aspectos, pode-se pensar que

Christine tenha uma estrutura psicótica. O delírio paranóico de que a patroa estaria sempre

as vigiando sustenta a possibilidade de tal estrutura. É importante ressaltar que, segundo

Nasio (1991), esse delírio é caracterizado por um modo peculiar de funcionamento: o da

reversibilidade ou reciprocidade. Assim, o psicótico paranóico atuaria em um jogo de

espelhos – se ele odeia alguém, diz que esse alguém o odeia. No caso das irmãs Papin,

podemos perceber esse modo de funcionar quando elas convocam o olhar da patroa sobre

suas tarefas, e, ao mesmo tempo, se sentem perseguidas diariamente. Uma das falas de

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Christine é a seguinte: “Eu gosto da meticulosidade e do cuidado da patroa em verificar o

nosso trabalho. Ela não interfere, não entra na cozinha, por exemplo”. Essa reciprocidade

também pode ser percebida quando, no momento do crime, a patroa ameaça destruir as

duas e, imediatamente, Christine se avança nela. Provavelmente o raciocínio de Christine

tenha sido o seguinte: “Se tu queres me destruir, eu te destruo antes”.

Na psicose, como nos coloca Pommier (1990) o lugar da palavra do pai está

foracluído e basta o encontro de um pai, ou melhor, de um pai que se tome por um Pai para

que a crise psicótica se dê. Pode-se pensar que, na cena do crime, algo (uma palavra, um

dito) que não estava simbolizado por Christine foi enunciado pela patroa que

possivelmente estava no lugar do Pai. Essa palavra era uma ameaça moral, ou seja, a patroa

denunciou a relação incestuosa e homossexual das duas que socialmente não era aceita. Na

discussão ocorrida minutos antes do crime, a senhora Lancelin e Isabelle insinuam ter

conhecimento do relacionamento das duas “Eu abriguei o pecado em minha casa”, diz a

patroa. Em seguida ameaça separá-las e por último as ofende: “malditas, imundas, escórias

de irmãs”. As últimas palavras de Christine são essas: “Não fale da minha irmã”.

Entretanto, acredita-se que a patroa o fez em nome de uma competição, de uma

rivalidade que estava todo tempo implícita na trama. Pode-se supor que, naquela casa de

semelhantes, ou seja, onde só havia mulheres identificadas entre si, havia uma relação de

invídia (termo lacaniano que, simplificadamente, refere-se à inveja entre os semelhantes) e,

conseqüentemente, uma busca de amor de uma pela outra. Em muitas cenas isso pode ser

percebido: os ciúmes de Christine e da Sra. Lancelin da relação de Lea com Isabelle, o

olhar de inveja de Isabelle da relação de Lea e Christine, as queixas da patroa de não mais

receber o olhar de Christine e, reciprocamente, as queixas de Christine de igualmente não

mais receber palavras da patroa. É interessante pensar que, se houvesse uma figura

masculina na casa, figura esta que marcasse uma diferença, a dinâmica das relações

provavelmente teriam se dado de outra forma.

Quanto à estrutura de Lea, acreditamos que se trata de uma neurose histérica. Isso

porque, na relação entre as duas irmãs, Lea se posiciona como aquela que possui um falo

que completa Christine. Násio (1991) entende que o indivíduo histérico transforma seu

corpo não-genital em um grande falo, ficando apenas a zona genital desinvestida. Para ele,

o ter o falo significa, na verdade, sê-lo. Entretanto, no sujeito histérico, essa incorporação

do falo só se faz no momento da sedução, podendo ser, a qualquer hora, desfeita,

diferentemente do psicótico, que se coloca todo o tempo como sendo o falo da mãe.

Para uma maior compreensão do que foi anteriormente exposto, faz-se importante

retomar aqui a idéia trazida por Dor (1991) de que, inicialmente, a criança se identifica

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com o objeto total - que é o desejo da mãe - acreditando ser o falo que a completa e

considerando o pai como um falo rival. De encontro com a lei do pai, a criança percebe

que a mãe é também dependente do desejo do pai. Dessa forma, o desejo passa a ser

regulado pela seguinte prescrição “o desejo de cada um é sempre submetido à lei do desejo

do outro”. A conclusão, então, a que a criança chega é de que a mãe é dependente de um

objeto que o outro pode ter ou não: o falo. Ela então se identifica com um objeto parcial

(falo), saindo da posição de objeto do desejo do outro, para possuir o objeto que satisfaz o

outro. Está dado o acesso ao simbólico pela criança. Caso contrário, se a criança não

consegue efetuar essa troca de posição do ser o falo para tê-lo, pode-se pensar em uma

estrutura psicótica, pois o psicótico se coloca como sendo o falo da mãe, alienando-se,

conseqüentemente, ao seu desejo.

Assim, na histeria, há uma reivindicação do falo que a mãe poderia ter tido por

direito, mas que lhe foi tomado pelo pai. Esse episódio garante a tal estrutura um traço bem

marcante: a reivindicação do ter. Assim, a histérica busca conquistar o atributo do qual ela

se considera injustamente desprovida. É nesse sentido que ocorre uma alienação subjetiva

ao desejo do Outro, onde ela utiliza o seu corpo para suprir a falta do outro (completando-

o) e mascarar a sua própria impotência. Essa posição subjetiva da histérica de utilizar o seu

corpo para suprir a falta do outro foi observada inúmeras vezes no comportamento de Lea,

principalmente quando ela, perante Christine, colocava-se como um objeto, para que a

irmã fizesse dela o que quisesse. Uma cena que exemplifica tal ponto é quando Lea se

veste e finge ser a outra irmã, Verônica, para dar carinho a Christine.

Outra questão importante da estrutura histérica - a alienação ao desejo do Outro -

foi igualmente observada na relação de Lea com Christine. Um exemplo ocorre quando

Christine, ao ver o cobertor que Lea traz costurado por sua mãe, comenta “A costura da

mamãe é tão vulgar” e Lea prontamente responde “Posso jogar fora se tu quiser”. Pode-se

pensar que o fato de Lea compartilhar dos delírios de Christine já denota uma subjugação

de seus desejos aos desejos da irmã – díade indutora/induzida. Era evidente também a

preocupação de Lea em satisfazer a irmã, mesmo que para isso fosse preciso se anular

como sujeito.

Entretanto, percebe-se que Lea se posicionava de maneira a ter ou mesmo ser

temporariamente o falo da irmã, pois muitas vezes, mesmo sabendo que sua irmã poderia

estar vendo e que assim iria desagradá-la, relacionava-se com a filha da patroa, o que

causou muitas discussões entre as duas. Percebe-se, então, duas formas de Lea se colocar

na relação com Christine: quando Lea faz de tudo para completar a irmã e, contrariamente,

quando interage intimamente com Isabelle frente ao olhar de Christine, quebrando a

13

relação de completude das duas. A partir desse jogo de posições de ter ou ser o falo,

supomos que Lea possui uma estrutura histérica e não psicótica, pois se o fosse, se

posicionaria como sempre sendo o falo da irmã. No entanto, percebemos que ela nem

sempre o é, mas sim o tem e por isso consegue dá-lo e tirá-lo de Christine quando quer.

Assim, Lea está nesse constante movimento de completar a irmã sendo temporariamente

seu falo e, em seguida, se retirar como falo dela, ao se relacionar com Isabelle. Outra

característica de Lea, ao se relacionar com sua irmã, era mostrar-se muito provocante, pois

no filme percebemos que era Lea quem iniciava, na maioria das vezes, as relações sexuais.

3. Classificação Diagnóstica: CID-10 e DSM-IV

Folie à Deux

Partimos de uma idéia inicial de folie à deux, como sugerido nos primeiros contatos

com alguns estudos feitos sobre o caso, para entender a relação das irmãs Papin, bem como

o crime hediondo cometido por elas. Após algumas buscas, encontramos termos como

Transtorno Psicótico Compartilhado e Transtorno Paranóide Induzido para se referir à

loucura a dois.

Encontramos referências a estudos de Lasègue e Falret, já em 1877, sobre folie à

deux. Estes falam de uma alienação contagiosa que ocorre na relação, a partir da aceitação

do delírio do outro, em que “o delirante tenta nos convencer de seu delírio”. Citam ainda

uma possível indefinição de um/outro, havendo uma mistura de pulsões. Esses autores

comentam também que há um doente real e um indivíduo receptivo, que seria alienado por

reflexo - a partir de uma identificação -, e que não teria um posicionamento crítico frente a

um possível absurdo.

No caso das irmãs Papin, nota-se claramente o mecanismo de identificação em Lea,

que vê em Christine a perfeição, idealizando-a. São comuns também os casos clínicos onde

uma criança é envolvida, aparecendo como receptiva do delírio. No relacionamento das

duas irmãs, não é difícil perceber a infantilidade que Lea assume perante a irmã, pedindo-

lhe que lhe conte histórias e que penteie o seu cabelo. Quanto aos manuais de diagnósticos

psiquiátricos CID-10 e DSM-IV, estes definem a folie à deux como Transtorno Delirante

Induzido (F24) e Transtorno Psicótico Compartilhado (F24 – 297.3), respectivamente.

CID 10 - Transtorno Delirante Induzido

Transtorno delirante partilhado por duas ou mais pessoas ligadas muito

estreitamente entre si no plano emocional. Apenas uma dessas pessoas apresenta um

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transtorno psicótico autêntico; as idéias delirantes são induzidas na(s) outra(s) e são

habitualmente abandonadas em caso de separação das pessoas.

DSM IV - Transtorno Psicótico Compartilhado

A característica essencial do Transtorno Psicótico Compartilhado (folie à deux) é

um delírio que se desenvolve em um indivíduo envolvido em um estreito relacionamento

com outra pessoa (às vezes chamada de "indutor" ou "caso primário") que já tem um

Transtorno Psicótico com delírios proeminentes (Critério A). O indivíduo compartilha as

crenças delirantes do caso primário, total ou parcialmente (Critério B).

O delírio não é melhor explicado por um outro Transtorno Psicótico (por ex.,

Esquizofrenia) ou por um Transtorno do Humor com Aspectos Psicóticos, nem é devido

aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (por ex., anfetamina) ou de uma

condição médica geral (por ex., tumor cerebral) (Critério C). Assim, o diagnóstico em

relação ao caso primário fica em aberto.

O caso primário no Transtorno Psicótico Compartilhado em geral é o membro

dominante no relacionamento, que aos poucos impõe o sistema delirante à segunda pessoa,

mais passiva e inicialmente saudável. Os indivíduos que chegam a compartilhar as crenças

delirantes freqüentemente estão relacionados por laços sangüíneos ou casamento e

convivem há muito tempo, às vezes em relativo isolamento social. Se o relacionamento

com o caso primário é interrompido, as crenças delirantes do outro indivíduo gradualmente

diminuem ou desaparecem.

Sendo assim, o contexto de um relacionamento próximo entre os indivíduos é

satisfeito no caso em questão, sendo que as irmãs compartilham o mesmo emprego, a

moradia, o quarto em que dormem, além de estarem intimamente ligadas no plano

emocional. Além do fato de serem parentes consangüíneas de primeiro grau, característica

comumente encontrada nos casos de folie à deux, as irmãs contam uma com a outra para

dividir suas angústias, possuem um grande afeto uma pela outra e ainda mantêm relações

sexuais. Também podemos verificar um isolamento social das irmãs, que não se

relacionam com mais ninguém, bastando-se uma à outra.

Esquizofrenia é provavelmente o diagnóstico mais comum do caso primário,

embora outros diagnósticos possam incluir Transtorno Delirante ou Transtorno do Humor

com Aspectos Psicóticos. O conteúdo das crenças delirantes compartilhadas pode depender

do diagnóstico do caso primário e incluir delírios relativamente bizarros (por ex., de que

alguma força estranha e hostil está transmitindo radiação para dentro do apartamento,

causando indigestão e diarréia), delírios congruentes com o humor (por ex., de que o caso

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primário em breve receberá um contrato de filmagem de 2 milhões de dólares, permitindo

à família comprar uma casa muito maior, com piscina), ou delírios não-bizarros

característicos do Transtorno Delirante (por ex., o FBI está "grampeando" o telefone da

família e seguindo seus membros quando estes saem à rua). Pensando em Christine como o

caso primário, acreditamos que ela se classificaria como apresentando um Transtorno

Delirante.

Acreditamos que Christine seria a figura dominante nessa relação, tendo em vista

que é ela que inicialmente enuncia os delírios persecutórios em relação à patroa, bem como

os delírios de que a mãe tinha a intenção de separá-las (Lea e Christine). Outro delírio que

inicia com Christine é o de que a filha da patroa levaria Lea consigo ao se casar, também

ocasionando uma separação das irmãs, o que era tão temido por ambas. Lea, por sua vez,

assume uma posição de passividade, sendo, aos poucos, convencida desses delírios como

verdades. Assim, ambas passam a compartilhar um delírio de separação e de perseguição

que é previamente estabelecido por Christine, e induzido em Lea.

CID-10 - Transtorno Delirante

Transtorno caracterizado pela ocorrência de uma idéia delirante única ou de um

conjunto de idéias delirantes aparentadas, em geral persistentes e que por vezes

permanecem durante o resto da vida. O conteúdo da idéia ou das idéias delirantes é muito

variável. A presença de alucinações auditivas (vozes) manifestas e persistentes, de

sintomas esquizofrênicos tais como idéias delirantes de influência e um embotamento

nítido dos afetos, e a evidência clara de uma afecção cerebral, são incompatíveis com o

diagnóstico. Entretanto, a presença de alucinações auditivas ocorrendo de modo irregular

ou transitório, particularmente em pessoas de idade avançada, não elimina este diagnóstico,

sob condição de que não se trate de alucinações tipicamente esquizofrênicas e de que elas

não dominem o quadro clínico.

DSM-IV - Transtorno Delirante

A característica essencial do Transtorno Delirante é a presença de um ou mais

delírios não-bizarros que persistem por pelo menos 1 mês (Critério A). Um diagnóstico de

Transtorno Delirante não é dado se o indivíduo já apresentou um quadro sintomático que

satisfazia o Critério A para Esquizofrenia (Critério B). Alucinações auditivas ou visuais, se

presentes, não são proeminentes. Exceto pelo impacto direto dos delírios, o funcionamento

psicossocial não está acentuadamente prejudicado, e o comportamento não é obviamente

estranho ou bizarro - (Critério C). Se episódios de humor ocorrem concomitantemente com

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os delírios, sua duração total é relativamente breve, comparada com a duração total dos

períodos delirantes (Critério D). Os delírios não se devem aos efeitos fisiológicos diretos

de uma substância (por ex., cocaína) ou uma condição médica geral (por ex., doença de

Alzheimer, lúpus eritematoso sistêmico) (Critério E).

Delírios bizarros seriam aqueles claramente implausíveis, incompreensíveis e não

extraídos de experiências comuns da vida, enquanto que os delírios não-bizarros envolvem

situações que poderiam concebivelmente ocorrer, como perseguição, envenenamento, ser

infectado, traição. Em Christine observamos a presença de delírios não-bizarros durante

um período prolongado (talvez meses). Não há o conhecimento de sintomas que poderiam

caracterizar uma Esquizofrenia, nem de alucinações auditivas ou visuais. Seu

comportamento não parece bizarro à primeira vista, nem apresenta problemas em seu

funcionamento psicossocial, exercendo suas tarefas domésticas com zelo e qualidade e

sendo muito elogiada pela patroa.

Ao analisar os possíveis subtipos do Transtorno Delirante, observamos que

Christine poderia ser enquadrada em dois tipos. O Tipo Ciumento aplica-se quando o tema

central do delírio diz respeito a estar sendo traído pelo cônjuge ou parceiro romântico.

Christine tinha um delírio quanto à filha da patroa levar Lea consigo ao se casar. Este

delírio era baseado em algumas cenas em que Christine desconfia de uma possível troca de

carinho entre Lea e Isabelle, como no momento em que presenciou Lea penteando o cabelo

de Isabelle. Entretanto, Christine fantasiou demasiadamente a idéia de que Isabelle pudesse

separá-la de sua irmã.

O outro subtipo em que classificaríamos Christine seria o Tipo Persecutório, que se

aplica quando o tema central do delírio envolve a crença de estar sendo vítima de

conspiração, traição, espionagem, perseguição, envenenamento ou intoxicação com drogas,

estar sendo alvo de comentários maliciosos, de assédio ou obstruído em sua busca de

objetivos de longo prazo. Os indivíduos com delírios persecutórios com freqüência sentem

ressentimento e raiva, podendo recorrer à violência contra aqueles que supostamente os

estão prejudicando. Especialmente com os Tipos Persecutório e Ciumento, podem ocorrer

acentuada raiva e comportamento violento. Assim aconteceu com Christine, que tinha um

delírio de perseguição da patroa - que vigiava tudo e que teria a intenção de separar as

irmãs-, mandando Lea trabalhar com Isabelle. Esses sentimentos dão vazão a essa raiva

acumulada num momento de extrema violência, assassinando seus “perseguidores” antes

que eles agissem.

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4. Uma nova construção baseada em reflexões diagnósticas

A dificuldade inicial em definir pelo menos uma das irmãs como psicótica nos

levou a cogitar uma nova possibilidade diagnóstica: uma “relação psicótica” em que

nenhuma das irmãs é psicótica, tendo em vista a dinâmica paranóide da relação. Pensamos

numa folie à deux em que nenhum do indivíduos apresenta um transtorno psicótico

autêntico (que seria um dos critérios apontados pelos manuais de diagnóstico psiquiátrico).

O CID-10 refere-se a um transtorno psicótico autêntico apresentado por apenas um dos

indivíduos, enquanto o DSM-IV refere-se a um “indutor” ou “caso primário”, que já tenha

um transtorno psicótico com delírios proeminentes; enquanto o outro indivíduo

compartilharia as crenças delirantes do caso primário.

Entretanto, se pensarmos em Christine como tendo uma estrutura perversa, esse

critério não seria satisfeito. A partir desse enquadramento, pensamos numa relação

psicótica, em que não há uma das irmãs que, isoladamente, apresentasse um quadro

psicótico, mas sim a junção das duas que daria vazão a uma relação com sintomas

psicóticos. Calligaris (1986) já apontava uma possibilidade de haver uma montagem

perversa em que os sujeitos envolvidos não precisariam necessariamente ser perversos:

Refiro-me à formação perversa, quer dizer, à complacência neurótica para

com a montagem perversa. Penso que haveria montagens perversas, que o

nosso laço social cotidiano seria uma montagem perversa, mesmo não

havendo perversos na estrutura. Não é necessário que haja dois perversos

na estrutura para que dois neuróticos façam um casal perverso – perverso

no sentido de formação e não de estrutura. (p. 17).

Assim, da mesma maneira que Calligaris pensou o perverso no sentido de formação

e de laço, aqui também pensamos uma relação psicótica em que os sujeitos envolvidos não

precisassem necessariamente ser psicóticos de estrutura, mas sim de formação, em que a

relação possui características de uma estrutura psicótica. Entre essas características, há o

isolamento social das duas. Elas não demonstram um embotamento afetivo, visto que

interagem emocionalmente e sexualmente uma com a outra. Entretanto, estão numa relação

onde são suficientes uma à outra, não interagindo em nenhuma outra relação interpessoal.

A paranóia construída nessa relação seria outra característica a destacar nessa visão, sendo

induzida pela irmã mais velha, Christine, e passivamente aceita pela mais nova, Lea.

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5. O Estado Mental

As alucinações são importantes alterações da senso percepção presentes no caso das

irmãs Papin. Elas podem ser caracterizadas como percepções de objetos ou de situações

sem que eles estejam, necessariamente, presentes. Nas alucinações, os objetos apresentam-

se com todas as características de uma percepção normal, de forma clara e definida (Ey,

1973, citado por Dalgalarrondo, 2000). Lea, numa cena do filme, vivencia um episódio de

alucinação visual. Quando ela está acordando, percebe uma mão retirando-a da casa onde

trabalha com a sua irmã. A percepção dessa mão persiste mesmo após Lea estar

plenamente acordada e de olhos abertos, cessando apenas depois de algum tempo.

Enquanto vivencia a alucinação, Lea parece bastante envolvida emocionalmente com a

situação que está percebendo, mostrando-se ansiosa e assustada.

A alucinação presente nesse episódio é do tipo hipnopômpica, pelo fato de esse

episódio dar-se na transição sono-vigília, num momento em que Lea acorda. Uma possível

explicação para essa vivência de alucinação é que Lea projeta no espaço externo o seu

medo de ser retirada da relação de extrema proximidade que possuía com a irmã. Esse

fenômeno faz parte de um processo defensivo calcado no mecanismo de projeção, através

do qual o indivíduo, inconscientemente, tenta expulsar do seu psiquismo representações

inaceitáveis à consciência (Dalgalarrondo, 2000).

As irmãs Papin também apresentam alterações do juízo de realidade (delírios), ou,

pelo menos, erros de juízo. É importante diferenciar esses dois fenômenos, pois os limites

entre um e outro são tênues. Um erro de juízo pode ser decorrente de um julgamento

apressado ou baseado em premissas falsas e não está relacionado, necessariamente, a uma

patologia. Uma forma de diferenciá-lo do delírio é confrontando-o com dados da realidade.

No delírio, o paciente, geralmente, apresenta convicção absoluta no seu juízo, não o

modificando através da experiência objetiva, da argumentação e de provas explícitas da

realidade. Embora os conteúdos delirantes sejam, bastante freqüentemente, impossíveis (ou

completamente distintos do contexto cultural em que o indivíduo está inserido), há casos

em que os delírios relatados pelos pacientes são verídicos. Em muitos desses casos, os

juízos podem ser considerados delírios, pois se constituem de uma forma patológica,

embora as experiências às quais estão relacionados ocorram de fato (Dalgalarrondo, 2000).

Apesar de haver uma dificuldade de diferenciação entre erro de juízo e delírio no

caso das irmãs Papin, já que não temos contato direto com Christine e com Lea, é possível

que elas apresentem delírios de perseguição e de ciúme. Nos delírios de perseguição,

Christine acredita que a sua patroa está implicando com o seu serviço sem motivos, além

de achar que a Sra. Lancelin mandará Lea trabalhar na casa de Isabelle após o seu

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casamento com o intuito de separar as irmãs. Os delírios de ciúme ocorrem por parte de

Christine e em relação à Isabelle e à mãe (Sra.Lancelin). No primeiro caso, Christine sofre

com a aproximação de Isabelle à Lea, ficando perturbada nos momentos em que as duas

estão juntas. Christine também acha que Lea irá trabalhar na casa de Isabelle após o seu

casamento. No segundo caso (delírio de ciúme em relação à mãe), Christine teme que o seu

relacionamento com a irmã seja rompido em função do amor de Lea pela mãe. Em várias

cenas do filme, é evidente a competição de Christine com a sua mãe pelo amor de Lea.

6. Como é enunciado

Falado pelo paciente

Pode-se perceber o aspecto psicopatológico das irmãs através da forma pela qual ambas

enunciam suas queixas. Sendo assim, Christine, em uma das cenas finais do filme,

expressa a seguinte queixa em relação à patroa e sua filha: “Ela e sua filha vêem coisas que

não existem”, referindo-se a costura que havia feito no vestido de Isabelle e que a patroa

falara que estava torta. Christine também se queixa, no decorrer do filme, de sua mãe,

demonstrando, ao mesmo tempo, ciúmes da relação de Lea com a mãe. “A mãe nunca me

pegava no colo, ela não gostava do meu choro. Tive que trabalhar cedo porque ela

recusava-se a me dar dinheiro. Cada vez que eu me acostumava com um lugar, ela me

mudava. Mas com você é diferente, ela sempre te amou”.

Além disso, Christine critica a sua irmã mais velha, Verônica, alegando que esta a teria

abandonado. Lea, por sua vez, demonstra a sua angustia em relação à patroa apenas em

uma cena do filme. Nesse episódio, as duas irmãs chegam em casa e a patroa e sua filha

estão esperando por elas. As irmãs, silenciosamente, sobem para seu quarto, e Lea,

posteriormente, comenta com Christine: “Eu não agüentaria viver nessa casa

sozinha...quando nós chegamos a patroa estava nos esperando...fiquei com muito medo”.

Descrito pelo psicopatológico

Nasio concentra sua análise em Christine, por ser esta o elemento ativo. Para definir

sua personalidade, o autor coloca: “Seria tentador dizer, para qualificar sua

personalidade, que elas eram, em primeiro lugar, as filhas de Clémence, sua mãe, e

objetos exclusivos dessa posse”. Salienta a estranheza do fato de essa mãe não ter as

criado, mas sim, as internado e mudado de lugar a seu critério, durante toda infância e

adolescência, até que as duas fossem trabalhar para a Senhora Lancelin. Sobre este

comportamento da mãe ele coloca: “É nosso entendimento que, com isso, ela procurava

certificar-se repetidamente de seu domínio sobre as filhas, de seu direito de vigiá-las, a

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elas que, em todas as situações, deveriam continuar-lhe ‘submissas’”. O autor salienta que

através de cartas que Clémence enviou as filhas foi possível constatar que a mãe tinha um

mecanismo de ação delirante de caráter persecutório.

Voltando as irmãs, ele lembra que, desde a separação da irmã mais velha, Verônica,

Christine sentia saudade daquele amor e por isso investiu toda sua afeição na irmã caçula,

Lea, que tinha então dezesseis anos. Christine queria Lea sempre ao seu lado, tanto que

após algumas semanas, pediu que a Senhora Lancelin a contratasse.

O autor diz que três episódios iriam desatar a tragédia, sendo eles:

Primeiro - O autor traz a versão de que as irmãs teriam deixado de dar seus salários

a mãe (Clémence) por uma intervenção da patroa, que estava preocupada com elas. Lea e

Christine teriam acolhido este gesto com afeição e devido a isso começariam a se referir a

Senhora Lancelin, entre elas, como ‘mamãe’.

Segundo – Nasio acredita que o rompimento súbito e definitivo com Clémence foi

definitivo na medida que a partir daí, a senhora Lancelin ocupou todo o espaço materno.

Terceiro – Um dia as irmãs se dirigiram à prefeitura, quando a senhora Lancelin

estava de férias, e fizeram o seguinte pedido ao prefeito: fazer com que Lea fosse

emancipada. Mas elas não sabiam dizer de quê e de quem. O prefeito, confuso, teria as

encaminhado para o comissariado central. Lá elas se disseram perseguidas pelo prefeito.

Como fatores desencadeantes do crime, Nasio traz primeiro a tentativa de romper o

vinculo materno, segundo a transferência desse vínculo materno para a futura vítima e

ainda o próprio olhar: “Christine encenava sua posição de ‘boa mãe’ sob o olhar da

senhora Lancelin, que se tornou perseguidora, como fora Clémence (...) o olhar da patroa

tinha importância capital. Era ele que sustentava toda a cena(...) Dali em diante, tudo

dependeria do que fosse lido no olhar da patroa: Christine estava de ‘olho’ na senhora

Lancelin.”

Nasio trabalha com a dinâmica paranóide do crime, trazendo que um dos modos de

funcionamento característicos dessa patologia é a “reciprocidade, a reversibilidade. Se eu

amo, digo que é ele que me ama”. A passagem ao ato teria se dado quando um olhar da

patroa, lido como “vocês não prestam para nada”, significou mais que uma perseguição:

“ ‘pra nada’ englobava a posição materna de Christine em relação a Lea, essa outra que

de repente, viu-se sujeita a todas as ameaças. Mas não foi só isso. Foi não apenas uma

anulação da cena montada por Christine - o desmoramento de seu universo -, como

também uma anulação da identidade que ela havia fabricado para si e que só decorria

dessa montagem. Com isso, ela foi negada em sua condição de sujeito, remetida ao nada

de seu ser, a um dejeto. O acionamento da pulsão criminosa apareceu como uma tentativa

21

de retomada da consistência do ser. (...) Daí a subtaneidade do ataque”. Nasio traz ainda

que a sensação que Christine teve de que a patroa a estava ‘matando pelo olhar’

desencadeou reciprocamente o seguinte:“eu mato seu olhar”. Nasio traz ainda que tempos

após o crime, na prisão, Christine disse que não prestava para nada, que tinha que morrer, o

que confirmaria que o “imprestável”, lido no olhar da patroa, tinha ressoado de fato como

uma sentença de morte.

Nasio comenta haver condições necessárias para que o delírio a dois aconteça

efetivamente, sendo elas: haver dois sujeitos presentes, sendo um ativo e outro passivo; é

necessário ainda que estes dois indivíduos vivam num mesmo meio durante um longo

período, cultivando os mesmos interesses, apreensões e esperanças, estando surdos a

influências externas; a verossimilhança do delírio, de forma que quanto mais o delírio se

mantiver dentro de limites aceitáveis, mais fácil será seu contágio. O mais fraco só entraria

nessa loucura a dois na medida que “a história o concerne pessoalmente e quando sua

inteligência não se rebela”. Assim, o delírio a dois de Christine e Lea teria se instalado

bem no cerne do crime. Nasio ainda complementa: “Se a mais velha não houvesse tomado

a caçula por seu duplo, provavelmente o crime não teria ocorrido. Mas teria tido ainda

menos probabilidade de se produzir se a loucura da mãe não houvesse gerado a loucura

da filha”.

Já Roudinesco (1988), trabalha com a análise de Lacan do caso. Assinala que como

Lacan não pôde ele próprio examinar as irmãs, evitou analisá-las demasiadamente.

Entretanto, Lacan trabalha com alguns detalhes que permitiriam situar o crime na categoria

de paranóia. Este autor traz a hipótese de Lacan de que a obscuridade que se manifestou

naquele dia pelo defeito na iluminação elétrica pode também remeter a uma outra

obscuridade, mais simbólica, em que “A corrente não passa” entre os dois grupos de

criadas e patroas, “Porque as pessoas não se falam”. Ele cita Lacan: “Esse silêncio, no

entanto, não poderia ser vazio, mesmo que fosse obscuro para os próprios atores”.

Lacan trabalhou a idéia de que a homossexualidade latente testemunhou igualmente

a atuação da atitude criminal. Seu sentido apareceria depois, quando Christine se declararia

marido de Lea e assim revelaria “o fenômeno do delírio a dois e a característica de uma

pulsão dirigida para duas outras mulheres, uma das quais é mãe ou ‘mais velha’ do que a

outra”. As irmãs Papin mataram as senhoras Lancelin por estas representarem seu ideal de

ego.

A questão da castração seria analisada da seguinte forma: “As irmãs desnudam o

sexo da filha da patroa para, como disse Christine, ‘possuir’ algo que não existe, mas que

traria o vestígio de uma onipotência fálica. Assim, em sua afiliação, elas arrancam os

22

olhos de quem admiram, ao mesmo tempo para destruir seu próprio sofrimento na vida e

para produzir na realidade uma solução sangrenta para o enigma da castração feminina”.

Lacan, pela primeira vez na França, formula uma hipótese que será só tardiamente

reconhecida, em 1968, que não dá razão nem àqueles que acreditam na irresponsabilidade

dos loucos em crimes nem nos que acreditam na responsabilidade: “Explicar um crime não

é nem perdoá-lo nem condená-lo, nem puni-lo, nem aceitá-lo. É, ao contrário, irrealizá-lo,

ou seja, restituir-lhe sua dimensão imaginária e, depois, simbólica. Dentro dessa ótica, se

um criminoso é louco, nem por isso ele é um monstro reduzido a instintos assassinos”.

Dessa forma, Lacan mostra que “o louco não é irresponsável quanto aos seus atos, já que

a loucura é a realidade alienada do homem, e não o avesso de uma razão ilusória”.

Assim, Lacan irrealiza o crime sem desumanizar o criminoso: “o crime paranóico não tem

como causa o ódio das classes ou a vingança do guerreiro, mas sim a estrutura psicótica

através da qual o assassino golpeia o ideal do senhor que traz em si, obedecendo, sem que

o saiba, ao imperativo da ‘realidade alienada’”.

CONCLUSÃO

Em primeiro lugar, o grupo acredita que o grande mérito da realização desse

trabalho consiste no aprendizado adquirido a respeito das estruturas clínicas e das

classificações do CID e do DSM. Esse aprendizado foi muito importante, uma vez que foi,

praticamente, o primeiro contato que o grupo teve com o CID, com o DSM e com as

estruturas clínicas em toda a sua formação acadêmica, já que, até então, nenhuma outra

disciplina proporcionou tal conhecimento.

Além disso, o fato de a proposta de trabalho ter se dado a partir do interesse dos

alunos por filmes, livros ou casos verídicos estimulou não só esse grupo, mas

provavelmente toda a turma a se empenhar em um entendimento aprofundado do caso

escolhido. Da mesma forma, a escolha do grupo por um caso verídico conferiu ao trabalho

uma proposta de caráter mais prático, não se restringindo apenas a um estudo detalhado e

extenso, composto somente por teorias. Essa integração teórico-prática ocorreu ainda de

forma dialética, ou seja, houve um constantemente movimento de modificação do caso a

partir da teoria e, ao mesmo tempo, uma modificação do entendimento teórico do grupo a

partir do caso. Nesse sentido, durante o desenvolvimento do trabalho, houve um diálogo

constante da teoria com a prática (o caso), onde ambas se modificavam mutuamente.

Esse trabalho, especificamente, por abordar um caso verídico e já estudado por

diversos intelectuais, possibilitou que o grupo questionasse ou fosse além do que já foi

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produzido. Ao pensarmos na trajetória da confecção deste trabalho, reconhecemos que

houve um grande aprofundamento quanto ao estudo do diagnóstico estrutural que,

provavelmente, transcendeu o que a proposta da disciplina demandava. Nesse sentido, o

grupo ficou muito satisfeito com a supervisão recebida dos professores e dos monitores

que, ao longo do semestre, mostraram-se sempre abertos às hipóteses do grupo, mesmo

quando estas questionavam o que já fora produzido por grandes teóricos.

Dessa forma, a constituição do presente trabalho foi marcada pelo exercício

reflexivo, o que nos permitiu pensar em diversas possibilidades diagnósticas a partir da

exploração de dados restritos, mesmo nos deparando com algumas limitações. Entre essas

limitações está o fato de o diagnóstico ter sido construído na ausência das relações

transferências terapeuta-analista, já que o estudo estrutural de caso foi feito a partir da

observação de um filme e não em um contexto de análise, onde a transferência entre o

paciente e o terapeuta é decisiva para a construção do diagnóstico. A respeito disso, o

grupo pôde concluir que, para um mesmo caso, muitos são os diagnósticos estruturais

possíveis, não havendo um diagnóstico estrutural certo ou errado. Entretanto, uma

consistente fundamentação e argumentação para justificar a escolha por essa ou aquela

hipótese diagnóstica faz-se fundamental em qualquer caso – tanto em nível de exercício e

treino quanto em se tratando de nossos futuros atendimentos reais.

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