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Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Psicopatologia I
Professores Marta D’Agord e Volmir dos Santos
Etiene Silveira Ortmann, Fernanda Schmitt Ribeiro, Gabriela Damasceno Ferreira,
Joana Horst Regina e Thiago Spillari Souza
O CASO DAS IRMÃS PAPIN
Resumo do filme “Entre Elas” / “Sister my Sister”
O filme inicia mostrando duas crianças pequenas brincando - possivelmente Lea e
Christine – e, em seguida, a mãe delas chega e pega uma das crianças no colo (Lea),
separando-as. Após, aparecem cenas na casa da Senhora Lancelin que mostram a
conseqüência do sangrento crime realizado pelas irmãs Christine e Lea Papin à Sra. e à
Srta. Lancelin. Estas últimas serão referidas nesse trabalho como mãe e filha,
respectivamente.
Logo em seguida, Christine aparece trabalhando na casa da Senhora Lancelin. Lea
bate à porta da casa e Christine vai atender. As duas irmãs se abraçam muito. Christine
leva Lea até sua patroa e a Sra. Lancelin lê as referências de Lea. A Senhora Lancelin,
então, contrata Lea, dizendo que aceitará ficar com as duas. A patroa estabelece as regras
de trabalho e explica que, nos domingos, terão direito à folga até às 16 horas.
As duas sobem e vão para o quarto. Lea fica muito feliz ao saber que as duas
ficarão no mesmo quarto e pergunta a Christine como ela havia conseguido que a patroa
permitisse isso. Christine responde que ela havia dito à patroa que elas não precisariam
mais do que um cantinho. Um detalhe importante é que nesse quarto só havia uma cama,
um pouco maior do que uma cama de solteiro.
Paralelamente, a patroa pergunta à sua filha o que ela havia achado de Lea. A filha
não responde. A mãe, então, diz que ela interessa-se pela sua opinião e fala que as suas
amigas sentirão muita inveja delas, pois têm duas empregadas pelo preço de uma. Além
disso, elas seriam suas costureiras também.
Segue uma cena onde as irmãs servem o almoço. Antes de Lea sair da cozinha com
o prato de comida, estava bastante nervosa. Ela vai à mesa e serve a patroa e a sua filha. As
duas, principalmente a mãe, encaram Lea muito firmemente, enquanto ela as serve de
cabeça baixa. Quando Lea retorna à cozinha, a mãe prova a comida e diz que está
maravilhosa, que é a melhor vitela que já comeu. Diz, ainda, que esta é a melhor cozinheira
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que já teve. A patroa repete à filha que suas amigas ficarão com inveja, e que não pode
esperar para oferecer um jantar em sua casa. Comenta, então, que têm duas pérolas em
casa. Quando Lea retorna à cozinha, Christine a elogia, dizendo que ela havia feito tudo
certo, e lhe diz que percebeu, através da expressão da Sra Lancelin, que ela ficara muito
satisfeita.
Depois aparece uma cena em que Lea e Christine estão organizando a cozinha, e
Lea diz a Christine que se sente assustada com a patroa, devido à forma como é observada
pela Sra. Lancelin e à forma como tem o seu trabalho verificado por ela. Christine diz que
não se sente assim, que gosta disso, e comenta: “Afinal, essa é a sua casa, e ela tem que
zelar por ela”. Diz que a patroa sabe o seu lugar, e que não atrapalha seu trabalho, apenas
checa tudo ostensivamente.
Após, uma cena é mostrada onde aparece a patroa com uma luva branca checando
os móveis dos cômodos da casa para ver se ainda há poeira. Ela encontra sujeira em uma
parte do corrimão da escada e apenas dá o pano a Lea, sem olhá-la nos olhos. Lea,
imediatamente, agacha-se e limpa o corrimão. Mais tarde, a Senhora Lancelin faz um chá
em sua casa para suas amigas. Lea serve as convidadas, que a olham bem firmemente, a
cada passo. Quando Lea retorna à cozinha, Christine novamente a elogia.
Aparece uma cena das irmãs dormindo e o galo cantando. Christine pula
rapidamente da cama e se veste. Então começa a dizer que Lea tem que levantar. Ela
resmunga um pouco e Christine a descobre. Lea acorda e senta-se na cama. Lea pede a
Christine que conte uma história antes de descerem. Christine começa a contar, e Lea diz
que ela está contando muito rápido, pedindo, em seguida, que ela conte mais devagar.
Christine sorri, pega a escova de cabelo e começa a pentear o cabelo de Lea enquanto
conta a história.
A história que Christine conta era uma cena da infância das duas, quando uma
carruagem estava prestes a atropelar Lea. Christine vem correndo e empurra Lea, e as duas
caem juntas no chão, na lama. As duas fizeram um machucado que começa no braço da
mais velha e segue no pulso da mais nova. As duas colocam seus antebraços colados e
olham para as cicatrizes, mostrando como elas complementam-se perfeitamente. Christine
conta que uma cigana havia lhes dito que estariam unidas pela vida toda, pelo sangue -
parte da história que Lea pede a Christine, entusiasmadamente, que repita.
Aos domingo, as duas iam encontrar sua mãe, e sempre lhe levavam dinheiro. Em
um domingo, porém, Christine começa a se queixar, dizendo a Lea que, quando era
pequena, a mãe delas odiava seu choro e logo a abandonou. Conta que teve que trabalhar,
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ganhar dinheiro e que a mãe pegou tudo. Ela fala a Lea que cada vez que se acostumava
com algum lugar, sua mãe a mudava para outro.
Num outro dia, chega uma carta da mãe delas a Lea, na qual a mãe pede que Lea
arrume seu cabelo, que não o use mais solto, como costumava. Pede que Lea peça ajuda a
Christine para isso, mas que fale para a irmã ser gentil. Christine vê a carta e começa a
brigar com Lea, gritando com ela. Pega Lea, coloca-a na frente do espelho e, com suas
mãos, faz bruscamente o penteado que sua mãe queria que Lea fizesse. Gritando, Christine
pergunta a Lea se é assim que ela quer. Lea, chorando, grita que não, que não gosta do
cabelo com aquele penteado.
No domingo seguinte, Christine diz que não vão levar todo o dinheiro para a mãe.
Lea fica em silêncio, mostrando-se um pouco contrariada, mas Christine tira uma quantia
do dinheiro e guarda. Lea não fala mais nada. Quando voltam do encontro com a mãe,
aparece uma cena em que Lea está triste; Christine lhe diz que a mãe a perdoará, pois a
ama, sempre a amou. Christine propõe a Lea que elas fiquem com o dinheiro e diz que, se
ela aceitar, poderá escolher o que quiser para fazer com o dinheiro. Lea repete: “O que
quiser?”, e Christine afirma que sim. A partir desse momento, as duas não vão mais ao
encontro da mãe aos domingos. Após, em outra cena, Lea seduz Christine, e as duas têm
uma relação sexual. Lea mostra-se muito erotizada e, ao mesmo tempo, infantil.
Ocorre uma cena com as patroas em que a filha está de aniversário. Quem está na
mesa é apenas a mãe e a filha, além das criadas, que estão ao redor. A mãe coloca uma
ópera, canta os parabéns, apaga a vela pela filha e abre o presente que havia comprado para
ela: um porta-retrato com a fotografia das duas. A filha está com uma cara patética o tempo
todo, provavelmente odiando a comemoração.
Depois disso, Christine e Lea procuram um fotógrafo e tiram a mesma foto que as
patroas haviam tirado. O fotógrafo tenta conversar com as duas; Christine é ríspida e Lea é
simpática. O fotógrafo, então, pergunta se elas são gêmeas e elas respondem que não, que
têm cinco anos de diferença, sendo Lea a mais nova. O fotógrafo comenta que Lea deve ser
a preferida da mãe. Christine parece não gostar do comentário.
De volta a casa, Lea está limpando os móveis da sala e a filha da patroa, Isabelle,
esta ali também. Ela come um chocolate e dá um para Lea. Depois se dirige a Lea e lhe dá
uma escova, sentando-se à frente para que Lea a penteie. Christine vê a cena e fica
enfurecida. A Senhora Lancelin também vê a cena e chega dando uma ordem a Lea, que se
retira.
As irmãs aparecem depois no quarto e discutem. Christine diz que, quando a filha
da Senhora Lancelin se casar, ela vai querer levar Lea com ela. Christine afirma que Lea é
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tudo que tem e tudo que terá na vida. Começa a chorar e Lea diz que não vai abandoná-la.
Christine conta, então, sobre sua irmã mais velha, Verônica, e fala que ela a abandonou.
Christine fala de uma cena em que tentava abraçar a irmã e a mesma virou-se de costas e
foi embora. Neste momento, Lea propõe a Christine fingir que ela, Lea, é a irmã mais
velha. Lea coloca um pano em sua cabeça, para ficar mais parecida com uma freira, e as
duas fazem uma encenação.
Depois que as irmãs começam a manter relações sexuais e de maior intimidade,
ocorrem falhas quanto aos cuidados da casa. Por diversas vezes, a patroa comenta com a
filha que não sabe o que está acontecendo com as irmãs, as quais, por exemplo, andavam
salgando demais a comida. Em uma ocasião, a patroa comenta com a filha que não sabe
mais o que tanto elas fazem naquele quarto, pois já fazia meses que não iam mais se
encontrar com a mãe aos domingos, nem iam à missa, apenas permanecendo trancadas no
quarto. Outro fato que desagradou à patroa foi quando o ferro de passar roupa estragou, e
ela disse que descontaria do salário delas.
Em uma outra cena, as irmãs estão medindo o vestido de casamento da Senhorita
Lancelin. A mesma está em cima de uma cadeira, usando vestido; a sua mãe está atrás,
dizendo como queria que as duas irmãs cortassem o vestido. As duas irmãs estavam
agachadas à frente da Senhorita Lancelin, medindo e cortando o vestido em algumas
partes. Lea e a filha da patroa trocam olhares e Christine e a Senhora Lancelin ficam
enciumadas, e começam a brigar entre si. A senhora Lancelin diz a Christine que dá
próxima vez terá de procurar uma costureira, pois elas estavam fazendo tudo errado. As
duas sobem para o quarto, e Christine diz que não tinha cometido nenhum erro, pois não
achava que havia cortado o vestido errado. Christine, então, diz a Lea que a filha da patroa
quer lhe roubar dela, pois quando casar vai levá-la com ela. Lea diz que nem sabem se
realmente a Senhorita Lancelin vai casar mesmo, uma vez que essa história estava se
enrolando havia anos. Christine diz que Lea é tudo para ela e que não suportaria perdê-la.
Num fim de tarde, a Senhora e a Senhorita Lancelin vão comprar coisas no
mercado enquanto as irmãs estão em casa trabalhando. Lea está passando a roupa que a
Senhorita Lancelin usará num jantar à noite, quando o ferro queima novamente, queimando
a roupa da filha da patroa e deixando sua casa sem luz. Lea grita por Christine quando isso
acontece, e ela assusta-se, tanto que o copo que estava lavando quebra em suas mãos.
Christine sai correndo e Lea lhe conta o que aconteceu, aterrorizada com o que a patroa
poderia fazer a elas.
Elas, então, ficam no quarto até que ouvem o barulho das patroas retornando. Ao
entrarem em casa, a mãe diz à filha que está sentindo cheiro de queimado, e diz que não é
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possível que tenham queimado novamente o ferro. A casa está toda escura e a patroa fica
enfurecida, não entendendo o que está acontecendo. A filha vai à cozinha para ver se
encontra as criadas, e apenas vê o copo quebrado. A mãe começa a subir a escada. Ao
mesmo tempo, no quarto, Christine diz a Lea que vai descer, pois se não o fizer elas
subirão primeiro. Lea pede que Christine não vá, mas ela diz que tem que ir, e sai.
Descabelada, Christine aparece, e a patroa começa a gritar com ela, perguntando o que
estava acontecendo. A Sra Lancelin alega que elas haviam deixado a sua casa às escuras, e
pergunta que cheiro de queimado era aquele. Christine, muito nervosa, responde que o
ferro queimou, mas que não havia sido culpa da irmã. A Senhora Lancelin diz que é um
absurdo e lhe pergunta se a blusa foi queimada. A discussão fica pior, e Christine pede para
que a patroa pare, muito nervosa. A patroa segue falando muitas coisas e Christine diz que
elas vão embora. Nesse momento, a Senhora Lancelin ri de Christine e lhe diz que não
teriam para onde ir, pois não haveria quem que as abrigassem. Neste meio tempo, Lea
aparece, descabelada também. A patroa grita: “O que abriguei aqui meu Deus?”.
A Senhora Lancelin cospe no rosto de Christine, e Christine ataca a patroa,
arrancando os olhos dela. Neste momento, Lea ataca a filha da patroa. As duas cometem
atrocidades com a senhora e senhorita Lancelin: arrancam os olhos, tiram os dentes,
perfuram com uma faca as regiões inferiores das duas, especialmente as nádegas. Após o
assassinato, as irmãs lavam bem as mãos. Quando a polícia chega, encontra as duas
peladas e abraçadas em cima da cama.
O filme conta que Lea pegou vinte anos de prisão e Christine foi condenada à
guilhotina, mas teve sua pena abrandada e foi para o manicômio, onde morreu depois de
quatro anos.
1. O Processo
Neste trabalho, entende-se por processo a dinâmica das experiências de vida das
duas irmãs que resultaram na expressão dos traços de personalidade, dos sintomas e das
defesas psíquicas encontrados a partir da análise do caso das irmãs Papin. A partir dessa
formulação de processo, identificamos alguns traços de personalidade nas irmãs Papin. No
que diz respeito à irmã mais velha, Christine, observamos que ela tinha um cuidado
excessivo em relação à sua irmã mais nova – Lea. Havia uma preocupação de Christine em
proteger, cuidar, amar, afagar, orientar e suprir as necessidades de Lea - de forma muito
semelhante a um amor maternal. Além disso, Christine apresentava-se perfeccionista - não
admitindo nenhuma falta ou falha no trabalho – e muito discreta em relação à vida das
patroas - traços que eram muito admirados por sua patroa. Ainda sobre o seu
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relacionamento com Lea, Christine mostrava-se muito persuasiva, influenciando
diretamente as percepções e as opiniões da sua irmã.
Lea apresentava-se um pouco diferente. Sua personalidade era marcada por uma
passividade em relação à vontade da sua irmã. Além disso, era notável a sua infantilização
na relação com a irmã, quando, por exemplo, Lea pedia para Christine contar-lhe histórias
e arrumar o seu cabelo. Outra característica marcante de Lea é a sua preocupação constante
em agradar a irmã, muitas vezes assumindo e compartilhando algumas percepções. Um
exemplo claro dessa posição de Lea ocorre em uma cena do filme em que Christine
demonstra uma mágoa em relação à irmã Verônica, a mais velha das três, por esta não lhe
amar como ela gostaria. Lea, em seguida, veste-se de maneira igual à Verônica e, fingindo
ser ela, tenta suprir o cuidado e o amor que Christine não recebeu.
As irmãs eram consideradas empregadas perfeitas, descritas pela patroa como
“verdadeiras pérolas” e “criadas-modelo”. Algumas características presentes em ambas as
irmãs eram limpeza, honestidade e conhecimento amplo dos seus serviços.
Silenciosamente, elas trabalhavam bem e duramente o dia inteiro, dispondo de apenas
algumas horas para descansar. As duas irmãs eram resistentes a qualquer forma de censura
ou de observação por parte da patroa. Christine e Lea não suportavam receber ordens. Isso
era ainda mais visível no caso de Christine, que, com seu jeito mais altivo e desconfiado,
não admitia receber quaisquer repreensões advindas da mãe ou da patroa. Pode-se observar
isso em uma cena em que Christine estava costurando a bainha de um vestido para a filha
da patroa com o auxílio de Lea. Ao receber críticas da patroa em relação ao seu trabalho,
Christine fica perturbada, o que a leva a estragar o vestido. Logo em seguida, Christine
sobe para o seu quarto, brava, e reclama da patroa para Lea, comentando que ela estava
costurando perfeitamente e que a patroa estava implicando com ela sem motivos. Lea,
inicialmente, discorda da irmã, mas, após a argumentação de Christine, acaba convencida
de que o trabalho estava sendo, realmente, bem feito.
Quanto aos sintomas da relação entre as irmãs, pôde ser observado um isolamento
social de Christine e de Lea, que, não possuindo amigos ou namorados, preferiam refugiar-
se no seu quarto, o qual era denominado pelas duas como “nossa casinha”. Também
observamos delírios de perseguição em relação à patroa. Nesse tipo de delírio, Christine
sente-se perseguida pela patroa, acreditando que ela implicava com o seu serviço sem
motivos, e que iria mandar Lea trabalhar na casa de Isabelle após o seu casamento. Sendo
assim, a ameaça de separação torna-se real aos olhos de Christine. Entendemos que se trata
de um delírio, pois mesmo as atitudes da patroa correspondendo, de fato, ao conteúdo do
delírio – a patroa realmente averiguava obsessivamente a execução das tarefas domésticas -
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, Christine as percebia de forma patológica. Há um exagero e uma interpretação enviesada
dessas atitudes, entendidas como persecutórias e invasivas, indo além dos assuntos
domésticos. Além disso, percebemos que os delírios foram constituídos ao longo do filme,
mas tiveram o seu apogeu no final, quando a patroa, ao saber de mais uma das falhas das
irmãs no que diz respeito às tarefas da casa, ameaça demiti-las e diz que, com isso, as duas
iriam se separar. Esse episódio culminou com o assassinato da patroa e da sua filha pelas
irmãs Papin.
Há também delírios de ciúme, tanto em relação à mãe (medo da perda de Lea para
a mãe) quanto em relação à Isabelle (medo da relação de Lea com ela). O delírio de ciúme
em relação à mãe manifestava-se como uma ameaça de rompimento do relacionamento das
duas irmãs. Ele pode ser observado nas cenas em que Christine dizia para Lea não dar mais
dinheiro à mãe e que ela não devia arrumar o seu cabelo da forma como a mãe queria.
Além disso, nota-se, durante toda a história, a indisposição de Christine em ter de visitar a
mãe aos domingos, tentando sempre convencer a irmã de que elas não precisariam mais
fazer isso. Christine propunha a Lea passeios somente entre as duas, o que, posteriormente,
foi aceito por Lea.
Esses delírios de ciúme em relação à mãe ocorrem, justamente, pelo fato de o
relacionamento das irmãs ser caracterizado pelo cuidado maternal de Christine e pela
demanda infantil de Lea. Assim, percebe-se que, no delírio, a mãe competia, de alguma
forma, com Christine. Isso se mostrou bem claro quando a mãe sugeriu que Lea mudasse o
seu penteado, o qual, até então, agradava Christine. Esta, ao saber do pedido da mãe, ficou
enfurecida, acalmando-se apenas quando Lea lhe prometeu que continuaria usando o
penteado que lhe agradava. No caso dos delírios de ciúme em relação à Isabelle,
verificamos que eles ocorreram posteriormente, quando Isabelle, que tinha uma idade bem
próxima à de Lea, começou a se aproximar desta. Em uma cena, por exemplo, Christine
ficou muito perturbada com uma troca de olhares entre as duas. Em outra, ela derrubou
pratos na cozinha ao ver Lea penteando o cabelo de Isabelle.
Com relação a defesas do ego, apenas uma pode ser observada intensamente: a
projeção. A projeção é uma operação através da qual o sujeito expulsa de si e localiza no
outro (pessoa ou coisa) qualidades, sentimentos, desejos e mesmo “objetos” que ele
desconhece ou recusa nele (Laplanche, 1991). É possível que a percepção de Christine em
relação a sua patroa, a qual era vista como muito exigente e perfeccionista, na verdade, se
desse em função de uma característica sua projetada na senhora Lancelin. Lea, por outro
lado, é bastante exigente consigo mesma, tendo um cuidado excessivo na realização das
tarefas domésticas. Não conseguindo, entretanto, executar as tarefas com total perfeição,
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ela utiliza-se do mecanismo de idealização, vendo a irmã como um protótipo da perfeição.
Em uma cena, Christine mostra o enxoval que está fazendo para Lea, e esta diz “Ahh, que
bonito Christine. Ninguém costura tão bem como você. É realmente lindo”.
Em termos de mecanismos de defesas, pode-se pensar também na identificação.
Christine identifica-se com a patroa e Lea com Isabelle. Elas reproduzem o modelo mãe e
filha, onde Isabelle é subjugada à mãe, não conseguindo articular o seu próprio desejo.
Pode-se pensar que, na dupla Christine-Lea, a mais nova também não consegue expressar o
seu próprio desejo, submetendo-se ao desejo da irmã. Como exemplo disso, em uma cena
do filme, Lea está separando o dinheiro para dar a sua mãe, quando Christine retira uma
parte da quantia, alegando “a mãe não precisa ficar com tudo...nós podemos guardar um
pouco”. Lea, embora demonstre insatisfação com a atitude da irmã, permanece em silêncio,
conformando-se.
2. Estrutura
O diagnóstico estrutural deve ser dado em função da relação transferencial
estabelecida entre o paciente e o terapeuta, ou seja, esse deve ocorrer a partir do lugar no
qual o paciente, através do seu discurso, coloca o terapeuta. Entretanto, como não estamos
abordando esse estudo de caso a partir de um paciente real, mas sim através de um filme,
torna-se impossível definir um diagnóstico levando em consideração a relação
transferencial paciente-terapeuta. Dessa forma, as nossas hipóteses diagnósticas se baseiam
na posição em que o sujeito analisado se coloca frente ao outro.
Sendo assim, uma das hipóteses de diagnóstico estrutural defendida pelo grupo para
Christine é a de uma estrutura perversa, se pensarmos na maneira como ela se posiciona
em relação à sua irmã, Lea. Observamos que, na interação com Lea, Christine tenta
colocar-se no lugar da mãe, agindo de forma maternal – excessivamente carinhosa e
protetora. Ao longo do filme isso ficou evidente, como em uma cena, por exemplo, em
que Christine arruma o cabelo da irmã como se fosse sua mãe. Em outra, conta historinhas
para a irmã. O que nos chamou a atenção foi a posição infantilizada na qual Lea se coloca,
e a forma com que Christine aproveita essa demanda de carinho e de proteção para assumir
a posição de mãe.
A perversão se dá, então, porque Christine coloca-se em uma relação fora do seu
lugar de irmã na constituição familiar, subvertendo uma ordem e objetalizando Lea. Assim,
Christine, mesmo tendo o conhecimento da lei familiar, ignora-a, fingindo desconhece-la.
Além disso, há ainda a transgressão a uma Lei que funda e mantém o social: a lei do
incesto. Segundo Roudinesco (1998), o incesto pode ser entendido como uma relação
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sexual, sem constrangimento nem violação, entre parentes consangüíneos e adultos. O
primeiro grau de parentesco é o que a lei caracteriza como incesto, ou seja, entre mãe e
filho, pai e filho, irmã e irmão. Dessa forma, além de burlar a lei da ordem familiar, as
duas irmãs também transgridem a lei do incesto.
Na verdade, conforme expõe Calligaris (1986), o sujeito perverso faz do outro
antes um instrumento do que um objeto para a sua montagem perversa. Entretanto, o mais
importante é que nessa montagem ele sabe que esse lugar, de fato, não é seu, mas mesmo
assim o usurpa. Da mesma forma, na dinâmica edípica, o perverso toma o lugar do pai, ou
seja, ele apropria-se do saber suposto ao pai (saber que dá conta do desejo da mãe
primordial – Outro), utilizando esse saber para sua satisfação. A instrumentalização da
irmã mais nova ocorre quando Christine anula o sujeito em Lea, considerando o desejo da
irmã apenas quando este vai ao encontro de suas próprias vontades.
Ao mesmo tempo em que Lea é o instrumento, Christine é quem detém o saber
sobre como utilizá-la como instrumento para a sua própria satisfação. Nesse sentido, um
traço bem marcante de Christine é a sua persuasão, pois percebemos, no decorrer do filme,
uma grande capacidade argumentativa de Christine, que faz com que os desejos de Lea
acabem sempre atrelados à sua vontade. Sendo assim, Christine apropria-se de um saber
suposto para utilizar o desejo de Lea por uma figura materna como instrumento para a sua
montagem perversa, ou seja, como meio para a inversão da lei familiar e para o
estabelecimento do incesto.
Segundo Dor (1991), o perverso, ao desmentir a castração, reconhece que existe a
real diferença dos sexos, entretanto, recusa-se a aceitar as implicações dessa diferença.
Como conseqüência, a causa do desejo do perverso não se dá no reconhecimento e
aceitação da diferença sexual, uma vez que esse não se assume como faltante. Sendo
assim, o perverso encontra o seu gozo na transgressão da Lei, já que a lei que o rege é a lei
do seu próprio desejo. A problemática do desafio na perversão é, na verdade, o desafio da
lei do pai. Isso ocorre, pois é a partir da lei do pai que o sujeito neurótico reconhece a lei
do desejo do outro. De modo contrário, como o perverso desafia a lei do pai,
conseqüentemente, ele transgride a lei do desejo do outro quando esta vai de encontro à lei
do seu próprio desejo.
No entanto, conforme sugere Dor (1991), o agir perverso só encontra o gozo por
meio de um terceiro cúmplice, que pode ser entendido como uma ameaça à castração, uma
vez que esta traz consigo a submissão à Lei. Assim, o cúmplice, estando submetido à Lei,
lembra o perverso, de alguma forma, de que essa Lei existe e garante, dessa forma, o seu
gozo. Percebemos, ao assistir o filme mais minuciosamente, que as irmãs Papin, após
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assumirem para si mesmas seu enlace conjugal, passam a trocar carícias não apenas em seu
quarto. Assim, as duas se expõem a uma possível descoberta por parte da patroa e da sua
filha do romance que as une. Há uma cena em específico em que Isabelle vê as duas irmãs
se acariciando na escada, entretanto, ela nada diz. Ao mesmo tempo, a senhora Lancelin
começa a desconfiar do que as duas ficam fazendo quando estão trancadas no quarto
durante todo o dia e, igualmente, nada fala. Nesse fragmento, percebe-se que há uma
convocação de Christine ao olhar de cumplicidade das patroas. Uma vez que o gozo do
perverso se dá na transgressão da Lei, é necessário que haja esse terceiro que saiba dessa
transgressão. Há, portanto, a necessidade do olhar de um cúmplice.
Entretanto, como nos coloca Dor (1991), esse cúmplice é silencioso, pois o
perverso, em sua estratégia, testemunha um possível segredo que, a qualquer momento,
pode ser revelado. Todavia, tal segredo é imaginário, e diz respeito à posição subjetiva do
neurótico, na qual ele está sempre em dívida, ou seja, sempre em falta com alguma coisa.
Através dessa ameaça de revelação, o perverso consegue manipular o seu cúmplice para
que ele se mantenha nessa posição de expectador do seu desafio à Lei e que, ao mesmo
tempo, nada possa falar. Desse modo, a Senhora Lancelin e sua filha, enquanto
testemunhavam a montagem perversa, nada podiam dizer, pois Christine detinha o saber
sobre um possível segredo que denunciaria as duas.
Por um lado, o grupo cogitou também a possibilidade de Christine ser psicótica,
mas tal possibilidade inicialmente foi descartada, uma vez que se Christine realmente o
fosse, ela agiria como a mãe de Lea, sem saber que não é. No seu delírio ela acharia que de
fato é a mãe de Lea e quando confrontada com a Lei (que para o psicótico não está
simbolizada), ou seja, quando a mãe presente assumisse seu lugar e confrontasse seu
delírio, Christine surtaria. Entretanto, não é isso que acontece. Christine consegue passar
alguns finais de semana junto de Lea e da mãe, sem surtar. Sendo então perversa, Christine
tenta burlar a lei ao fazer com que Lea se afaste da mãe, não a visitando mais, como de
costume, nos finais de semana.
Por outro lado, levando em consideração outros aspectos, pode-se pensar que
Christine tenha uma estrutura psicótica. O delírio paranóico de que a patroa estaria sempre
as vigiando sustenta a possibilidade de tal estrutura. É importante ressaltar que, segundo
Nasio (1991), esse delírio é caracterizado por um modo peculiar de funcionamento: o da
reversibilidade ou reciprocidade. Assim, o psicótico paranóico atuaria em um jogo de
espelhos – se ele odeia alguém, diz que esse alguém o odeia. No caso das irmãs Papin,
podemos perceber esse modo de funcionar quando elas convocam o olhar da patroa sobre
suas tarefas, e, ao mesmo tempo, se sentem perseguidas diariamente. Uma das falas de
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Christine é a seguinte: “Eu gosto da meticulosidade e do cuidado da patroa em verificar o
nosso trabalho. Ela não interfere, não entra na cozinha, por exemplo”. Essa reciprocidade
também pode ser percebida quando, no momento do crime, a patroa ameaça destruir as
duas e, imediatamente, Christine se avança nela. Provavelmente o raciocínio de Christine
tenha sido o seguinte: “Se tu queres me destruir, eu te destruo antes”.
Na psicose, como nos coloca Pommier (1990) o lugar da palavra do pai está
foracluído e basta o encontro de um pai, ou melhor, de um pai que se tome por um Pai para
que a crise psicótica se dê. Pode-se pensar que, na cena do crime, algo (uma palavra, um
dito) que não estava simbolizado por Christine foi enunciado pela patroa que
possivelmente estava no lugar do Pai. Essa palavra era uma ameaça moral, ou seja, a patroa
denunciou a relação incestuosa e homossexual das duas que socialmente não era aceita. Na
discussão ocorrida minutos antes do crime, a senhora Lancelin e Isabelle insinuam ter
conhecimento do relacionamento das duas “Eu abriguei o pecado em minha casa”, diz a
patroa. Em seguida ameaça separá-las e por último as ofende: “malditas, imundas, escórias
de irmãs”. As últimas palavras de Christine são essas: “Não fale da minha irmã”.
Entretanto, acredita-se que a patroa o fez em nome de uma competição, de uma
rivalidade que estava todo tempo implícita na trama. Pode-se supor que, naquela casa de
semelhantes, ou seja, onde só havia mulheres identificadas entre si, havia uma relação de
invídia (termo lacaniano que, simplificadamente, refere-se à inveja entre os semelhantes) e,
conseqüentemente, uma busca de amor de uma pela outra. Em muitas cenas isso pode ser
percebido: os ciúmes de Christine e da Sra. Lancelin da relação de Lea com Isabelle, o
olhar de inveja de Isabelle da relação de Lea e Christine, as queixas da patroa de não mais
receber o olhar de Christine e, reciprocamente, as queixas de Christine de igualmente não
mais receber palavras da patroa. É interessante pensar que, se houvesse uma figura
masculina na casa, figura esta que marcasse uma diferença, a dinâmica das relações
provavelmente teriam se dado de outra forma.
Quanto à estrutura de Lea, acreditamos que se trata de uma neurose histérica. Isso
porque, na relação entre as duas irmãs, Lea se posiciona como aquela que possui um falo
que completa Christine. Násio (1991) entende que o indivíduo histérico transforma seu
corpo não-genital em um grande falo, ficando apenas a zona genital desinvestida. Para ele,
o ter o falo significa, na verdade, sê-lo. Entretanto, no sujeito histérico, essa incorporação
do falo só se faz no momento da sedução, podendo ser, a qualquer hora, desfeita,
diferentemente do psicótico, que se coloca todo o tempo como sendo o falo da mãe.
Para uma maior compreensão do que foi anteriormente exposto, faz-se importante
retomar aqui a idéia trazida por Dor (1991) de que, inicialmente, a criança se identifica
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com o objeto total - que é o desejo da mãe - acreditando ser o falo que a completa e
considerando o pai como um falo rival. De encontro com a lei do pai, a criança percebe
que a mãe é também dependente do desejo do pai. Dessa forma, o desejo passa a ser
regulado pela seguinte prescrição “o desejo de cada um é sempre submetido à lei do desejo
do outro”. A conclusão, então, a que a criança chega é de que a mãe é dependente de um
objeto que o outro pode ter ou não: o falo. Ela então se identifica com um objeto parcial
(falo), saindo da posição de objeto do desejo do outro, para possuir o objeto que satisfaz o
outro. Está dado o acesso ao simbólico pela criança. Caso contrário, se a criança não
consegue efetuar essa troca de posição do ser o falo para tê-lo, pode-se pensar em uma
estrutura psicótica, pois o psicótico se coloca como sendo o falo da mãe, alienando-se,
conseqüentemente, ao seu desejo.
Assim, na histeria, há uma reivindicação do falo que a mãe poderia ter tido por
direito, mas que lhe foi tomado pelo pai. Esse episódio garante a tal estrutura um traço bem
marcante: a reivindicação do ter. Assim, a histérica busca conquistar o atributo do qual ela
se considera injustamente desprovida. É nesse sentido que ocorre uma alienação subjetiva
ao desejo do Outro, onde ela utiliza o seu corpo para suprir a falta do outro (completando-
o) e mascarar a sua própria impotência. Essa posição subjetiva da histérica de utilizar o seu
corpo para suprir a falta do outro foi observada inúmeras vezes no comportamento de Lea,
principalmente quando ela, perante Christine, colocava-se como um objeto, para que a
irmã fizesse dela o que quisesse. Uma cena que exemplifica tal ponto é quando Lea se
veste e finge ser a outra irmã, Verônica, para dar carinho a Christine.
Outra questão importante da estrutura histérica - a alienação ao desejo do Outro -
foi igualmente observada na relação de Lea com Christine. Um exemplo ocorre quando
Christine, ao ver o cobertor que Lea traz costurado por sua mãe, comenta “A costura da
mamãe é tão vulgar” e Lea prontamente responde “Posso jogar fora se tu quiser”. Pode-se
pensar que o fato de Lea compartilhar dos delírios de Christine já denota uma subjugação
de seus desejos aos desejos da irmã – díade indutora/induzida. Era evidente também a
preocupação de Lea em satisfazer a irmã, mesmo que para isso fosse preciso se anular
como sujeito.
Entretanto, percebe-se que Lea se posicionava de maneira a ter ou mesmo ser
temporariamente o falo da irmã, pois muitas vezes, mesmo sabendo que sua irmã poderia
estar vendo e que assim iria desagradá-la, relacionava-se com a filha da patroa, o que
causou muitas discussões entre as duas. Percebe-se, então, duas formas de Lea se colocar
na relação com Christine: quando Lea faz de tudo para completar a irmã e, contrariamente,
quando interage intimamente com Isabelle frente ao olhar de Christine, quebrando a
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relação de completude das duas. A partir desse jogo de posições de ter ou ser o falo,
supomos que Lea possui uma estrutura histérica e não psicótica, pois se o fosse, se
posicionaria como sempre sendo o falo da irmã. No entanto, percebemos que ela nem
sempre o é, mas sim o tem e por isso consegue dá-lo e tirá-lo de Christine quando quer.
Assim, Lea está nesse constante movimento de completar a irmã sendo temporariamente
seu falo e, em seguida, se retirar como falo dela, ao se relacionar com Isabelle. Outra
característica de Lea, ao se relacionar com sua irmã, era mostrar-se muito provocante, pois
no filme percebemos que era Lea quem iniciava, na maioria das vezes, as relações sexuais.
3. Classificação Diagnóstica: CID-10 e DSM-IV
Folie à Deux
Partimos de uma idéia inicial de folie à deux, como sugerido nos primeiros contatos
com alguns estudos feitos sobre o caso, para entender a relação das irmãs Papin, bem como
o crime hediondo cometido por elas. Após algumas buscas, encontramos termos como
Transtorno Psicótico Compartilhado e Transtorno Paranóide Induzido para se referir à
loucura a dois.
Encontramos referências a estudos de Lasègue e Falret, já em 1877, sobre folie à
deux. Estes falam de uma alienação contagiosa que ocorre na relação, a partir da aceitação
do delírio do outro, em que “o delirante tenta nos convencer de seu delírio”. Citam ainda
uma possível indefinição de um/outro, havendo uma mistura de pulsões. Esses autores
comentam também que há um doente real e um indivíduo receptivo, que seria alienado por
reflexo - a partir de uma identificação -, e que não teria um posicionamento crítico frente a
um possível absurdo.
No caso das irmãs Papin, nota-se claramente o mecanismo de identificação em Lea,
que vê em Christine a perfeição, idealizando-a. São comuns também os casos clínicos onde
uma criança é envolvida, aparecendo como receptiva do delírio. No relacionamento das
duas irmãs, não é difícil perceber a infantilidade que Lea assume perante a irmã, pedindo-
lhe que lhe conte histórias e que penteie o seu cabelo. Quanto aos manuais de diagnósticos
psiquiátricos CID-10 e DSM-IV, estes definem a folie à deux como Transtorno Delirante
Induzido (F24) e Transtorno Psicótico Compartilhado (F24 – 297.3), respectivamente.
CID 10 - Transtorno Delirante Induzido
Transtorno delirante partilhado por duas ou mais pessoas ligadas muito
estreitamente entre si no plano emocional. Apenas uma dessas pessoas apresenta um
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transtorno psicótico autêntico; as idéias delirantes são induzidas na(s) outra(s) e são
habitualmente abandonadas em caso de separação das pessoas.
DSM IV - Transtorno Psicótico Compartilhado
A característica essencial do Transtorno Psicótico Compartilhado (folie à deux) é
um delírio que se desenvolve em um indivíduo envolvido em um estreito relacionamento
com outra pessoa (às vezes chamada de "indutor" ou "caso primário") que já tem um
Transtorno Psicótico com delírios proeminentes (Critério A). O indivíduo compartilha as
crenças delirantes do caso primário, total ou parcialmente (Critério B).
O delírio não é melhor explicado por um outro Transtorno Psicótico (por ex.,
Esquizofrenia) ou por um Transtorno do Humor com Aspectos Psicóticos, nem é devido
aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (por ex., anfetamina) ou de uma
condição médica geral (por ex., tumor cerebral) (Critério C). Assim, o diagnóstico em
relação ao caso primário fica em aberto.
O caso primário no Transtorno Psicótico Compartilhado em geral é o membro
dominante no relacionamento, que aos poucos impõe o sistema delirante à segunda pessoa,
mais passiva e inicialmente saudável. Os indivíduos que chegam a compartilhar as crenças
delirantes freqüentemente estão relacionados por laços sangüíneos ou casamento e
convivem há muito tempo, às vezes em relativo isolamento social. Se o relacionamento
com o caso primário é interrompido, as crenças delirantes do outro indivíduo gradualmente
diminuem ou desaparecem.
Sendo assim, o contexto de um relacionamento próximo entre os indivíduos é
satisfeito no caso em questão, sendo que as irmãs compartilham o mesmo emprego, a
moradia, o quarto em que dormem, além de estarem intimamente ligadas no plano
emocional. Além do fato de serem parentes consangüíneas de primeiro grau, característica
comumente encontrada nos casos de folie à deux, as irmãs contam uma com a outra para
dividir suas angústias, possuem um grande afeto uma pela outra e ainda mantêm relações
sexuais. Também podemos verificar um isolamento social das irmãs, que não se
relacionam com mais ninguém, bastando-se uma à outra.
Esquizofrenia é provavelmente o diagnóstico mais comum do caso primário,
embora outros diagnósticos possam incluir Transtorno Delirante ou Transtorno do Humor
com Aspectos Psicóticos. O conteúdo das crenças delirantes compartilhadas pode depender
do diagnóstico do caso primário e incluir delírios relativamente bizarros (por ex., de que
alguma força estranha e hostil está transmitindo radiação para dentro do apartamento,
causando indigestão e diarréia), delírios congruentes com o humor (por ex., de que o caso
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primário em breve receberá um contrato de filmagem de 2 milhões de dólares, permitindo
à família comprar uma casa muito maior, com piscina), ou delírios não-bizarros
característicos do Transtorno Delirante (por ex., o FBI está "grampeando" o telefone da
família e seguindo seus membros quando estes saem à rua). Pensando em Christine como o
caso primário, acreditamos que ela se classificaria como apresentando um Transtorno
Delirante.
Acreditamos que Christine seria a figura dominante nessa relação, tendo em vista
que é ela que inicialmente enuncia os delírios persecutórios em relação à patroa, bem como
os delírios de que a mãe tinha a intenção de separá-las (Lea e Christine). Outro delírio que
inicia com Christine é o de que a filha da patroa levaria Lea consigo ao se casar, também
ocasionando uma separação das irmãs, o que era tão temido por ambas. Lea, por sua vez,
assume uma posição de passividade, sendo, aos poucos, convencida desses delírios como
verdades. Assim, ambas passam a compartilhar um delírio de separação e de perseguição
que é previamente estabelecido por Christine, e induzido em Lea.
CID-10 - Transtorno Delirante
Transtorno caracterizado pela ocorrência de uma idéia delirante única ou de um
conjunto de idéias delirantes aparentadas, em geral persistentes e que por vezes
permanecem durante o resto da vida. O conteúdo da idéia ou das idéias delirantes é muito
variável. A presença de alucinações auditivas (vozes) manifestas e persistentes, de
sintomas esquizofrênicos tais como idéias delirantes de influência e um embotamento
nítido dos afetos, e a evidência clara de uma afecção cerebral, são incompatíveis com o
diagnóstico. Entretanto, a presença de alucinações auditivas ocorrendo de modo irregular
ou transitório, particularmente em pessoas de idade avançada, não elimina este diagnóstico,
sob condição de que não se trate de alucinações tipicamente esquizofrênicas e de que elas
não dominem o quadro clínico.
DSM-IV - Transtorno Delirante
A característica essencial do Transtorno Delirante é a presença de um ou mais
delírios não-bizarros que persistem por pelo menos 1 mês (Critério A). Um diagnóstico de
Transtorno Delirante não é dado se o indivíduo já apresentou um quadro sintomático que
satisfazia o Critério A para Esquizofrenia (Critério B). Alucinações auditivas ou visuais, se
presentes, não são proeminentes. Exceto pelo impacto direto dos delírios, o funcionamento
psicossocial não está acentuadamente prejudicado, e o comportamento não é obviamente
estranho ou bizarro - (Critério C). Se episódios de humor ocorrem concomitantemente com
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os delírios, sua duração total é relativamente breve, comparada com a duração total dos
períodos delirantes (Critério D). Os delírios não se devem aos efeitos fisiológicos diretos
de uma substância (por ex., cocaína) ou uma condição médica geral (por ex., doença de
Alzheimer, lúpus eritematoso sistêmico) (Critério E).
Delírios bizarros seriam aqueles claramente implausíveis, incompreensíveis e não
extraídos de experiências comuns da vida, enquanto que os delírios não-bizarros envolvem
situações que poderiam concebivelmente ocorrer, como perseguição, envenenamento, ser
infectado, traição. Em Christine observamos a presença de delírios não-bizarros durante
um período prolongado (talvez meses). Não há o conhecimento de sintomas que poderiam
caracterizar uma Esquizofrenia, nem de alucinações auditivas ou visuais. Seu
comportamento não parece bizarro à primeira vista, nem apresenta problemas em seu
funcionamento psicossocial, exercendo suas tarefas domésticas com zelo e qualidade e
sendo muito elogiada pela patroa.
Ao analisar os possíveis subtipos do Transtorno Delirante, observamos que
Christine poderia ser enquadrada em dois tipos. O Tipo Ciumento aplica-se quando o tema
central do delírio diz respeito a estar sendo traído pelo cônjuge ou parceiro romântico.
Christine tinha um delírio quanto à filha da patroa levar Lea consigo ao se casar. Este
delírio era baseado em algumas cenas em que Christine desconfia de uma possível troca de
carinho entre Lea e Isabelle, como no momento em que presenciou Lea penteando o cabelo
de Isabelle. Entretanto, Christine fantasiou demasiadamente a idéia de que Isabelle pudesse
separá-la de sua irmã.
O outro subtipo em que classificaríamos Christine seria o Tipo Persecutório, que se
aplica quando o tema central do delírio envolve a crença de estar sendo vítima de
conspiração, traição, espionagem, perseguição, envenenamento ou intoxicação com drogas,
estar sendo alvo de comentários maliciosos, de assédio ou obstruído em sua busca de
objetivos de longo prazo. Os indivíduos com delírios persecutórios com freqüência sentem
ressentimento e raiva, podendo recorrer à violência contra aqueles que supostamente os
estão prejudicando. Especialmente com os Tipos Persecutório e Ciumento, podem ocorrer
acentuada raiva e comportamento violento. Assim aconteceu com Christine, que tinha um
delírio de perseguição da patroa - que vigiava tudo e que teria a intenção de separar as
irmãs-, mandando Lea trabalhar com Isabelle. Esses sentimentos dão vazão a essa raiva
acumulada num momento de extrema violência, assassinando seus “perseguidores” antes
que eles agissem.
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4. Uma nova construção baseada em reflexões diagnósticas
A dificuldade inicial em definir pelo menos uma das irmãs como psicótica nos
levou a cogitar uma nova possibilidade diagnóstica: uma “relação psicótica” em que
nenhuma das irmãs é psicótica, tendo em vista a dinâmica paranóide da relação. Pensamos
numa folie à deux em que nenhum do indivíduos apresenta um transtorno psicótico
autêntico (que seria um dos critérios apontados pelos manuais de diagnóstico psiquiátrico).
O CID-10 refere-se a um transtorno psicótico autêntico apresentado por apenas um dos
indivíduos, enquanto o DSM-IV refere-se a um “indutor” ou “caso primário”, que já tenha
um transtorno psicótico com delírios proeminentes; enquanto o outro indivíduo
compartilharia as crenças delirantes do caso primário.
Entretanto, se pensarmos em Christine como tendo uma estrutura perversa, esse
critério não seria satisfeito. A partir desse enquadramento, pensamos numa relação
psicótica, em que não há uma das irmãs que, isoladamente, apresentasse um quadro
psicótico, mas sim a junção das duas que daria vazão a uma relação com sintomas
psicóticos. Calligaris (1986) já apontava uma possibilidade de haver uma montagem
perversa em que os sujeitos envolvidos não precisariam necessariamente ser perversos:
Refiro-me à formação perversa, quer dizer, à complacência neurótica para
com a montagem perversa. Penso que haveria montagens perversas, que o
nosso laço social cotidiano seria uma montagem perversa, mesmo não
havendo perversos na estrutura. Não é necessário que haja dois perversos
na estrutura para que dois neuróticos façam um casal perverso – perverso
no sentido de formação e não de estrutura. (p. 17).
Assim, da mesma maneira que Calligaris pensou o perverso no sentido de formação
e de laço, aqui também pensamos uma relação psicótica em que os sujeitos envolvidos não
precisassem necessariamente ser psicóticos de estrutura, mas sim de formação, em que a
relação possui características de uma estrutura psicótica. Entre essas características, há o
isolamento social das duas. Elas não demonstram um embotamento afetivo, visto que
interagem emocionalmente e sexualmente uma com a outra. Entretanto, estão numa relação
onde são suficientes uma à outra, não interagindo em nenhuma outra relação interpessoal.
A paranóia construída nessa relação seria outra característica a destacar nessa visão, sendo
induzida pela irmã mais velha, Christine, e passivamente aceita pela mais nova, Lea.
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5. O Estado Mental
As alucinações são importantes alterações da senso percepção presentes no caso das
irmãs Papin. Elas podem ser caracterizadas como percepções de objetos ou de situações
sem que eles estejam, necessariamente, presentes. Nas alucinações, os objetos apresentam-
se com todas as características de uma percepção normal, de forma clara e definida (Ey,
1973, citado por Dalgalarrondo, 2000). Lea, numa cena do filme, vivencia um episódio de
alucinação visual. Quando ela está acordando, percebe uma mão retirando-a da casa onde
trabalha com a sua irmã. A percepção dessa mão persiste mesmo após Lea estar
plenamente acordada e de olhos abertos, cessando apenas depois de algum tempo.
Enquanto vivencia a alucinação, Lea parece bastante envolvida emocionalmente com a
situação que está percebendo, mostrando-se ansiosa e assustada.
A alucinação presente nesse episódio é do tipo hipnopômpica, pelo fato de esse
episódio dar-se na transição sono-vigília, num momento em que Lea acorda. Uma possível
explicação para essa vivência de alucinação é que Lea projeta no espaço externo o seu
medo de ser retirada da relação de extrema proximidade que possuía com a irmã. Esse
fenômeno faz parte de um processo defensivo calcado no mecanismo de projeção, através
do qual o indivíduo, inconscientemente, tenta expulsar do seu psiquismo representações
inaceitáveis à consciência (Dalgalarrondo, 2000).
As irmãs Papin também apresentam alterações do juízo de realidade (delírios), ou,
pelo menos, erros de juízo. É importante diferenciar esses dois fenômenos, pois os limites
entre um e outro são tênues. Um erro de juízo pode ser decorrente de um julgamento
apressado ou baseado em premissas falsas e não está relacionado, necessariamente, a uma
patologia. Uma forma de diferenciá-lo do delírio é confrontando-o com dados da realidade.
No delírio, o paciente, geralmente, apresenta convicção absoluta no seu juízo, não o
modificando através da experiência objetiva, da argumentação e de provas explícitas da
realidade. Embora os conteúdos delirantes sejam, bastante freqüentemente, impossíveis (ou
completamente distintos do contexto cultural em que o indivíduo está inserido), há casos
em que os delírios relatados pelos pacientes são verídicos. Em muitos desses casos, os
juízos podem ser considerados delírios, pois se constituem de uma forma patológica,
embora as experiências às quais estão relacionados ocorram de fato (Dalgalarrondo, 2000).
Apesar de haver uma dificuldade de diferenciação entre erro de juízo e delírio no
caso das irmãs Papin, já que não temos contato direto com Christine e com Lea, é possível
que elas apresentem delírios de perseguição e de ciúme. Nos delírios de perseguição,
Christine acredita que a sua patroa está implicando com o seu serviço sem motivos, além
de achar que a Sra. Lancelin mandará Lea trabalhar na casa de Isabelle após o seu
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casamento com o intuito de separar as irmãs. Os delírios de ciúme ocorrem por parte de
Christine e em relação à Isabelle e à mãe (Sra.Lancelin). No primeiro caso, Christine sofre
com a aproximação de Isabelle à Lea, ficando perturbada nos momentos em que as duas
estão juntas. Christine também acha que Lea irá trabalhar na casa de Isabelle após o seu
casamento. No segundo caso (delírio de ciúme em relação à mãe), Christine teme que o seu
relacionamento com a irmã seja rompido em função do amor de Lea pela mãe. Em várias
cenas do filme, é evidente a competição de Christine com a sua mãe pelo amor de Lea.
6. Como é enunciado
Falado pelo paciente
Pode-se perceber o aspecto psicopatológico das irmãs através da forma pela qual ambas
enunciam suas queixas. Sendo assim, Christine, em uma das cenas finais do filme,
expressa a seguinte queixa em relação à patroa e sua filha: “Ela e sua filha vêem coisas que
não existem”, referindo-se a costura que havia feito no vestido de Isabelle e que a patroa
falara que estava torta. Christine também se queixa, no decorrer do filme, de sua mãe,
demonstrando, ao mesmo tempo, ciúmes da relação de Lea com a mãe. “A mãe nunca me
pegava no colo, ela não gostava do meu choro. Tive que trabalhar cedo porque ela
recusava-se a me dar dinheiro. Cada vez que eu me acostumava com um lugar, ela me
mudava. Mas com você é diferente, ela sempre te amou”.
Além disso, Christine critica a sua irmã mais velha, Verônica, alegando que esta a teria
abandonado. Lea, por sua vez, demonstra a sua angustia em relação à patroa apenas em
uma cena do filme. Nesse episódio, as duas irmãs chegam em casa e a patroa e sua filha
estão esperando por elas. As irmãs, silenciosamente, sobem para seu quarto, e Lea,
posteriormente, comenta com Christine: “Eu não agüentaria viver nessa casa
sozinha...quando nós chegamos a patroa estava nos esperando...fiquei com muito medo”.
Descrito pelo psicopatológico
Nasio concentra sua análise em Christine, por ser esta o elemento ativo. Para definir
sua personalidade, o autor coloca: “Seria tentador dizer, para qualificar sua
personalidade, que elas eram, em primeiro lugar, as filhas de Clémence, sua mãe, e
objetos exclusivos dessa posse”. Salienta a estranheza do fato de essa mãe não ter as
criado, mas sim, as internado e mudado de lugar a seu critério, durante toda infância e
adolescência, até que as duas fossem trabalhar para a Senhora Lancelin. Sobre este
comportamento da mãe ele coloca: “É nosso entendimento que, com isso, ela procurava
certificar-se repetidamente de seu domínio sobre as filhas, de seu direito de vigiá-las, a
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elas que, em todas as situações, deveriam continuar-lhe ‘submissas’”. O autor salienta que
através de cartas que Clémence enviou as filhas foi possível constatar que a mãe tinha um
mecanismo de ação delirante de caráter persecutório.
Voltando as irmãs, ele lembra que, desde a separação da irmã mais velha, Verônica,
Christine sentia saudade daquele amor e por isso investiu toda sua afeição na irmã caçula,
Lea, que tinha então dezesseis anos. Christine queria Lea sempre ao seu lado, tanto que
após algumas semanas, pediu que a Senhora Lancelin a contratasse.
O autor diz que três episódios iriam desatar a tragédia, sendo eles:
Primeiro - O autor traz a versão de que as irmãs teriam deixado de dar seus salários
a mãe (Clémence) por uma intervenção da patroa, que estava preocupada com elas. Lea e
Christine teriam acolhido este gesto com afeição e devido a isso começariam a se referir a
Senhora Lancelin, entre elas, como ‘mamãe’.
Segundo – Nasio acredita que o rompimento súbito e definitivo com Clémence foi
definitivo na medida que a partir daí, a senhora Lancelin ocupou todo o espaço materno.
Terceiro – Um dia as irmãs se dirigiram à prefeitura, quando a senhora Lancelin
estava de férias, e fizeram o seguinte pedido ao prefeito: fazer com que Lea fosse
emancipada. Mas elas não sabiam dizer de quê e de quem. O prefeito, confuso, teria as
encaminhado para o comissariado central. Lá elas se disseram perseguidas pelo prefeito.
Como fatores desencadeantes do crime, Nasio traz primeiro a tentativa de romper o
vinculo materno, segundo a transferência desse vínculo materno para a futura vítima e
ainda o próprio olhar: “Christine encenava sua posição de ‘boa mãe’ sob o olhar da
senhora Lancelin, que se tornou perseguidora, como fora Clémence (...) o olhar da patroa
tinha importância capital. Era ele que sustentava toda a cena(...) Dali em diante, tudo
dependeria do que fosse lido no olhar da patroa: Christine estava de ‘olho’ na senhora
Lancelin.”
Nasio trabalha com a dinâmica paranóide do crime, trazendo que um dos modos de
funcionamento característicos dessa patologia é a “reciprocidade, a reversibilidade. Se eu
amo, digo que é ele que me ama”. A passagem ao ato teria se dado quando um olhar da
patroa, lido como “vocês não prestam para nada”, significou mais que uma perseguição:
“ ‘pra nada’ englobava a posição materna de Christine em relação a Lea, essa outra que
de repente, viu-se sujeita a todas as ameaças. Mas não foi só isso. Foi não apenas uma
anulação da cena montada por Christine - o desmoramento de seu universo -, como
também uma anulação da identidade que ela havia fabricado para si e que só decorria
dessa montagem. Com isso, ela foi negada em sua condição de sujeito, remetida ao nada
de seu ser, a um dejeto. O acionamento da pulsão criminosa apareceu como uma tentativa
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de retomada da consistência do ser. (...) Daí a subtaneidade do ataque”. Nasio traz ainda
que a sensação que Christine teve de que a patroa a estava ‘matando pelo olhar’
desencadeou reciprocamente o seguinte:“eu mato seu olhar”. Nasio traz ainda que tempos
após o crime, na prisão, Christine disse que não prestava para nada, que tinha que morrer, o
que confirmaria que o “imprestável”, lido no olhar da patroa, tinha ressoado de fato como
uma sentença de morte.
Nasio comenta haver condições necessárias para que o delírio a dois aconteça
efetivamente, sendo elas: haver dois sujeitos presentes, sendo um ativo e outro passivo; é
necessário ainda que estes dois indivíduos vivam num mesmo meio durante um longo
período, cultivando os mesmos interesses, apreensões e esperanças, estando surdos a
influências externas; a verossimilhança do delírio, de forma que quanto mais o delírio se
mantiver dentro de limites aceitáveis, mais fácil será seu contágio. O mais fraco só entraria
nessa loucura a dois na medida que “a história o concerne pessoalmente e quando sua
inteligência não se rebela”. Assim, o delírio a dois de Christine e Lea teria se instalado
bem no cerne do crime. Nasio ainda complementa: “Se a mais velha não houvesse tomado
a caçula por seu duplo, provavelmente o crime não teria ocorrido. Mas teria tido ainda
menos probabilidade de se produzir se a loucura da mãe não houvesse gerado a loucura
da filha”.
Já Roudinesco (1988), trabalha com a análise de Lacan do caso. Assinala que como
Lacan não pôde ele próprio examinar as irmãs, evitou analisá-las demasiadamente.
Entretanto, Lacan trabalha com alguns detalhes que permitiriam situar o crime na categoria
de paranóia. Este autor traz a hipótese de Lacan de que a obscuridade que se manifestou
naquele dia pelo defeito na iluminação elétrica pode também remeter a uma outra
obscuridade, mais simbólica, em que “A corrente não passa” entre os dois grupos de
criadas e patroas, “Porque as pessoas não se falam”. Ele cita Lacan: “Esse silêncio, no
entanto, não poderia ser vazio, mesmo que fosse obscuro para os próprios atores”.
Lacan trabalhou a idéia de que a homossexualidade latente testemunhou igualmente
a atuação da atitude criminal. Seu sentido apareceria depois, quando Christine se declararia
marido de Lea e assim revelaria “o fenômeno do delírio a dois e a característica de uma
pulsão dirigida para duas outras mulheres, uma das quais é mãe ou ‘mais velha’ do que a
outra”. As irmãs Papin mataram as senhoras Lancelin por estas representarem seu ideal de
ego.
A questão da castração seria analisada da seguinte forma: “As irmãs desnudam o
sexo da filha da patroa para, como disse Christine, ‘possuir’ algo que não existe, mas que
traria o vestígio de uma onipotência fálica. Assim, em sua afiliação, elas arrancam os
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olhos de quem admiram, ao mesmo tempo para destruir seu próprio sofrimento na vida e
para produzir na realidade uma solução sangrenta para o enigma da castração feminina”.
Lacan, pela primeira vez na França, formula uma hipótese que será só tardiamente
reconhecida, em 1968, que não dá razão nem àqueles que acreditam na irresponsabilidade
dos loucos em crimes nem nos que acreditam na responsabilidade: “Explicar um crime não
é nem perdoá-lo nem condená-lo, nem puni-lo, nem aceitá-lo. É, ao contrário, irrealizá-lo,
ou seja, restituir-lhe sua dimensão imaginária e, depois, simbólica. Dentro dessa ótica, se
um criminoso é louco, nem por isso ele é um monstro reduzido a instintos assassinos”.
Dessa forma, Lacan mostra que “o louco não é irresponsável quanto aos seus atos, já que
a loucura é a realidade alienada do homem, e não o avesso de uma razão ilusória”.
Assim, Lacan irrealiza o crime sem desumanizar o criminoso: “o crime paranóico não tem
como causa o ódio das classes ou a vingança do guerreiro, mas sim a estrutura psicótica
através da qual o assassino golpeia o ideal do senhor que traz em si, obedecendo, sem que
o saiba, ao imperativo da ‘realidade alienada’”.
CONCLUSÃO
Em primeiro lugar, o grupo acredita que o grande mérito da realização desse
trabalho consiste no aprendizado adquirido a respeito das estruturas clínicas e das
classificações do CID e do DSM. Esse aprendizado foi muito importante, uma vez que foi,
praticamente, o primeiro contato que o grupo teve com o CID, com o DSM e com as
estruturas clínicas em toda a sua formação acadêmica, já que, até então, nenhuma outra
disciplina proporcionou tal conhecimento.
Além disso, o fato de a proposta de trabalho ter se dado a partir do interesse dos
alunos por filmes, livros ou casos verídicos estimulou não só esse grupo, mas
provavelmente toda a turma a se empenhar em um entendimento aprofundado do caso
escolhido. Da mesma forma, a escolha do grupo por um caso verídico conferiu ao trabalho
uma proposta de caráter mais prático, não se restringindo apenas a um estudo detalhado e
extenso, composto somente por teorias. Essa integração teórico-prática ocorreu ainda de
forma dialética, ou seja, houve um constantemente movimento de modificação do caso a
partir da teoria e, ao mesmo tempo, uma modificação do entendimento teórico do grupo a
partir do caso. Nesse sentido, durante o desenvolvimento do trabalho, houve um diálogo
constante da teoria com a prática (o caso), onde ambas se modificavam mutuamente.
Esse trabalho, especificamente, por abordar um caso verídico e já estudado por
diversos intelectuais, possibilitou que o grupo questionasse ou fosse além do que já foi
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produzido. Ao pensarmos na trajetória da confecção deste trabalho, reconhecemos que
houve um grande aprofundamento quanto ao estudo do diagnóstico estrutural que,
provavelmente, transcendeu o que a proposta da disciplina demandava. Nesse sentido, o
grupo ficou muito satisfeito com a supervisão recebida dos professores e dos monitores
que, ao longo do semestre, mostraram-se sempre abertos às hipóteses do grupo, mesmo
quando estas questionavam o que já fora produzido por grandes teóricos.
Dessa forma, a constituição do presente trabalho foi marcada pelo exercício
reflexivo, o que nos permitiu pensar em diversas possibilidades diagnósticas a partir da
exploração de dados restritos, mesmo nos deparando com algumas limitações. Entre essas
limitações está o fato de o diagnóstico ter sido construído na ausência das relações
transferências terapeuta-analista, já que o estudo estrutural de caso foi feito a partir da
observação de um filme e não em um contexto de análise, onde a transferência entre o
paciente e o terapeuta é decisiva para a construção do diagnóstico. A respeito disso, o
grupo pôde concluir que, para um mesmo caso, muitos são os diagnósticos estruturais
possíveis, não havendo um diagnóstico estrutural certo ou errado. Entretanto, uma
consistente fundamentação e argumentação para justificar a escolha por essa ou aquela
hipótese diagnóstica faz-se fundamental em qualquer caso – tanto em nível de exercício e
treino quanto em se tratando de nossos futuros atendimentos reais.
24
REFERÊNCIAS
American Psychiatric Association. (2003). DSM-IV-TR – Manual Diagnóstico e Estatístico
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