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∫ntegrada Revista Científica FACOL/ISEOL
(Int. Rev. Cie. FACOL/ISEOL) ISSN: 2359-0645
63 RANCIÈRE: DEMOCRACIA E POLÍTICA: AS RAZÕES DE UM ÓDIO
(RANCIÉRE: DEMOCRACY AND POLITICAL: REASONS OF HATRED)
ANDRÉ CAMPOS DE CAMARGOa,*, RAPHAEL GUAZZELLI VALERIOb
a,* Graduado em História, Mestre em Educação (UNICAMP).
camargo.andre.campos@gmail.com
b Graduado em História, Mestre em Filosofia (Unesp), Doutorando em Educação (UNESP). Professor FACOL
Pretende-se avaliar, por meio das análises do pensador francês Jacques Rancière, a hipótese do esgotamento das alternativas políticas democráticas no mundo contemporâneo. Nesta avaliação chegamos à essencialidade da política e, consequentemente, da democracia. A hipótese então se recoloca. Qual o sentido das críticas contemporâneas à democracia? Sobretudo por elas provirem de grupos sociais que se beneficiam e não vivem em situação de risco. As conclusões nos levam a um estado político que, de democrático, há pouco. Palavras-chave: Democracia. Política. Oligarquia. Estado. Desentendimento.
Aims to assess, through the analysis of the French philosopher Jacques Rancière, the hypothesis of the exhaustion of democratic political alternatives in the contemporary world. In this evaluation, we come to the essentiality of the politics and consequently, democracy. The hypothesis then relocates. What is the meaning of contemporary criticism of democracy? Mainly because they come from social groups that benefit and do not live at risk. The findings lead us to a political state where there is little democracy. Keywords: Democracy. Politics. Oligarchy. State. Unpleasantness.
“O que há de específico para pensar sob o nome de política?” Esta questão
anima toda obra O Desentendimento1 de Jacques Rancière e é a pedra de toque de
sua reflexão política. Sua resposta passa pela definição do campo de estudos da
filosofia política e, mais do que isso, nos remete à essencialidade da política que,
conforme o filósofo, foi perdida pela política moderna e, sobremaneira, pela
contemporânea. Ao buscar pela essência do político, Rancière caminha na contramão
das reflexões atuais nos campos das ciências humanas, em particular da filosofia e
da política, nesta busca, como veremos, aparece uma quase indistinção entre filosofia,
política e democracia.
O específico do político é o desentendimento. A resposta aparece, numa primeira
mirada, aparentemente simples, todavia confronta toda à tradição. A um só tempo
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64 Rancière se afasta da tradição antiga e da moderna. Da antiga, temos aqui em mente
seu principal representante: Aristóteles. Para o estagirita, como se sabe, o homem se
define de duas maneiras, uma, um animal político (zoon politikon); outra, um animal
dotado de fala (zoon logon ekhon). Isto é, o homem é capaz, na linguagem, se
entender e, deste modo, compartilhar um modo de vida. O modo de vida da cidade
(pólis), ou seja, político. Da moderna, na figura do soberano hobbesiano que, ao pôr
fim no estado de natureza, isto é, um estado onde reina o desentendimento, inaugura
o estado civil, onde reina a ordem e entendimento. Evidente que o fundamento dessa
passagem se encontra no medo, porém, de qualquer modo, o conflito é aqui o lado
negativo da política.
O pensador francês se propõe, portanto, redefinir aquilo que chamamos política,
num duplo movimento. O primeiro extensivo. O que chamamos de política recebe,
para ele, a alcunha de polícia. De modo que o sentido dessa palavra deve ser alargado.
Polícia é aquilo que comumente chamamos política, ou seja, toda sorte de instituições
e normas que organizam a vida social, administram o cotidiano ou realizam a
manutenção da ordem estabelecida2. O segundo restritivo. Diminuir o sentido da
palavra política. Fazer política é algo raro, só ocorre quando nos deparamos com a
seguinte equação: igualdade de qualquer ser falante com outro ser falante.
Ora, o problema é que desde a Grécia Antiga, donde deriva nosso léxico político,
a política é pensada como convivência daqueles que tem a mesma fala. Explica-se:
daqueles que podem se entender. Os que não possuíam uma fala igual, por diversas
razões que não cabem neste texto, os escravos, as mulheres, os estrangeiros, eram
excluídos. O modelo político, fosse aristocrático ou democrático, se baseava na
contagem. Contavam-se os iguais entre si, estes repartiam a participação política. Ou
seja, uma repartição entre iguais, do viver junto e do partilhar o mesmo mundo. Para
Rancière, no entanto, a política é a partilha do mundo, mas, num sentido diverso.
Como divisão mesma, como partes distintas, isto é, daqueles que não compartilham
a mesma visão de mundo, a mesma fala. A política se nos apresenta, deste modo,
como a partilha do sensível, da capacidade de diferentes formas de ver e pensar o
mundo convierem em comunidade. Viver, pois, no desentendimento.
Isto gera, no entanto, um problema: o conflito. O conflito é justamente aquilo que
política moderna e, sobremaneira, a contemporânea querem eliminar. A organização
política atual, tanto em sua forma teórica quanto em sua positividade, tende a expulsar
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65 o conflito, o que chamamos consenso. Para Rancière, pelo contrário, a política é
justamente o conflito, o desentendimento, pautado, pois, no dissenso. Desse ponto
decorre sua crítica à ideia de igualdade na democracia moderna e contemporânea.
Somos seres diferentes e fabricamos uma igualdade, a igualdade perante a lei. A
política se torna assim, a tentativa de tornar todos iguais perante a lei – a igualdade é
seu fim. Ao revés, para Rancière a igualdade não é fim, mas condição da política; não
a igualdade legal, porém uma outra igualdade bastante simples: falar. Podemos dizer
que Rancière é assim um inimigo da democracia? Da contemporânea, certamente que
sim, mas e da ideia de democracia? De sua essencialidade? Veremos.
Jacques Rancière nos oferece uma leitura não consensual da democracia. Ele
mostra a democracia como uma forma de ação que permite arrancar das oligarquias
o monopólio sobre a vida pública. Para tanto, lança uma questão interessante: como
compreender que no interior das democracias, um determinado grupo, cuja situação
não é desesperada e que pouco aspira a viver sob outras leis, acuse dia após dia,
entre todas as desgraças humanas, um único mal, chamado democracia?
A democracia, segundo o nosso autor, não é uma forma de Estado. Ela está
sempre aquém e além dessas formas. Aquém, como fundamento igualitário
necessário e necessariante esquecido do Estado oligárquico. Além, como atividade
pública que contraria a tendência de todo Estado de monopolizar e despolitizar a
esfera do comum. Todo Estado é oligárquico. Mas a oligarquia dá à democracia mais
ou menos espaço, é mais ou menos invadida por sua atividade. Toma-se usualmente
a existência de um sistema representativo como critério pertinente de democracia. Ele
tende para a democracia na medida em que se aproxima do poder de qualquer um.
Desse ponto de vista, podemos enumerar as regras que definem o mínimo necessário
para um sistema representativo se declarar democrático: mandatos eleitorais curtos,
não acumuláveis, não renováveis; monopólio dos representantes do povo sobre a
elaboração de leis; proibição de que funcionários do Estado representem o povo;
redução ao mínimo de campanhas e gastos com campanha e controle da ingerência
das potências econômicas nos processos eleitorais. Essas regras, não têm nada de
extravagante e, no passado, muitos legisladores e pensadores, examinaram-nas
atentamente como meios de garantir o equilíbrio dos poderes, dissociar a
representação da vontade geral da representação dos interesses particulares e evitar
o que consideram o pior dos governos: o governo dos que amam o poder e são hábeis
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66 em se assenhorar dele. Contudo basta enumerá-los hoje para provocar risos. E com
toda razão, pois o que chamamos de democracia é um funcionamento estatal e
governamental que é o exato contrário: eleitos eternos, que acumulam ou alternam
funções eletivas, governos que fazem eles mesmos as leis; ministros ou assessores
de ministros realocados em empresas públicas ou semi públicas; partidos financiados
por fraudes nos contratos púbicos; empresários investindo uma quantidade colossal
de dinheiro em busca de um mandato; donos de impérios midiáticos privados
apoderando-se do império das mídias públicas. Em resumo, a apropriação da coisa
pública por uma sólida aliança entre oligarquia estatal e a econômica. É
compreensível que os depreciadores do “individualismo democrático” acusem a
democracia por essas mazelas. Contudo ela não é a culpada.
Os males da democracia estão ligados, em primeiro lugar, ao apetite insaciável
dos oligarcas. Não vivemos em democracias. Vivemos em Estado de direito
oligárquico, isto é, em Estado em que o poder da oligarquia é limitado pelo duplo
reconhecimento da soberania popular e das liberdades indivíduais. Conhecemos bem
as vantagens e os limites desse tipo de Estado. As eleições são livres. Em essência,
asseguram a reprodução, em legendas intercambiáveis, do mesmo pessoal
dominante, mas as urnas não são fraudadas e qualquer um pode se certificar disso
sem arriscar a vida. A administração não é corrompida, exceto na questão de
contratos públicos, em que ela se confunde com os interesses dos partidos
dominantes. As liberdades dos indivíduos são respeitadas; a imprensa é livre: quem
quiser fundar um jornal, revista ou outro meio de divulgação, sem ajuda financeira,
terá sérias dificuldades, mas não será preso. Os direitos de associação, reunião e
manifestação permitem a organização de uma vida democrática, isto é, uma vida
política independente da esfera estatal. Essas liberdades não são dádivas dos
oligarcas. Foram conquistadas pela ação democrática e sua efetividade somente é
mantida por meio dessa ação. Os espíritos otimistas deduzem disto que a democracia
seria uma oligarquia que dá a democracia espaço suficiente para alimentar suas
paixões pelo bem comum. Os melancólicos, por sua vez, deduzem que a democracia
é o governo pacífico da oligarquia que desvia as paixões democráticas para os
prazeres privados e as torna insensíveis ao bem comum.
Apesar das posturas aparentemente contraditórias, cria-se assim uma cultura do
consenso que repudia os conflitos, habitua a objetivar sem paixão os problemas de
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67 curto e longo prazo que as sociedades encontram, a pedir soluções aos especialistas
e discuti-las com representantes qualificados. A multidão desobrigada da
preocupação de governar fica entregue a suas paixões privadas e egoístas. Ou os
indivíduos que a compõem se desinteressam do bem público e se abstêm de votar
nas eleições, ou as concebem unicamente do ponto de vista de seus interesses e
caprichos de consumidores.
Para Rancière, não é verdade que assistimos a um avanço inelutável da
abstenção. Ao contrário, deveríamos ver o sinal de uma constância cívica admirável
no número elevado de eleitores que continuam a se mobilizar para escolher entre
representantes equivalentes de uma oligarquia que deu tantas provas de
mediocridade, quando não de corrupção. E a paixão democrática que incomoda tanto
os “candidatos de governo” não é um capricho dos consumidores, é simplesmente o
desejo de que a política signifique mais do que uma escolha entre as oligarcas
substituíveis.
O admirável sistema que dá à minoria mais forte o poder de governar sem
distúrbios e criar uma maioria e uma oposição que estão de acordo com as políticas
a ser praticadas tende à paralisia da própria máquina oligárquica. O que causa essa
paralisia é a contradição entre dois princípios de legitimidade. De um lado, nossos
Estados oligárquicos de direito referem-se a um princípio de soberania popular, onde
os que não tem título para governar podem governar, contudo limitados pelo sistema
de representação. Bem ou mal essa ficção do povo soberano, serviu como traço de
união entre a lógica governamental e as práticas políticas que são sempre práticas de
divisão do povo, de constituição de um povo suplementar em relação ao que está
inscrito na constituição, representado por parlamentares ou encarnado no Estado. A
própria vitalidade de nossos paramentares foi alimentada e sustentada no passado
pelos partidos operários que denunciavam a mentira da representação. É esse
equilíbrio conflituoso que está em questão hoje.
A queda do mundo soviético, assim como o enfraquecimento das lutas sociais e
dos movimentos de emancipação, permitiu que se instalasse a visão consensual
contida na lógica do sistema oligárquico. Segundo essa visão só existe uma realidade
que podemos nos adaptar independente de nossas aspirações políticas e opiniões.
Essa realidade, segundo eles, se chama economia ou ilimitação do poder da riqueza.
E cabe aos governos eliminar o freio existente no interior dos Estados nacionais para
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68 seu livre desenvolvimento. Como esse desenvolvimento é sem limites, não se
preocupa com o destino particular desta ou daquela população ou fração de
população no território deste ou daquele Estado, cabe aos governos limitá-los,
submetê-los aos interesses dessas populações. Como nos diz Rancière:
Suprimir os limites nacionais pela expansão ilimitada do capital, submeter a expansão ilimitada do capital aos limites das nações: na conjunção dessas duas tarefas define-se a figura finalmente descoberta da ciência real.3
Apesar dessa racionalização será, ainda, impossível encontrar a medida certa
da igualdade e da desigualdade e com isso evitar a suplementação democrática, ou
seja, a divisão do povo. Especialistas e governantes acham possível calcular o bom
equilíbrio entre o limite e o ilimitado, casando assim, o princípio da riqueza com o
princípio da ciência que fundamenta a nova legitimidade oligárquica. Nossos
governantes estabelecem para si mesmos como tarefa fundamental gerir os efeitos
locais da necessidade mundial sobre a população. Para Rancière3 isso significa que
a população a que diz respeito essa gestão deve constituir uma totalidade una e
objetivável, ao contrário do povo das divisões e das metamorfoses. Aos poucos vemos
morrer o rico discenso e nascer um paupérrimo consenso. Pouco importa, ou importa
cada vez menos, que a escolha popular designe um oligarca de direita ou de esquerda,
a autoridade dos governantes é legitimada, de um lado, pela escolha popular e, de
outro, pela capacidade dos governantes de escolher, com a ajuda de especialistas,
soluções certas para os problemas da sociedade. Segundo Rancière as soluções
certas são: “[...] reconhecidas pelo fato de que não precisam ser escolhidas, pois
decorrem do conhecimento do estado objetivo das coisas, que é assunto para o saber
especialista, e não para a escolha popular.”3
Chegou ao fim o tempo em que a rica divisão do povo era suficientemente ativa
e a ciência era suficientemente modesta para que os princípios opostos preservassem
sua coexistência. Hoje, a aliança oligárquica da riqueza e da ciência exige todo o
poder e não admite que o povo ainda possa se dividir. Contudo, essa divisão retorna
transfigurada como partidos de extrema direita, movimentos indenitários e
fundamentalismos religiosos, que, por sua vez, apelam, cada um deles contra o
consenso oligárquico, utilizando o velho princípio do nascimento, da filiação (no caso
do Brasil, temos os movimentos de cunho separatistas) da comunidade enraizada na
terra, do sangue e da religião dos antepassados. Retorna também como
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69 questionamentos ao sistema: de saúde, de aposentadoria, de trabalho e do eleitoral.
O questionamento do sistema eleitoral chega a seu mais alto tom, quando as soluções
únicas que se impõem tanto aos governantes quanto aos governados são submetidas
à escolha imprevisível destes últimos. Caso o posicionamento defendido pelo
governante, por exemplo, em um referendo, seja vencido, seus especialistas e seus
ideólogos encontram explicações para o infortúnio, assim como para toda a falta de
consenso. Não faltam explicações, alegam: ignorância da população; apego ao
passado, dificuldade do governo em se fazer compreensível, etc. Para Rancière, esse
posicionamento revela a grande aspiração da oligarquia: governar sem povo, isto é
sem divisão do povo; governar sem política.
Tomando o exposto anteriormente, podemos perguntar: como se opera na
realidade a combinação entre duas vontades que aparentemente se mostram
contraditórias a respeito da liquidação da política, a primeira de se curvar as
exigências da ilimitação capitalista da riqueza e, a segunda, de gerir olígarquicamente
os Estados-nação?
A globalização, a adaptação dos sistemas de proteção do trabalhador à lógica
do capitalismo internacional e a aceitação das regras das instituições supra estatais,
nos leva a interrogar: em nome do que e de quem essas mudanças ocorrem? Que o
crescimento do capital e os investimentos dependam de leis e de uma matemática
acadêmica é perfeitamente compreensível. Que essas leis entrem em choque com as
legislações nacionais é igualmente claro. Mas se opor as leis históricas de seguridade
social, prometendo paras as gerações futuras uma prosperidade, isso não é mais uma
questão de ciência, mas de fé.
Declarando-se simples gestores dos impactos locais da necessidade histórica
mundial, nossos governos se empenham em se livrar do povo e da política inventando
instituições supra estatais que não são Estados, que não prestam contas a nenhum
povo. Assim, os Estados e seus especialistas podem se entender tranquilamente entre
si e construir dentro dos espaços nacionais, lugares para abrigar os desejos
interestatais do capital sem qualquer perturbação mais séria da população.
Segundo Rancière, o suposto enfraquecimento do Estado-nação é uma
perspectiva enganosa, pois o que se tem de fato é o fortalecimento do Estado com o
crescimento ilimitado da riqueza e do poder oligárquico. Mesmo abdicando de alguns
de seus privilégios diante da livre circulação de capitais, os Estados fecham suas
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70 fronteiras à livre circulação dos pobres do planeta em busca de trabalho. Como ainda
declara guerra ao “Wellfare State” por meio de um discurso de retorno da
responsabilidade dos indivíduos e da sociedade civil contra um Estado paternalista e
assistencialista. A liquidação do pretenso Estado-providência não é recuo do Estado.
É a reorganização do Estado para ser operado com o mínimo possível de participação
popular.
Além disso, a oposição simplista entre assistência estatal e iniciativa individual,
propagada pela oligarquia governamental, serve para mascarar a existência de formas
de organização da vida material da sociedade que escapam da lógica do lucro e a
existência de lugares de discussão dos interesses coletivos que escapam do
monopólio do governo e de seus especialistas. São essas formas democráticas de
organização que introduzem a questão, talvez a mais importante colocada atualmente:
a competência dos “incompetentes”, da capacidade de qualquer um de julgar relações
entre indivíduos e coletividade, presente e futuro.
Como nem tudo é simples, podemos dizer que os defendem um serviço público
de qualidade, um sistema de legislação do trabalho, um regime de indenização por
desemprego ou um sistema de aposentadoria sempre serão acusados, mesmo que
sua luta esteja além de seus interesses particulares, de travar um combate que se
restringe ao espaço nacional, fortalecendo esse Estado que eles exigem que se
mantenha fechado. Inversamente, podemos dizer que, aqueles que afirmam que o
movimento democrático deveria exceder esse quadro de fortalecimento do Estado
afirmando a transnacionalidade das multidões nômades, acabam militando pela
constituição de instituições interestatais, desses lugares extraterritoriais em que a
aliança entre as oligarquias estatais e as oligarquias financeiras internacionais é
assegurada. As dificuldades das oligarquias em administrar o Estado fortalecido ou
não, permitem o aumento das manifestações antidemocráticas que se espalham
dentro desses países. Isso ocorre porque ambas as oligarquias buscam na ideia-força
do consenso, na ideia de que devemos nos adaptar as necessidades da economia
mundial.
Se antes, um dos grupos tinham fé no movimento da história quando este levava
à revolução socialista mundial. Agora todos eles manifestam a fé no progresso, só que
esta leva ao triunfo mundial do mercado. Esse posicionamento permite aos oligarcas,
tanto de um grupo quanto de outro, interpretar qualquer movimento que destoe de
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71 suas ideias como uma manifestação de uma fração ideologizada e atrasada da
população. Mas enquanto houver atrasados, haverá para eles a necessidade de
conscientizá-los de seu atraso. Os oligarcas sentem essa solidariedade, e seu
antidemocratismo é moderado por ela.
Contudo vale ressaltar que para alguns dentro do grupo que acreditavam na
revolução socialista, a fé progressista se mostra demasiadamente ingênua e o
consenso demasiado sorridente. Dessa forma, deslocaram suas denúncias, em certo
sentido continuaram a criticar a mesma coisa com outras palavras: da mercadoria
passaram ao consumo; do capitalismo passaram ao princípio da ilimitação. Contudo,
inverteram a lógica das causas e efeitos. Se antigamente era um sistema global de
dominação que explicava os comportamentos individuais, agora são os indivíduos que
explicam o sistema global de dominação: os indivíduos não são vítimas desse sistema,
mas responsáveis por ele, são eles que fazem reinar a tirania do consumo. Segundo
Rancière, se seguirmos o raciocínio desses teóricos, podemos dizer que eles não se
queixam desse reino, nem das oligarquias financeiras e estatais. Eles se queixam, em
primeiro lugar, dos que as denunciam. Denunciar um sistema econômico ou estatal é
exigir que eles sejam transformados, contudo quem pode exigir, senão esses próprios
homens democráticos? É preciso levar a lógica ao extremo. Não só os vícios do
sistema são vícios dos indivíduos cuja vida é regida por ele, como os maiores culpados,
os representantes exemplares do vício, são os que querem mudar esse sistema, os
que propagam a ilusão de sua possível transformação, para ir ainda mais longe nesse
vício. Cabe, portanto, segundo a leitura desses teóricos, ao consumidor democrático
insaciável por excelência se opor ao reino das oligarquias financeiras e estatais.
Podemos reconhecer aí o grande argumento da reinterpretação de Maio de 1968,
infinitamente repetido: o movimento de 1968 foi apenas um movimento da juventude
sedenta de liberdade sexual e novas maneiras de viver que perseguiam na verdade a
renovação do capitalismo e a destruição de todas as estruturas, familiares, escolares
ou outras, que se opunham ao reino ilimitado do mercado, penetrando cada vez mais
fundo na espinha e no coração dos indivíduos. Dentro desse jogo, a palavra
democracia perde seu significado de política e passa a designar um sistema de
dominação que iguala aquele que sofre a dominação àquele que a denúncia. É a partir
da combinação desses dois personagens reais que determinados grupos desenham
o retrato falado do homem democrático: jovem consumidor imbecil de pipoca, reality
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72 show, safe sex, previdência social, direito à diferença e ilusões anticapitalistas ou alter
mundialistas. Com eles, os denunciantes, podemos dizer praguejadores, têm aquilo
de que precisam: o culpado absoluto de um mal que causa não só o império do
mercado ao qual os denunciantes se acomodam, mas a ruína da civilização e da
humanidade.
Instala-se então, segundo os praguejadores, o reino dos homens democráticos,
onde as coisas se sobrepõem umas sobre as outras constantemente tornando-se
quase que indistintas: novas formas da publicidade e as manifestações dos que se
opõem a suas leis; o respeito da diferença e as novas formas de ódio racial; o
fanatismo religioso e a perda do sagrado. Como nos diz Rancière3: “qualquer coisa e
seu contrário tornam-se a manifestação fatal desse homem “democrático” que conduz
a humanidade a uma perda que os praguejadores lamentam, mas lamentariam mais
ainda não ter de lamentar”. Por mais radical que queira ser seu dissenso, os
praguejadores obedecem à lógica da ordem consensual, pois fazem da democracia
uma noção indistinta a medida em que nutre o discurso oficial e apoia, em nome da
civilização democrática, as campanhas militares da plutocracia evangelista. Assim, a
palavra democracia se torna um operador ideológico que despolitiza as questões da
vida pública. Ela mascara a dominação das oligarquias estatais e econômicas,
primeiro identificando a democracia com uma determinada forma de sociedade e em
segundo, assimilando seu império aos apetites dos indivíduos democráticos. Para
ambas as oligarquias é necessário lutar contra a democracia, porque a democracia é
o totalitarismo.
A palavra democracia não foi inventada por um acadêmico preocupado em
distinguir por meio de critérios objetivos as formas de governos e os tipos de
sociedades. Ao contrário, foi inventada como termo de indistinção, para afirmar que o
poder de uma assembleia de homens iguais só podia ser a confusão de uma turba
informe e barulhenta que equivalia dentro da ordem social ao que é o caos dentro da
ordem da natureza. Entender o que a democracia significa é entender a batalha que
se trava nessa palavra: não simplesmente o tom de raiva ou desprezo que pode afetá-
la, mas, mais profundamente, os deslocamentos e as inversões de sentido que ela
autoriza ou que podemos nos autorizar a seu respeito. A democracia é a indistinção
do governante e do governado, que se revela quando a evidência do poder natural
dos melhores ou dos bem-nascidos é despida de seu prestígio; a ausência de título
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73 particular para o governo político dos homens reunidos, se não precisamente a
ausência de título. É por isso que a democracia não pode deixar de suscitar o ódio.
REFERÊNCIAS
1. RANCIÈRE, J. O Desentendimento: Política e Filosofia. São Paulo: Ed. 34. 1996. 2. FOUCAULT, M. Segurança, Território, População: Curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes. 2010. 3. RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo. 2014.