Post on 10-Oct-2015
IGREJA BATISTA DO CAMBU
ESCOLA BBLICA DOMINICAL
TEOLOGIA SISTEMTICA I
Material preparado pelo
Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho
Para uso exclusivo na Escola Bblica Dominical da Igreja Batista do Cambu, Campinas, S. Paulo. proibida a reproduo e utilizao fora da Igreja, sem a
autorizao por escrito do autor.
Parte Introdutria
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O estudo de Teologia Sistemtica deve ser baseado na Bblia. Por isso que, antes de
comearmos um estudo srio da Teologia, necessrio deixar bem definida uma coisa:
vamos estudar a Bblia e vamos us-la mais que qualquer outro livro. O fato de no
seguirmos um determinado livro da Bblia para estudar, como fazemos na Escola Bblica
Dominical, no significa ausncia de Bblia. Vamos estud-la. Esta apostila, inclusive, um
roteiro do estudo bblico, para facilitar uma viso sistemtica da Bblia, e no pretende ser
um substituto dela. Por isso, logo de incio, necessrio responder a uma pergunta: "como
podemos ter certeza de que temos um documento confivel em mo, quando estudamos a
Bblia?". Sim, como possvel acreditar que, ao longo dos tempos no houve modificaes
feitas pela Igreja ou por pessoas interessadas em apresentar certos pontos de vista?
Algumas pessoas costumam dizer que papel aceita tudo, para negarem o valor da Bblia.
Ento, como podemos crer que temos em nossa Bblia exatamente o que foi dito em tempos
remotos? Para responder a estas questes, transcrevo, a seguir, uma pastoral de boletim
que produzi para responder este problema embora formulada em outras palavras:
" POSSVEL LEVAR A BBLIA A SRIO?
Um crtico ignorante do assunto alegou no poder levar a Bblia a srio por no se
poder provar a autenticidade dos seus manuscritos que deram origem aos livros bblicos que
temos. Ao longo dos tempos, segundo ele, os cristos os modificaram, para impor suas
doutrinas. A Bblia teria sido mudada, segundo eles.
Tucdides, historiador aceito pelos estudiosos, viveu entre 460-400 a.C. Sua obra nos
chegou com oito manuscritos de 900 a. D. (1.300 anos depois de sua vida). Os manuscritos de
outro historiador, Herdoto, so mais raros, mas tambm aceitos, como os de Tucdides.
Chegaram-nos em poucas cpias, bem depois da sua vida. As obras de Aristteles, filsofo
grego, foram produzidas em cerca de 330 a.C. O manuscrito mais antigo de 1.110 d.C.
(1.400 anos aps sua vida). Nenhum filsofo impugnou Aristteles por isso. As guerras
gaulesas foram narradas por Csar entre 58 e 50 a. C., mas o manuscrito mais recente data
de 1.000 anos depois de sua morte. No entanto, todos eles so aceitos pelos historiadores
como dignos de confiana.
Teologia Sistemtica I
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Ningum negar o valor de A Ilada, de Homero, que tem 643 manuscritos. Pois bem,
do Novo Testamento temos cerca de 2.000 manuscritos, cpias de escritos dos anos 46 a 90
de nossa era, bem perto dos eventos, narrados por testemunhas oculares. Quanto ao Antigo
Testamento, em 1947, nas cavernas de Qumram, descobriram-se centenas de seus
manuscritos, alguns datando de 150 a.C. At onde se pde traduzir (e h lingistas cristos
bem preparados) o texto bate, palavra a palavra, com o que temos traduzido. No
manuseamos uma inveno humana, mas uma revelao verbalizada e cristalizada em escrita
h sculos.
Do ponto de vista bibliogrfico, a Bblia possui mais base manuscrtica que qualquer
outra pea literria da antigidade. S a m f dir que o texto foi modificado. No aceit-la
alegando modificao do texto ignorncia ou m f.
A questo que a Bblia incomoda as pessoas com suas exigncias morais e
espirituais, pedindo-lhes definio. Ela , ao mesmo tempo, uma carta de amor e um ultimato
da parte de Deus. Uma declarao de que ele nos ama, mas que nos chama a mudar a vida.
Promessas as pessoas querem. Compromisso, no. Seu ceticismo e sua incredulidade no
so intelectuais, mas morais. Como disse Mark Twain: "O que me incomoda na Bblia no so
as passagens que eu no entendo, mas sim as que eu entendo".
No cremos em algo feito por espertalhes, mas numa verdade que Deus revelou e
preservou atravs dos sculos. "Para sempre, Senhor, a tua palavra est firmada nos cus"
(Salmos 119.89). "
(escrito, originalmente, como pastoral do boletim da PIB de Manaus)
Os manuscritos dos quais dispomos no so da poca dos eventos. Mas de uma
gerao posterior. Esta outra questo a levantar. Como podemos ter certeza de que
relatam o que aconteceu? Duas respostas podemos dar para essas perguntas:
1) Embora seja histrica, a Bblia no um livro de histria. Guardemos isso,
tambm. Ela a interpretao da histria, considerando-se os atos que Deus efetuou na
histria dos homens. Como se l em xodo 3.18, Deus entrou na histria do seu povo, para
libert-lo. E toda ela mostra a histria de Israel e a histria da salvao que Deus oferece
humanidade. Por isso que a questo de no terem sido os manuscritos produzidos na
mesma poca dos eventos no to relevante. Mas mesmo assim, at mesmo o incrdulo
Parte Introdutria
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tem que reconhecer uma verdade: o relato bblico no uma inveno da Igreja, pois houve
anotaes escritas paralelas a muitos dos eventos, como se pode ler em xodo 24.4:
"Moiss escreveu todas as palavras do Senhor". Houve, tambm, a consulta a documentos
escritos que serviram de base na pesquisa feita pelo autor bblico. No Novo Testamento, por
exemplo, Lucas declara que investigou tudo "cuidadosamente" (Lc 1.3). Ficando na rea do
Antigo Testamento, bom saber que cada vez que temos em Gnesis a expresso "eis as
origens" ou "livro das geraes" ou ainda "estas so as geraes" (a palavra no hebraico
toledth) temos o incio de uma obra, provavelmente histrica na poca, empregada pelo
autor do livro. Ela aparece em 2.4, 5.1, 6.9, 10.1, 11.10, 11.27, 25.12, 25.19, 36.1 e 9 e 37.2.
O autor de Gnesis pode ter se valido de relatos de genealogias, que so muito valorizadas
e preservadas entre os orientais, para produzir o texto. Isto significa dizer que o texto tem
historicidade e que no trata de histrias do arco da velha....
2) Existe, ainda nos dias de hoje, uma preocupao muito grande por parte dos
orientais com a tradio oral. E isso era muito mais forte nos tempos antigos, quando a
escrita era custosa. Eles preservavam a sua histria e suas experincias, contando-a de
gerao para gerao. As histrias e narrativas eram repassadas de pai para filho. Assim
mantinham os fatos vivos na mente do povo. Preservada em sua essncia, a tradio oral,
at sua reduo escrita, manteve muitos dos eventos e muitas das histricas vidas na
mente do povo. Em conversas beira da fogueira, noite, ou beira do poo, os povos
nmades passam suas tradies culturais para as geraes mais jovens. Em tempos de
escrita rara, isto era feito muito mais forte, de maneira que o passado no se perdesse.
Assim podemos dizer que muito do sucedido com Israel foi contado e recontado para as
geraes seguintes. Vemos isso de maneira bem clara na instituio da pscoa, em xodo
12.25-27 (leiamos o texto), quando a experincia do passado, dramatizada em uma
cerimnia, deveria ser passada para os filhos. Desta maneira, podemos dizer, com
segurana, que aquilo que temos na Bblia no foi inventado nem criado em um momento,
mas contado, recontado e vivido por geraes, at que chegasse ao que temos em mo.
Alm disso, como cristos, cremos na inspirao das Escrituras, conforme se pode ler em
2Pedro 1.21.
Introduo
Unidade I
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Introduo - Por que vamos estudar teologia? Por que complicar a Escola Bblica
Dominical? Por que no podemos estudar a Bblia somente?. Estas perguntas podem ser
feitas por algumas vezes, com sinceridade, mas revelam alguns equvocos bem profundos.
O primeiro deles que no existe uma coisa como Bblia somente. Esta expresso j traz,
em si, alguns pressupostos (idias estabelecidas de antemo, antes de comear a
conversa) teolgicos. Por exemplo: ela presume que a Bblia um livro que deve ser
estudado (e isso, obviamente, por ser um livro inspirado). Ela pressupe que a Bblia no
deve ter nada nivelado a ela (ela um livro singular). Nossa forma de nos aproximarmos da
Bblia, a maneira como a estudamos, o valor que damos a ela, tudo isso produto de uma
atitude teolgica.
Estas perguntas tambm so um pouco preconceituosas. Elas mostram que a
pessoa que as faz pensa que teologia uma coisa complicada, rebuscada, sem valor algum
para a vida, e que at mesmo nega a Bblia. No entanto, a teologia a essncia da nossa
f. Em que cremos? A resposta a esta pergunta ser sempre teolgica. Ou seja, o que
respondermos ser teologia. Preguei numa reunio de jovens e a seguir, de forma pouco
educada, o lder da reunio disse: No quero saber de doutrina. Quero saber de Jesus !.
Voltei ao microfone e perguntei: Quem Jesus , para voc? Qualquer resposta que voc
d, ser uma resposta doutrinria!.
Disse um telogo chamado Gasgue: a teologia coisa importante demais para ser
deixada nas mos de profissionais. Tem verdade. A teologia crist uma propriedade de
toda a igreja de Jesus . E veremos isso nos estudos a seguir.
1. Definio - O que teologia? Ditas estas coisas, vamos definir o que teologia.
"Teologia" o termo advindo da juno de duas palavras gregas, theos, "Deus", e logos,
"razo, pensamento, palavra". "Teologia" , falando em termos de definio gramatical,
um estudo sobre Deus. E a Teologia Sistemtica pode ser definida como "a disciplina que
busca fazer uma exposio coerente das doutrinas crists, fundamentando-se nas
Escrituras, em dilogo com a cultura e a poca de sua formulao e em conexo com a
vida do telogo". Se a definio parece longa, vamos tentar explic-la.
2. Explicao - O fundamento da Teologia Sistemtica deve ser a Bblia. Isto a distingue da
Teologia Contempornea que busca responder s questes atuais muitas vezes valendo-
Teologia Sistemtica I
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se de explicaes filosficas. Distingue-a, tambm, da Teologia Patrstica, que explica a
f crist conforme formulada pelos chamados "pais da Igreja" (nome que se d aos
primeiros pensadores cristos que procuraram formular nossas doutrinas). Mas ela no
apenas um estudo das doutrinas crists luz da Bblia. Ela deve ter algo a ver com a vida
do telogo. A verdadeira teologia no pode ser feita num "tubo de ensaio mental". Isto
porque as doutrinas crists no so abstraes intelectuais, mas so a formulao, em
pensamentos humanos, dos pensamentos de Deus conforme expostos na Bblia. E Deus
no pode ser compreendido como se fosse matria intelectual. Numa frase de Helmuth
Thielicke, "o pensamento teolgico s pode respirar em uma atmosfera de dilogo com
Deus" 1. Na frase deste ilustre telogo alemo se observa a idia de que a verdadeira
teologia pressupe espiritualidade. Mais frente em sua obra, diz-nos ele:
Tenha em mente que a primeira vez que algum falou de Deus na terceira pessoa (falou sobre Deus, e no mais com Deus), foi no exato momento em que soou a famosa pergunta: assim que Deus disse?... (Gn 3.11). Este fato deveria fazer-nos pensar. 2
Com isto quero dizer que no se pode ter um real proveito no estudo teolgico
quando este feito de maneira acadmica, profissional, sem sentimento. Poder haver
crescimento intelectual, mas devemos lembrar o que diz a Escritura: "Ora, o homem natural
no aceita as coisas do Esprito de Deus, porque para ele so loucura; e no pode entend-
las, porque elas se discernem espiritualmente" (1Co 2.14). Uma atitude reverente e um
esprito humilde diante de Deus e de sua Palavra so ingredientes necessrios para um
estudo teolgico correto e proveitoso. Sem isto, poderemos ter muitas informaes sobre
Deus, mas no conheceremos a Deus. Por vezes, at mesmo numa classe de Escola
Bblica Dominical, a preocupao de alguns com pegadinhas para mostrar inteligncia ou
embaraar o professor. H alunos da EBD que gostam de se mostrar espertos... Isso
tambm no produz nada positivo. Uma das finalidades do estudo da Teologia o
crescimento espiritual. E isso se faz com seriedade, respeito e amor, nunca com esperteza.
A verdadeira Teologia no produz enfermidade, mas sade. Esta separao que se tenta
fazer entre conhecimento teolgico e espiritualidade falsa. Por isso, com corao aberto e
esprito reverente poderemos crescer teologicamente.
1 THIELICKE, Helmuth. Recomendaes aos Jovens Tologos e Pastores . Recife: SETE e S. Paulo: SEPAL,
1990, p. 58. 2 Ib. ibidem, p. 59.
Introduo
Unidade I
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3. As possibilidades de termos uma Teologia Sistemtica - Isto no colocaria a Teologia
Sistemtica numa rea subjetiva, em que cada um far sua interpretao pessoal? Se a
atitude de humildade e de reverncia do estudante de teologia indispensvel, no est
a nfase sendo colocada no homem?
Respondemos que no. So condies essenciais, mas aludem postura do
estudante e no aos fundamentos da Teologia. Pelo menos trs motivos nos mostram a
possibilidade de uma Teologia Sistemtica, de um estudo elaborado e profundo sobre Deus.
So eles:
(1) A existncia de Deus e seu relacionamento com o mundo. A Bblia no procura
nos provar a existncia de Deus. D-a como aceita e mostra-o como uma
Pessoa, que se relaciona com as demais, que se comunica, que mostra sua
vontade. No uma fora ou uma energia csmica impessoal, mas um Ser que
busca relacionamentos. O Deus da Bblia no o Deus distante, mas o Deus
relacional. Ou seja, o Deus que busca se relacionar com o ser humano. Se ele
se relaciona e se comunica, podemos ter uma teologia, ou seja, podemos estudar
algumas verdades sobre ele.
(2) A singularidade do homem, como "imagem e semelhana de Deus", com
capacidade de se relacionar com ele. O homem singular. Ele , de toda a
criao, o nico que pode olhar para fora de si, de sua existncia, com
pensamentos abstratos. Diz Eclesiastes 3.11 que Deus "ps na mente do homem
a idia da eternidade". Ele o nico que pode fazer metafsica (pensar alm das
coisas fsicas), que pode "teologar". Sendo inteligente, racional e tendo
capacidade de entender, o homem pode fazer teologia.
(3) A revelao. Cremos que Deus existe e que se revelou. Isto dito de maneira
bem clara em Hebreus 1.1-2. Ele se revelou na natureza (Sl 19.1 e Rm 1.19-20),
na histria (nos atos redentores a favor de Israel), pelos profetas e, por fim, em
Jesus Cristo. A estas expresses de sua revelao, todas objetivas, h uma
ainda, de carter subjetivo: ele se revelou na conscincia humana. "O esprito do
homem a lmpada do Senhor" (Pv 20.27). Esta revelao na conscincia pode
ser entendida por esta expresso de Billy Graham: "Em sua Crtica da Razo
Pura, Emanuel Kant dizia que apenas duas coisa lhe causavam assombro - os
Teologia Sistemtica I
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cus estrelados e a conscincia do homem". 3. Podemos chamar ao conjunto de
revelao na natureza e revelao na conscincia de "revelao geral", isto ,
elas pertencem a todos os homens. No dependem de algo sobrenatural.
Qualquer pessoa, mesmo que nunca tenha ouvido falar de Deus nem sequer
visto uma Bblia, tem em volta de si um mundo criado. Este mundo deve ser uma
chamada conscincia: quem fez isto? De onde surgiu isto?. Se Deus no
tivesse se revelado, nada poderamos saber dele Mas como se revelou, podemos
saber (Joo 3.27 esclarece este ponto). possvel, portanto, estudar sobre Deus.
Em nosso estudo vamos nos centrar, acima de tudo, na revelao que Deus fez na
histria, nos profetas e em Jesus Cristo. Isto porque esta revelao est contida nas
Escrituras Sagradas, que consideramos como Palavra de Deus. Numa expresso que
Francis Schaeffer gosta de empregar, ela a "revelao proposicional de Deus", ou seja,
uma revelao que foi formulada em proposies verbalizadas. Simplificando: foi feita em
expresses, em frases, de maneira que puderam ser ouvidas e podem ser lidas. Partimos
deste ponto: a autoridade das Escrituras, reconhecendo-a como Palavra de Deus. A Bblia
a Palavra de Deus e nela est tudo o que o homem precisa saber sobre Deus. Ditas estas
coisas, centremo-nos mais um pouco na questo da revelao de Deus.
4. A revelao de Deus - Os tempos em que vivemos so tempos de negao de um Deus
pessoal. O movimento nova era nos traz de volta o paganismo do passado e nos mostra
Deus como sendo uma energia ou como uma fora csmica. at intrigante que uma
gerao to avanada tecnologicamente seja to atrasada em matria de conceitos
espirituais. Em termos espirituais, voltamos ao passado pago. O paganismo do
movimento nova era se caracteriza pelo seu pantesmo. Este o nome que se d
doutrina de que Deus est em todas as coisas e todas as coisas so Deus. E uma das
caractersticas do pantesmo nova era levar as pessoas a acreditarem que existem
duendes, que as pirmides e os cristais tm energias, etc. Vemos isso at mesmo nos
desenhos animados. E em todo tipo de entretenimento, desde o filme "Guerra nas
Estrelas", com a expresso "Que a Fora esteja com voc". A mensagem passada por
3 GRAHAM, Billy. Mundo em Chamas. Rio de Janeiro: Editora Record, 1965, p. 124
Introduo
Unidade I
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este filme de fcil entendimento: a divindade uma energia csmica, uma fora, no
um Ser Pessoal. A continuidade da idia mostrada em "Guerra nas Estrelas" se deu com
He-Man: "Eu tenho a Fora". A idia da despessoalizao da Divindade continua (ou
seja, Deus no uma pessoa, mas uma coisa, uma energia, uma fora ou um
pensamento, ou, ainda, o prprio universo). As pessoas acreditam em si mesmas e em
energia de cristais e pirmides, mas no numa divindade pessoal. Do ponto de vista
filosfico, esta postura altamente incoerente. Foi abordada com muita consistncia por
Schaeffer em uma de suas obras, He is There and He is Not Silent 4 (Ele Est Aqui e No
Est Calado). A questo que ele levanta a seguinte: o ser humano se comunica. Pode
um ente que se comunica, o homem, ter sido criado por um Ser que no se comunica?
Se o criador do que se comunica no se comunica, o criador inferior criatura, o que,
teolgica e filosoficamente , no mnimo, uma situao incomum. Um homem que se
comunica (sinal de superioridade) no pode ter sido criado por algum que no se
comunica (sinal de inferioridade). Como cristos que somos, cremos que Deus se
comunica, que falou suas verdades ao homem atravs de outros homens, e que estas
verdades nos foram legadas no que chamamos de "Bblia". Ento voltamos a este ponto,
que nunca ser repetido em demasia: a Bblia a Palavra de Deus. Nela est a
comunicao que Deus fez, de si mesmo, aos homens. Ela o ponto de partida de toda e
qualquer discusso teolgica que venhamos a fazer. Fora da Bblia no se pode fazer
Teologia Sistemtica, ou seja, no se pode sistematizar os pensamentos sobre Deus. E
ela que deve ser o padro para avaliar toda e qualquer idia sobre Deus.
Mas isto nos traz um problema: o que queremos dizer com a declarao de que Deus
se revelou? Para esta resposta, fiquemos com uma declarao de um telogo chamado
Thiessen:
Pascal falou de Deus como um Deus Absconditus (um Deus escondido); mas afirmou que este Deus escondido se revelou e portanto pode ser conhecido. Isto verdade. Certamente, nunca poderamos conhecer a Deus se Ele no se tivesse revelado a ns. Mas o que queremos dizer com 'revelao'? Para ns, o ato de Deus pelo qual ele se mostra ou comunica verdade mente; pelo qual ele torna manifesto s suas criaturas aquilo que no pode ser conhecido de nenhuma outra maneira.5
4 SCHAEFFER, Francis. He is There and He is Not Silent. Miami: Logoi, 1974 5 THIESSEN, Henry. Palestras em Teologia Sistemtica. S. Paulo: Imprensa Batista Regular, 4 ed., 1997, p.
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Guardemos bem isto: temos uma revelao porque Deus se revelou, no porque o
homem a descobriu ou arrancou dele. Nas palavras, j citadas, de Joo Batista: "O homem
no pode receber coisa alguma, se no lhe for dada do cu" (Jo 3.27). Ns no descobrimos
Deus, como se ele fugisse de ns. Ele se mostrou humanidade e tem procurado por ela,
desde o den, como vemos na frase: Onde ests?. Ele nunca esteve escondido. A
humanidade que se esconde dele e s vezes se esconde dele nas dvidas.
Como j foi dito, o homem tem a revelao geral, isto , o conhecimento da natureza
e a sua prpria conscincia, sendo que ambas que o levam a reconhecer a existncia de um
Criador. O texto de Romanos 1 e 2 trata desta revelao geral. Romanos 1.18-31 (que deve
ser lido) trata da revelao natural e Romanos 2.14-16 (leiamos, tambm) discorre
especificamente da revelao geral na personalidade humana. Sobre a revelao na
conscincia, oportuno recordar as palavras do reformador Joo Calvino para quem os
homens tm sentimento da Divindade por instinto natural, posto em seus coraes. "Para
que os homens no permanecessem ignorantes dessas verdades, Deus escreveu, bem
dizendo, imprimiu, a lei no corao de todos".6 Isto significa dizer que cada pessoa tem,
dentro de si, uma disposio para Deus. Quando no crem na Divindade que se revelou na
Bblia, crem em deuses que fazem para si, porque no podem ficar sem crer em alguma
coisa.
Ao falar da revelao na natureza, Paulo bem enftico em mostrar que ela
suficiente para dar ao homem um conhecimento sobre Deus a ponto de servir para sua
condenao, caso ele no reconhea o poder de Deus (Rm 1.18-21). Alguns objetam que o
testemunho da natureza no pode ser visto como um testemunho forte sobre Deus e se
tornar um elemento indesculpvel para o homem. Mas pensemos nas palavras de um outro
telogo, chamado Erickson:
A linguagem dessa passagem clara e forte. difcil interpretar expresses como 'o que de Deus se pode conhecer' e ' manifesto' (v. 19) como uma referncia a outra coisa, a no ser uma verdade objetiva, cognoscvel acerca de Deus. De modo semelhante, 'porquanto, tendo conhecimento de Deus' (v. 21) e 'a verdade de Deus' (v. 25), indicam posse de conhecimento genuno e exato 7
6 CALVINO, Joo. Institucin de La Religin Cristiana. Buenos Aires: La Aurora, 1936, p. 29 7 ERICKSON, Millard. Introduo Teologia Sistemtica. S. Paulo: Edies Vida Nova, 1997, p. 48
Introduo
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Paradoxalmente, este conhecimento que a revelao natural d ao homem suficiente para conden-lo, como se observa bem no texto do apstolo Paulo, mas no suficiente para lhe mostrar o plano da salvao. Assim nos diz Paulo Anglada, professor no Seminrio Equatorial, em Belm:
A revelao natural , portanto, suficiente para condenar, mas no para salvar. Devido ao estado decado do homem, a revelao natural no clara nem suficiente para que as verdades necessrias sua salvao sejam compreendidas8.
A pessoa pode olhar para um belssimo por de sol e mesmo assim no se sentir
espiritualmente tocada. Acha que natural, sem qualquer significado espiritual. No se
sensibiliza. Quando o astronauta russo Gagrin foi ao espao (foi o primeiro homem a faz-lo)
sua palavra, ao retornar, foi esta: Estive no cu e no vi Deus em lugar algum. Um poeta
batista, de So Paulo, Giia Jnior, respondeu dizendo: Uma pessoa que no v Deus na sua
prpria vida no o ver em lugar algum. A prpria vida humana um milagre que exige um
Criador inteligente. Quem no reconhece isso, pouca coisa reconhecer. Mas de qualquer
forma, olhando para o testemunho que a natureza d, exigindo um criador, a pessoa deveria
procurar por ele. Se a natureza no d um testemunho claro do plano de salvao (nem
poderia, porque o plano da salvao est na pessoa de Jesus ) ela mostra que existe algum
maior que o ser humano e a quem este deveria reverenciar.
Corroborando a declarao de Anglada devemos lembrar a afirmao de Paulo: "Logo
a f pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo" (Rm 10.17).
O homem tem um conhecimento de Deus na conscincia e na natureza, mas tambm o
tem na histria. Deus falou atravs dos profetas de Israel. Os profetas viram os eventos
histricos e os interpretaram como sendo a ao de Deus. Eles anunciaram eventos histricos
que aconteceram, e mostraram-nos como sendo ao de Deus. Deus age e fala na histria,
portanto. O texto anteriormente citado de Hebreus 1.1-2 nos mostra que ele falou de "diversas
maneiras". Lendo este texto bblico podemos compreender bem o esquema de Calvino
mostrando o processo divino de comunicao ontem, a Israel, e a ns, Igreja, no presente:
ONTEM HOJE 1. Falou pelos profetas 1. Falou pelo Filho 2. Falou aos patriarcas 2. Falou-nos a ns 3. Falou em diversas ocasies 3. Falou no tempo do fim
8 ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura - a Doutrina Reformada das Escrituras. S. Paulo: Os Puritanos, 1998, p.
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O que este esquema nos mostra o que chamamos de "revelao progressiva". Isto
, Deus foi se comunicando de maneiras diferentes, gradativamente, at que, por fim, na
plenitude dos tempos (Gl 4.4) deu sua palavra final em Jesus Cristo. Sobre este grande
final na revelao, vejamos as palavras do erudito telogo alemo Joachim Jeremias:
Na sua carta Igreja de Magnsia, Incio fala de Cristo como o Logos de Deus: 'Jesus Cristo, que o Logos de Deus, saiu do silncio' (Magnsios 8.2). Incio pressupe que Deus estivera em silncio antes de enviar Jesus Cristo. O silncio de Deus uma noo que provm do judasmo, onde estivera ligada com exegese de Gn 1.3: 'E Deus disse: faa-se a luz'. O que havia antes de Deus falar? - perguntam os rabinos. E davam a resposta: o silncio de Deus. O silncio que precedeu a revelao de Deus na criao precedeu igualmente a revelao da clera contra o fara e se reproduzir antes da nova criao. No mundo helenstico, o 'Silncio' tornou-se o smbolo da mais elevada divindade. Existe at mesmo uma orao ao Silncio. No grande papiro mgico de Paris, chamado de 'Liturgia de Mitra', o mstico, que na rota do cu ameaado por deuses hostis e por potncias estelares, recebe o conselho de pr o dedo na boca e pela orao pedir ajuda ao Silncio: Silncio, Silncio, Silncio
- Smbolo do Deus eterno e imortal - Toma-me sob tuas asas, Silncio!
Prece comovente! Deus silncio. Est absolutamente longe e no fala. Diante deste silncio imperturbvel, o homem s pode levantar os braos e gritar: 'Toma-me sob tuas asas, Silncio!'. num mundo que considerava o silncio como um sinal de sua indizvel majestade que ressoa a mensagem da Igreja crist: Deus no mais silencioso - ele fala! De fato, ele j agiu; ele revelou o seu poder eterno atravs da criao, fez conhecer sua santa vontade, enviou seus mensageiros, os profetas. Mas, apesar de tudo isto, ele continuava cheio de mistrios, incompreensvel, imperscrutvel, invisvel, escondido atrs dos principados e potestades, detrs das tribulaes e angstias, atrs de uma mscara que era tudo o que se podia ver. Todavia, Deus no ficou sempre escondido. Houve um momento em que Deus retirou a mscara; de repente ele falou distinta e claramente. Isto se deu em Jesus de Nazar; isto se deu sobretudo na cruz. 9
Chegamos a este ponto: a revelao final, definitiva, de Deus se deu na pessoa de
Jesus Cristo. Antes, tudo era um pouco nublado e apenas uma sombra do que viria. Em
Cristo tudo se torna claro. Agora, prestemos ateno em algo que deve ficar bem claro.
Revelao progressiva no significa sair do errado para o certo, como se alguma parte da
9 JEREMIAS, Joachim. A Mensagem Central do Novo Testamento. S. Paulo: Edies Paulinas, 3 ed., 1986,
p. 114-115
Introduo
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Bblia fosse errada e depois se caminhasse para o certo. Significa, sim, ir do obscuro para o
claro. Significa ir do bem simples para o mais profundo. E h uma implicao, aqui, que no
pode ser deixada de lado: Jesus a chave para se entender a Bblia. No Moiss nem o
Esprito Santo, mas a pessoa de Jesus. Tudo deve ser analisado e entendido luz da
pessoa de Jesus. Muita gente, hoje, tem trazido o Antigo Testamento para dentro de nossas
igrejas e desejado que cumpramos suas recomendaes e guardemos suas festas. Ora,
no somos judeus. Somos cristos. E no podemos analisar o Novo Testamento pelo
Antigo, mas sim analisar o Antigo Testamento pelo Novo e este pela pessoa de Jesus.
Mas voltemos a Hebreus 1.2: "nestes ltimos dias a ns nos falou pelo Filho". A
expresso "ltimos dias" no deve ser entendida em termos escatolgicos, como se
referisse ao fim do mundo, mas em termos messinicos. So "os dias" na acepo
teolgica do termo "o dia de Iahweh" nos profetas: um dia em que Iahweh interveio na
histria. Jesus Cristo a interveno final e decisiva de Deus na histria em termos de
revelao. Jesus Cristo a revelao plena e cabal de Deus, sua expresso mxima. Em
Colossenses 1.15, Paulo diz "o qual (Jesus) a imagem do Deus invisvel". Imagem o
grego eikon, de onde nos vem "cone", que alm de "imagem" significa "gravura". Nesta
palavra se pode dizer que Cristo a figura exata de Deus. Quem quiser ver Deus deve olhar
para Jesus porque nele, mais do que em qualquer outro nvel, Deus se revelou. Por isso
Jesus pde dizer a Filipe: "Quem me viu a mim, viu o Pai" (Jo 14.9). Jesus o melhor
retrato de Deus que podemos ter. Uretta assim se expressou sobre este ponto:
Em Jesus Cristo revela-se, tambm, o que Deus , no em termos de declaraes e conceitos, mas em termos de uma pessoa concreta e to real que como em ns, em tudo foi tentado, mas sem pecado (Hb 4.15) 10.
O que h de mais profundo na revelao de Deus em Jesus Cristo que Deus se
revelou a si mesmo no de forma abstrata, em conceitos ou palavras, mas revelou-se
concretamente, em forma humana, embora sem pecado. Foi o mximo em matria de
revelao porque uma revelao altamente contextualizada, ou seja, no nvel da
existncia do destinatrio da revelao. A encarnao a mais profunda contextualizao
da mensagem divina. Deus contextualizou a mensagem, o mensageiro e o meio de
comunicar. Ele se comunicou tornando-se um como as pessoas que deveriam receber a
mensagem. S pode haver uma comunicao perfeita quando entramos no mundo da
10 URETTA, Floreal. Elementos da Teologia Crist. Rio de Janeiro: Juerp, 1995, p. 21
Teologia Sistemtica I
14
pessoa com nos comunicamos. Deus entrou no nosso mundo, na nossa experincia, como
homem, para ter uma comunicao perfeita conosco.
5. Deus ainda se revela? - Esta questo merece ser discutida e com bastante cautela. Se
dissermos que ele ainda se revela, estaremos dando oportunidade para revelaes
adicionais s Escrituras, alm de dizer que elas so incompletas. E no podemos aceitar
nem uma nem outra posio. Se dissermos que no se revela, corremos o risco de dizer
que ele no mais se comunica. O que tambm no podemos aceitar. Um dos postulados
da Reforma Protestante foi Sola Scriptura (S a Escritura) , no sentido que ela era guia
suficiente para a humanidade em seu relacionamento com Deus. Cremos que "toda a
Escritura inspirada por Deus" (2Tm 3.16). O termo grego usado para o adjetivo
"inspirada" theopneutos, composto de duas palavras gregas: Thes, "Deus" e pno,
"soprar". A idia que Deus soprou suas verdades para dentro do escritor bblico.
Cremos tambm que "homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Esprito
Santo" (2Pe 1.21). Mas a questo a ser considerada agora a seguinte: cremos que toda
a Escritura revelao, mas toda a revelao Escritura? Toda a revelao de Deus foi
"escriturizada" (reduzida a Escritura) ? "Embora as Escrituras sejam, na sua totalidade, a
Palavra de Deus, nem toda a Palavra de Deus est nela", afirmam alguns. Esta
afirmao est correta? Mais uma vez, uma declarao do Prof. Anglada nos ajuda no
rumo desta discusso:
Isto no significa que as Escrituras sejam exaustivas. As Escrituras no contm toda a vontade de Deus. O conhecimento a respeito de Deus e da obra so ilimitados. Muitas coisas a respeito do ser de Deus, dos seus atributos, da criao, do homem e dos propsitos eternos de Deus no foram reveladas. As prprias Escrituras afirmam que 'As coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus; porm as reveladas nos pertencem a ns e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei' (Dt 29.29) [...] Nas Escrituras tambm no nos so fornecidas todas as informaes concernentes vida e ao ministrio de Jesus na terra. Na verdade, elas no registram quase nada sobre os primeiros trinta anos da sua vida. O apstolo Joo encerra o seu Evangelho testificando quanto veracidade do seu contedo, mas reconhecendo: 'H, porm, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos' (Jo 21.25) 11
11 ANGLADA, op. cit., p. 74
Introduo
Unidade I
15
Como entender, ento, este problema? Elas so exaustivas ou no? Exaustivas quer
dizer exclusivas? Elas no so exaustivas no sentido de terem guardado dentro delas toda
a revelao de Deus, mas ela autoritativa (portadora de autoridade) em matria de
religio. E exclusivamente autoritativa, ou seja, nenhuma outra revelao pode competir
ou se ombrear a ela. Nenhum livro, palavra alguma de pregador algum, por mais culto e
santo que seja, pode se nivelar Bblia. Deus pode falar ao homem de muitas maneiras,
ainda hoje, mas em termos de revelao, a palavra dele final est na Bblia. neste sentido
que dizemos que ela a nossa nica regra de f. E neste sentido, ela exclusiva de
qualquer outra obra. Os mrmons tm O Livro do Mrmon e a Prola de Grande Preo
como regras de f, particularmente o primeiro. Da mesma forma os adventistas tm suas
fontes auxiliares de revelao. O ex-adventista Ubaldo Torres Pinheiro, convertido graa,
em uma igreja batista, escreveu o seguinte em uma obra sua:
Na ltima assemblia da Igreja Adventista do Stimo Dia, realizada em Dallas, Estados Unidos, no ms de abril do ano passado, foi aprovada uma resoluo onde se diz que Ellen White inspirada no mesmo sentido em que o so os profetas da Bblia e que como mensageira do Senhor, seus escritos so uma continuao e fonte autorizada de verdade 12
No podemos colocar escrito algum de pessoa alguma ou documento algum de
denominao alguma como regra de f ou como digna de aceitao sem contestao. Por
exemplo, como batistas, no aceitamos que a Declarao Doutrinria da Conveno Batista
Brasileira seja um documento digno de f. um documento muito bem feito, e, podemos
dizer, sem qualquer erro doutrinrio. Mas apenas um documento que expressa o que os
batistas crem, e que no pode ser equiparado Bblia. Ele pode ser um documento
indicativo do que cremos, mas nunca pode ser normativo do que cremos. Ou seja, ele
mostra o que cremos, mas no uma regra de f para ns. Indica a nossa f, mas no
nossa norma de f. Por isso que esses documentos devem sempre ser tidos como relativos
e temporais, ou seja, no so palavra ltima e esto restritos a uma poca, a um tempo
histrico determinado.
Deus ainda fala humanidade, mas em termos de se revelar, a revelao cessou.
No confundamos falar com revelar. Se dissssemos que Deus no fala aos homens, por
que pregaramos? Por que oraramos pedindo a Deus que nos orientasse em decises a
12 ARAJO, Ubaldo. O Adventismo . Edio do autor, sem mais dados, 1981, p. 96.
Teologia Sistemtica I
16
tomar? Cremos que Deus fala, mas no cremos que Deus se revela mais. Isso parece
confuso? Vamos explicar. Para se entender bem o que queremos dizer com esta declarao
preciso entender uma coisa: Deus no revelou verdades ou fatos, na sua Palavra. No
falou sobre alguns assuntos. Falou sobre si. Ele revelou-se a si mesmo. neste sentido que
dizemos que Jesus Cristo a palavra final de Deus. a revelao climxica (o clmax) de
Deus aos homens. Tudo o que Deus tinha para mostrar de si aos homens foi mostrado em
Jesus. O neo e o baixo pentecostalismo tm dado muita nfase " Palavra", mas parecem
agir como os neo-ortodoxos (um grupo teolgico liberal): usam o termo sem a conotao
conservadora. Nas mensagens de Valnice Milhomens, observei que vrias vezes ela se
referia " Palavra", mas no havia nenhuma citao bblica. Descobri que quando Valnice
fala de "Palavra" est falando da palavra dela, da mensagem dela. Muitos pregadores
confundem a Palavra com uma palavra . E muitas vezes colocam sua palavra pessoal como
sendo a Palavra de Deus. fcil de explicar: tanto o neo como o baixo pentecostalismo tm
dado muita nfase revelao, mas usando o termo no sentido de uma revelao pessoal
para a vida do indivduo, geralmente vinda pela instrumentalidade do pregador. Ento o
pregador se sente muito inchado, se julgando um porta-voz de Deus acima da maneira
como se deveria ver. A Bblia, em alguns crculos, tem deixado de ser normativa para ser
apenas um livro de milagres que no autoritativo em matria de doutrina. um registro de
milagres, mas no autoritativo, porque a autoridade fica com o pregador que tm revelaes
especiais de Deus13. Neste sentido, temos uma aberrao teolgica: ela lhes d autoridade,
mas no , em si mesma, autoridade. A autoridade a palavra deles. Isto muito perigoso,
alm de ser uma heresia. A Bblia passa a servir para justificar a posio que essas pessoas
do a si mesmas.
Um outro problema neste conceito de revelao no neo e baixo pentecostalismo a
nfase que colocada na experincia, na subjetividade. Por isto que neste trabalho no
abordo a questo que muitos telogos, como Strong e Thiessen, entre outros mais, seguem,
a do testemunho do Esprito Santo junto a ns para confirmar a validade das Escrituras. No
nego a obra do Esprito em nos confirmar as verdades divinas, at mesmo porque esta
uma de suas misses (Jo 16.13). O problema, para mim, que esta atitude torna a
discusso relativa por colocar no subjetivo, na experincia, o elemento que valida a
13 Veja, a propsito deste processo hermenutico, o livro Igreja Universal do Reino de Deus - Sua Teologia ,
Sua Prtica, da Comisso Permanente de Doutrina da Igreja Presbiteriana do Brasil
Introduo
Unidade I
17
autoridade. Porque qualquer pessoa pode emitir sua opinio alegando o testemunho do
Esprito Santo. Um mrmon, por exemplo, argido por um pastor batista sobre a duplicidade
de fonte de autoridade em sua confisso religio, tendo que conviver com a Bblia e com o
Livro do Mrmon, argumentou que "sentia que o Esprito lhe mostrava que a obra de Joseph
Smith era inspirada". Por isso, precisamos estabelecer desde j uma verdade teolgica que
deve ser imutvel: toda e qualquer discusso a respeito de postulados teolgicos dever ter
a Bblia como regra infalvel de f e elemento autoritativo sobre qualquer outra fonte. Nunca
deve ser o que pessoa sente, mas o que a Bblia diz. As pessoas podem sentir emoes
erradas. Neste sentido, a base de toda a nossa argumentao teolgica neste estudo ser a
crena na autoridade das Escrituras. Esta crena na sua autoridade nos vem da crena em
sua inspirao (ela soprada por Deus) e sua inerrncia (ela no contm erros), termo que
iremos caracterizar mais frente. por esta razo que a Declarao Doutrinria da
Conveno Batista Brasileira tem como seu primeiro tpico "As Escrituras Sagradas". O
pressuposto que no possvel elaborar uma Declarao Doutrinria sem uma base
proveniente das Escrituras. Primeiro se deve caracterizar o que se cr sobre as Escrituras
Sagradas para depois se discutir o restante. Ela a fonte e a base para qualquer discusso
teolgica. Guardemos isto tambm: tudo estudo teolgico deve comear pelas Escrituras,
seguir pelas Escrituras, e terminar com as Escrituras. A Bblia o incio, o meio e o fim de
nosso estudo. No o que a pessoa sente ou que a pessoa acha, mas o que a Bblia diz.
Ela que a Palavra de Deus e no o que achamos ou o que sentimos.
Por todas estas coisas que vamos entrar, agora, na unidade II, que trata da Bblia.
A Bblia
Unidade I I
19
1. A questo - Nesta altura do nosso estudo teolgico se presume que o estudante da
Escola Bblica Dominical j tenha informaes suficientes sobre a Bblia como Palavra de
Deus e o porqu de sua validade para ns. Se um aluno antigo, j sabe o que significa
a palavra Bblia, de onde vem, etc. So aspectos bem simples que j ficaram para trs.
Isto deve ter sido visto em muitos outros estudos de EBD. Desta maneira vamos discutir
agora trs aspectos: (1) os conceitos de inspirao, revelao e iluminao; (2) o
conceito de inerrncia; (3) o critrio hermenutico para interpretao da Bblia. E vamos
explicar o que critrio hermenutico. Que ningum desanime pensando que as coisas
vo se tornar difceis. Nosso trabalho tornar as coisas que parecem ser um pouco
difceis o mais claro possvel. E, propositadamente, como j dissemos, deixaremos de
lado questes como o que significa a palavra Bblia. Isso matria j estudada pelo
aluno da EBD quando foi junior. Estamos estudando Teologia.
2. Inspirao, revelao e iluminao - Estes trs conceitos caminham bem juntos,
mantendo uma estreita ligao entre si, e so muito necessrios para se compreender
bem o ensino da Escritura. Algumas vezes, pela estreiteza de sua proximidade,
confundem-se um com os outros, na maneira de nossos crentes se expressarem. "O
Pastor estava inspirado hoje", diz algum ao ouvir o sermo do pastor e gostar do que foi
dito. Entende-se o que o irmo quis dizer, mas do ponto de vista teolgico seria mais
correta a declarao: "O Pastor estava iluminado hoje". Isto no discusso ociosa nem
perda de tempo. Vamos esclarecer o sentido de cada palavra. Desde o incio, uma
declarao de W. C. Taylor, um dos maiores missionrios batistas pioneiros no Brasil,
nos ajudar a entender a relao destes conceitos entre si e o sentido de cada um:
Trs doutrinas vo sempre juntas, na inteligente apreciao do valor da Escritura: revelao, inspirao e iluminao. Para o autor (do texto bblico) veio a REVELAO; para a Escritura que ele transmite veio a INSPIRAO; para o leitor que busca saber por meio dela a verdade e a vontade de Deus, vir, nas condies de espiritualidade, a ILUMINAO. O profeta e o apstolo foram MOVIDOS. Suas Escrituras foram INSPIRADAS. Ns somos ILUMINADOS 14.
Feita esta observao, bem necessria, analisemos agora cada um dos conceitos
mencionados.
14 KASCHEL, Werner. "Revelao e Inspirao no Velho Testamento" , in Revista Teolgica, ano VI, no. 11,
janeiro de 1955, p. 81. O trecho entre parntesis meu, para esclarecer a c citao de Kaschel.
Teologia Sistemtica I
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(1) Inspirao - O termo nos vem do latim inspiro, que significa "soprar para dentro".
"Inspirao" significa que Deus soprou para dentro do autor bblico a sua verdade (reveja a
definio de "inspirada" de acordo com o termo grego). Obviamente que isto no literal,
como se o escritor bblico fosse um balo de encher com sopro, mas sim que Deus colocou
sua verdade na mente do autor. Com isso queremos dizer que as Escrituras so inspiradas
no sentido de que Deus soprou para dentro delas o que tinha de dizer ao homem. O
contedo das Escrituras no uma especulao ou uma descoberta humana aps uma
longa e cansativa pesquisa filosfica. Deus at poderia usar este mtodo. Afinal, muito dos
livros histricos podem ter sido produzidos aps pesquisa (a citao de O Livro dos Justos e
O Livro das Guerras do Senhor mostram isso) e os livros de Provrbios e de Eclesiastes
podem ter sido produto de uma longa reflexo. E, sem dvida, Moiss usou material de
outras fontes ao escrever suas obras, se ele o autor de Gnesis. Mas seja qual foi o
mtodo que o autor usou ou que Deus usou com o autor, isto inspirao. Foi Deus quem
colocou na mente e no corao do escritor bblico a capacidade de apreender e de registrar
sua Palavra. Assim dizemos que a Bblia nasceu no corao e na mente de Deus. E ele
soprou suas idias para o homem. Isto inspirao.
Mas creio que ainda necessrio mais uma observao nesta rea. Ela nos vem de
Estevan Kirschener:
A autoridade delegada, porm, reside especificamente na Palavra, pois a Palavra de Deus. Neste sentido, tambm h uma certa confuso quanto ao conceito de inspirao. Na realidade, o que inspirado no o escritor humano, mas sim o texto bblico; Toda Escritura inspirada. O termo inspirada (theopneustos) , de 2 Timteo 3.16, expressa, mais do que qualquer outra coisa, que o produto final de todo o processo, a Escritura, o que possui a qualidade de ser Palavra de Deus e, portanto, autoridade divina. Os escritores humanos foram conduzidos (pheromenoi) pelo Esprito Santo para que registrassem o texto 'soprado por Deus', o qual possui a autoridade de Palavra de Deus e cuja prerrogativa ser obedecido (2Pe 1.21, cf. 1.19) ". 15
(2) Revelao - O termo significa "tirar o vu" e mostrar algo que estava encoberto.
Neste sentido, "revelao" o contedo registrado pela inspirao. A relao entre os dois
termos pode ser definido assim: a inspirao o automvel e a revelao o passageiro.
Quando dizemos que "Deus se revelou" estamos dizendo que ele tirou o vu que o encobria
15 KIRSCHENER, Estevan em artigo "O papel normativo das Escrituras", in Vox Scripturae, vol. Ii, nmero 1,
maro de 1992, p. 7.
A Bblia
Unidade I I
21
diante dos homens (lembre-se da citao de Joachim Jeremias sobre Deus ter dado sua
ltima palavra em Jesus) e se deu a conhecer humanidade. O propsito da Bblia trazer
a auto-revelao de Deus aos homens. Ele no revelou fatos ou o futuro ao homem. Estes
so acidentais. Tambm no revelou questes pessoais, sobre o que comer ou o que no
comer. H regras alimentares no Antigo Testamento, mas elas fazem parte de um contexto
que passou. O propsito da Bblia falar de Deus. Ele revelou-se a si mesmo.
Esclareamos a questo com a prpria Bblia. J sabemos que Jesus o clmax da
revelao de Deus. Ento podemos entender bem este ponto com o texto de Joo 1.18:
"Ningum jamais viu a Deus. O Deus unignito, que est no seio do Pai, esse o deu a
conhecer". Jesus a maior revelao de Deus e a finalidade da revelao tornar Deus
conhecido dos homens. Nele, o Pai se d a conhecer aos homens.
Devemos, antes de considerar iluminao, deixar bem clara a conexo existente
entre revelao e inspirao. Pensemos, ento, nestas palavras de um telogo chamado
Chafer:
Revelao e inspirao esto estreitamente ligadas., mas distinguem aspectos da verdade bblica. Nas Escrituras, ambas, inspirao e revelao, se combinam para nos assegurar que a Bblia a Palavra de Deus e revela fatos sobre Deus com completa acurcia. A revelao foi o ato da divina comunicao aos escritores da Escritura. Inspirao foi a obra de Deus em guiar e dirigir os escritores da Bblia para que o que eles escrevessem fosse absoluta verdade mesmo quando estivesse alm do seu entendimento. A inspirao foi limitada Bblia em si, e mais adequado dizer que as Escrituras foram inspiradas do que dizer que os escritores foram inspirados 16
(3) Iluminao Esta palavra significa "fazer a luz brilhar". Ns no somos inspirados
simplesmente porque no recebemos a revelao, mas somos iluminados para conhec-la.
Entendemos mais isto luz de uma palavra de Paulo: "sendo iluminados os olhos do vosso
corao, para que saibais qual seja a esperana da vossa vocao, e quais as riquezas da
glria da sua herana nos santos" (Ef 1.18). A iluminao para que os crentes descubram
as grandes verdades reveladas por Deus na sua Palavra e sua aplicao para as suas
vidas.
A conexo entre estes trs conceitos nos possibilita compreender um pouco mais
como Deus se revelou e como podemos receber, hoje, essa revelao.
16 CHAFER, Lewis. Systematic Theology. Wheaton: Vicotr Books, 1988, vol. I, p. 63.
Teologia Sistemtica I
22
3. O conceito de inerrncia - O conceito de inerrncia pode ser bem descrito nas palavras
da Declarao Doutrinria da Conveno Batista Brasileira sobre a Bblia: "seu contedo
a verdade, sem qualquer mescla de erro, e por isso um perfeito tesouro de instruo
divina" 17. A Bblia no tem erros, portanto. Mas uma questo deve ser levantada: em
que sentido seu contedo a verdade? A Bblia toda a verdade? Isto diferente de
perguntar se toda ela verdade. Cremos que tudo o que ela diz verdade. Mas s existe
verdade nela? Ela toda a verdade? Ela est sempre certa, mesmo quando faz
declaraes que no podem ser sustentadas e so at refutadas? O episdio do sol e da
lua detidos por palavra de Josu (Js 10.12-15) refletem uma viso geocntrica (a Terra
seria o centro) do universo, antes de Coprnico e que no pode ser sustentada por
ningum, nem pelo crente mais fiel. Sabemos hoje que o universo heliocntrico (o Sol
o centro). Como entender isto? Outro aspecto: a viso do mundo conforme o
pensamento dos hebreus do Antigo Testamento a de um edifcio com trs pisos, um
subterrneo, o xeol, o nosso nvel que seria o trreo, e o espiritual, que o pavimento
superior. possvel harmonizar estas idias com o nosso conhecimento hoje? Para
alguns vultos cristos do passado, a inspirao das Escrituras produziu uma inerrncia
absoluta e de acordo com eles e seus seguidores, hoje, a resposta seria "sim". Veja-se
esta declarao de Boice:
O estudioso mais erudito da igreja primitiva foi Orgenes. Para ele, a inspirao se estendia at aos iotas das Escrituras e s letras. As Escrituras no continham falha alguma, sendo inspiradas pelo Esprito Santo. Acrescentou ele que esta doutrina da infalibilidade era ensinada em todas as igrejas. 18
No podemos, no entanto, insistir nesta postura de Orgenes. Crer que Deus
inspirou as palavras e as letras da Bblia pode nos trazer mais dificuldades do que
pensamos, primeira vista. Como fazer, por exemplo, com as diferenas textuais que
temos, que evidenciam um erro no manuscrito? Um exemplo: em Isaas 9.3, o Texto
Massortico (o texto escrito em hebraico), em vez de "a alegria lhe aumentaste" traz " a
alegria no aumentaste". Em vez de lw (para ele), o TM traz l (no). O copista cometeu
uma homofonia, isto , trocou palavras homfonas, palavras que tm sons parecidos. O
sentido do texto ficou sendo completamente diferente. O texto hebraico no faz sentido por
17 Declarao Doutrinria da CBB, artigo I. 18 BOICE, James. O Alicerce da Autoridade Bblica. S. Paulo: edies Vida Nova, 1982, p., 30. A declarao
de Orgenes est na sua Homlia sobre Nmeros 27.1.
A Bblia
Unidade I I
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causa do erro do copista. A Verso Revisada traduziu diferente do texto hebraico e traz "lhe
aumentaste". A Verso Matos Soares traduziu o texto hebraico e traz : "no aumentaste". 19
O versculo ficou sem sentido. E teramos um problema: qual das duas verses estaria
correta?
A contra-argumentao que Deus inspirou o autgrafo (ou manuscrito) original, aquele
produzido pelo escritor bblico, e no as cpias que dele se fizeram. Mas desde que no
temos acesso a esses autgrafos ou originais, que diferena isso far? Por isso que
devemos definir esta questo: a inerrncia textual ou conceitual? Ou seja, literal ou
plena? inerrncia dos conceitos ou das palavras? Voltando ao ponto anterior: quando a
linguagem cientfica enfocada pela Bblia mostra estar equivocada, como proceder?
Vejamos esta declarao de Lindsell:
A inspirao est inextrincavelmente ligada autoridade e inerrncia. Charles Hodge percebeu isso quando foi inquirido se a Bblia continha equvocos histricos e cientficos. Ele asseverou que h uma diferena fundamental entre os que os escritores bblicos pensaram e escreveram em nvel pessoal e o que eles escreveram nas Escrituras. Eles podiam crer que o Sol gira ao redor da Terra, mas eles no ensinaram isso na Escritura. A linguagem da Bblia a linguagem do cotidiano e baseada no aparente. Foi usada uma linguagem fenomenolgica, como ainda hoje usamos 20.
Sobre os erros dos copistas, aqui entra o trabalho do tradutor, que se no
inspirado, deve ser iluminado. Entra, tambm, o trabalho do exegeta (o pregador ou escritor
que extrai as verdades da Bblia para comunicar aos homens), que se no inspirado, deve
ser iluminado. E a reverncia e submisso do crente para com a Escritura para entender
bem qual o seu propsito. A compreenso da verdade divina no inclui apenas a
revelao e a inspirao, mas tambm a iluminao. Isto necessrio de se repetir para
que fique bem ntido em nossa mente.
Mas voltemos linha de argumentao anterior. O que dizer da inerrncia, ento, se
h erros de copistas? A primeira coisa a dizer que isso no tira a autoridade da Bblia. Se
pedssemos a uma pessoa para digitar um texto bblico no computador e a pessoa errasse
19 Para mais exemplos de erros de copistas, veja o captulo "A Baixa Crtica do Antigo Testamento" em
ARCHER, Gleason. Merece Confiana o Antigo Testamento?. S. Paulo: Edies Vida Nova, 2 ed., 1979. 20 TENNEY, Merril (ed.). The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible. . Grand Raids: Zondervan
Publishing House, 2 ed., 1977, 3 volume, p. 289. Sobre a linguagem fenomenolgica usada ainda hoje: falamos que o Sol se pe, quando no assim. O movimento no dele, mas da Terra. Do ponto de vista cientfico, a linguagem tambm est errada. O Sol no nasce nem se pe, mas a Terra que se move.
Teologia Sistemtica I
24
alguma tecla, o texto sairia com incorrees. No deveramos desprezar o trabalho, mas
corrigir os erros de digitao (no do texto bblico). Os copistas no invalidaram a obra
inspirada de Deus. O que temos que fazer entender onde cometeram equvocos e,
iluminados pelo Esprito Santo, tentar entender o que Deus disse.
H trs opes no conceito de inerrncia. Vejamos cada um deles e busquemos
situar-nos aqui.
O primeiro a inerrncia absoluta, que sustenta que a Bblia absolutamente correta
mesmo quando emite opinies cientficas e histricas que so contraditadas hoje. Nesta
postura, os escritores bblicos tinham a inteno e a possibilidade de oferecer conhecimento
cientfico e histrico exatos. Novamente um exemplo para nosso raciocnio. 2Crnicas 4.2,
falando do mar de fundio, diz que seu dimetro era de 10 cbitos, enquanto que a
circunferncia era de 30. Mas a circunferncia de um crculo pi (3,14159) vezes o
dimetro. Se o mar de fundio era realmente circular, temos aqui um equvoco bblico que
exige explicao.21 Mas os defensores da inerrncia absoluta mantm sua posio e
apresentam suas explicaes, nem sempre convincentes.
O segundo a inerrncia plena. Basicamente ele segue a mesma linha de absoluta,
mas diz que o propsito da Bblia no prestar informaes cientficas e histricas, mas
quando o faz, est correta. As discrepncias devem ser entendidas como "referncias
fenomenais", ou seja, como se apresentam aos olhos humanos. No so exatas
rigorosamente falando, mas como se apresentam aos olhos humanos., como os homens
captaram o fenmeno.
O terceiro a inerrncia limitada. Ela tambm aceita a Bblia como infalvel e
inerrante mas em suas doutrinas, no seu discurso sobre Deus. No a considera como
antiintelectual ou obscurantista, mas reconhece que h assuntos empricos (provados e no
de f), naturais, e assuntos no-empricos, os revelados. A Bblia deve ser entendida como
um livro de assuntos no-empricos, isto , assuntos espirituais, e no um manual de cincia
ou de histria. Eis o que nos diz Erickson:
A revelao e a inspirao no colocam os escritores acima do conhecimento habitual. Deus no lhes revelou a cincia ou a histria. Por conseguinte, nessas reas, a Bblia bem pode conter o que chamaramos de erros. Isso, porm, no
21 Este exemplo foi tomado de Erickson, op. cit., p. 80, na sua discusso sobre os conceitos de inerrncia aqui
alistados.
A Bblia
Unidade I I
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tm grandes conseqncias. A Bblia no se prope a ensinar cincia nem histria. Mas dentro dos objetivos para os quais foi dada, a Bblia plenamente verdadeira e inerrante. 22
Esta discusso tem boa dose de valor, mas creio que ela relativa e no absoluta.
Discutir a inspirao de letras e palavras bem como tentar ver declaraes cientficas ou
histricas na Bblia pode desvirtuar seu real sentido para ns. Afinal, esta no a sua
finalidade. Voltamos a este ponto: ela no um manual de cincia. necessrio
reafirmarmos nossa crena na Bblia como Palavra inspirada de Deus aos homens. Isso
inegocivel, como verdade teolgica. No abrimos mo disso. Mas devemos deixar bem
claro que seu propsito fundamental mostrar Deus humanidade e no cuidar de
aspectos perifricos ou secundrios. Porque seno corremos o risco de olhar as rvores e
no ver a floresta, ou cuidar do varejo e deixar o atacado. A finalidade da Bblia, como bem
nos diz a Declarao Doutrinria da Conveno Batista Brasileira, "revelar os propsitos
de Deus, levar os pecadores salvao, edificar os crentes, e promover a glria de Deus" 23. Devemos ter isto sempre em mente. Tentar harmoniz-la com a cincia pode nos trazer
um problema maior ainda: a cincia evolutiva, mutvel e recebe novas descobertas. Deus
no quer ensinar cincia na Bblia, mas o caminho da salvao. Afirmaes que hoje so
sustentadas pelos cientistas, amanh sero desmentidas, como as de hoje fazem com as
de ontem. Teremos que reinterpretar a Bblia luz de cada nova descoberta. Estaremos
sempre refazendo a doutrina crist. Por isso, reconhecendo seu campo e seu propsito,
sabendo do que ela trata, consideramos uma verdade inicial: em tudo que ela ensina sobre
Deus sua autoridade ltima. Livro algum a supera nem homem algum pode presumir que
se colocar acima dela. Mas no devemos fazer cincia com a Bblia.
4. Uma formulao teolgica da doutrina da revelao especial - O esquema seguinte de
Hammett24 e o crdito deve lhe ser dado. Ele nos ajuda a entender mais a questo de
como nossa doutrina da revelao especial de Deus pode ser entendida:
1 Passo - Os pensamentos na mente de Deus
2 Passo - Os pensamentos na mente do autor >>>>> REVELAO
22 ERICKSON, op. cit., ps. 80-81 23 Declarao Doutrinria da CBB, artigo I. 24 HAMMETT, John. Apostila Para os Alunos de Teologia Sistemtica. North Carolina, apostila no
comercial, 1995, p. 22
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3 Passo - Estes pensamentos na forma escrita >>>> INSPIRAO
4 Passo - Coleo completa destes escritos num livro >>>>> CANONIZAO
5 Passo - Cpias e tradues deste livro >>>>>RESERVAO
6 Passo - Os pensamentos de Deus em ns hoje >>>>> ILUMINAO
No tratamos nesta apostila dos conceitos de canonizao (como o Esprito
selecionou quais livros deveriam fazer parte da Bblia) e preservao (como Deus manteve
os documentos que deram origem aos livros da Bblia), porque so temas que fogem ao
nosso propsito. Mas preste-se ateno nos conceitos e no que cada um significa.
Podemos confiar em que temos uma Escritura digna de confiana? A resposta uma
s, sem dvida: sim! Cremos que Deus se revelou a si mesmo, inspirando os homens que
escreveram a Bblia. Cremos que por ao sua, em obra do Esprito Santo, o cnon bblico
foi formado, e que por preservao, tais manuscritos nos chegaram s mos. No temos os
autgrafos originais, mas a cincia bblica que trata da cannica (o estudo do cnon) pode
nos assegurar que temos hoje tradues de originais antigos e confiveis. Cremos tambm
que um intrprete, bem capacitado e sob iluminao do Esprito Santo, pode trazer os
pensamentos da mente de Deus ao homem contemporneo. Cremos que uma congregao
sria, reverente, buscando conhecer a Palavra de Deus e no apenas buscando um culto
agitado, pode ouvir a voz de Deus na Bblia. Esta razo pela qual buscamos um estudo
srio da Bblia e procuramos primar por uma apresentao coerente de seu contedo.
Encerrando a discusso sobre a Bblia, mesmo que um pouco fora de contexto em
termos de argumentao, que fiquem conosco as palavras de Immanuel Kant: "A existncia
da Bblia a maior bno que a humanidade jamais experimentou" 25. E verdade. Sem a
Bblia, quanto de ensino proveitoso este mundo teria perdido!
4. O CRITRIO HERMENUTICO Hermenutica o nome que d cincia da
interpretao. Critrio hermenutico o padro que vamos usar para interpretar a Bblia.
Vamos estabelecer alguns princpios, desde j, com base no que estudamos.
25 SAYO, Lus. Cabeas Feitas - Filosofia Prtica Para Cristos. S. Paulo: Grupo Interdisciplinas Cristo, 2
ed., 1998, p. 57
A Bblia
Unidade I I
27
(1) Sendo toda Palavra de Deus, a Bblia no pode se contradizer. Deus no se contradiz. Quando encontrarmos um versculo que, aparentemente, se choca com outro versculo, no temos o direito de jogar um contra o outro. Eles devero ser interpretados luz do contexto histrico, cultural, da gramtica e do propsito do livro. Esta matria no de Teologia Sistemtica, mas esta informao deve ser dada. H pessoas, tolas e que gostam de se colocar sob holofotes, que tm prazer em procurar passagens bblicas que, aparentemente, contradizem outra. Infantilidade.
(2) Se Jesus Cristo revelao final de Deus (relembre Hebreus 1 e 2), ele a chave hermenutica para se entender a Bblia. Lembre-se do que est na pgina 12: o Novo Testamento que interpreta o Antigo Testamento. Sem Jesus, a Bblia no tem sentido. Sem Jesus , a leitura do Antigo Testamento incompleta. Leia 2Corntios 3.14-16. Em outras palavras, o que est sendo dito ali isto: quando um judeu se converte a Jesus, o vu da antiga aliana (o Antigo Testamento) removido em Cristo. em Cristo que se pode entender a Bblia. Ele a reinterpretou. Veja, em Mateus 5.21-22, 5.27-28, 5.31-32, 5.33-34, 5.38-39, como ele afirma sua autoridade sobre a de Moiss. Em 5.43-44 (a lei no mandava odiar os inimigos, mas sim os fariseus e os essnios) como ele afirma sua autoridade sobre a dos lderes religiosos. Toda a Bblia deve ser entendida luz da pessoa de Jesus. O Antigo Testamento era uma preparao para ele. O Novo Testamento a confirmao da vida e ministrio dele. Por isso que o Antigo deve ser entendido luz do Novo.
5. A DECLARAO DOUTRINRIA DA CBB - ESCRITURAS SAGRADAS -
Transcrevemos, a seguir, o trecho da Declarao Doutrinria da Conveno Batista
Brasileira sobre "Escrituras Sagradas". o tpico I, o que mostra o entendimento da CBB: o
ponto de partida para confeco de seus postulados doutrinrios a Escritura, a Palavra de
Deus. O ideal que o estudante da Bblia veja cada tpico da Declarao e examine as
passagens bblicas.
A Bblia a Palavra de Deus em linguagem humana (1). o registro da
revelao que Deus fez de si mesmo aos homens (2). Sendo Deus seu
verdadeiro autor, foi escrita por homens inspirados e dirigidos pelo Esprito
Santo (3). Tem por finalidade revelar os propsitos de Deus , levar os pecadores
salvao, edificar os crentes, e promover a glria de Deus (4). Seu contedo
a verdade, sem mescla de erro, e por isso um perfeito tesouro de instruo
divina (5). Revela o destino final do mundo e os critrios pelos quais Deus
julgar todos os homens (6). A Bblia a autoridade nica em matria de
religio, fiel padro pelo qual devem ser aferidas a doutrina e a conduta dos
Teologia Sistemtica I
28
homens (7). Ela deve ser interpretada sempre luz da pessoa e dos ensinos de
Jesus Cristo (8).
(1) Salmos 119.89, Hebreus 1.1, Isaas 40.8, Mateus 24.35, Lucas 24.44-45, Joo
10.35, Romanos 3.2, 1Pedro 1.25, 2Pedro 1.21
(2) Isaas 40.8, Mateus 22.29, Hebreus 1.1-2, Mateus 24.35, Lucas 24.44-45 e
16.29, Romanos 16.25-26, 1Pedro 1.25.
(3) xodo 24.4, 2Samuel 23.2, Atos 3.21, 2Pedro 1.21
(4) Lucas 16.29, Romanos 1.16, 2Timteo 3.16-17, 1Pedro 2.2, Hebreus 4.12,
Efsios 6.17, Romanos 15.4
(5) Salmo 19.7-9, Salmos 119.105, Provrbios 30.5, Joo 10.35, e 17.17, Romanos
3.4 e 15.4, 2Timteo 3.15-17
(6) Joo 12.47-48, Romanos 2.12-13
(7) 2Crnicas 24.19, Salmo 19.7-9, Isaas 34.16, Mateus 5.17-18, Isaas 8.20, Atos
17.11, Glatas 6.16, Filipenses 3.16, 2Timteo 1.13
(8) Lucas 24.44-45, Mateus 5.22, 28, 32, 34, 39, Mateus 17.5 e 11.29-20, Joo 5.39-
40, Hebreus 1.1-2, Joo 1.1-2 e 1.14.
A Doutrina de Deus
Unidade I I I
29
Comecemos o estudo sobre a doutrina de Deus com uma declarao de Agostinho:
"nenhum homem diz 'Deus no existe', a no ser aquele que tem interesse em que ele no
exista" 26. A frase do ilustre telogo do sculo V tem um sentido bem claro: para ele a
dvida ou negao sobre a existncia de Deus tem muito mais base tica do que intelectual.
O homem no cr no porque isto seja um absurdo intelectual, uma ofensa sua
inteligncia, mas simplesmente porque no quer crer. Declarar a existncia de Deus traria
implicaes ticas. Na maior parte das vezes, segundo Agostinho, a negao da existncia
de Deus mais moral do que intelectual. melhor no crer do que crer, para a pessoa que
no quer levar uma vida correta. Dizer que a Bblia a Palavra de Deus e viver
contrariando-a nas suas atitudes um contra-senso. Ento, melhor neg-la ou no ligar
para ela.
H uma boa dose de verdade nestas palavras. Mas muitas pessoas gostariam,
sinceramente, de crer em Deus e enfrentam dificuldades para fazer assim. O ensino de
Freud, por exemplo, amplamente divulgado em sua obra O futuro de uma iluso (que uma
crtica bem dura ao sentimento religioso) , de que Deus a ampliao da figura paterna.
No foi Deus quem criou o homem, mas este que criou Deus. No ser Deus uma mera
personificao dos anseios humanos? O que a Bblia tem a dizer para provar a existncia de
Deus? De incio, digamos que esta no a preocupao da Bblia. Como j foi dito, ela
parte do pressuposto de que Deus existe e que seus leitores aceitam tranqilamente este
fato. Para ela, negar sua existncia um ato prprio do nabhal, que a palavra hebraica
para designar o homem insensato de Salmos 14.1. verdade que o atesmo do texto
mais de ordem pragmtica (conduta) que filosfica (pensamento), mas permanece o
princpio. Afinal, possvel ter-se noo da existncia de Deus, conforme lemos em
Romanos 1.20. A Bblia no tem a preocupao de provar que Deus exista, mas no
impede que se tente faz-lo. Ao longo da histria, a Igreja tentou. No tendo a preocupao
de gastar espao com este assunto, pois estamos discutindo a pessoa de Deus e no
tentando provar sua existncia, fiquemos com uma citao de Hammett:
... A Bblia d algum apoio s provas cosmolgica e teleolgica (Atos 17.24-29, Romanos 1.20) e moral (Romanos 2.14-15). Tambm, h evidncia cientfica e filosfica para a existncia de Deus. Esta evidncia pode ser usada para fortalecer a f dos crentes e responder s perguntas intelectuais dos no-crentes, mas no necessrio nem possvel provar a existncia de Deus. No
26 Ib. ibidem, p. 56
Teologia Sistemtica I
30
necessrio porque cada pessoa j sabe que Deus existe (Rm 1.20); no possvel provar completamente a existncia de Deus porque questo de f (Hb 11.6). Crer na idia de tesmo ou atesmo questo de f. Toda pessoa tem f em alguma coisa. A existncia de Deus no a questo mental, mas moral: vamos aceitar que Deus existe e que somos responsveis diante dele? 27
Nas palavras de Hammett est a mesma formulao de Agostinho: crer na existncia
de Deus implicaria na responsabilidade de viver corretamente diante dele. E isto nem
sempre as pessoas esto dispostas a pagar. Como disse Kierkegaard, saber se Deus existe
no relevante, mas o relevante saber se Deus relevante para mim. A discusso sobre
a existncia ou no de Deus, que foi muito forte nos anos sessentas, perdeu muito de sua
fora, atualmente. Eis uma observao nesta linha, feita por Blank:
H aproximadamente cinqenta anos, no meio cientfico, era moda negar a existncia de Deus. Hoje em dia, aps as ltimas descobertas das cincias da natureza sobre a estrutura fascinante do universo, o incio do cosmo e os mecanismos complexos da evoluo, so os grandes cientistas que, pelo contrrio, admitem que Deus deve existir. Encontramos tais declaraes com Einstein e Max Planck e, mais recentemente, com J. E. Charon e outros 28.
A seguir, na sua obra, Blank alista algumas declaraes de alguns cientistas
contemporneos, declaraes bem cuidadas, em que a necessidade de um Ser supremo
mostrada como resposta necessria para o mundo material. Mas mesmo as declaraes
destes cientistas no podem ser tomadas como absolutas. Deus no matria de cincia.
Nem da Filosofia. E o mximo que a cincia pode nos dar um ser criador, e assim mesmo
nada nos revelar sobre seu amor e sua revelao, bem como seu propsito para o mundo. E
a Filosofia, no mximo pode nos dar uma Razo, um Motor, uma Causa no Causada, mas
no um Deus de amor. Pode-se ter, na especulao cientfica e filosfica, um Deus
impessoal, uma causa no causada, mas nunca um Deus de amor e moral, com propsitos
definidos para o homem. Isso s a Bblia pode nos dar. Por isso que as tentativas de provar
a existncia de Deus nem sempre sero satisfatrias.
Mas, quem ou o que Deus? Como ele ? Qual a sua natureza? Todas estas
perguntas podem ter muito sentido para o pretendido telogo, mas a questo que se eleva
sobre todas essas a seguinte: quais as implicaes da existncia de Deus para nossa
vida? A vida de um crente ser determinada pelo seu conceito sobre Deus. E muitos dos
27 HAMMETT, op. cit., p. 28 28 BLANK, Renold. Quem, Afinal, Deus?. S. Paulo: Edies Paulinas, 2 ed., 1988, p. 11.
A Doutrina de Deus
Unidade I I I
31
problemas da igreja contempornea decorrem daqui: um conceito muito baixo de Deus, que
visto como um quebrador de galhos ou algum nossa disposio para resolver
qualquer problema nosso. Uma compreenso correta da Divindade, portanto, ser
fundamental para nossa vida. Por isso, comecemos com esta pergunta: quem Deus?
1. Quem Deus? - Responderemos com uma citao de Mullins:
Deus o supremo esprito pessoal; perfeito em todos os seus atributos; que a fonte, o sustentador, e o fim do universo; quem o guia conforme seu propsito sbio, reto, e amoroso, revelado em Jesus Cristo; quem mora em todas as coisas mediante seu Santo Esprito, procurando sempre transform-las conforme a sua prpria vontade e traz-las a seu reino 29.
Parece uma definio um pouco longa, e h outras menores do que esta. Bem, se h
definies menores, por que, ento, optar por esta? Porque ela aborda alguns aspectos
relevantes nossa discusso:
1) O que Deus em si mesmo,
2) Os atributos de Deus,
3) A relao de Deus com sua criao,
4) O propsito de Deus em Cristo,
5) Deus e a natureza progressiva do Reino,
6) Deus e a obra do Esprito Santo no Reino,
7) O propsito de Deus na consumao do reino.
Esta definio humana, visando abrir espao para uma exposio doutrinria a
seguir. Mas, o que diz, exatamente, a Bblia sobre Deus? Como ela o define?
Nas palavras de Jesus, "Deus esprito" (Jo 4.24). Mais tarde, temos outras palavras
de Jesus: "Apalpai-me e vede; porque um esprito no tem carne nem ossos como vedes
que eu tenho" (Lc 24.29). Podemos deduzir que Deus no tem corpo, no matria, no
est limitado ao tempo e ao espao, que so categorias da matria. Esta declarao bblica,
29 MULLINS, Edgar. La Religin Cristiana en su Expresin Doctrinal. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones,
s/d, p. 218.
Teologia Sistemtica I
32
apesar de simples e lacnica, profunda, porque mostra que Deus tem uma dimenso que
o homem no tem. O homem tambm esprito, mas Deus esprito. Deus, um dia, foi
carne. O homem carne. H grande diferena aqui. Tambm uma coisa. outra
coisa. Foi uma coisa. outra coisa.
Uma outra definio bblica sobre Deus diz respeito ao seu carter: "Deus amor"
(1Jo 4.8). No relato posterior de Joo se v que foi seu amor que o impeliu para a ao de
enviar Jesus (1Jo 4.9). Neste sentido, seus atos so motivados pelo seu amor. Mesmo
quando se trata de seu juzo, o que o leva a julgar o seu amor retido e santidade.
Com isto se quer dizer que em Deus no h motivao injusta ou maldosa, mas que seu
amor que o leva a agir. Foi por isso que, mais do que apresentar uma definio, Langston
declarou sobre Deus: "Esta a idia crist de Deus. Deus Esprito Pessoal, perfeitamente
bom, que em santo amor cria, sustenta e governa tudo" 30.
So poucas as boas definies de Deus. Elas podem nos satisfazer em algum
aspecto, mas permanece um ponto: como definir o indefinvel? Como um ente limitado (o
ser humano) pode definir aquele que ilimitado (Deus) ? Por isso que no gastaremos
muito tempo com este aspecto. Basta-nos o que aqui est.
2. A transcendncia de Deus - Um postulado teolgico inevitvel quando se fala de Deus
sua transcendncia. O que significa esta palavra esquisita, transcendncia? Isso
significa que Deus est fora dos limites fsicos e sensoriais (isto , dos sentidos). Que
no se restringe ao mundo fsico, que no pode ser compreendido pelos sentidos, que
no est preso ao mundo material. Deus no pode ser visto, tocado, cheirado.
Transcendente aquilo (aquele) que transcende ou ultrapassa a esfera da experincia
racional do homem. Esta transcendncia divina fica patente nas muitas declaraes do
Antigo Testamento exaltando a santidade de Deus em contraste com a pecaminosidade
humana. Todo o sistema sacerdotal, por exemplo, uma amostra de como Deus est
distante dos homens e diferente deles. E, na realidade, o sistema sacerdotal, embora
institudo por Deus, praticamente pedido pelo povo, como lemos em xodo 20.19: "E
disseram a Moiss: Fala-nos tu mesmo, e ouviremos; mas no fale Deus conosco, para
que no morramos ". O povo sabia que havia uma distncia enorme entre ele e Deus, em
30 LANGSTON, A . B. Esboo de Teologia Sistemtica. Rio de Janeiro: JUERP, 5 ed., 1977, p. 45.
A Doutrina de Deus
Unidade I I I
33
termos de carter. Mas em Eclesiastes 5.2 que encontramos isto bem definido: "...
porque Deus est no cu e tu ests sobre a terra; portanto sejam poucas as tuas
palavras". H um abismo entre Deus e o homem e isto no apenas em distncia. O
que est em foco a diferena qualitativa entre os dois: Deus celestial e o homem
terreno. Deus santo e somos pecadores. por isso que ele exige santidade do seu
povo (Lv 11.44-45 e 1Pe 1.16).
Em termos clssicos pode-se dizer que esta transcendncia de Deus se verifica na
natureza (ele parte dela, no sendo um com ela, sendo ele imaterial) e no espao (ele
no limitado, estando numa dimenso imaterial e no-espacial). E isto, a noo de
transcendncia, que torna a f bblica to distinta das demais. Porque, diferentemente do
ambiente cultural em que os hebreus viviam, h uma diferena entre o Criador e a criao.
Ele no se confunde com ela, em momento algum. No Egito, o Nilo era uma divindade.
Entre os hindus, "tudo Deus e Deus tudo", um pantesmo absoluto. Para os hebreus, a
Divindade no est no mundo material e sensvel. Est acima da natureza. Ele no faz
parte dela. E ela no emanao, uma onda, dele. A matria tambm no divina, foi
criada, mas nunca exaltada como sendo igual ao Criador. Criador e criatura, Criador e
criao so distintos. A transcendncia de Deus fica bem patente em todo o relato bblico.
Deus diferente do mundo criado. Deus e uma rvore, Deus e uma vaca, so bem
diferentes.
Ajuda-nos a compreender mais esta questo o conceito de "numinoso", de Rudolph
Otto. Para definir o elemento sagrado, bem como a sensao do homem diante do sagrado,
ele criou este termo, derivado de numen e explicou:
Eu uso a palavra numinoso. Se lumen pode servir para formar luminoso, numen pode formar o numinoso. Falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretao e de avaliao, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria aplicada, isto , cada vez que um objeto concebido como numinoso 31.
Mas, o que numinoso? O que numen? Numen o termo latino para divindade, e
numinoso tudo aquilo que no pode ser explicado ou entendido racionalmente. Numen
tem um sentido que ultrapassa o conceito de "divindade". Segundo Brown, " algo que
bem diferente da perfeio moral. algo que ''Totalmente Outro' em relao ao mundo
31 OTTO, Rudolph. O Sagrado. S. Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985, p. 12.
Teologia Sistemtica I
34
natural" 32. Ou seja, Deus o Totalmente Outro, completamente distinto do mundo natural,
quer seja a natureza seja a humanidade.
3. A imanncia de Deus - Mas a transcendncia de Deus no significa que ele no seja,
tambm, imanente. Esta palavra significa, mais ou menos, estar presente. "Um
importante par de nfases que devemos preservar com toda certeza a doutrina da
imanncia de Deus em sua criao e de sua transcendncia em relao a ela. Ambas as
verdades so ensinadas na Escritura" 33.
Mas como pode Deus ser transcendente e imanente ao mesmo tempo? No
estaremos ficando muito confusos? Parece que as coisas esto se complicando! A definio
de imanncia nos mostrar que no h choque de declaraes. Imanncia a presena de
Deus na criao e na histria da humanidade. Ele no um com a criao, mas ele a
sustenta. Ele a controla. Nos captulos 38 e 39 de J, ao responder a este, Deus mostra
sua atuao na natureza, criando-a e sustentando at mesmo os animais. A imanncia no
significa pantesmo (idia segundo a qual Deus e a natureza so uma coisa s), mas
significa a presena de Deus no mundo (idia segundo a qual Deus est com a sua criao,
embora no esteja na criao).
E embora seja o Totalmente Outro de Rudolph Otto, ele o "Deus que est aqui",
nas palavras de Francis Schaeffer. Embora parea contraditrio, podemos dizer que ele
est longe, mas, ao mesmo tempo, est perto. "Porque assim diz o Alto e o Excelso, que
habita na eternidade, e cujo nome santo: Num alto e santo lugar habito, e tambm com o
contrito e humilde de esprito, para vivificar o esprito dos humildes, e para vivificar o
corao dos contritos" (Is 57.15). Ele o Deus que pode ser achado. Que est longe, pelo
seu carter de santidade absoluta, mas que est perto, pelo seu carter de amor absoluto.
E a maior proximidade de Deus se verificou em Jesus de Nazar. A encarnao da
Divindade a prova maior de sua imanncia: ele esteve no mundo como matria.
A imanncia de Deus significa que ele no est banido da sua prpria criao,
impedido de agir nela, mas que est presente e ativo nela. Ele no abandonou o mundo que
criou. Ele atua pela natureza e na histria dos homens. Um Deus absolutamente
32 BROWN, Colin. Filosofia e F Crist. S. Paulo: Edies Vida Nova, reimpresso de 1989, p. 149. 33 ERICKSON, op. cit., p. 100
A Doutrina de Deus
Unidade I I I
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transcendente no nos seria de grande valia, porque seria apenas uma fora csmica
criadora, seria apenas uma energia impessoal. Poderia nos encher de um sentimento
numinoso, isto , cheio de respeito e at de medo, mas nunca nos encheria de esperana
ou de significado. O prprio universo seria desprovido de sentido. Isto de pouco nos serviria.
Um Deus absolutamente imanente poderia estar sujeito s mesmas fraquezas, inclusive
morais, da criao. Seria igual a ns. E isto tambm de pouco nos serviria. Logo,
transcendncia e imanncia so, como bem o disse Erickson, um par de nfases que
devemos preservar. Uma boa compreenso da natureza de Deus exige que as entendamos
e as ajuntemos. Separ-las ou no compreender a relao entre as duas nos dar um viso
equvoca de Deus. As duas no so conflitantes, mas harmoniosas, necessrias.
4. Os atributos de Deus - Costuma-se dividir os atributos (ou caractersticas) de Deus em
dois grupos: os atributos naturais e os morais. Por atributos naturais queremos dizer
aqueles que s Deus possui e ningum mais. So particularidade prpria e exclusiva da
Divindade. Por atributos morais queremos nos referir queles que Deus possui, mas que
podem ser encontrados no homem, que sua imagem e semelhana, e exatamente por
isso o homem os possui, embora em escala bem inferior. A forma de abordar os atributos
de Deus tem variado de telogo para telogo. Erickson, por exemplo, prefere usar os
termos atributos de grandeza em vez de atributos naturais e prefere empregar atributos
de bondade em vez de atributos morais. Mas a questo apenas semntica, e no de
substncia.
Mas, pode-se falar dos atributos de Deus? Podemos falar de suas caractersticas?
Para alguns isto seria uma grande pretenso. "Pode o finito descrever o Infinito?" a
pergunta deles. Talvez no possa descrever, mas a tarefa da teologia tornar a idia de
Deus mais clara mente humana. perfeitamente possvel falar sobre os atributos de
Deus. "Porque Deus , podemos fazer afirmaes fatuais a respeito dele. O mtodo de
obter tais afirmaes decisivo para sua verdade. Atributos verdadeiros de Deus so,
ento, formas do evangelho" 34. Descrever , ou pelo menos tentar descrever os atributos de
Deus, encontrar o sentido da prpria Bblia em geral e dos evangelhos, mais detidamente.
34 BRAATEN, Carl e JENSON, Robert. Dogmtica Crist, S. Leopoldo: Editora Sinodal, vol. I, 1990, p. 192.
Teologia Sistemtica I
36
No entanto, isto no uma tarefa que pode ser feita ou entendida como um ato de
dissecar Deus ou coloc-lo num tubo de ensaio. Valham-nos, para que isto fique bem claro,
estas palavras de Lutero:
O verdadeiro telogo no aquele que chega a ver as coisas invisveis de Deus, pensando a respeito das coisas criadas; o verdadeiro telogo aquele que pensa a respeito das partes visveis e posteriores de Deus, tendo-as visto nos sofrimentos e na cruz 35.
O que isto significa? Que buscar os atributos de Deus no um ato de especular
sobre o invisvel, mas ver sua relao com o mundo criado. Os atributos de Deus nos
ajudam a entender o prprio mundo e ver que h nele um sentido moral. H um sentido no
mundo que no faz parte dele, porque um Ser que tem atributos de grandeza (nas palavras
de Erickson) o criou. O Criador deu significado ao mundo. E isto porque repartiu alguns
deles com a criao (repartiu os atributos de bondade, ainda segundo Erickson).
5. Os atributos naturais de Deus - Alistaremos aqui seis deles, entre outros que so
mencionados, variando conforme cada telogo, e comentaremos cada um, brevemente:
onipresena, oniscincia, onipotncia, unidade/unicidade, infinidade e imutabilidade.
6. A onipresena de Deus - Dois equvocos se devem evitar ao falarmos da onipresena de
Deus. Um deles dizer que "Deus est em todos os lugares" e o outro, dizer que "Deus
enche o espao". A, corrigidos estes equvocos, poderemos definir bem o que
onipresena. Deus est em todos os lugares? Est Deus dentro de uma lata de lixo? Est
dentro do forno de um fogo? Dentro de um congelador? No inferno? Ora, uma das
coisas que distinguem o inferno a expresso que Jesus pe na boca do Pai, a ser dita
no dia do juzo: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o
Diabo e seus anjos" (Mt 25.41). Ou seja, uma das caractersticas do inferno a
ausncia de Deus. O inferno , entre tantas outras coisas, um lugar aonde Deus no
est.
35 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. S. Leopoldo: Editora Sinodal, P. Alegre: Editora Concrdia, vol. I,
1987, p. 39.
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Unidade I I I
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A onipresena de Deus no quer dizer que ele esteja em todos os lugares. No
confundamos Deus com os tomos ou com o ar. Quer dizer, sim, que no h lugar onde
Deus no possa estar e que no h lugar em que sua graa seja impedida de chegar aos
homens. Jonas orou do ventre de um peixe e "falou, pois, o Senhor ao peixe, o peixe
vomitou a Jonas na terra" (Jn 2.10). Sua orao foi atendida. A