Post on 24-Jul-2015
FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO
Maria Rocha Silva
ÉTICA E JUSTIÇA SOCIAL À LUZ DO NOVO TESTAMENTO
Dossiê Comentado apresentado como requisito parcial da disciplina Ética Aplicada e Bioética do Programa de Integralização de Créditos do Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
Prof. Dr. Lourenço Stelio Rega
SÃO PAULO
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PRIMEIRAS PALAVRAS
Entendo que os escritos paulinos não tratam especificamente da justiça social,
tema mais amplamente abordado no Antigo Testamento pelos profetas defensores
das questões sociais como Amós, Oséias e Miquéias, ou mesmo em trechos como
os Dez mandamentos.
Ainda assim, durante a leitura de “A ética em Paulo”, chamou-me a atenção de
que a ética paulina, segundo Rega (2004, p. )1 não é apenas individual, mas social.
Mas, social apenas do ponto de vista da convivência do cristão? É uma ética de
relacionamento apenas no âmbito comunitário, i.e., no apresentar normas de
conduta para uma comunidade?
Se correlacionarmos ética e caráter cristão, creio que a ética paulina em muito se
assemelha aos requisitos que Jesus apresentou em Mt. 5.3-12, o Sermão do Monte:
ele fez uma divisão das bem-aventuranças em duas etapas, considerando as quatro
primeiras como descritivas do relacionamento do cristão com Deus, e as demais
como descritivas do seu relacionamento e deveres do cristão para com o próximo.
Não apenas na fala de Jesus registrada nos evangelhos, como a conversa com o
jovem rico que queria seguir o Senhor (Mt. 19.16-21), mas outros textos do Novo
Testamento resgatam as lições do Antigo concernentes ao desapego à riqueza
material. Também na carta de Tiago veem-se sérias repreensões dirigidas aos ricos
avarentos (Tg. 5.1-6). Aliás, o apóstolo Paulo igualmente aconselha a busca de um
viver simples já que nada trouxemos a este mundo, e ao partirmos daqui, nada
podemos levar (1 Tm. 6.7ss).
Assim, pareceu-me bom fazer algumas reflexões sobre ética e justiça social à luz
do Novo Testamento tendo como referência, ou motivação, a leitura de “A Ética em
Paulo”, capítulo três de “Paulo: sua vida e sua presença ontem, hoje e sempre”.
Trata-se apenas de comentários originados a partir de alguns apontamentos
feitos desde a primeira leitura do texto já mencionado no decorrer das aulas de Ética
Bíblica e Teológica I, bem como algumas reflexões colhidas nas aulas de Teologia
Bíblica I – Antigo Testamento I.
1 Impossível detectar o número da página na cópia que nos foi apresentada.1
1) ÉTICA E ÉTICA BÍBLICA E TEOLÓGICA
A palavra “ética” deriva do vocábulo grego ethos e denota conduta ou prática; e
seu correspondente significado em latim é morus (moral). Conforme observado em
aula, há, entretanto, algumas diferenciações entre ética e moral:
a Moral ou moralidade é mais descritiva, está mais atenta ao que as
pessoas fazem e como o fazem.
a Ética é mais normativa, estabelecendo o que as pessoas deve fazer e
como devem fazer. Neste sentido, está presente em todos os âmbitos de
nossa vida: pessoal, profissional, social ou pública.
Vimos, também, que não existe sujeito ou comunidade que não possua seu
“código de ética” já que até mesmo os ladrões possuem suas “maneiras” de agir.
Isso porque o ser humano é a única criatura que se preocupa em buscar respostas
para questionamentos relativos ao sentido da vida e se vale a pena existir.
A ética bíblica encontra nas Escrituras os norteadores para a nossa vida diária.
Nossa fé cristã deve então ser orientada pelo conjunto de “maneiras” ou “princípios
sinalizadores” correspondentes à maneira de viver que a Bíblia prescreve ou aprova,
tendo como mola mestra os ensinamentos do Senhor Jesus e suas aplicações às
decisões humanas.
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2) ÉTICA NO ANTIGO TESTAMENTO
Ainda que a palavra “ética” não apareça de forma clara na Bíblia, tanto no Antigo
quanto no Novo Testamento, uma definição prática de ética seria: o que o homem
deve fazer; ou ainda, um conjunto de normas que regem uma comunidade.
No que diz respeito ao Antigo Testamento, fazer parte do povo de Deus implica
colocar Javé em primeiro lugar. Trata-se de uma ética “teocêntrica”, centrada em
Deus quanto à origem, história, conteúdo e motivação.
Numa tentativa de apresentar uma ética hebraica, temos que mostrar o
relacionamento de Israel com Deus, e o relacionamento do homem com o seu
próximo. O Antigo Testamento não tem um código ético propriamente dito. Assim,
temos que elaborá-lo a partir de alguns pontos de partida, como nos exemplos a
seguir.
2.1. Os códigos legais. O Decálogo: Deus Javé tem o direito de “organizar” a
vida.
O Decálogo é o conjunto de normas aplicado a uma comunidade e não surgiu
dentro da comunidade, mas veio por inspiração divina.
Os Dez Mandamentos (Ex. 20.1-17) podem ser divididos em dois subgrupos:
2.1.1. No relacionamento com Deus – vv. 1-4. No relacionamento com Deus,
existem aspectos teológicos a serem considerados: o Decálogo coloca Javé em
primeiro lugar: “Não terás outros deuses além de mim” (Ex. 20.3 – NVI).
2.1.2. No relacionamento com o próximo (ou com a sociedade) – vv. 5-10,
requer:
a) Honrar pai e mãe representa a importância de conservar a estrutura familiar.
b) Respeitar a Vida. “Não matarás” visa evitar o homicídio premeditado e
também representa a importância da vida humana que deve ser protegida.
c) Não furtarás. Protege o direito de possuir propriedade pessoal, e que esta
não
deve ser cobiçada.
d) Não adulterarás. Também é outro código que visa à preservação da estrutura
da família e da própria sociedade.
e) Não darás falso testemunho. A palavra prevalecia, não havia “contrato”.
Visava à proteção dos processos jurídicos e a estabelecer um sistema judicial justo
– a verdade tem que ser conhecida.
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2.2. O livro da Aliança (Ex. 21. a 23).
É um conjunto de leis que refletem o que encontramos nos Dez Mandamentos.
Por exemplo, vemos que em Ex. 21.12-25 fala-se sobre as leis concernentes à
violência e acidentes. Já em Ex. 22 notamos a preocupação com a proteção da
propriedade.
O Antigo Testamento menciona, também, uma consideração pelos “direitos
humanos”, apresentando diretrizes ou restrições éticas, concedendo aos escravos a
dignidade a que tinham direito (Ex. 21.26-27). Os escravos deveriam ser libertos no
sétimo ano (Dt. 15.12ss).
3. Esboço da ética hebraica
3.1. É teocêntrica; isto é, veio por revelação de Javé (Deus) e deve ser demonstrada
e aplicada a qualquer cultura, pois é uma ética universal. Mq. 6.8 deixa claro o que
Deus requer: fazer o bem; fazer o que é justo: praticar a justiça; andar humildemente
com Deus, isto é, ter uma fé legítima.
3.2. É definida pela Aliança. Isto que dizer que não se trata de uma ética situacional
(de circunstâncias), mas em termos de aplicação, trata-se de uma ética de origem
divina. Smith (2001, p. 336) diz que “Deus exige que nossos atos sejam
expressões de amor interior pela benignidade, pela misericórdia, pela lealdade. A
palavra hebraica é hesed, uma importante palavra da Aliança, às vezes traduzida
por “afeição” (Jr. 2.2) ou “dedicação” (Mq. 6.8, BLH), compromisso com a outra
pessoa, não importa o que acontecer.”
3.3. É demonstrada pelo comportamento. Como por exemplo, na convivência com o
próximo, no tratamento com as outras pessoas, etc.
Aspectos temporários ou limitação da Ética
A ética hebraica, em determinados momentos, parece ser limitada – ou de
aplicação restrita a apenas certas situações. Em Dt. 23.19-20, parece que se faz
acepção de pessoas em determinados momentos quando diz que “Vocês poderão
cobrar juros do estrangeiro, mas não do seu irmão israelita” (NVI).
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Também no que se refere às coisas condenadas pelo Senhor, Israel não voltou a
praticar o pecado cometido por Acã (Js. 7.1; 19-20) que violou a determinação a
respeito de Jericó, rompendo a confiança entre Deus e Israel.
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3) ÉTICA NO NOVO TESTAMENTO – ALGUNS EXEMPLOS
O Novo Testamento em muito contribuiu com a justiça social nos tempos da
igreja primitiva, e não somente por sua influência ética, mas especialmente por uma
profunda mudança no interior daqueles que se entregaram à nova fé,
independentemente da condição social – quer rico, quer pobre.
Em 1 Co. 15.33 temos o uso da palavra “maneiras” para denotar conduta ou
prática, “bons costumes” (ethe chresta) (DOUGLAS, 2006, p.464).
No livro de Atos encontramos ao menos duas situações nas quais os cristãos são
praticantes de uma comunhão voluntária dos seus bens: “Todos os que creram
estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens,
distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade” (At.
2.44-45, ARA). No capítulo 4.34-37, vemos que “... nenhum necessitado havia entre
eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores
correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a
qualquer um à medida que alguém tinha necessidade. José, a quem os apóstolos
deram o sobrenome de Barnabé, que quer dizer filho de exortação, levita, natural de
Chipre, como tivesse um campo, vendendo-o, trouxe o preço e o depositou aos pés
dos apóstolos”. Já Ananias e Safira não tiveram o mesmo zelo: venderam uma
propriedade sua, porém entregaram apenas parte do valor aos apóstolos (At. 5.1-4).
Retornando aos evangelhos e à mensagem do Sermão do Monte (Mt. 5-3-12),
não há como ler os requisitos do caráter cristão listados por Jesus e não fazer uma
analogia com as atuais demandas que povoam as mentes das lideranças
evangélicas.
Assim, vemos que o Senhor nos falar de um espírito de renúncia (v.3); a
liderança moderna é de poder e domínio. Fraqueza e humildade estão fora do
portfolio do líder vencedor talvez porque, numa visão míope, se correlacione com
pessoas sem fibra. Não se trata disso, mas de reconhecer suas próprias deficiências
espirituais. Alguém, porventura, esqueceu de ler a passagem bíblica do servo
sofredor de Deus. (Is. 42-53)...
O Senhor nos fala de justiça e misericórdia (vv.6-7). Só tem fome e sede de
justiça quem já expurgou o eu do coração. Justiça como significando a retidão de
uma vida interior, nascida de uma disposição de conduta; misericórdia significando
uma disposição à piedade. O mundo necessita de cristãos justos e misericordiosos
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para com as faltas alheias. Corações cheios de misericórdia fazem a diferença num
mundo altamente competitivo, mesmo em meio à moderna liderança dos “nascidos
de novo”: numa cooperação leal e cristã, o forte deve socorrer o mais fraco.
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4) A ÉTICA EM PAULO
Cremos que não se faz necessário repetir as palavras de Rega (2004) em seu
destaque à ética paulina. Assim, passaremos apenas a breves comentários a
respeito da ética em Paulo.
O apóstolo Paulo foi um zeloso incentivador de atitudes que demonstrassem, na
prática, um viver em amor e generosidade (Rm.12). De igual forma, não há como
negar que a carta de Paulo a Filemon vem estabelecer um novo relacionamento
entre escravo e senhor, numa clara valorização da pessoa de Onésimo.
Como profícuo escritor, Paulo não deixa de abordar em sua carta aos Efésios o
amor que deve haver entre marido e mulher, fato que é extremamente importante
haja vista a condição inferior da mulher nos tempos de Cristo e da igreja primitiva.
Outro aspecto importante é o relacionamento sadio entre pais e filhos (Ef. 5.28-31;
6.1-4).
Não podemos deixar de lembrar que noutros de seus escritos, Paulo faz um
chamamento ao novo homem voltado a uma sociedade mais justa governada pelo
próprio Cristo (Cl. 3.11; Gl. 3.28; Ef. 2.14-16).
Finalmente, algo que nos chama a atenção e nos faz pensar numa ética cristã
que permeia os escritos de Paulo é a afirmativa do apóstolo de que o homem
alcança a salvação apenas pelo agir da graça de Deus, não pelo agir humano de
forma piedosa ou moral (Rm. 3.24). Porém, uma vez recebida (ou realizada) a
salvação, a nova criatura passa a “revestir-se de Cristo” (Rm. 3.14; Gl. 3.27).
Por isso é que Paulo insiste em que o cristão deve agir, na sua conduta prática,
apropriando-se da salvação para viver como pessoa “em Cristo”, porém
permanecendo sob o mandamento de Deus (1 Co.7.19), que ele cumprir no Espírito.
Nesse sentido a ética de Paulo é uma ética puramente cristã (WENDLAND, 1974, p.
63).
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5) APLICAÇÃO DA LEITURA NO MINISTÉRIO
O tema “ética e justiça social à luz do Novo Testamento” parece-nos bastante
atual e de aplicação oportuna às nossas igrejas. Semelhantemente ao que acontecia
nos tempos dos profetas do Antigo Testamento, em especial Amós, Miquéias e
Oséias, hoje também vivemos momentos ambíguos no que se refere à religião. Por
um lado, muita religiosidade e “aparência de santidade” por parte de denominações
apegadas fortemente aos ditos “usos e costumes”, porém com forte tendência a um
espiritualismo exacerbado, beirando o irracional.
Por outro, vemos muita imoralidade e corrupção envolvendo pastores ou líderes
de mega-igrejas ou parlamentares da assim chamada “bancada evangélica”.
O perigo que ronda as igrejas muito “espirituais” é que quase sempre elas não
agem visando mudanças da estrutura injusta da sociedade. No que tange à questão
da ética e justiça social, é bom lembrarmos o seu significado na Bíblia: “Ele te
declarou, ó homem, o que é bom e o que é que o Senhor pede de ti: que pratiques a
justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Mq. 6.8).
No quesito “religião verdadeira”, temos que mencionar a falta de preparo
adequado de líderes/pastores – muitos não têm formação acadêmica compatível
com as funções que desempenham.
Claro que academicismo não torna ninguém “uma pessoa segundo o coração de
Deus”, embora a expressão “homem de Deus” esteja sendo usada de forma tão
inadequada quanto inverídica nos dias de hoje. Isso sem mencionar que o oposto,
isto é, o excesso de academicismo pode corromper o coração do homem.
As advertências e os clamores dos verdadeiros profetas do Antigo Testamento
visavam o retorno do povo às condições da Aliança com Javé. De igual forma, os
escritos paulinos acentuam a justiça no sentido ético, uma vez que o cristão deve
servir à justiça de Deus vivendo em Cristo Jesus.
Em tempos de pós-modernidade, todavia, os clamores se voltam à “Teologia da
Prosperidade” ou ao “culto à personalidade” de “super pastores” ou “super
missionários”, assim chamados por darem a impressão que possuem dons ou
revelações especiais da parte de Deus.
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Cabe à igreja, porém, ser mais fortalecida buscando ter um púlpito bíblico (com
pregação genuína da Palavra de Deus), cristocêntrico (Cristo parece não ser o
centro das mensagens atuais), e que seja um púlpito capaz de refletir sobre as
necessidades da comunidade local. De forma ética, claro.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA SAGRADA – Nova Versão Internacional. São Paulo : Vida, 2000.
_______________ - Linguagem de Hoje. São Paulo : Sociedade Bíblica do Brasil,
2000.
DOUGLAS, J.D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo : Vida Nova, 2006, p.
464.
REGA, Lourenço S. (org.). Paulo, sua vida e sua presença ontem, hoje e sempre.
São Paulo : Vida, 2004.
SMITH, Ralph. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São
Paulo : Vida Nova, 2001.
STOTT, John. A Mensagem do Sermão do Monte. São Paulo: ABU, 1989.
WENDLAND, Heinz-Dietrich. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal,
1974.
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