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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Produção Didático-Pedagógica
Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
VOLU
ME I
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CARTAS CHILENAS SOB O OLHAR CONTEMPORÂNEO
Celimara Cristine Lima Strelow (PDE- SEED)
Rita Felix Fortes (UNIOESTE)
RESUMO: No presente artigo propõe-se analisar as satíricas Cartas Chilenas, cujo
autor provável é Tomás Antônio Gonzaga, retomando o contexto histórico de Vila Rica, no período da Inconfidência Mineira, momento que contribuiu para a formação do sentimento nativista brasileiro. O presente estudo pauta-se nas seguintes obras teóricas: A poesia dos inconfidentes, de Domício Proença Filho, Problemas da poética de Dostoiévski e Questões de literatura e estética, de Mikhail Bakhtin. Tendo em vista o tom satírico das Cartas Chilenas, toma-se as mesmas como modelo que auxilia na visão geral do Brasil colônia e, durante a análise, resgatar-se-á os versos que explicitam os desmandos do governador Luís da Cunha Meneses / O Fanfarrão Minésio. Ao retomar as missivas gonzaguianas, estabelecer-se-á um diálogo com o poema Quando levares, Marília, / teu ledo rebanho ao prado, dedicado à amada Marília, musa inspiradora da obra Marília de Dirceu. O poema lírico insere-se no estudo por fazer parte da obra composta na masmorra e, apesar do lirismo, os versos reiteram as intenções de denúncias. A partir da releitura da obra Cartas Chilenas, traz-se à tona reflexões pertinentes ao atual cenário político brasileiro. O estilo empregado por Tomás Antônio Gonzaga, no final século XVIII, é recuperado em epístolas atuais, com isso, encerra-se o estudo mencionado uma carta contemporânea que, pelo estilo e conteúdo abordado, vincula-se às Cartas Chilenas.
PALAVRAS-CHAVE: Cartas Chilenas, sátira, diálogo, cenário político. ABSTRACT: This article proposes to analyse the satirical Chilean Letters, Whose author is likely Tomas Antonio Gonzaga, returning to the historical context of Villa Rica, during the Minas Conspiracy, when it contributed to the formation of Brazilian nativist feeling. This study is guided in the following theoretical works: Domício Proença Filho’s The poetry of the conspiracy, Dostoevsky’s poetics problems and Mikhail Bakhtin’s Issues of literature and aesthetics. In view of the satirical tone of Chilean letters, it becomes the same as a pattern that helps overview of Brazil colony and during the analysis, it will redeem the verses which explain the excesses of the Governor Luís da Cunha Menezes / Minésio’s braggart. Gonzaguianas missives to resume will establish a dialogue with the poem When you take Marília / your merry flock to the meadow, dedicated to beloved Marília, Marília inspirer muse the work Marília of Dirceu. The lyrical poem part of the study because part of the work was composed in the dungeon. Despite the lyricism, the verses reiterate the intentions of complaints. From the reading of the work Chilean Letters, brings to the surface relevant reflections to the current political scene. The style employed by Tomás Antônio Gonzaga, in the late eighteenth century, is recovered in epistles current, thereby terminating the study mentioned a contemporary letter, addressed by the style and content, links to the Chilean Letters. KEYWORDS: Chilean Letters, satire, dialogue, the political situation.
INTRODUÇÃO
A obra Cartas Chilenas, atribuídas a Tomás Antônio Gonzaga, é composta
por versos construídos em tom mordaz e satírico que denunciavam o despotismo do
governador da província de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, no final do
século XVIII: período imediatamente anterior à Inconfidência Mineira, prenúncio de
uma identidade nacional.
A análise das Cartas Chilenas faz parte de um estudo literário em andamento
que comparará a obra árcade, de teor predominantemente crítico e que circulou
anonimamente em Vila Rica – atual Ouro Preto – a dois romances escritos na época
da ditadura militar: Os sinos da agonia e Os tambores silenciosos. Por serem
escritos em período de intensa censura e represálias, os autores Autran Dourado e
Josué Guimarães recorreram a táticas esquivas de composição literária, burlando,
assim, o aparelho estatal de perseguição política a toda forma de expressão que se
revelasse contrária ao governo ditatorial.
Tomás Antônio Gonzaga, que adotou o pseudônimo Dirceu, em consonância
com as tendências do Arcadismo, ficou assim conhecido devido à obra poética, na
maioria dedicada à sua musa inspiradora Marília (Maria Dorotéia Joaquina de
Seixas, por quem, de fato, o poeta se apaixonou). Dedicar os versos líricos à musa
inspiradora com vistas a um cenário bucólico era recorrente na poesia árcade.
Fizeram parte do Arcadismo poetas intelectuais de acurada visão
sociopolítica, pois os homens letrados da época tinham consciência da necessidade
de se estabelecer nova ordem social e a literatura seria uma via favorável para tal
pretensão. Segundo (BOSI, 2008, p.56), o “denominador comum das tendências
arcádias é a procura do verossímil”. Tal constatação remete ao seguinte
questionamento levantado por (PROENÇA FILHO, 1996, p.565): “Que motivos
teriam impelido os poetas Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e
Alvarenga Peixoto a integrar o grupo dos inconfidentes”? A resposta estaria no
engajamento pelas causas da Inconfidência Mineira, pois a insólita situação da
Colônia mobilizou-os em torno de um levante contra a Metrópole. Os intelectuais
jovens e abonados traziam da Europa para Vila Rica a influência do Iluminismo1.
1 Movimento do século XVIII, conhecido como Século das Luzes (da razão). O Iluminismo foi um
movimento de engajamento intelectual que correspondia aos interesses daqueles que desejavam mais liberdade política e econômica. Os pensadores iluministas defendiam, além da não intervenção
Para Alfredo Bosi (2008), a presença da razão, na obra poética do Arcadismo,
vincula-se ao “enciclopedismo francês”.
Os aspectos da poesia árcade apontados por (PROENÇA FILHO, 1996,
p.558), fixam que: “as poesias árcades buscam motivos bucólicos cristalizados em
cenários fixos, nos quais o clima ameno e campestre esmaece a transformação que
se realizava no contexto político-social circundante”. Os poetas estavam de tal forma
engajados que embebiam seus versos com as angústias fiscais, mas a visão crítica
e inovadora levou-os sofrer severos castigos. As atrocidades contra os poetas, para
(CANDIDO, 2008, p.108), “representam no Brasil o primeiro e até hoje maior
holocausto da inteligência às ideias do progresso social”.
Vila Rica, a capital da província de Minas Gerais do século XVIII, surgiu em
torno da exploração dos minérios locais (ouro e diamante) e a Metrópole, durante
aquele século, fartou-se com as riquezas vindas da Colônia. Porém, o tempo de
fartura foi se escasseando e a Metrópole tomou severas medidas fiscais, visando
manter os ganhos de outrora, para tanto, os impostos sob os produtos de Lisboa
passaram a chegar ao Brasil com tarifas exorbitantes, os preços dos escravos
sofriam os mesmos deliberados abusos de ajustes. A crise econômica gerou
descontentamento entre as pessoas, foi o estopim de grandes revoltas coloniais e a
insustentabilidade da situação resultou na derrama2.
Na impossibilidade de calarem-se diante dos ditames do opressor, as
manifestações se expandiram. Conforme constata (NOVAIS, apud PROENÇA
FILHO, 1996, p.29), “é no último quartel do século XVIII que as tendências
emancipacionistas se manifestam de forma recorrente e significativa”.
Tomás Antônio Gonzaga transita na Inconfidência Mineira com tendências ao
conservadorismo estamental que se diverge da tendência anticolonialista de
Tiradentes. Para Laura de Mello, apud Proença (1996, p.30) a Inconfidência está
relacionada aos protestos, pois, ”por todo o século XVIII, as Minas se viram às voltas
com os levantes (...), e sua formação social densa mantinha os governantes e os
poderosos em constante sobreaviso. Com o avançar do século, a insatisfação se
do Estado na economia, a igualdade jurídica entre os homens, a liberdade religiosa e de expressão e outros direitos. Com isso o Iluminismo abriu caminho para as revoluções que combateram as estruturas do Antigo Regime (COTRIM, 2005, p.266). 2 Em 1765, foi decretada a derrama, cobrança de todos os impostos atrasados, que correspondiam a
1/5 (um quinto) de todo o outro extraído no Brasil. Na execução da derrama, as autoridades não pouparam nem mesmo os mineradores empobrecidos, que acabaram perdendo os poucos bens que lhes restavam (COTRIM, 2005, p.249).
enraizou (...)”. Os conflitos instaurados desencadearam a fase das revoltas
historicamente conhecidas como: a guerra emboabas, os motins do sertão do rio das
Velhas, as revoltas de Pitangui e Vila Rica e as quimeras do sertão de São
Francisco.
Por mais que se mobilizassem, a voz do oprimido não se fazia ouvir. O
anexim “a voz do povo é a voz de Deus”, como no tempo remoto da história, ainda
hoje não se aplica, pois o povo tem sido inaudível.
Nomeado ouvidor de Vila Rica, o advogado Tomás Antônio Gonzaga
conviveu com pensadores ilustres, formados na colônia como o Cláudio Manuel da
Costa e Alvarenga Peixoto e juntos articulavam os ideais do Iluminismo, que haviam
tomado conhecimento na Europa, e, por aquele continente se expandia. Quando,
denunciado por Silvério dos Reis, vem à tona a conjuração mineira, antes de esta ter
sido posta em prática, os inconfidentes foram punidos exemplarmente, pois a coroa
portuguesa visava se prevenir contra futuros levantes. Por exemplo, Tomás Antônio
Gonzaga, provável autor das Cartas Chilenas, foi considerado “caviloso” e
“dissimulador”. Como homem das leis, Tomás Antônio Gonzaga, assumiu, “à
primeira vista, uma postura legalista em face ao poder metropolitano” (PROENÇA
FILHO, 1996, p. 772). O fragmento bem diz, “primeira vista”, pois se Tomás Antônio
Gonzaga expõe o governador da capitania ao ridículo, isso denota sua consciência
política efervescente, impulsionada a denunciar sem temer represálias, prática
comum, na época, quando se praticavam crimes de lesa majestade. Naturalmente,
ele previne-se, publicando a obra anonimamente.
Em Proença Filho (1996), confirma-se que na obra Cartas Chilenas, a figura
vilipendiada era o governador Luís da Cunha Meneses, apesar do criptônimo
Fanfarrão Minésio, certamente reconhecia-se como alvo das ofensivas diretas com
termos pejorativos como: “vil canalha”. Tais galhofadas deveriam constranger e
despertar a cólera do administrador corrupto que, ao invés de receber versos com
lisonjas dignas de um amigo del Rei, vinham-lhes as cartas satíricas que o
desmoralizavam perante a sociedade mineira. Versos bajuladores não seria o etilo
do poeta e o conflito entre o ouvidor e o governador déspota e arbitrário motivou-o a
compor as cartas.
A complexidade dos versos das Cartas Chilenas deve-se, segundo Proença
Filho (1996), a questões que transcendem o seu valor artístico. Parodiando o
mesmo teórico, pergunta-se: “Será que a sátira contribuiu para influenciar o ânimo
dos inconfidentes? O consenso é que ela refletiu a efervescência política que se
alastrou pela província das Minas Gerais, apesar do número escasso de cópias das
mesmas.
DO NAMORO DO POETA OUVIDOR AO ENCERRAMENTO NO CÁRCERE
O estudo sobre Tomás Antônio Gonzaga perpassa por sua experiência
amorosa, visto que esta o inspirou a compor as liras românticas dedicadas à amada
Marília. Tomás Antônio Gonzaga, sob o pseudônimo de Dirceu, já no cárcere, após
o desmantelamento da Conjuração Mineira, compôs parte de sua memorável obra
lírica Marília de Dirceu. Maria Dorotéia despertou no poeta grande paixão, ele com
quarenta anos, ela no desabrochar dos dezessete. Apaixonado, o ouvidor poeta não
economizava galanteios, os versos líricos fluíam para o deleite da amada, que, por
sua vez, passou a demonstrar afeição por ele. Os momentos de intensa felicidade
não demoraram e a prisão afastou-o da noiva, às vésperas do casamento.
No cárcere, na fortaleza da ilha das Cobras, o poeta intensificou o ofício dos versos, lançou-se à composição dos versos líricos, inspirados na musa Marília. Distante da amada, expressa em seus versos um misto de lirismo e reflexões legais.
Realista cauteloso, misturam-se num perfil o pastor Dirceu e o poeta Gonzaga. Lira e lei se misturam neste painel gonzaguiano setecentista da lírica arcádica, entramando, num quadro complexo, o poeta, o réu, a lira, a lei, o processo, num conluio em que o lírico e o traçado real da existência se enlaçam, articulando literatura e vida cultural (PROENÇA FILHO, 1996, p. 570).
Diante do impasse na prisão, ficam imbricadas as palavras do intelectual
Gonzaga e do poeta de pujante lirismo, o qual, vivendo uma forçada separação
amorosa, expressa os sentimentos advindos da ausência da amada e de indignação
política. Para quem já estava recluso, não havia mais nada a temer: “Agora já não
tinha receio de se comprometer, enjeitando a paternidade da escandalosa sátira”
(PROENÇA FILHO, 1996, p.549). A publicação destas não se deu, pois, após três
anos de prisão na ilha das Cobras, Gonzaga fora julgado e condenado a dez anos
de degredo em Moçambique.
O LEGADO DA OBRA CARTAS CHILENAS
De acordo com Proença Filho (1996), em 1995, surgiu a última organização
dos manuscritos de Tomás Antônio Gonzaga, realizada por Joaci Pereira Furtado,
baseada em edições anteriores, de Rodrigues Lapa e Tarqüínio de Oliveira. De
acordo com estes estudos, as Cartas Chilenas são compostas por 3964 versos
decassílabos brancos, divididos em treze cartas. No século XX, após árdua
pesquisa, atribuiu-se a autoria das Cartas Chilenas a Tomás Antônio Gonzaga e
estas, satiricamente, traçam um panorama político da época do Brasil colonial, cujos
desmandos permanecem até hoje. Ou seja, vêm daquela época vícios político-
administrativos como a confusão entre o que é público e o que é privado. Ainda não
se incutiu na consciência da maioria dos governantes que , quando se rouba o que é
público, roubam-se de todos, não um indivíduo e se um indivíduo lesado não deve
calar-se, menos ainda a população.
Essas cartas, que circulavam anonimamente, para Proença Filho (1996)
correspondiam ao interesse da sociedade mineira do século XVIII e suscitava
aplausos, pois os versos de ironia pungente arrostavam com a prepotência do
governador de Minas, o qual, certamente, deveria “escabujar” de raiva ante os
versos que o afrontavam. “Peças satíricas, as cartas funcionam como um amplo
documento da época, num texto alegórico contra os desmandos do poder de um
mandatário corrupto, o Fanfarrão Minésio, contra o qual impreca o remetente Critilo”
(PROENÇA FILHO, 1996, p. 563). Tomás Antônio Gonzaga, como intelectual e leitor
assíduo, seguiu modelos de outras obras da literatura universal, as quais se serviam
de outros contextos para fazer denúncias em tom satírico, assim, compôs as cartas
nos moldes da diatribe, a qual, conforme aponta Bakhtin (2008, p.129), orbita em
torno da “sátira menipéia”. Através da reelaboração do discurso, o poeta
esquematizou sua obra da seguinte forma:
A ação das cartas de Critilo, aproveitando-se do modelo de Montesquieu nas Lettres persanes, transporta a ação para o Chile, que simboliza Minas Gerais. A capital passa a ser Santiago em vez de Vila Rica. A Universidade de Coimbra transforma-se na de Salamanca, e Portugal figura como Espanha, onde pretensamente estaria o destinatário das cartas, denominado Doroteu, nome corrente no Arcadismo. A estrutura dramática do texto abriga duas personagens que centralizam a ação a ser narrada: Doroteu, o autor da “Epístola”, que antecede as treze cartas e delas destinatário, e Critilo, que conta na sua correspondência a Doroteu, os fatos que Fanfarrão Minésio obrou no Chile. A história que emerge dessa narrativa, em versos cortantes, num ritmo dramático, desvela um jogo de autoria: Doroteu, ao redigir sua epístola a Critilo, tem prévio conhecimento das cartas. Já Critilo, que destina todas elas a Doroteu, não referencia a epístola ao expor os fatos (PROENÇA FILHO, 1996, p. 775).
No contexto de Vila Rica, o autor recorreu à carnavalização menipéica, cujas
ações caracterizam, segundo (BAKHTIN, 2008, p.134), como “cenas de escândalos,
de comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, (...) abrem
brecha na ordem inabalável”. Em sintonia com os diferentes recursos empregados
na literatura universal, Tomás Antônio Gonzaga assim o fez. Sobre o domínio de
vasto universo cultural, Bakhtin (1988), aponta que:
Nos ciclos paródicos e satíricos realiza-se uma luta contra o fundo feudal e as más convenções, contra a mentira que impregnou todas as relações humanas. À mentira pesada e sinistra opõe-se a intrujice alegre do bufão, à falsidade e à hipocrisia vorazes opõem-se a simplicidade desinteressada e a galhofada sadia do bobo, e a tudo o que é convencional e falso a forma sintética da denúncia do bufão (BAKHTIN, 1988, p.278).
Nas Cartas Chilenas, a denúncia à perniciosidade na administração política
no Chile equipara-se às Cartas Persas de Montesquieu, “que criaram todo um
gênero de cartas exóticas análogas, representando o regime francês visto por um
estrangeiro que não o compreende” (BAKHTIN, 1988, p.279).
OS VERSOS TÊM ALGO A DIZER
A contextualização feita até aqui se justifica devido à importância da
reconstrução e compreensão das circunstâncias político-sociais do último quartel do
século XVIII, pois uma análise coerente se concretiza através desses conhecimentos
e ainda suscita reflexões acerca do atual panorama político no Brasil. Nesse ensejo,
propõe-se analisar a temática retratada nas segunda, terceira, quinta, décima
segunda e décima terceira cartas, nas quais, dentre as demais, evidenciam-se a
desonestidade do administrador Meneses / Fanfarrão, que deixa prevalecer o jogo
de troca de favores e acordos interesseiros entre os seus mais chegados. A exemplo
do chefe corrupto, seus assessores adotam igual conduta, formando, assim, uma
inescrupulosa equipe de governo.
Na primeira estrofe, da segunda carta, o tom irônico é perceptível pela forma
de Gonzaga / Critilo se referir ao administrador Fanfarrão como “imortal chefe”. Os
versos relatam uma noite de total dedicação aos escritos da carta, a qual o poeta diz
ser volumosa e a conclusão da mesma se deu ao amanhecer. Os relatos
minuciosos, aliados à arte poética, demandam tempo, pois, os versos, além de
constituírem uma denúncia anônima ao chefe, atendem à tendência árcade e seriam
lidos por intelectuais do seu círculo de amizade, razão suficiente para o esmero.
As brilhantes estrelas já caíam e a vez terceira os galos já cantavam, quando, prezado amigo, punha o selo na volumosa carta em que te conto do nosso imortal chefe a grande entrada; (...) (p.804)
3
Gonzaga / Critilo, dirige-se ao interlocutor, Doroteu, com versos que lhe
chamam a atenção sobre os desmandos e privilégios usufruídos pelo governador,
em contradição com o estilo de vida de Critilo que, apesar das necessidades, é mais
digna e não lhe tira o sono, pois, em sua vida singela, não usufrui de patrimônios
alheios. O poeta mostra-se indiferente a bens e riquezas, ainda mais quando
conquistados ilicitamente. Nos verso abaixo fica clara a consciência do eu lírico em
relação à avareza, à corrupção e ao enriquecimento ilícito dos administradores da
Colônia, que se apropriam dos bens públicos para formar fortuna pessoal, lesando
tanto aos ricos quanto aos pobres. Mesclada à questão política, há também a
presença do ideal simples de vida que caracterizou toda a lírica árcade:
Não cuides, Doroteu, que brandas penas me formam o colchão macio e fofo; (...) (...) e colchas matizadas, não se encontram na casa mal provida de um poeta, (...) (...) nem na suja cozinha acende o fogo. Mas nesta mesma cama tosca e dura, descanso mais contente do que dorme aquele que só põe o seu cuidado em deixar a seus filhos o tesouro que ajunta, Doroteu, com mão avara furtando ao rico e não pagando ao pobre. (p.805)
Apesar de confessar que tem a consciência tranquila, que pode descansar
sem culpa, na segunda estrofe, da segunda carta, os versos dizem:
Assustado, desperto, os olhos abro e, conhecendo a causa que me acorda, um tanto impaciente o corpo viro, fecho os olhos de novo, e cruzo os braços, para ver se outra vez me torna o sono.(...) (...) Já soam dos soldados grossos berros, já tinem as cadeiras dos forçados, (...) (p.805).
3 Todas as citações das Cartas chilenas referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: PROENÇA,
Domício Filho (org.). A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996 e os números das páginas serão inseridos após as citações das mesmas.
Quando mudam as contingências políticas, o sono tranquilo do autor das
cartas passa a ser assombrado pela ronda dos soldados del Rei que, mandados
pelo governador da província, rondam acintosamente a cidade. O que incomoda
são os ruídos dos soldados e ele bem sabe que estes são afeitos à brutalidade.
Conhecendo a conduta do chefe, na quinta estrofe, da segunda carta, Critilo
relata ao amigo Doroteu:
Aquele, Doroteu, que não é santo, mas quer fingir-se santo aos outros homens, pratica muito mais do que pratica quem segue os caminhos da verdade. Mal se põe nas igrejas, de joelhos, Abre os braços em cruz, a terra beija, (...) (...) estando em parte onde o mundo as veja. (p.806)
O fingimento do chefe, nestes versos, pode ser comparado ao dos fariseus,
os mesmos fariseus criticados por Cristo, presentes ainda hoje nas igrejas e
transitando nas diversas esferas sociais tranquilamente. Dissimulações semelhantes
a do chefe Meneses / Fanfarrão tem apenas o intuito de causar boa impressão a
todos quantos o observem, afinal é da boa imagem perante o público que se faz um
político. Sabendo dessa estratégia, não só o governador Luís da Cunha Meneses, o
Fanfarrão Minésio, mas muitos políticos ainda recorrem às mesmas táticas,
frequentando os lugares onde possam ser vistos, principalmente, simulando gestos
de bondade. No atual cenário político, a cena descrita nos versos acima surge em
número cada vez mais crescente. Sob o foco das lentes das câmeras há sempre a
imagem de políticos abraçando idosos, pegando crianças no colo e beijando-as,
circulando nos becos, ocupando bancos das igrejas, enfim, dando demonstrações
de gestos humanitários que os enobrecem perante a sociedade.
Os militares de Vila Rica / Santiago, abusavam do poder, mas o chefe fazia
vista grossa às atrocidades cometidas:
Apanha um militar aos camaradas do soldo uma porção. Astuto e destro, para não se sentir o grave furto, mistura nos embrulhos, que lhes deixa, igual quantia de metal diverso. Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde, que este Hércules não cinge a grossa pele nem traz na mão robusta a forte clava, para guerra fazer aos torpes Cacos. (p.807)
Os versos acima remetem à conhecida barganha política ou troca de favores.
Certamente, o administrador tinha interesse nos serviços dos torpes soldados, por
isso não tomava nenhuma medida punitiva, àqueles que se sabiam larápios. O
governador, de reputação duvidosa, não poderia tomar medida alguma, tendo em
vista que a sua própria conduta sofre de igual mácula. Aqueles que detêm o poder
deveriam servir de exemplo, não se envolvendo em escândalos de corrupção, se
assim fosse, eles poderiam impor ordem as quais seriam, no mínimo, refletidas, pois
não haveria contra-argumentação diante de um chefe moralmente íntegro.
Na segunda carta, seguem-se as denúncias e como bacharel, nomeado
ouvidor de Vila Rica, é inteirado das leis, Gonzaga /Critilo, relata sua indignação
perante os descasos do governo para com as mesmas:
(...) pede outro que lhe queime o mau processo, (...) (...) decide os casos todos que lhe ocorrem, ou sejam de moral, ou de direito, ou pertençam também à medicina, sem botar (que ainda é mais) abaixo um livro da sua sempre virgem livraria. Lá vai sentença revogada, (...) (p.811) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Já disse, Doroteu, que o nosso chefe, apenas principia a governar-nos, nos pretende mostrar que tem um peito muito mais terno e brando do que pedem os severos ofícios do seu cargo. (p.813)
O trecho destacado demonstra que os processos são julgados ao acaso, pois
seu principal representante, o governador, não se preocupa em consultar os livros
legais, visto não ter o hábito da leitura e da interpretação da legislação em vigor.
Não os consulta, pois o hábito de leitura não coaduna com a prática do “grande”
chefe. Há, ainda, que se destacar que o autor das Cartas Chilenas é um intelectual
de formação iluminista, que tem o hábito da leitura e da reflexão, enquanto o
Fanfarrão Minésio, por ser rude, é descrito com tosco intelectualmente, e, por ser
incapaz de interpretar as leis, julga à revelia com a brutalidade que lhe é peculiar. Os
versos acima apontam também que o governador não tem estofo nem competência
para cumprir as funções demandadas pelo cargo que ocupa e para disfarçar sua
incompetência reveste-se de dissimulada ternura. Se o cargo exige uma postura
mais enérgica, o ocupante do cargo deve assim agir para que se faça ouvido, não
por temor, mas por respeito.
A construção da cadeia, atual museu da inconfidência, é o alvo da crítica na
terceira carta. A projeção de tamanho investimento não condiz com a realidade do
humilde povoado, principalmente, quando se evidencia que a cadeia se destina aos
desvalidos.
E sabes, Doroteu, quem edifica esta grande cadeia? Não, não sabes. (...) E sabes para quem? Também não sabes. Pois eu também to digo: para uns negros, que vivem, quando muito, em vis cabanas, fugidos dos senhores nos matos. (p.815).
No fragmento acima há uma série de elementos que merecem destaque, a
começar pela construção de uma grande obra, como a cadeia de Vila Rica, para
encarcerar os miseráveis transgressores em um momento em que a província das
Minas Gerais está endividada, o que implica o aumento da pobreza, da miséria e da
violência. Tal elemento merece destaque, pois, ainda hoje, este comportamento é
recorrente entre os políticos brasileiros. São feitas grandes obras sem que se
consiga resolver os problemas sociais Em relação à cadeia, vale destacar o
paradoxo de que a construção de tal obra implicaria o aumento da miséria e,
consequentemente, da marginalização.
Há, ainda a relevante questão dos negros, cuja afirmação, hoje, certamente
causa, no mínimo constrangimento, mas está em sintonia com a mentalidade em
vigor na época. Embora os inconfidentes tivessem planos muito bem estruturados
em relação à liberdade política e crescimento da colônia, e seus ideais fossem,
realmente, libertários, não fazia parte destes planos a abolição da escravatura. Isso
se deve ao fato de mão-de-obra escrava era fundamental à mineração, mas também
porque a visão da elite brasileira em relação ao negro, certamente, era de que este
estava aquém da condição humana e os inconfidentes comungam com esta
mentalidade. Tanto é assim que a abolição da escravatura no Brasil só ocorreu um
século após o desbaratamento da Conjuração Mineira e o Brasil foi o último país da
América a abolir a escravidão. Portanto, os ideais de liberdade, embora justos e
autênticos, não fez com que os conjurados fossem sensíveis à condição dos negros
escravos.
Quando o chefe não age com escrúpulos, seu exemplo é seguido pelos
assessores, isso ocorria em Vila Rica, representada simbolicamente como Chile e,
na realidade em diferentes esferas políticas atuais. Tal conduta pode ser constatada
nos seguintes versos:
Os mesmos magistrados se revestem do gênio e das paixões de quem governa.
(...) Por isso, Doroteu, um chefe indigno é muito e muito mau, porque ele pode a virtude estragar de um vasto império.
(p.816) Nas levas, Doroteu, não vem somente os culpados vadios; vem aquele que a dívida pediu ao comandante; vem aquele que pôs os olhos na sua mocetona, e vem o pobre que não quis emprestar-lhe algum negrinho, para lhe ir trabalhar na roça e lavra. ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Estes tristes, mal chega, são julgados pelo benigno chefe a cem açoutes.(...) (p.818)
Os versos acima apontam que os magistrados, assim como o governador da
província, envolvem-se em corrupção. Nesse sentido, questiona-se: a quem recorrer,
se de onde se espera o direito de igualdade, buscam-se favorecimentos próprios?
Aqueles que deveriam dar exemplo de lisura envolvem-se em escândalos que
deixam a população despontada e sem perspectiva de justiça.
Tomás Antônio Gonzaga, com sua formação iluminista, constata que um
chefe indigno corrompe a virtude de um vasto império. Os vícios de governos
corruptos legam para a nação mazelas sociais irreparáveis. Sônia Almeida Pimenta
(2008) expõe que a ineficácia dos serviços públicos tem origem na corrupção
política, a qual abre espaço para o culturalmente conhecido “jeitinho brasileiro”, pois
cada um, a seu modo, procura levar vantagem para obter atendimento nos serviços
públicos e, então, o que deveria ser constituído por direito reverte-se em favores.
No que se refere à pseudo imparcialidade da justiça, Tomás Antônio Gonzaga
/ Critilo reitera sua desaprovação, pois aos reveses da lei, a agilidade da justiça só
se aplica aos pobres e pretos. A analogia aqui pode ser remetida aos inúmeros
atuais casos de fraudes políticas que resultam em denúncias que, quando
investigadas e comprovadas, arrastam-se por anos em processos obscuros que
tendem a se perder por decurso de prazo. A questão da imparcialidade da justiça
sempre deve ser posta em xeque, já que a aplicabilidade da lei deve seguir uma via
de mão única, devendo prevalecer o direito à igualdade.
Em diversos versos, ao longo da carta, fica explícita a indignação do poeta,
que questiona o amigo Doroteu sobre a desmoralização desmedida que se alastrava
em Vila Rica / Santiago. Essa inquietude revela um escritor crítico, polêmico, incapaz
de calar-se diante das irregularidades que presencia. A indagação seguinte é
reiterada em diversas estrofes da carta. “Já viste, Doroteu, um tal desmancho”?
(p.817).
Festividades luxuosas, sustentadas por dinheiro público e frequentadas por
figuras dissimuladas, revestidas de superficialidade de aparências provocam
grandes rumores e indignação:
Uns ralham, outros ralham, mas que importa? Todos arbítrios dão, nenhum acerta. Então o grande Alberga, que preside, vendo esta confusão, na mesa bate e, levantando a mão pausada e forte, a importante questão assim decide: “Há dinheiro, senhores, há dinheiro; vendam-se os castiçais, tinteiro e bancos, venda-se o próprio pano e mesa velha; quando isto não baste, há bom remédio: as fazendas se tomem, não se paguem(...) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Mandam-se apregoar as grandes festas, acompanhada ao pregão luzida tropa de velhos senadores. Estes trajam, ao modo cortesão, chapéus de plumas, capas com bandas de vistosas sedas. (p.832).
Na quinta carta, Gonzaga / Critilo narra com ironia esses festejos pomposos,
nos quais as pessoas imergem-se em um jogo de faz de conta. A cena descrita nos
versos acima revela o inverso do ideal de vida simples almejado pelos poetas
árcades, tendo em vista que no Arcadismo os autores elegem o campo como o
cenário ideal de inspiração do eu lírico.
A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma de ideal de relação humana (CANDIDO, apud BOSI, 2008, p.57).
As festividades mencionadas pelo eu lírico seguem os moldes daquelas que
aconteciam nas cortes européias e demonstram que o poder emana das pompas,
não da legalidade. As pessoas que frequentam os luxuosos salões de festas visam
interesses próprios, para tanto, revestem-se de ricos trajes, pois é pela aparência
que são avaliados. Segundo (BOSI, 2008, p. 58), “o bucolismo foi para todos o
ameno artifício que permitiu ao poeta fechado na corte abrir janelas para um cenário
idílico onde pudesse cantar, liberto da constricções da etiqueta, os seus sentimentos
de amor e de abandono ao fluxo da existência”. Os fatos presenciados pelo poeta
impeliam-no a registrar suas imprecações nas Cartas Chilenas. Nos versos acima
constata-se que, a despeito de todos, o presidente da Câmara Municipal de Vila
Rica cede aos caprichos do Fanfarrão e angaria recursos, mesmo ilegalmente, para
apregoar as festas. Os frequentadores de tais festas comungam de igual conduta,
desconsideram as leis e tramam negócios lucrativos para si, lesando, assim, a
população que vê os seus direitos e seus bens se esvair.
Outra ação ilícita imprecada por Gonzaga / Critilo, na décima segunda carta,
diz respeito ao protecionismo dispensado a um certo mulato:
Aquele que jacta de fidalgo não cessa de contar progenitores(...) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ (...)assim o nosso chefe traz consigo arribação infame de bandalhos, que geram também asas, com a muita, nociva audácia que lhes dá seu amo. Na corja dos marotos aparece um magriço mulato, a quem o chefe, por oculta razões, estima e preza. (p.888).
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Passados alguns tempos, Ludovino encontrou, uma noite, a sua escrava(...) Aqui lhe perguntou a longa história da fugida que fez; e a triste serva, com ânimo sincero, assim lhe fala: “Ribério me induziu a que fugisse; meteu-me no quarto, aonde estive fechada muitos dias. Alugou-me, depois uma casinha; aqui me dava dos sobejos da mesa de seu amo, para alimentar a pobre vida. Tive dele dois filhos; o demônio Enganou-me, senhor, cuidei...” E, nisto,(...) (892) ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨ Agora dirás tu: “Nasceu fidalgo, e as grandes personagens não se ocupam em baixos exercícios”. Nada dizes. (895)
Através da leitura da décima segunda carta obtém-se a informação que,
Robério, criado do chefe, rouba uma escrava de Ludovino e amasia-se com ela, que
dá a luz a dois filhos. Ficam implícitas nos versos as razões pelas quais o Fanfarrão
preza e estima o mulato. Gonzaga / Critilo relata que um fidalgo não se ocupa de
exercícios de pouca monta, o que leva a entender que tamanho beneplácito deve-se
a razões obnubiladas.
O que fica evidente nos versos acima é o preconceito racial de Tomás
Antônio Gonzaga, o que para época não poderia ser diferente, pois, mesmo entre os
ilustres intelectuais, engajados no movimento da conjuração mineira, não se
cogitavam os ideais de libertação dos escravos. Porém, na mesma medida que a
mentalidade escravocrata era latente, formava-se um novo perfil de população que
constituiria a futura nação brasileira. O período colonial marca a ascensão do
bacharel, Gilberto Freyre (2004), retrata sobre esse tema no capítulo Ascensão do
bacharel e do mulato, na obra Sobrados e Mucambos.
Gonzaga, Cláudio, os dois Alvarenga, Basílio da Gama marcam esse prestígio mais acentuado do bacharel na sociedade colonial; a intervenção mais franca do letrado ou do clérigo na política. Marcam, ao mesmo tempo, o triunfo político de outro elemento na vida brasileira, o homem fino da cidade. E mais: a ascensão do brasileiro nato e até do mulato aos cargos públicos e à aristocracia da toga (FREYRE, 2004, p.714).
Entre os séculos XVII e XVIII muitos mulatos ascenderam como bacharéis e
intelectuais formados na Europa graças ao investimento dos pais ou das mães, que
não mediam esforços para contribuírem com a formação universitária dos filhos.
Houve, ainda, a ascensão por meio da carreira militar no Exército e também a
ocupação dos cargos de sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro,
segundo Gilberto Freyre:
(...) esses poucos mulatos que chegavam a exercer, nos tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância excepcional (FREYRE, 2004, p.727).
Cabe aqui a seguinte indagação: o bacharelado ou a aristocratização em
capitães-mores propiciou o emparelhamento social a todos os mulatos? Os fatos
demonstram que tanto o preconceito racial quanto o social esteve enraizado ao
longo da história e a exclusão social dos cidadãos que vivem na miséria absoluta
continua negando-lhes o princípio básico que rege a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que é o direito à igualdade e dignidade.
Assim como Tomás Antônio Gonzaga, Gregório de Matos, primeiro grande
nome da Literatura Brasileira, em sua poesia satírica, empregando linguagem ferina
e sarcástica cultiva a visão estamental em relação ao negro ou mulato4.
Mais delicada, se não espinhosa, é a questão do negro e, dentro desta, a questão do mulato. A ojeriza que o último inspira a Gregório faz escrever uma sociedade onde o grau de mestiçagem era já o bastante alto para que se destacasse do conjunto da população um grupo de pardos livres (BOSI, 1992, p.106).
A leitura das poesias de Gregório traz à tona a seguinte indagação de (BOSI,
1992, p.107): “a fusão que se deu na pele e na carne significou também
emparelhamento social”? A reposta se obtém nos seguintes apontamentos:
Sobre eles, mulatos nascidos e criados em mucambos e cortiços, agiu poderosamente o desfavor das circunstâncias sociais, predispondo-os ao estado de flutuação e inadaptação aos quadros normais de vida e de profissão, ao de inconstância no trabalho, ao de rebeldia a esmo, estados todos esses, socialmente patológicos, que tantos associam ao processo biológico de miscigenação (FREYRE, 2004, p.749).
No que diz respeito à condição social do mulato, Gilberto Freyre (2004)
destaca ainda que “é considerável o número de sararás, cabras, cafuzos, mulatos de
cabelo liso ou cacheado ou encarapinhado, mas ruço e até arruivado e vermelho,
que passam pelos anúncios de jornais, da primeira metade do século XIX”. O
estigma da exclusão social seguiu-se ao longo da história e Gilberto Gil, na música
Sarará Miolo5, retrata essa questão mal resolvida da identidade do crioulo, que não
4 Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés aos homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres: Eis aqui cidade da Bahia. (MATOS, Gregório de. Soneto VI. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br) 5 sara, sara, sara cura
dessa doença de branco(...)
cabelo duro é preciso
que é para ser você, crioulo. (GIL, Gilberto. Sarará Miolo. Disponível em: http://letras.terra.com.br)
se adapta entre os brancos nem entre os negros. A análise feita do fragmento da
décima segunda carta traz à reflexão sobre a forma irônica com que Gonzaga /
Critilo retrata a questão dos privilégios da fidalguia, o alvo das críticas nos versos
dessa carta, além do Fanfarrão é a figura do mulato, por quem o autor das cartas
revela desprezo.
Gonzaga / Critilo, nos cinco últimos versos, da décima terceira (última) carta,
constata que a conduta do chefe é mascarada por um jogo de interesses para
continuar inserido no sistema. Para se manter no poder, o chefe apela para um
comportamento fingido, mostrando-se religioso, fiel e íntegro, mas esses adjetivos
não condizem com a moral do Fanfarrão Minésio, pois sua ação vela os torpes fins.
Não há, meu Doroteu, não há um chefe, Bem que perverso seja, que não finja Pela religião um justo zelo, E, quando não o faça por virtude, Sempre, ao menos, o mostra por sistema. (p.896).
Os versos acima trazem à tona a seguinte reflexão: o sistema político molda o
homem aos seus preceitos ou o homem molda o sistema de acordo com os seus
interesses? De qualquer forma, prega-se que jamais os interesses particulares
devem preponderar sobre os direitos coletivos.
O poeta Gonzaga transita entre os versos satíricos e os líricos. Nas Cartas
Chilenas busca-se resgatar o estilo sociopolítico do autor, mas o pastor Dirceu,
mesmo na sua obra lírica, deixou transparecer a pujança crítica de Gonzaga
retratando sobre sua condição de prisioneiro.
Um breve cotejo entre Cartas Chilenas e o poema Quando levares, Marília, / teu
ledo rebanho ao prado.
As anônimas Cartas Chilenas que circulavam em Vila Rica possuem estreitas
ligações com a participação de Tomás Antônio Gonzaga no movimento da
Inconfidência Mineira, fato que levou o ouvidor, noivo de Marília à prisão. Proença
Filho (1996, p. 548) aponta que o ócio do poeta na prisão levou-o “a duas grandes
tarefas: celebrar o amor, que o martírio tinha embelezado, e fazer a sua defesa por
meio da poesia”. Essa condição sorumbática do poeta na prisão suscita uma breve
análise do poema composto na masmorra: Quando levares, Marília, / teu ledo
rebanho ao prado.
Saudoso, o poeta supõe que a amada por ele suspira de saudade. Os versos
seguem a estética das poesias árcades, em que o cenário bucólico e os temas
pastoris ficam em evidência. Na primeira estrofe do poema, o eu lírico imagina e
idealiza o prado onde estaria sua musa. A idealização, seja da musa, seja da
natureza, é recorrente na poesia árcade como um todo, tanto é assim que ela se
desdobrará, no século XIX, na poesia romântica. Segundo (BOSI, 2008, p.59), “tanto
no contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico há um apelo à natureza
como valor supremo que em última instância é defesa do homem infeliz”. O eu -
lírico nos versos seguintes manifesta seu sentimento pela amada Marília projetando-
a em um cenário bucólico.
Quando levares, Marília, teu ledo rebanho ao prado, tu dirás: - Aqui trazia Dirceu também seu gado. Verás os sítios ditosos onde, Marília, te dava doces beijos amorosos(...) (p. 180)
6
Na última estrofe do poema, o poeta descreve o frio cárcere e descreve o
lúgubre local de onde não é ouvido, pois suspira em vão, não sendo ouvido sequer
pelos deuses. A evocação aos deuses é retomada no Arcadismo, que recebeu
denominação de Neoclassicismo. A queixa do eu-lírico na estrofe seguinte é pela
profunda dor que acomete o seu coração, pois, para Dirceu, os sinais de inchaço e
roxidão dos olhos não são nada em relação aos retratados no coração. No mesmo
poema, conforme os apontamentos de Proença Filho (1996), apresenta-se um misto
de “pastor, Dirceu e poeta Gonzaga”. Com os fragmentos destacados é possível
perceber o lirismo árcade na primeira estrofe contrastando o tom de denúncia da
seguinte estrofe:
Numa masmorra metido, eu não vejo imagens destas, imagens que são por certo
6 As citações referem-se a: GONZAGA, Tomás Antônio. In: EULÁLIO, Alexandre. Os melhores poemas de Tomás Antônio Gonzaga. São Paulo: Global, 1983 e os números das páginas serão inseridos após as citações das mesmas.
a quem adora funestas. Mas se existem, separadas dos inchados, roxos olhos, estão, que é mais, retratadas no fundo do coração. Também mando aos surdos deuses tristes suspiros em vão. (p. 182).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Coteja-se o poema acima às Cartas Chilenas como forma de evidenciar que
Tomás Antônio Gonzaga, mesmo na masmorra, continuou escrevendo poemas
líricos, mas sem deixar, esvanecer a veia satírica presente nas cartas em análise.
Cabe, aqui, retomar um breve comentário da parte que introduz as Cartas Chilenas:
Epístola a Critilo, em que o amigo Doroteu responde as missivas com os seguintes
versos:
Este, ó Critilo, o precioso efeito dos teus versos será: como em espelho que as cores toma e reflete a imagem, os ímpios chefes de igual conduta a ele se verão, sendo arguidos pela face brilhante da virtude, que, nos defeitos de um, castiga a tantos. (p.794).
As perseguições políticas sofridas por Tomás Antônio Gonzaga e seus
companheiros intelectuais iluministas não se ativeram, apenas àquele período da
história. Também os vícios do Fanfarrão não se reduziram àquele contexto, pois, no
meio político, permanece atual. Cartas com as de Tomás Antônio Gonzaga parecem
não surtir efeito quando os governantes são corruptos, pois estes desconhecem ou
ignoram tais apelos indignados contra a desonestidade. Entretanto, há, sempre, a
voz daqueles que de mobilizam em nome da legalidade e da legitimidade, como bem
exemplifica a atual carta de Rossini Amorim Bastos: Prezado Barão de Itararé, em
que sob o remetente Pedr’ Álvares denuncia os desmandos da atual política.
Aproximando-se do modelo da diatribe, em consonância com as concepções de
Bakhtin (2008), a carta mencionada vincula-se à “sátira menipéia”. Na atual missiva,
a autora aborda sobre o caso da prisão do então governador do Distrito Federal e as
indébitas concessões de mordomias através da seguinte colocação: “Até quando
durará o cárcere do monarca que rege o Distrito Federal? Na sala dois quartos onde
se encontra há TV e um jogo de sofá, este, a propósito confortável para que o
prelado se recoste quando lhe é servido panetone”. (BASTOS, 2010) Outros casos
são relatados no mesmo estilo satírico empregado por Tomás Antônio Gonzaga nas
Cartas Chilenas. Registros desse gênero deveriam ser lidos e refletidos pelos
cidadãos e políticos, pois assim o leitor compreenderia melhor as relações que
permeiam o contexto político e exigiria mais transparência e efetivação dos direitos
garantidos por lei a todos, sem privilégios a um em detrimento de outros.
Na Dedicatória aos Grandes de Portugal há a seguinte frase: “Feliz reino e
felices grandes que não têm em si um modelo destes”! (GONZAGA, Tomás Antônio.
In: PROENÇA, 1996, p.795) Entre avanços e retrocessos, a nação brasileira vem
procurando eleger governantes que distanciem do modelo daquele representado por
Fanfarrão. Enquanto na realidade não se tem respostas a essas expectativas, na
literatura, encontra-se, para a apreciação do leitor, o modelo idealizado na figura dos
personagens heróicos. A releitura das Cartas Chilenas traz sempre à tona questões
sociopolíticas passíveis de reflexão em qualquer época.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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Cultrix, 2008.
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1992.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade – Estudos de Teoria e História
Literária. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.
COTRIM, Gilberto. História Global Brasil e Geral. 8ª ed. São Paulo: Saraiva,2005.
EULÁLIO, Alexandre. Os melhores poemas de Tomás Antônio Gonzaga. São
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gil/345133/
MATOS, Gregório de. Soneto VI. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br
PIMENTA, Sônia de Almeida; et al. Identidade nacional em debate. São Paulo:
Moderna, 1997.
PROENÇA FILHO, Domício (org.). A poesia dos inconfidentes. Rio De Janeiro:
Nova Aguiar, 1996.