Post on 11-Feb-2019
CAPITULO I
Fabiana Eckhardt
TRANÇA DE GENTE: EM BUSCA DO FIO- VOZ DA CRIANÇA NOPROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestradoem Educação da Universidade Católica dePetrópolis como parte integrante dos requisitospara obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª. Dra. Marisol Barenco de Mello
Mestrado em EducaçãoUniversidade Católica de Petrópolis
Petrópolis, setembro de 2006
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Fabiana Eckhardt
TRANÇA DE GENTE: A BUSCA DO FIO- VOZ DA CRIANÇA NOPROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestradoem Educação da Universidade Católica dePetrópolis como parte integrante dos requisitospara obtenção do título de Mestre em Educação.
Aprovada em ____/_____/_____
Banca Examinadora
Profª Dra. Marisol Barenco de Mello
Profª Dra. Maria Celi Chaves Vasconcellos
Profª Dra. Lea Pinheiro Paixão
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DEDICATÓRIA:
Às crianças... sem distinção .
4
AGRADECIMENTOS:
Neste caminhar tive o privilégio de estar com pessoas muito especiais...
Como agradecer, senão dizendo “OBRIGADA” :
Minha famíliaAnna Carolina- por “compartilhar tudo “ comigo
Bianca e Juliano - pelo incentivo
Luiz e Angela- pelo carinho, apoio e confiança, sempre...
Às instituiçõesAo Laboratório de Estudos sobre a relação família e escola
À coordenação e ao corpo docente do IEPIC
Meus amigos, incentivadores, solidários...Renata, Francisco, Luís Augusto, meus amigos de Mestrado
Nanci, por ouvir- me incansavelmente e sempre me encorajar ...
Cláudia, Rafael e Luis Filipe, sem vocês teria sido muito difícil...
Marisol, minha professora, minha colega de pesquisa, minha amiga, meu “ Sol”
acadêmico...
As crianças, o motivo disto...Marlon, Ana Caroline, Jayane,Thayane, Thaynara, Joseane, Jonathan, Janderson,
João Felipe, Orlando e Ana Flávia
Início e fim de tudo: Deus!
5
“Trança de gente é diferente da trança que faz nocabelo das meninas. É uma trança que até pareceuma tatuagem invisível. Vai trançando os fios atéformar uma história que fica pra sempre dentro dagente”.
( Guilherme, 10 anos)
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RESUMO
Esta dissertação insere-se no campo dos estudos sobre o desenvolvimento moral
de crianças e busca investigar os processos de socialização vivenciados por elas
no contexto escolar. Para tal, busca os índices através dos quais possam ser
essas crianças tomadas como sujeitos de sua socialização, bem como a
possibilidade de se tomar o desenvolvimento moral dessas crianças para além do
entendimento da virtude da justiça como motor e ponto de chegada do
desenvolvimento. Apresenta os resultados obtidos através de pesquisa realizada
com crianças de classes populares, buscando compreender o processo de
socialização escolar na visão das crianças. Os dados foram coletados em três
etapas distintas e complementares: o primeiro um grupo focal; o segundo na
elaboração de um jogo enfocando as regras escolares e o terceiro no contexto de
uma entrevista com grupos menores, ocasião em que foi apresentado a cada um
destes um dilema moral. Os sujeitos desta pesquisa são onze crianças, entre oito
e quatorze anos, alunos do primeiro segmento do Ensino Fundamental de um
colégio estadual do município de Niterói, RJ. Os discursos das crianças permitiram
a análise da lógica infantil que nos revelou, a partir da visão da criança sobre o
processo de socialização, as lógicas socializadoras que o compõem. As
conclusões apresentadas nesta pesquisa apontam para a necessidade de uma
revisão nas teorias vigentes.
PALAVRAS- CHAVE: Processo de socialização, Criança, Desenvolvimento Moral.
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ABSTRACT
This dissertation is in the field of the studies about the moral development of
children and investigates the processes of socialization lived by them in the
school context. For such, it looks into the rates through wich these children can
be taken as subjects of their socialization, as wel as the possibility of taking the
moral development of these children beyond the understanding of the virtue of
justice as motor and start point of their development. It presents the results
obtained through research done on children of popular classes, trying to
understand the process of school socialization in the children’s vision. Data was
collected in three distinct and complementary stages: the first stage was a focal
group; the second was in the elaboration of game focusing school rules and the
third in the context of an interview with smaller groups, when a moral dilemma
was presented to each one of these groups. The subjects of this research are
eleven children, around eight and fourteen years old, pupils of the first segment
of the basic of a school in Niteroi, RJ. The children’s discourses allowed the
analysis of the infantile logic that revealed , from the child’s vision about the
socialization process, the socilalizing logic that composes it. The conclusions
presented in this research show the necessity of a revision in the force theories.
KEY WORDS: Process of socialization, child, moral development.
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SUMÁRIO
CAPÍTULO I - SEGURANDO OS FIOS DA TRANÇA .......................................01
1.1 O Objeto ............................................................................................... 011.2 O Objetivo ............................................................................................ 031.3 Relevância ........................................................................................... 061.4 A metodologia ...................................................................................... 071.5 Estrutura do trabalho ............................................................................. 08
CAPÍTULO II – DISCUTINDO TEORIAS E SEPARANDO OS FIOS ..............10
2.1 A moralidade ......................................................................................... 112.1.1 Ética e Moral: conceitos sinônimos? ........................................ 11
2.1.1.2 Da moral à ética ou da ética à moral: a busca de umarelação entre a teoria e a prática ..............................................12
2.1.2 Moralidade: esfera pública e esfera privada .............................152.1.2.1 O que é uma virtude? ...................................................162.1.2.2 Personalidade Moral .....................................................20
2.1.3. Jean Piaget e a psicologia do desenvolvimento ........................232.1.3.1 Piaget: moral na perspectiva de desenvolvimento.................252.1.3.2 Uma restrição de moral .............................................................27
2.2 Socialização............................................................................................312.2.1 Durkheim: moral como processo de socialização......................32
2.2.1.1 Criança:sujeito ou objeto da moralização? .....................332.2.1.2 Escola : espaço moralizador............................................35
2.2.1.2.1 A forma escolar como forma legítima de
socialização ...........................................................36
2.3 Durkheim e Piaget :convergências e divergências sobre socialização.38
2.3.1 Homem autônomo X adulto normal ..........................................40
2.3.2 Uma breve discussão sobre a hegemonia da justiça................42
CAPÍTULO III – TRANÇANDO OS FIOS DA TEORIA AO UNIVERSO MORALDA CRIANÇA ........................................................................................................44
3.1 A definição de ser criança ............................................................................64
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3.1.1 A criança como aluno..................................................................... 64
3.1.2 Ser criança em distinção de ser adulto ........................................... 66
3.2 Relação entre famílias e escola ................................................................... 68
3.2.1 Confronto de relações na figura dos sujeitos................................. 70
3.2.1.1.As tarefas escolares como objeto na relação ................. 72
3.2.1.2 Regras da casa e da escola........ ................................74
3.2.1 Regras e limites ...............................................................................79
3.3 Família e escola: um olhar que se cruza........................................................82
3.3.1 Drogas e violência .................................................................87
3.3.2 Violência ao redor da escola ...............................................88
3.3.3 Violência fora da escola .........................................................89
3.3.4 Violência no IEPIC................................................................91
3.4 A visão infantil sobre autoridade ..................................................................93
3.4.1 Figuras de autoridade .............................................................94
3.4.2 Autoridade e afeto ...............................................................97
3.4.3 Autoridade e as regras ...........................................................99
3.4.4 Autoridade e sanções ...........................................................101
3.4.4.1 As punições de casa ..............................................101
3.4.4.2 As punições da escola ............................................104
3.5 Universo socializador da escola...................................................................107
3.5.1 Ações desejadas....................................................................108
3.5.2 Ações indesejadas..................................................................111
3.5.3Discussão infantil sobre ação e sanção ...............................113
3.6 O olhar das crianças sobre o mundo moral..................................................122
3.7 Para além das regras.....................................................................................123
CAPÍTULO IV – RETRANÇANDO A CRIANÇA : O SUJEITO SOCIAL...........144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................148
ANEXO ................................................................................................................151
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SEGURANDO OS FIOS DA TRANÇA
“As palavras mais simples são as mais difíceis de ouvir.”(Larossa,1998)
1.1 O objeto
A complexidade do desenvolvimento humano faz-nos muitas vezes estudar,
pesquisar, falar sobre as crianças, mas ouvi-las em muitas situações ainda nos
parece um despropósito.
A criança, como nos ensinou Hannah Arendt, nos perturba como perturbou
ao homem antigo a descoberta do homem ameríndio. Ela é humana, mas não é
como nós, adultos civilizados, portadores de uma determinada racionalidade
naturalizada. No decurso da história, objetificamos, estudamos, ‘coisificamos‘,
analisamos a criança. Falamos sobre ela, mas pouco ou quase nunca falamos
com ela, pois permitir este diálogo seria reconhecê-la como sujeito, como um outro
legítimo.
Este outro é a novidade, é aquele que não compreende a nossa
racionalidade, não por incapacidade, mas por não crer tanto nela. Ele distorce as
nossas regras, ri das nossas tradições, exige um esforço civilizador, porque a
cada momento ameaça com sua novidade radical o nosso mundo instituído.
Socialização é o nome do processo pelo qual inserimos a criança no mundo
instituído, tornando-a parte constituinte deste e, mais, um herdeiro de nossas
tradições, de nosso patrimônio, de nossos valores, de nossa cultura.
Este trabalho é uma leitura da construção social da criança na escola, a
partir do ponto de vista deste sujeito.
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Como afirma Dubar (1997), o termo ‘socialização’foi utilizado de modo
polissêmico, e adquiriu conotações que muitas vezes levaram alguns sociólogos a
pensar em banir o termo do conjunto de estudos da Sociologia. Trabalhamos
nesta pesquisa com a perspectiva de Dubet (1997) que, ao afirmar as três funções
essenciais da escola – distribuição, educação e socialização-, define esta última
como sendo o desenvolvimento, na organização escolar, de um conjunto de
regras, exercícios, programas e relações pedagógicas que têm como fim a
interiorização, pelos sujeitos- alunos- das normas e atitudes que constroem as
disposições que o permitirão entrar na sociedade.
Vivemos em coletividade. No nosso cotidiano convivemos com diversas
situações de relação social, seja em casa ou no trabalho. Com a criança não é
diferente. Ao nos relacionarmos com os outros, freqüentemente podemos
perceber sentimentos morais: rancor, indignação, raiva, compaixão. Se
observarmos nossas falas, nelas constantemente encontraremos a presença de
juízos e valores que atribuímos às atitudes, às falas de outrem, o que nos leva
neste trabalho, além de investigar o processo de socialização na escola, ou seja,
como acontece esta “incorporação”do mundo instituído, procurar também o
comparecimento de sentimentos morais nestas relações sociais estabelecidas no
universo infantil.
Enfim, buscamos compreender como a criança se relaciona com esse
processo, o que sente e pensa essa criança ao ser submetida a inculcação de
valores, tradições, regras instituídas no espaço em que vive e qual a sua
contribuição neste. Como a criança percebe a escola, este espaço moralizador por
excelência, através das diversas situações de relação social que ali se
estabelecem: relação de autoridade, relação entre iguais, relação com as regras
existentes, as expectativas da instituição e das pessoas que a representam sobre
os seus comportamentos e os sentimentos morais que envolvem toda esta
situação?
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Como questão disparadora desta investigação, nos perguntamos: “Comopodemos tomar essa criança como sujeito da sua socialização?
O sujeito desta pesquisa é a criança da classe popular, aluna da escola
pública, que se vê no cruzamento de pontos de vistas diferentes sobre um mesmo
objetivo: a socialização. Temos a intenção de trazer a fala infantil sobre o
processo de socialização. Trazer a voz da criança, sujeito dessa socialização,
significa compreender como a criança interioriza os discursos do mundo adulto e
os reelabora. Enfim, trata-se de buscar a lógica da criança, que se insinua em seu
discurso.
1.2 O objetivo
“Vou te contar, teus olhos já não podem ver...”
(Tom Jobim)
No fim de 2001, terminando o curso de graduação em Pedagogia, com a
apresentação da monografia intitulada “TRANÇA DE GENTE: dramas morais na
infância”, percebi um trabalho inacabado, na verdade, um disparador para algo
maior e muito mais complexo: a necessidade de ouvir a voz da criança nos
processos de desenvolvimento moral e socialização.
Tendo iniciado a leitura de Piaget sobre o desenvolvimento moral, no inicio
de 2004, apresentei ao Programa de Mestrado um projeto de pesquisa no qual me
propunha a apontar algumas lacunas na pesquisa piagetiana sobre o tema em
questão. Pareceu a muitos, é claro, muita pretensão assinalar lacunas numa teoria
tão sensata, tão fechada e respeitada. No entanto ao ouvir a voz da criança, esta
nos fez suspeitar da possibilidade de carência em tal teoria .
Assim iniciei o trabalho de pesquisa, lendo e relendo Piaget, defensor do
interacionismo, e que sustenta a idéia da moralidade como parte integrante do
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desenvolvimento, no qual a criança evolui em estágios, partindo de um ponto
inicial com a finalidade de chegar à um determinado lugar, o lugar ideal. Embora
Piaget defenda que o desenvolvimento moral, assim como o cognitivo, é uma
construção do sujeito na interação com o mundo, ou seja, para ele o homem é
sujeito da sua aprendizagem, sua teoria sobre a moralidade a nós pareceu
insuficiente ao compararmos a criança tal como descrita por Piaget e as crianças
que conhecemos.
Buscamos nesta pesquisa nos apoiar em Yves de La Taille, psicólogo
piagetiano que apesar de defender a teoria de Jean Piaget sobre o
desenvolvimento moral, percebe e aponta lacunas existentes nesta pesquisa .
Dentre elas, levanta um conceito recente na psicologia moral que é o de
personalidade moral, que buscamos para compreender como o ser humano se
desenvolve moralmente nas relações interpessoais e na relação intrapessoal.
A partir dessa discussão, La Taille nos abre um outro caminho que é o de
apontar que nas teorias tradicionais há uma restrição da moralidade em uma
virtude: a justiça. Virtude esta privilegiada nos estudos piagetianos até por ser uma
tendência da época vivida pelo autor e mais, uma disposição ainda hoje
supervalorizada na sociedade atual: uma moralidade que garanta os direitos e
conseqüentemente atribua os deveres dos cidadãos.
No entanto, o trabalho realmente tomou forma ao me deparar com a
possibilidade de participar de uma pesquisa maior sobre socialização na escola,
na Universidade Federal Fluminense, onde encontrei outra voz que não a da
Psicologia do Desenvolvimento, mas sim a da Sociologia, apontando para este
lugar que é o social, o lugar onde nos fazemos seres morais.
Por isso, adentramos o campo da Sociologia, buscando primeiramente
compreender em Durkheim as intenções da socialização. Em Durkheim
encontramos a criança como um vir–a-ser, ou em outras palavras, alguém que
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não é e portanto, não pode sequer falar com propriedade. Para Durkheim, a
criança será um homem normal quando a socialização tiver sido levada a cabo.
Percebemos já a carência deste modelo de educação moral para responder a
questão que a nós se colocava.
No entanto, em Durkheim nos deparamos com a sociedade como aquela
que dita, que define as regras e normas sociais. Algo muito próximo do que
víamos na prática docente. Deste modo, desconsiderar seria um erro. Um lugar
que nos pareceu muito relevante para tal discussão, foi a Sociologia de Daniel
Thin, que muito contribuiu para compor este quadro teórico, juntamente com a
Psicologia do Desenvolvimento.
A partir dos conhecimentos que decorriam destas novas interações o
trabalho foi tomando um novo rumo. Desde então, algumas questões foram
elaboradas e são estas que pretendemos responder:
1. As crianças do Ensino Fundamental, na faixa etária entre 8 a 14 anos
podem ser consideradas sujeitos da sua socialização?
2 . Como essas crianças interpretam as ações socializadoras, expressas no
contexto escolar sobre a forma de regras, e como agem e reagem ao
conjunto destas ações?
3. Que virtudes morais as crianças demonstram compreender através de
sentimentos morais apontados na relação social quando esta não envolve
expectativas da autoridade encarnada?
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1.3 Relevância
Falar de socialização é falar de interação. É ver a possibilidade da relação
entre pessoas. Algo que ocorre tão espontaneamente que pode nos parecer muito
habitual, tanto que na maioria das vezes, sequer pensamos sobre isto,
simplesmente agimos, como se fosse algo natural. Não é natural. É algo do que
nos apropriamos. É algo já automatizado em nosso comportamento. Toda moral é
constituída num tempo e num espaço e se hoje é assim que ela se apresenta, não
é mera eventualidade. Esta forma de viver e de se relacionar foi construída a partir
de um modelo determinado .
Que modelo de moralidade, de socialização é este ao qual aspiramos ? Ao
nos perguntarmos sobre isto, estamos levantando a possibilidade de
questionamento sobre a legitimidade deste modelo. Todo modelo é político. A
escola trabalha com modelos, a sociedade segue um padrão que não é neutro, e
nesse nosso contexto social e histórico é excludente. Fecharmos os olhos para a
existência de tal protótipo é permitir que este nos atravesse e sem percebermos
tornamo-nos seus aliados. Levantar questionamentos sobre este modelo instituído
foi um dos fatores que justificou este trabalho.
Nos perguntamos se há possibilidade de se falar deste processo sem ouvir
a voz do sujeito a quem estamos nos reportando, neste caso, a criança. Na
escola, freqüentemente falamos da criança com os professores, com os
responsáveis, enfim, falamos dela, porém pouco falamos com ela. Ou pelo menos,
pouco consideramos o que dela ouvimos. Ora, não é ela o sujeito,que segundo
Piaget está construindo sua socialização ? Como podemos então, ignorar suas
concepções sobre o assunto?
Estabelecer diálogos com as crianças na escola, considerando-as sujeitos
de sua formação, é ao mesmo tempo simples e um enorme desafio. É a intenção
deste trabalho colocar o discurso da criança num patamar de seriedade e validade
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dialogando com as vozes consideradas legítimas no que diz respeito ao processo
de socialização infantil.
1.4 A metodologia
Os sujeitos participantes desta pesquisa são alunos de um colégio da rede
estadual de ensino do município de Niterói, estado do Rio de Janeiro, que atende a
crianças e jovens de classes populares, provenientes na sua maioria, de acordo
com os dados cedidos pelas coordenadoras pedagógicas desta instituição em
setembro de 2005, do Morro do Ingá, também conhecido como Morro do Palácio e
do Morro do Estado.
A escolha desses alunos foi realizada a partir de uma ficha elaborada em
outra parte da pesquisa maior, na qual nos inserimos, quando foi solicitado às
professoras que indicassem dois alunos: um bom aluno e um “mau”. A partir desta
indicação, retornamos à escola com o intuito de solicitarmos a autorização da
família para a participação da criança em nossa pesquisa, bem como compreender
os critérios utilizados pelas professoras para indicarem tais alunos denominando-os
como bons ou “maus” alunos.
A coleta de dados foi realizada em três momentos distintos e
complementares: o primeiro através da realização de um grupo focal constituído
por 11 crianças e três adultos, com a intenção de se fazer emergir questões sobre
como a criança se percebe no processo de socialização, diferenciando-se dos
adultos e apontando a distinção por elas apreendidas entre o papel da família e da
escola neste processo, e por fim, a compreensão que tinham sobre as regras .
O segundo através de um jogo de trilha com o objetivo de investigar a
compreensão das regras escolares, convidamos as crianças a elaborarem as
regras do jogo de acordo com as regras escolares, bem como as ações para
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punição ou recompensa para as pessoas que transgredissem ou obedecessem
tais regras.
E finalmente, a partir da análise dos dois primeiros encontros, organizamos
uma entrevista (roteiro em anexo) realizada individualmente ou em pequenos
grupos com o intuito de aprofundar as questões que a nós se fizeram relevantes e
que junto às demais tarefas nos forneceu a base das categorias de análise deste
trabalho: 1) A definição de ser criança; 2) Relações entre famílias e escola;
3)Família e escola: um olhar que se cruza; 4) A visão infantil sobre autoridade ;
5) Universo socializador da escola; 6) O olhar da criança sobre o mundo moral.
1.5 A Estrutura do Trabalho
Esta pesquisa procura trabalhar de forma a compreender o espaço da
criança no processo de socialização escolar e está dividida em quatro capítulos. O
primeiro, intitulado “Segurando os fios da trança” compõe-se de cinco tópicos que
tratam das questões introdutórias sobre o objeto de estudo, traça o contorno do
trabalho com intenção de apresentar a questão norteadora da pesquisa: “Como
podemos tomar a criança como sujeito da sua socialização ?”; os objetivos da
pesquisa ; a relevância, que se encontra na compreensão da fala infantil como fala
legítima e de autoridade, bem como na necessidade de se repensar a prática
escolar sobre socialização tendo em vista o modelo social instituído; Por fim a
metodologia, onde abordou- se como, onde, quando, com quem e porque a
pesquisa de campo foi realizada .
O segundo capítulo, “Discutindo teorias e separando os fios”, tem como
objetivo apresentar a perspectiva clássica do desenvolvimento moral, postulada
por Jean Piaget e a continuidade dos trabalhos por Yves de La Taille, definindo os
conceitos de ética e moral assim como serão compreendidos no trabalho, bem
como esclarecendo a moralidade como composta de uma esfera pública e outra
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privada, trazendo a tona uma breve discussão sobre virtudes morais, levando- nos
ao conceito ainda recente no campo da psicologia moral, de personalidade moral,
por perceber a necessidade de se falar da restrição da moralidade a uma única
virtude: a justiça.
No que se refere à socialização, trazemos Durkheim, apresentando o lugar
da criança dentro de sua tese, o papel da escola e a forma escolar de
moralização. Buscando finalmente traçar um paralelo entre essas duas formas de
socializar apresentamos pontos de convergência e divergência entre esses dois
estudiosos da moralidade, este processo que para Piaget se finaliza na construção
do homem autônomo e para Durkheim na constituição do adulto normal.
O terceiro capítulo “Trançando os fios da teoria ao universo moral da
criança ”retoma a discussão metodológica, trazendo o discurso da criança- sujeito
desta pesquisa sobre a socialização escolar, a sua percepção sobre as regras
desta instituição, a dimensão individual do olhar dessas crianças e os sentimentos
morais constituintes deste processo de socialização.
O quarto capítulo “Retrançando a criança: o sujeito social”, traz de forma
não conclusiva, questões em torno do processo de socialização e
desenvolvimento moral, bem como algumas considerações finais do assunto,
recomendando um estudo maior do processo de socialização e a discussão sobre
o lugar deste na formação do professor.
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CAPÍTULO II
DISCUTINDO TEORIAS E SEPARANDO OS FIOS
“El camino se hace al andar”(Antônio Machado)
Que caminho seguir na busca da compreensão do processo de socialização
infantil? Uma pergunta difícil de se responder, mas que nos levou a escolher um
atalho localizado entre a trilha da Psicologia do Desenvolvimento e a vereda da
Sociologia. Onde encontramos uma longa alameda na qual recebemos ares de um
e outro caminho.
Escolher um ou outro caminho do saber seria pouco diante da riqueza
contida nas falas dos sujeitos de nossa pesquisa. Por isso, optamos por levantar
uma discussão entre o desenvolvimento moral no ponto de vista de Jean Piaget,
ampliado por seus sucessores, e a socialização sob a ótica de Durkheim, bem
como a leitura de autores contemporâneos sobre o assunto. Não
escolher,portanto, um ou outro campo do saber, mas trabalhar com a conexão
destes justifica-se por acreditarmos na construção da moralidade/socialização do
sujeito atrelada à cultura, às tradições, aos valores, enfim, não somente no plano
da relação interpessoal, como na relação intrapessoal.
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2.1 A Moralidade
Um assunto constante no nosso cotidiano seja em nossas casas, nas
escolas, nas rodas de discussão, seja na sala dos professores ou na sala de aula,
diz respeito a questões éticas. Além do que em nossas falas, independente do
assunto em pauta, freqüentemente podemos percebê-las, recheadas de juízos e
valores.
De acordo com Tugendhat (2000),“[...] tanto no âmbito das relações humanas quanto no político,constantemente julgamos de forma moral. No que diz respeitoàs relações humanas, basta observar que em um grandeespaço na discussão entre amigos, na família ou no trabalhoabrangem aqueles sentimentos que pressupõem juízos morais:rancor e indignação, sentimentos de culpa e vergonha [...]” (p.12)
Assim, percebemos o homem como um ser moral que não apenas se
preocupa naturalmente com a apreciação do outro, com a avaliação dos outros,
juízos estes realizados a partir de valores e princípios, como avalia
constantemente as atitudes, os comportamentos, as falas de outrem.
Fala- se em ética na política, na relação de trabalho, na relação familiar...
Fala- se em imoralidades, na importância de se zelar pela moral... Mas o que é
ética? O que é moral? Ética e moral são conceitos sinônimos?
2.1.1 Ética e Moral: conceitos sinônimos?
Para iniciarmos a busca do real significado dos termos em questão,
consultamos a etimologia das palavras: ética, do grego ethos designa os
costumes, o comportamento, as regras. Moral, do latim more, se refere à
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normatização das condutas humanas. Ambos indicam um tipo de comportamento
próprio do ser humano, que é adquirido ou conquistado, por isso, muitos autores
não distinguem um termo do outro. Por outro lado, há um grupo de estudiosos
sobre o assunto, que percebem aspectos relevantes que justificam a distinção
entre os termos.
Segundo Agostini (2001),“aqueles que utilizam a contribuição dos filósofos modernos nosafirmam que a ética se ocupa dos fundamentos da moral. Aqui aprópria intenção ética seria anterior à noção de lei moral. Nestecaso, a ética teria um caráter mais reflexivo e a moral umcaráter mais prático. Por isso, tem- se atribuído à ética o papelde investigar os valores e as normas e, sempre que necessário,depurá-los para que não fiquem caducos e se percam numa‘quadratura’qualquer.” (p.40)
Baseados nas contribuições de estudiosos sobre a questão, moral ou ética,
neste trabalho, trataremos os termos acima citados não como conceitos
sinônimos. Daremos à ética um sentido mais reflexivo, mais teórico e à moral, um
sentido mais prático, normativo.
2.1.1.2 Da moral à ética ou da ética à moral: a busca de uma relação entre ateoria e a prática
Uma possível definição que procura diferenciar os termos, encontramos em
La Taille (2002 b), “a moral refere-se às leis que normatizam as condutas
humanas, e a ética corresponde aos ideais que dão sentido à vida” (p.69). Dessa
forma, à ética atribuiríamos a reflexão do fazer, tendo em vista um fim, enquanto
que à moral seria o como fazer para alcançarmos tal fim. Poderíamos dizer que a
ética seria teórica e a moral prática. Sendo assim, seriam conceitos indissociáveis,
mas não unívocos.
O mesmo autor (2006), para definir os termos, atenta para a necessidade
de em ambos os casos, analisá-los separadamente na forma e no conteúdo. No
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caso da moral, chamaríamos de forma - os deveres, ou seja, “o corpo da lei”, uma
silhueta, a tentativa de transformar concretamente a idéia. De conteúdo -os
valores, ou seja, “o espírito da lei”, o teor, a substância que sustenta este corpo. E
em se tratando do termo ética, a forma, seria a significação do valor da vida. E o
conteúdo, as respostas que encontramos ao nos perguntar sobre tal significado ou
valor. Quando falamos em significado do valor da vida, estamos nos referindo a
uma vida de valor, uma vida boa, utilizando as palavras de La Taille, uma vida
“que vale a pena ser vivida”. E a resposta que encontraremos ao nos
perguntarmos sobre que vida é essa, que significado ou valor estamos buscando,
é bem certo de nos depararmos com um tema clássico da filosofia: a “felicidade”.
Ou seja, ao tentarmos compreender ética como a busca da felicidade,
estamos retornando ao ideal de ética aristotélico. Ao homem que busca uma vida
expressiva, uma vida boa. Mas, que seja boa para ele e para as outras pessoas.
Assim, é claro que só podemos classificar como éticas as respostas que sejam
coerentes com a moral. Aqui, parece- nos haver um paradoxo, se é a ética a
reflexão sobre a moral, como só podemos qualificar a ética se esta estiver de
acordo com a moral? Na verdade, não é um contra-senso, mas sim o resultado
que demonstra a interligação de um conceito ao outro, ou como já dito antes, a
indissociabilidade dos conceitos.
Percebemos que enquanto forma - a moral está pautada: nos deveres, nas
regras, o que “pode”, e o que “não pode”. Afinal, à moral está incutida a garantia
de uma vida em sociedade. “Se todos os homens e todas as mulheres
concordassem com um só conjunto de deveres, forma e conteúdo seriam
indissociáveis” (ibidem, p. 10), mas não o são. Porém, sabemos que nos é
possível identificar valores morais, ditos universais. Valores estes que nos
garantem uma estrutura social. Pode parecer muito natural que entre os seres
humanos haja uma lei que proíba matar o próximo, mas nem sempre foi assim, na
verdade esta entre outras, foram leis conquistadas pela humanidade à medida que
23
a mesma ia percebendo sua necessidade. E sobre elas, fundamos a sociedade na
qual vivemos. Nelas confiamos a harmonia societária.
Para La Taille (ibidem), quando nos deparamos com a pergunta “como
viver?” ou seja, o plano da moral, outra se faz necessária, uma pergunta
“relacionada à construção da personalidade: quem eu quero ser?” (p.69).
Seguindo o entendimento do autor, a pergunta como viver?, nos levaria à
elaboração de regras e então, uma nova pergunta poderia surgir: como agir?,
compreendemos assim ética e moral num relacionamento dialético, onde há uma
troca constante dos fundamentos da reflexão com a validade das regras práticas,
não sendo uma subestimada à outra.
Nos permitimos concluir que apesar da ética englobar a moral, esta é
preciso ser levada em conta, pois é ela que retrata de certa forma o consenso
social. O filósofo alemão Imanuel Kant, em seus estudos de filosofia moral nos diz
que devemos sempre agir de maneira que a nossa ação possa se transformar
numa máxima universal. Pedro- Silva (2006), do lugar da psicologia diz que,
“apesar de complementares, todavia, está claro que a ética devesubordinar-se à moral. Em outras palavras, nas decisões queenvolvem o outro deve prevalecer o conjunto de regras e valoresligados à dimensão pública, em detrimento dos mais afeitos àesfera privada. Por exemplo, entre optar por preservar a amizadeou ser justo, deve prevalecer este último valor. Se não for assim,estar-se-á condenando toda a sociedade ao seu desaparecimentoe, em decorrência, o próprio sentimento de amizade.” (p. 59)
Concordamos com o autor no que toca a relação moral – ética, pensarmos
nos ideais, deixando de lado as leis, regras estas que foram elaboradas dentro de
um tempo e lugar, seria no mínimo sem sentido, porém não concordamos com
este quando diz que a ética deve subordinar-se à moral, pois estaríamos
reduzindo a “moralidade”a um conjunto de normas que devem ser respeitadas
para que se garanta os direitos de todos. Todavia nos perguntamos, será possível
abreviar a moralidade a direitos e deveres? Ou pelo menos subordiná-la ao senso
de justiça?
24
Enfim, neste trabalho utilizaremos a perspectiva de La Taille no que diz
respeito aos conceitos ética e moral, de maneira a compreendê-los não como
sinônimos, mas como interdependentes quando o que está em questão é o
processo de construção da moralidade/ socialização. Compreendendo que a moral
por ser normativa, por pretender traduzir- se em regras e leis, torna-se mais
abrangente no que se refere ao público e a ética por ser mais ampla, mais
reflexiva, torna- se mais individual. Aqui não nos cabe, portanto, escolher um ou
outro conceito, mas diferenciá-los com a intenção de demonstrar sua
complementaridade.
2.1.2 Moralidade: esfera pública e esfera privada
Pedro-Silva, na citação anterior, faz referência a valores ligados à dimensão
pública (conjunto de regras- morais) e outros da esfera privada, no caso, a
amizade. E então, nos perguntamos: quais são os valores ligados a dimensão
pública? Segundo o autor, seriam aqueles que dizem respeito ao conjunto de
regras, ou seja, aqueles que visam garantir a vida em sociedade. Entendemos
então, que estamos falando dos direitos e deveres, ou em uma palavra, da virtude
justiça.
E quais seriam então os valores relacionados à esfera privada? Seriam
aqueles que não podem ser traduzidos em direitos e deveres. Ora, ao pensarmos
na moralidade como sendo constituída pela vida em sociedade, compreendemos o
império da justiça. É ela que garante a eqüidade. No entanto, a constituição moral
do sujeito não se restringe apenas no relacionamento interpessoal, abarca
também o desenvolvimento da vida intrapessoal. É fácil compreender que o meu
direito corresponda a um dever do outro e vice-versa. No entanto, como tornar
claro, ou mesmo traduzir racionalmente outras virtudes como, por exemplo, a
25
generosidade ? Posso ser generoso, posso até impor-me isto como dever, mas
não posso exigir do outro que o seja.
Não nos interessa aqui, atribuir uma hierarquia entre as virtudes, mas
colocar em discussão o império da justiça. Desde Aristóteles a virtude justiça vive
a supremacia. Segundo ele, a justiça era vista como a”virtude completa”. (200,
p.105)
2.1.2.1 O que é uma virtude?
Segundo La Taille (2002 b), “no seu sentido mais geral, virtude confunde-
se com ‘função’. Pode-se dizer que a virtude da faca é cortar, que a do olho é
olhar, e assim por diante.” (p.82). Para Comte-Sponville,(1999), “é uma força que
age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma planta e de um remédio, que é
tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é querer e agir
humanamente.” (p. 2). Sabendo pois, que ambos buscaram tal fundamento em
Aristóteles, nos reportamos ao mesmo que diz que a virtude é uma disposição,
mas nos alerta que
“não basta definir a virtude como uma disposição; cumpre-nosdizer que espécie de disposição é ela. Devemos observar quetoda virtude ou excelência não apenas põe em boa condição acoisa a que dá excelência, como também faz com que a funçãodessa coisa seja bem desempenhada.“ (2001, p.47)
Enfim, a virtude é uma disposição para desempenhar bem a sua função.
No caso da faca cortar bem, no caso de um remédio curar a doença. No entanto,
aqui nos interessa a compreensão de uma definição de virtude bem mais restrita,
que diz respeito ao homem. Qual é a função, a virtude, a excelência própria do
homem? Poderíamos dizer que seria desempenhar bem sua humanidade? Não
nos é estranho em nossas conversas do dia-a-dia, ouvir apreciações relativas à
26
falta de respeito, ou falta de solidariedade, generosidade, etc., do tipo: isto é
desumano! Este homem agiu como um animal! “Aristóteles respondia que é o que
o distingue dos animais, ou seja, a vida racional. Mas a razão não basta: também
é necessário o desejo, a educação, o hábito, a memória...” (Comte-Sponville,
1999, p.3)
Concordamos com Comte-Sponville que não basta ser racional para
determinar nossas ações de forma a desempenhar bem a “função” de ser humano.
O autor (ibidem), em outro momento da discussão sobre as virtudes apresenta esta
consideração que a nosso ver se faz pertinente:
“na maioria dos casos, sabemos muito bem o que deveríamosfazer ou o que faríamos se fôssemos santos ou heróis. Mas nãoousamos. Não o queremos. Não é o julgamento que faz falta, éa coragem, a generosidade”. (p. 212)
Comte-Sponville, na citação acima nos diz que não basta agir de acordo
com a razão. Nossas ações estão atreladas a uma série de fatores que
influenciam nossas decisões: o desejo, a vontade de agir, a educação, os valores
apresentados ao indivíduo ao longo de sua vida, a expectativa dos outros que nos
são caros em relação à nossas atitudes... O próprio Aristóteles nos diz que não é
“nem por natureza nem contrariamente à natureza que asvirtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a naturezanos dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade seaperfeiçoa com o hábito.” (2001,p.40)
Que hábito é esse? É o exercício. E por que exercitamos algo? Para
aprender, para aperfeiçoar. Como exercitamos as virtudes? Na relação com o
mundo, com o outro. A virtude pode ser vista como uma maneira de ser, mas
adquirida e duradoura, é o que somos e o que podemos ser. Nos tornamos
virtuosos à medida que assim o somos.
27
“Toda virtude é, pois, histórica, como toda a humanidade, eambas, no homem virtuoso, sempre coincidem: a virtude de umhomem é o que o faz humano, ou antes, é o poder específicoque tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, suahumanidade (no sentido normativo da palavra).” (Comte-Sponville, 1999 p. 3)
Comte-Sponville em seu livro “Pequeno Tratado das Grandes
Virtudes”elencou um grupo de virtudes para serem abordadas, e com a
preocupação de não hierarquizar, nem mesmo desprezar ou enaltecer as virtudes
morais nos diz como procedeu na escolha destas.
“Eliminei as que poderiam ser redundantes em relação a algumaoutra (por exemplo, bondade e generosidade, ou honestidade ejustiça) e, em geral, todas as que não me pareceu indispensáveltratar. Restaram dezoito, isto é, muito mais do que eu pensarade início, mas não consegui suprimir mais”. (ibidem, p.4)
E quanto a nossa escolha, esta se deu no campo de pesquisa. Vamos
neste trabalho refletir sobre a fidelidade, a generosidade e a gratidão, por terem
emergido nas falas dos sujeitos desta pesquisa.
Dando continuidade ao raciocínio até aqui exposto, explicitaremos as razões
que levaram Yves de La Taille, a pensar moral e ética deste modo, relacionando a
moral “com a busca da harmonia social e a ética com a busca da harmonia
individual ou de alguma forma de felicidade.” (2002 b, p.59)
Percorrendo os caminhos da psicologia, La Taille, cita em primeiro lugar
Sigmund Freud (1922/1991), ao apresentar a hipótese da psique humana dividida
em três instâncias: O Id (inconsciente), o Ego (lugar da consciência) e o Superego,
também denominado Ideal de Ego (responsável pelas exigências morais) e neste
momento, a instância que nos interessa.
“O que é notável na hipótese de Freud é que ele foi levado a dardois nomes à instância responsável pela moral. O Superego é olugar psíquico onde residem as exigências da Lei. Freud até
28
compara seus efeitos ao imperativo categórico de Kant. E oideal de Ego, como seu nome indica, é o lugar psíquico onderesidem os ideais. [...] Penso que, se Freud sentiu anecessidade de dar dois nomes a uma mesma instância, éporque precisava dar conta tanto dos deveres quanto dosideais. Em nossos termos, moral corresponde a Superego, eética, ao Ideal de Ego. É verdade que, em Freud, pelo menosaté onde posso analisar, as duas funções (lei e ideal) podemmanter uma certa independência.[...] Neste sentido, não pensoque seja correto dizer que para Freud, o Ideal do Ego englobe oSuperego. Todavia, é possível afirmar que, para Jean Piaget,este é o caso. “ (La Taille, 2002 b, p.71)
Embora tal conclusão não possa ser encontrada em Freud, isto não a
invalida, uma vez que a intenção do autor é demonstrar a complexidade da
instância moral. Porém, o mesmo ressalta a possibilidade de encontrar na teoria
piagetiana certa complementaridade entre ética e moral, da maneira como
estamos tratando destes conceitos neste trabalho.
Jean Piaget, autor que fundamenta grande parte desta pesquisa, no seu
livro intitulado “O juízo moral na criança”, um dos mais importantes referenciais
sobre o desenvolvimento moral, nos aponta para existência de “duas morais”, a
“moral da coação”, também denominada heteronomia e a “moral da cooperação”,
que podemos denominar autonomia. Sendo a segunda, a superação da primeira.
La Taille, baseado em Piaget, define a heteronomia como
“a moral da obediência (à autoridade), da regra, do dever. Nela,aquilo que é imposto, aquilo que aparece como devercorresponde ao Bem. Na moral autônoma, é o contrário que severifica: é da noção de Bem, logo de um valor desejável, de umideal, que são derivados os deveres. Na heteronomia, aobediência à lei é toda a moral, é seu fundamento. Naautonomia, não somente tal obediência é apenas parte da moralcomo deixa de ser seu fundamento, que passa a ser areciprocidade,o contrato, o projeto comum”. (2006, p.71)
Enfim, assim compreendendo os termos: ética (ideais) e moral (leis),
concordamos com La Taille, ao dizer que em Piaget, o ideal englobaria as leis.
Afinal,
29
“na heteronomia, o império é o da Lei, na autonomia é o doBem, que representa um ideal. Como se vê, na teoriapiagetiana, as dimensões moral (leis) e ética (ideais) estãopresentes (embora com outros nomes), e relacionam- se entresi, a ética acabando por inspirar a moral. (ibidem, p.72)”
La Taille explica as “duas morais”da teoria piagetiana dizendo que,“a moral heterônoma acaba por ter menos força motivacional,porque seus valores permanecem exteriores ou poucosintegrados ao Eu, e na moral autônoma ocorre exatamente ocontrário: os ideais penetram o Eu, inspiram seus projetos eações decorrentes e, logo, dão sentido à obediência a certasleis coerentes com os referidos ideais. (ibidem, p72)
Para melhor esclarecer a moral da autonomia, faz referência à Piaget que
diz que a pessoa autônoma tem medo de decair perante os olhos da pessoa
respeitada e ressalta aqui a questão da ética: “que vida quero viver?”, neste
momento surge a possibilidade de uma nova pergunta: “quem sou eu?”, pergunta
esta que remete a um outro conceito que vem sendo ainda explorado no campo
da psicologia: o de “personalidade moral”.
2.1.2.2 Personalidade Moral
Na possibilidade de ver dialogar a moral e a ética, mais que isso, ver a
complementaridade possível entre esses dois conceitos, que poderíamos dizer,
garante a união do ideal e do real, surge o conceito personalidade moral que vem
sendo estudado no campo da psicologia. La Taille (2002 a ) o defende ao pensar
que
“a moral deve ser vista não somente como o conjunto de regrase deveres, mas também como referenciada na busca dafelicidade, de uma “vida boa”, e sendo a “vida boa”um conjuntode valores e aspirações, o Eu forçosamente comparece.” (p.34)
30
Para melhor explicar este conceito o autor o define como o “conjunto de
representações de si”. Tais representações são conceitos, idéias sempre
valorativas (positivas ou negativas) que o sujeito possui de si e que são parte
integrante da moralidade. O que são os valores senão um investimento afetivo que
dedicamos ao objeto (no sentido piagetiano da palavra)? Neste trabalho nos
permitimos não adentrar no campo dos valores, no entanto, embora esta não seja
a discussão em questão, ela existe e no nosso entender é parte integrante e
fundamental para compreensão da moralidade, o que nos faz, apesar de não
discuti-la levar em conta sua existência, e sua importância no assunto.
La Taille (ibidem), ao falar de personalidade moral, deixa claro que apesar
da discussão em relação à expressão ser algo relativamente novo no campo da
psicologia, a idéia não o é. Se buscarmos mesmo na filosofia clássica,
perceberemos em Aristóteles a idéia de ética associada à busca da felicidade, “à
arte de viver”. Na psicologia, “a teoria freudiana explica o agir moral e o pensar
éticos através de conceitos que dizem respeito à personalidade [...] Piaget
emprega a expressão ‘personalidade’para explicar a força motivacional da moral
autônoma”. (p72)
Ora, se o ponto idealizado, o objetivo final do desenvolvimento da
moralidade é o sujeito autônomo, aquele capaz de se auto-regular, que se faz co-
autor das regras morais, não vemos a possibilidade de não se levar em conta o
Eu. Sabemos da grande fragilidade que o conceito personalidade nos expõe, mas
tal idéia neste trabalho será discutida à luz principalmente das reflexões feitas por
Yves de La Taille, tentando restringir assim o campo que trata deste assunto.
Na busca de compreender o Eu, segundo La Taille (ibidem), “um dos
aspectos essenciais é o seguinte: o Eu é sempre assimilado de valor. Dito de
outra maneira, ninguém é ‘cientista de si mesmo’, portanto neutro e frio
observador”. (p. 60)
31
Concordamos com o autor quando pensamos que a consciência que cada
indivíduo faz de si, implica na interferência do auto- julgamento. Como ser neutro,
quando o objeto avaliado sou Eu? Falamos aqui de auto-avaliação. Nos parece
difícil separar nossos valores, que são os critérios com os quais avaliamos, do Eu.
Afinal o nosso Eu, não se constrói na busca de realizar nossos ideais, que seriam
fundamentados a partir dos nossos valores?
La Taille (2002a), nos diz que
“conhecer-se implica necessariamente julgar-se. Ora o vínculoentre as representações de si e a moral está justamente nestefato: a gênese daquilo que chamamos ‘personalidade moral’seráaquela do lugar que os valores morais ocuparão nasrepresentações de si.” (p.61)
Entretanto, nos perguntamos: e esses valores, como são selecionados
pelos sujeitos? Afinal, sendo os valores subjetivos, não percebemos a
possibilidade de ver uns priorizando- se aos outros por mera tendência natural. Se
o Eu, pode ser entendido como o conjunto de representações valorativas que o
indivíduo faz de si, nos falta pensar sobre: de onde vêm tais valores? Poderíamos
pensar que tal seleção seria natural?
Baseados em La Taille, diremos que o auto-julgamento está interligado ao
julgamento alheio. Sendo assim, a representação de si dependeria do olhar do
outro, do julgamento que fazem de nós, o que o outro diz e pensa sobre nós é de
extrema importância na construção do nosso auto-julgamento.
“Embora não sejam causa exclusiva da construção dasrepresentações de si, os olhares e juízos alheios desempenhamum papel fundamental. Uma vez que participam, com outrosfatores, da construção dos valores associados àsrepresentações de si, tais juízos não encontram uma “páginaem branco”sobre a qual escrevem e impõem, sem mais, suasaprovações e censuras. Antes, trata- se de um embate entre asimagens que o indivíduo tem de si e olhares judicativosalheios..” (ibidem, p.71)
32
Novamente nos deparamos com a complementaridade, com a
indissociabilidade no que tange à moral: o auto julgamento e o julgamento alheio.
Seria possível então, dizer que no campo da moral vemos dialogar
constantemente as polaridades da questão? Ética e Moral, Teoria e Prática,
Autonomia e Heteronomia, Auto-julgamento e Julgamento alheio, Racionalidade e
Afetividade?
2.1.3 Jean Piaget e a psicologia do desenvolvimento
Jean Piaget (1896 – 1980), biólogo de formação, buscou inspiração na
Biologia para formular sua teoria do conhecimento. Embora sua preocupação
fosse filosófica, encontrou na psicologia uma maneira científica de responder às
suas inquietações. Seu principal objetivo foi o de explicar como é possível ao
homem alcançar o conhecimento necessário e universal. Para tanto, não tratou do
homem como sujeito psicológico (único, portador de uma história, de um lugar
específico...), mas sim do sujeito epistêmico (sujeito ideal e universal).Defendia a
idéia de desenvolvimento tanto no âmbito intelectual, como afetivo e moral/ social.
Piaget amparava a idéia do conhecimento como resultado de uma atividade
do organismo, tese esta influenciada também pela leitura da obra L’evolution
créatice (A evolução criadora) de Bérgson, na qual o autor defende a idéia do
organismo como responsável pelo seu próprio desenvolvimento, ou seja, o
organismo provendo a necessidade, como uma força natural de se transformar, de
mudar, de evoluir.
Tal concepção biológica de evolução surge no cenário filosófico muito
anterior a Bérgson, que
33
“propõe o restabelecimento da velha ciência aristotélica dosgêneros baseada não em uma ordem mortalmente matemática,mas uma ordem da existência vital que se funda em um élan vital,um impulso emanado da vida ela mesma e caracterizado pelatransformação e mudança -, em uma palavra, o desenvolvimento “(Vonèche, 1997,p.23)
No entanto, foi na sociedade industrial que tal concepção foi sistematizada,
contrapondo as doutrinas criacionistas, que buscavam explicar que cada uma das
espécies de seres vivos foi criada por Deus no momento da criação do mundo, da
forma como ainda se apresentam nos dias atuais. Tal concepção perdurara por
longo tempo, mas neste momento da história não davam conta de responder às
mudanças que estavam ocorrendo.
Nesse contexto foram sendo estabelecidos conceitos como: o de
organismo, de ambiente e do processo de interação entre os dois, o qual podemos
traduzir em adaptação. Conceitos estes, da biologia evolutiva e que foram
herdados pela psicologia funcionalista. Piaget, adepto da psicologia funcionalista,
utilizou a criança como campo de pesquisa, por amparar a idéia de que um bom
caminho para compreender a construção do pensamento era através do estudo de
sua gênese – a epistemologia genética. Considerando a história como laboratório
do epistemólogo genético, viu na criança a possibilidade de perceber a evolução e
o desenvolvimento do pensamento humano.
“[...] no que se refere aos caracteres intelectuais, o homem explicaa criança ou a criança explica o homem?O problema já foi levantado por J. M. Baldwin (posteriormente porFreud, mas apenas no terreno da afetividade). Segundo opsicólogo americano, os caracteres gerais do desenvolvimentomental da criança explicam muitas reações próprias dos adultos‘primitivos’ e mesmo civilizados, porque a criança é anterior ao‘primitivo’(no sentido sociológico e muito inexato do termo) emesmo ao homem pré- histórico. De nossa parte, sustentamosum ponto de vista análogo, que nos parece de grande importânciana gênese das estruturas lógico- matemáticas mais elementares emais essenciais.”
(Piaget, 2000, p. 101)
34
Como citado por Piaget, James Mark Baldwin (1861-1934) atuou tanto na
Psicologia como na Biologia. Na Psicologia foi responsável pela implantação de
laboratórios em Universidades da América do Norte através dos quais deu início
ao campo da psicologia do desenvolvimento.
Segundo Vonèche (1997),
“Baldwin queria mostrar como os processos psicológicospenetram a forma relativamente indiferenciada da experiênciaprimitiva para construir estruturas diferenciadas que poderiamser ordenadas em uma seqüência de desenvolvimento” (p. 25).
Utilizou a evolução para explicar como aspectos originários da filogênese
(evolução da espécie) se repetia no desenvolvimento do indivíduo (ontogênese).
Ao falar de desenvolvimento, Piaget os separa em três tipos: cognitivo,
moral e afetivo. Tal separação serve somente para compreensão, pois a tríade
forma uma totalidade auto- organizada. São interdependentes, um promovendo o
outro.
2.1.3.1 Piaget: moral na perspectiva de desenvolvimento
No percurso à procura da apreensão do pensamento do autor, encontramos
o jovem Piaget, preocupado em enfrentar o conflito entre a fé e a ciência, através
do conhecimento. Em Bérgson, nos interessa aqui, este impulso vital, próprio do
organismo que segundo Vonèche (1997), “levou à proposta de um impulso moral
específico aos seres humanos“ (p.23).
Para Piaget, assim como o desenvolvimento da inteligência, o
desenvolvimento moral é um processo de construção interior, no entanto, o
mesmo lembra que “a consciência moral e intelectual se elaboram em estreita
conexão com o meio social, elas não são inatas.“ (1988, p. 73)
35
Num outro momento, reforça a idéia de que o sujeito traz consigo as
condições necessárias para tal construção, assim como descreve o
desenvolvimento intelectual,
“o que é dado pela constituição psicobiológica do indivíduo comotal são as disposições, as tendências afetivas e ativas: a simpatiae o medo- componentes do ‘respeito’– as, raízes instintivas dasociabilidade da subordinação, a imitação etc., e sobretudo certacapacidade indefinida de afeição, que permitirá a criança amar umideal como amar a seus pais e tender ao bem como à sociedadede seus semelhante.”(Piaget,2000, p. 2)
Mas, atrelado a esta constituição está a interação social. Para o autor
(ibidem) “é nas relações interindividuais que as normas se desenvolvem [...] Não
há, portanto, moral sem uma educação moral, ‘educação’no sentido amplo do
termo, que se sobrepõe à constituição inata do indivíduo.” (p.3)
A moralidade é pois, resultante das relações estabelecidas na interação
do sujeito com as experiências,situações e pessoas do meio em que vive.Piaget
(ibidem), destaca duas morais”, isto é, duas maneiras de sentir e de se conduzir
que resultam da pressão no espírito da criança e de dois tipos fundamentais de
relações interindividuais”: a moral da coação - estática, conservadora, baseada na
tradição, onde há uma pressão do grupo social sobre o indivíduo e a moral da
cooperação – dinâmica, baseada nos conceitos de autonomia.
Na teoria proposta pelo autor, este admite, (ibidem) “juntamente a quase
todos os estudiosos da moral que o respeito constitui o sentimento fundamental
que, possibilita a aquisição das noções morais.” (p.4) Podemos encontrar na sua
obra dois tipos de respeito: o respeito unilateral, conseqüência de uma relação
assimétrica entre os pares, onde não há um sentimento moral, o que há é uma
submissão a regras pré -estabelecidas (moral da coação- heteronomia), e que em
desenvolvimento e numa relação de cooperação culminará no respeito mútuo,
36
onde as obrigações não são impostas, mas elaboradas pelos indivíduos (moral da
cooperação- autonomia).
Segundo Piaget, “toda moral consiste num sistema de regras, e a
essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo
adquire por essas regras.” (2000 p.1). Para ele a questão não está no valor moral,
se um valor é superior ou inferior ao outro, se os princípios que levam à
formulação das regras podem ser tidos como universais ou não, mas o porquê do
respeito a essas regras.
“Há, então, dois tipos de regras que acompanham os doisrespeitos: a regra exterior ou heterônoma e a regra interior;somente a segunda conduz a uma real transformação docomportamento espontâneo.” (Piaget, 2003, p. 6)
Aqui estamos tratando, portanto, de tendências do pensamento moral,
dominantes em determinadas idades. Tais tendências foram descritas
anteriormente pelo filósofo alemão Immanuel Kant: a heteronomia (externamente
orientada) e a autonomia (internamente orientada). Piaget concordou com o
filósofo, porém do lugar da psicologia procurou demonstrar que essas tendências
são construídas durante o desenvolvimento da criança e a evolução de uma para
outra depende do tipo de relação social que o sujeito vivencia, podendo ser ela de
coação (respeito unilateral) ou de cooperação (respeito mútuo).
2.1.3.2 Uma restrição de moral
Segundo Jean Piaget, “toda moral consiste num sistema de regras, e a
essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo
adquire por essas regras” (1994, p. 11). Concordamos com La Taille (2001), ao
dizer que “apesar de, nas entrelinhas ou em algumas afirmações soltas aqui e ali,
Piaget nos ter convidado a uma reflexão sutil e viva da moral” (p.19), este admite
que o livro “O julgamento moral na criança” trata fundamentalmente da definição
37
de moral que o autor herdou e cultivou de seus antepassados: a moralidade
restrita ao censo de justiça.
Sendo “O juízo moral na criança” ainda hoje considerado um dos mais
importantes referenciais teóricos sobre o desenvolvimento moral, percebemos que
a definição de moral empregada neste desconsidera a relevância de outras
virtudes no desenvolvimento moral.
Segundo La Taille (2001) “[...] com exceção da justiça, que pode ser
exigida de cada um, por traduzir um direito alheio, as demais estão estritamente
sob a égide da liberdade. Portanto, impor seu exercício é ferir a liberdade do
sujeito”. A justiça é uma virtude que foi racionalizada. Outras virtudes como, por
exemplo, a generosidade, a fidelidade, a compaixão, são virtudes do campo das
relações sociais, são virtudes que dizem respeito ao outro. Por exemplo: numa
situação de generosidade há o generoso e há aquele que foi “presenteado” com
ato de generosidade . Podemos cobrar de alguém uma ação generosa? Se hoje
não cobramos, ou melhor, não podemos cobrar, assim o é, porque nos
organizamos desta forma priorizando a justiça e privatizando as demais virtudes.
A hegemonia da justiça se construiu historicamente. O domínio de tal
virtude não se deu naturalmente, por esta ser superior ou como dizia Aristóteles,
“completa”. Mas porque a priorizamos em nossas relações sociais, foi uma
escolha do mundo social, construir suas bases em torno do império da justiça.
Ainda analisando a questão da justiça, não estaríamos reforçando uma
moral do dever, reforçando a heteronomia, ao reduzirmos a moral à idéia de
justiça (direitos e deveres)? Não queremos dizer que a prática da justiça seja
heterônoma, mas ao propor uma constituição moral baseada somente em direitos
e deveres, ou seja, devemos ser justos, pois é direito do outro ser tratado com
justiça, não estaríamos fortificando a moral como o dever ser? Se, pensamos a
38
educação moral como direito-dever, censura-punição, vigilância-controle, não
estamos propondo autonomia.
Observemos a reflexão feita por La Taille (2001) sobre a citação de Piaget
no livro “O juízo moral na criança”, quando este diz que, “é quando a criança
habitua-se agir do ponto de vista dos próximos, e preocupa- se mais em agradá-
los que a eles obedecer, que ela chega a julgar em razão das intenções.“
“Esta frase traz um clássico da perspectiva piagetiana: apassagem de uma moral, superior, que leva em conta asintenções dos agentes, a moral autônoma, na qual o realismomoral é superado. Mais a citação traz mais do que isso. Elarefere- se a uma explicação causal para dar conta da evoluçãomoral e, é o que nos interessa nesse caso, nela está afirmadoque o que explica a passagem da heteronomia para aautonomia não é tanto uma tomada de consciência do outrocomo sujeito de direitos, mas antes a tendência a considerá-lona sua singularidade: é o que sugere o emprego do verbo“agradar” (faire plaisir). Em uma palavra, Piaget nos fala mais,nessa citação, em generosidade do que em justiça, embora, nasua própria teoria, a autonomia represente a vitória do princípiode justiça sobre a mera obediência à autoridade. “ (p.94 )
La Taille, (2002) em uma pesquisa denominada “As virtudes morais
segundo as crianças”, verificou
“que a maioria das crianças de 6 anos já afirma que alguém quese priva de uma fruta predileta para dá-la ao irmão(generosidade) é moralmente mais admirável do que outra quesegue uma regra justa (dividir um pacote de bolacha com seuirmão). E, caso o ato generoso não tivesse acontecido, nãoseria o caso de haver sanção. Em compensação, o ato deinjustiça deve ser punido”. (p.26)
Então perguntamos, será que a moral está sempre atrelada a
possibilidade de sanção? A generosidade não pode ser cobrada como dever de
ninguém, a não ser interiormente. Uma pessoa pode estabelecer para si o dever
de ser generoso, mas não pode cobrar das demais pessoas que todas sejam
assim.
39
Nesse momento compreendemos a constituição da moralidade tanto no
aspecto intrapessoal quanto no aspecto interpessoal. Não há necessariamente
uma cobrança externa. Não estaríamos aqui falando de uma tendência autônoma?
Ser autônomo, como o próprio Piaget nos mostra está além da compreensão das
regras, implica na reflexão do porquê seguir certas regras e leis, não seria este um
momento de introspecção do sujeito, onde trabalha a sua livre escolha? Somos
autônomos quando agimos por vontade própria. Autonomia é o mesmo que
autogoverno.
“Mas o que é vontade própria? O que é autonomia? Vontade éuma escolha racional e emocional que só um ser humano écapaz de fazer. Os animais têm desejos, impulso, pura emoção;os homens têm vontade: desejo mais um julgamento racional.”(Menin, 2003, p.40)
Se vontade, “é um desejo mais um julgamento racional”, estamos aqui
outra vez falando da tríade do desenvolvimento: o cognitivo, o moral e o afetivo.
Percebemos em Piaget uma tendência em relacionar dialeticamente o afetivo e o
racional na construção da moralidade do sujeito autônomo. No entanto,
concordamos com La Taille (apud Araújo, 2003) quando afirma que:
“Piaget nos fornece a condição necessária ao desenvolvimentoda moral autônoma, mas não a condição suficiente. Ele mostraconvincentemente como a evolução da inteligência permiteorganizar – sempre na área moral – o mundo afetivo; mas faltajustamente a recíproca, ou seja, como a afetividade torna orespeito mútuo possível de ser seguido na prática. Piaget ficou,de certo modo, ‘refém’de seu próprio método, que consistiu emestudar o juízo moral. Estudo este, sem dúvida, essencial – anão ser que se afirme a total independência entre pensar e agir,mas que poderia ser completado por outros que detivessemmais os aspectos afetivos do problema...” (p. 129) [grifo nosso]
Concordamos com La Taille que Piaget tenha-se detido sobre o que é
racional no desenvolvimento moral e apesar de ter considerado os aspectos
40
afetivos o fez de modo superficial, o que nos faz, em alguns momentos pensar que
este tenha desconsiderado inclusive a importância das relações sociais. Pode
parecer absurdo dizer que numa teoria sobre a moralidade, na qual o autor faz
prevalecer o papel da justiça, esteja desconsiderando a relação social. No entanto,
o que queremos mostrar é, pois, a irrelevância que parece ter para Piaget os
grupos sociais, a cultura, as tradições, o contexto na constituição dos valores do
sujeito. O que nos faz buscar na Sociologia uma complementaridade sobre o
assunto.
2.2 Socialização
Compreendemos a socialização como um processo de inserção do
indivíduo ao mundo instituído, dito de outra forma, o conhecimento, a aquisição
das normas que regem a vida social, ou em uma palavra, moralização. Para falar
do assunto sob a luz da Sociologia dialogamos com David Émile Durkheim.
Durkheim (1858 – 1917) sociólogo francês, acreditava na constituição
egoísta do homem por natureza. Para ele, é
“somente no interior da sociedade (grupos como família, escola,igreja etc.) e através de processos de socialização primária esecundária que a criança adquire uma segunda natureza, asocial, que é altruísta e indispensável para a coesão social e asobrevivência do corpo social “. (Freitag, 1994, p. 37-38)
Durkheim (1984) apresenta o homem como composto por dois seres: o
individual – “constituído por todos os estados mentais que apenas se referem a
nós próprios e aos acontecimentos relacionados com a nossa vida pessoal.”E o
outro – “um sistema de idéias, de sentimentos e de hábitos que expressam em
nós, não a nossa personalidade, mas sim o grupo, ou os diferentes grupos de que
fazemos parte (...) o seu conjunto constitui o ser social. “ (p. 17)
41
Para o autor, o papel da educação é o estabelecimento do outro em cada
indivíduo, em outras palavras, a socialização . Compreende a educação como
“a acção exercida pelas gerações adultas sobre as que aindanão se encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem porobjetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número decondições físicas, intelectuais e morais que dela reclama, seja asociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a queela se destina particularmente.” (p.17)
Compreendia a educação moral de forma racional.
Preocupou-se com a elaboração de uma moral laica, que se distanciasse da
religião e que tomasse como autoridade a razão.
Em 1902, encontramos Durkheim encarregado do seu primeiro curso na
Sorbonne, intitulado A Educação Moral e que tornou- se uma pedra angular do
pensamento sobre moral até os dias de hoje. Tendo como cenário histórico o
movimento da separação da Igreja e do Estado, nos deparamos com um idealista
querendo fazer da Sociologia um “substituto racional da religião”.
2.2.1 Durkheim: moral como processo de socialização
Defensor da educação moral laica, reconheceu que os “estreitos laços que
se estabeleceram historicamente entre a moral e a religião”, demonstravam“existência de elementos essenciais da moral que apenas setenham exprimido sob a forma religiosa; logo, se limitarmos aretirar do sistema tradicional tudo o que for religioso, semsubstituirmos aquilo que dele retiramos, arriscar-nos- emos, aomesmo tempo, a excluir do mesmo algumas idéias esentimentos propriamente morais. (Durkheim, 1984, p. 117)
Buscou então, substituir tais elementos. Segundo DURKHEIM (1984), três
são os elementos essenciais da moralidade: o espírito de disciplina, a adesão ao
grupo social e a autonomia da vontade. Para ele, a primeira disposição
fundamental de qualquer temperamento moral é o espírito de disciplina que se
42
constitui a partir de dois aspectos deste estado de espírito: o sentido de
regularidade e o sentido de autoridade, neste último caso, substituindo a
autoridade até então entendida como algo sobrenatural (os deuses) pela razão. A
disciplina favorece o autocontrole, permitindo o estabelecimento do controle social,
incentivando a regularidade do comportamento e o reconhecimento da autoridade,
preparando a criança para a hierarquia da sociedade. A adesão ao grupo social,
permite insurgir no indivíduo a solidariedade que tem por objetivo promover a
harmonia social, buscando superar o egoísmo da natureza humana. A autonomia
da vontade é a sujeição voluntária e consciente do indivíduo ao grupo.
As normas, ordens e regras, segundo seu entendimento, deveriam ser
inculcadas nos indivíduos . Compreendendo desta forma, a moralidade se dá
através da internalização das normas pelo indivíduo. Sendo assim, a moralização
é imposta de fora para dentro.
Segundo Fernandes(1994),
“Durkheim não é apenas o teórico da educação moral mas é,também, e sobretudo, um teórico prático, um educador, cujodesejo é moralizar as crianças constituindo nelas os elementosda moralidade”.(p. 49)
2.2.1.1 Criança: sujeito ou objeto da moralização ?
Diante desta perspectiva de moralização, falamos sobre a criança, não
falamos com ela. Não ousamos lhe dar voz, embora essa voz escape ao nosso
domínio. A criança é comparada ao homem primitivo, aquele que se
descobrindo homem, ainda não aprendeu a lidar com seus desejos, seus
instintos... Forças que precisam ser dominadas, reprimidas, combatidas para o
bem da coletividade.
A criança este ser estranho aos adultos, diferente, ainda não-civilizado
nos afronta a cada dia, pois não nos compreende e nós não o entendemos, nós
43
o desconhecemos. Já fomos crianças, mas pela força da educação/moralização
tornamo-nos “adultos normais”, deixando para trás qualquer traço de
incivilidade/ infância.
Segundo Fernandes (1994) a tese durkheiminana, estabelece duas
naturezas humanas, a nossa individualidade (o corpo) e o Outro em nós. A
criança, possui o corpo (instintos, as inclinações individuais), mas ainda não
possui o Outro, “o que é do bicho e o que é do anjo, são qualitativamente
diferentes, são os dois seres que estão em nós e que não podemos satisfazer
simultaneamente” (p. 79).
“Eis porque a criança, carente da segunda natureza, privadaque está ainda do Outro interno, é o ser da falta pois,literalmente, falta-lhe um ser, e o melhor. A criança é, então, oradicalmente outro do adulto e do educador. Está aberto ocaminho que Durkheim percorrerá sem sobressaltos: a criança éo outro, o estrangeiro, o bárbaro, o desconhecido, o estranho.Será analogicamente aproximada ao louco, ao déspota, aobárbaro (homem primitivo), pois o que importa é marcar suadiferença de estatuto. A educação, processo de moralização, éo longo percurso que a criança deverá trilhar para se tornaradulto normal.” (p. 79 – 80) (grifos nossos)
A esse ser de falta cabe o preenchimento. É a infância esse lugar que não
existe, um lugar de passagem, momento no qual a criança é inserida num
“processo de iniciação à ‘vida séria’“e é portanto um momento de formação, de
preparação. Após a obtenção do resultado final - o adulto normal,
desconsideramos este espaço- tempo denominado infância, pois o que na
verdade importa é o produto, pouco avaliamos de fato, o processo. Dessa forma o
que temos é a espera de um advento e “simultaneamente, um infanticídio” (ibidem,
p.80).
De acordo com Fernandes (ibidem), compreendemos que nesta perspectiva
“a educação moral define-se, assim, como o lento e dificultoso processo de
inscrição do Outro na subjetividade infantil.” (p.62) E este processo, se dá
essencialmente na escola.
44
2.2.1.2 Escola: espaço moralizador
Para Durkheim, é a escola o lugar da educação moral, lugar de passagem,
ambiente propício para formação, mais que isso, produção. A escola trabalha para
constituir na criança o que lhe falta com a intenção de tornar- se um adulto normal:
“obediente, sacrificante e submisso ao desejo do Outro.” (Fernandes,1994, p.
147)”Para isso, a escola apresentará à criança um espelho que ela aprenderá a
amar e desejar” (ibidem, p.148).
Conforme a tese durkheimiana, à criança falta o espírito de disciplina,
elemento fundamental na vida moral. Se à educação/ moralização cabe o bem
comum, entendemos que se espera como fim uma vida boa para todos ou dito de
outra forma, buscamos a felicidade. Fernandes (1994) nos diz que cabe ao
educador apresentar esse ideal à criança, de maneira a levá-la à desejá-lo.
Durkheim nos diz que é na escola que se
“encontra uma boa parte da cultura, e a mais elevada, que nãopode ser dada em qualquer outra parte. Isto porque, se é certoque a família pode perfeitamente, e só ela pode, despertar econsolidar os sentimentos domésticos necessários à própriamoral, e mais geralmente, aos que se encontram na base dasmais elementares relações privadas, não é menos certo de queessa mesma família não se encontra estruturada de forma apoder formar a criança, tendo em vista a vida social.” (p.116-117) [grifos nossos]
Estamos mais uma vez falando do que é da esfera pública e do que é da
esfera privada. Percebemos a distância entre o que é próprio da família (afeto,
cuidado) e o que é específico da escola (racionalidade). A família pode e sabe
despertar e consolidar os sentimentos domésticos, mas não é capaz de tratar do
que é legítimo, na vida em sociedade: a supremacia da razão.
45
Concordamos com Fernandes (1994) que nos diz que no ponto de vista
durkheimiano “os fins domésticos são menos elevados porque os interesses
familiares são muito restritos, quase confundindo-se com os da esfera dos
interesses individuais (egoístas)”. (p.95) Por isso defende a formação moral da
criança na escola, distanciado da família, por conceber a ilegitimidade desta no
que toca o objetivo da socialização.
Percebemos escola e família como grupos sociais distintos, porém atuantes
na socialização infantil. Grupos com formação histórica, entendimento e função
distinta num mesmo processo, mas ambos com um mesmo objetivo: preparar a
criança para a vida em sociedade. Desta forma, enxergamos práticas
diferenciadas fundamentadas no que Daniel Thin (mimeo) chamou de “lógicas
socializadoras”.
2.2.1.2.1 A forma escolar como forma legítima de socialização
O que faz da escola o lugar legítimo de socialização? De onde vem a
hegemonia de seus valores?“um modo de socialização escolar se impôs a outros modos desocialização: e para discernir também quais são as suasprincipais características e tudo o que faz parte destaconfiguração histórica singular, quando nossa tendência éacreditar que tal modo, não sendo natural, é, pelo menos eternoe universal.” (Vincent, Lahire e Thin, 2001, p.11)
Eis a questão! A forma escolar de socialização é a forma universalmente
reconhecida, a forma oficial: ocidental, branca, católica.
E esta forma escolar, possui traços predominantes que a caracterizam.
Apoiados em Vincent, Lahire e Thin (mimeo), descreveremos tais características
que retornaremos ao analisarmos os dados coletados nesta pesquisa, quando
discutiremos sobre as lógicas socializadoras: “a constituição de um universo
separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a
46
organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição de exercícios.” (p.37-
38).
A criança é vista como um futuro adulto. É o vir a ser, como se esse
momento da infância, fosse somente uma estação à espera do que virá. Diante
desta concepção não podemos nos referir à criança como sujeito. Ela é apenas
um indivíduo ao qual cabe desejar o que lhe é necessário apreender: o Outro.
De acordo com Gouvêa e Jinzenji (2006), nesse lugar que é a escola, a
criança é vista como aluno. A relação professor–aluno é uma relação pedagógica,
onde o interesse é prioritariamente a aprendizagem, ainda que a sua preocupação
seja a moralização.
Para Vincent, Lahire e Thin, a relação pedagógica é “não mais uma relação
entre pessoa e pessoa, mas uma submissão do mestre e dos alunos a regras
impessoais” (ibidem,p. 15). A própria postura do mestre é de submissão às regras,
por isso detém a autoridade sobre a criança, ou melhor, sobre o aluno, pois já
interiorizou o Outro e agora, desenvolve o papel de sedutor para fazer o aluno
desejar tal incorporação.
Fernandes (1994), nos apresenta o educador como um prisioneiro do
fantasma. Torna-se um representante do Outro, transforma- se em porta-voz da
normalidade esperada de um adulto.
“Não é como sujeito que ele encontra a criança, mas comopadre, juiz, rei, governante, hipnotizador, colonizador, segundoo repertório que o Outro apresenta e obriga a dramatizar.Comprometido no fantasma, seu lugar na cena oscila entre osedutor [...] e o censor”. (p. 148-149)
Ao mesmo tempo em que oferece o objeto desejado: eu possuo o que você
ainda não tem, trabalha constantemente julgando as irregularidades e punindo-as.
Fernandes, neste mesmo trabalho faz uma analogia entre o papel do professor e o
do colonizador, ou seja, ambos trabalham para impor ao outro (o selvagem) aquilo
47
que ele desconhece, aquilo que ele nem sempre aceita e quando isto acontece
não se preocupa em utilizar métodos coercitivos para a inculcação da verdade.
A aceitação das regras, o espírito de disciplina, na concepção de Durkheim
garante a obediência e a repressão do que é natural e espontâneo na criança, ou
seja, é um dos objetivos deixar para trás o que existe de específico neste espaço-
tempo que denominamos infância para adquirir o que consiste a vida adulta, ou
propriamente a vida. Através da disciplina as regras já não são toleradas ou
mesmo, simplesmente obedecidas, são na verdade aceitas, porque
compreendidas como necessárias.
“As atividades organizadas, enquadradas por especialistas,regulam e estruturam o tempo das crianças; tendem a garantirsua ocupação incessante, ocupação cuja função consiste nãotanto em enquadrar e vigiar, mas gerar disposições em relaçãoà regularidade, ao respeito pelo’emprego do tempo’ .” (Vincent,Lahire e Thin, 2001, p. 40).
A escola com a intenção de disciplinar, de buscar a regularidade, organiza
suas atividades de forma a estabelecer o momento de estudo, o momento de
descanso, o momento da alimentação. Buscando levar o aluno a
“submeter o desenvolvimento de sua vida a uma divisão emseqüências temporais previstas antecipadamente e fazer ascoisas somente na hora certa, não será esse tipo decomportamento propício a adquirir a forma de uma moralidadeque é a do dever? “ (ibidem, p.40)
2.3 Durkheim e Piaget: convergências e divergências sobre socialização
Encontramos em Dubar (1997), um confronto das idéias de Piaget e
Durkheim, realizado a partir do texto que compõe a segunda parte da obra de
Jean Piaget, O julgamento moral na criança, no qual o autor debate algumas teses
48
que fundamentam o pensamento durkheimiano. É sobre este trabalho que nos
basearemos inicialmente na apresentação aqui resumida dos pontos de
concordância e divergência entre esses dois autores .
Ambos os autores que trazemos para este diálogo, a partir da leitura de
Dubar (1997), compartilham da idéia de educação como socialização da geração
jovem pela geração anterior e concordam também de que a socialização é o
mesmo que “educação moral”. Entretanto vão diferenciar seus entendimentos no
que diz respeito ao processo de socialização ou moralização. Enquanto Durkheim
defende a transmissão do“espírito de disciplina, garantido pelo constrangimento, paraPiaget a moralização é uma construção através da interação dosujeito com o mundo social, por uma evolução que visasubstituir as “regras de constrangimento” pelas “regras decooperação”. ( p. 23 )
Ambos acordam ainda, que a “socialização se baseou historicamente no
constrangimento e na conformidade ‘natural ‘ a modelos exteriores”. (ibidem, p.22)
Concordam também com a “dimensão repressiva” da socialização, servindo a
sanção como instrumento de garantia da socialização/moralização.
Concordam até “no reconhecimento da individualização crescente da vida
social à medida que as trocas se desenvolvem e se complexificam”, tornando a
vida social mais interiorizada, demonstrando ser necessário, "apelar para a
autonomia da vontade mais do que para o medo.” (Dubar, 1997, p.23)
Porém, os autores se afastam quando Durkheim estabelece uma
correspondência entre os objetivos e os resultados do constrangimento e os da
cooperação voluntária. Para ele as relações de constrangimento são
fundamentadas nos laços de autoridade e no sentimento do sagrado,
característico das sociedades tradicionais. Enquanto as relações de cooperação
são fundamentadas no respeito mútuo e na autonomia da vontade, característico
49
das sociedades modernas. Para Piaget, o indivíduo passa da primeira para a
segunda, é um processo de “evolução intelectual “e do “desenvolvimento moral “.
Por fim, Dubar apresenta a divergência de Piaget ao pensamento de
Durkheim, a propósito da sociedade. Para Durkheim, a sociedade é como “uma
substância e uma causa”enquanto na posição de Piaget, a sociedade é “um
sistema de actividades cujas interacções elementares consistem em acções que
se modificam umas às outras de acordo com determinadas leis de organização ou
de equilibração.” (Piaget, apud Dubar 1997, p. 25)
Estas são as convergências e divergências apontadas por Dubar. Dentre
elas há uma, embora não explícita, mas que se fez no nosso entendimento
presente neste texto, através da convergência entre Piaget e Durkheim no que
toca a autonomia da vontade, e que a nós grita: o ideal de homem. Apesar de
ambos os autores concordarem que a socialização tende a se tornar cada vez
mais voluntária, ou seja, o fim, o ideal a ser alcançado é a autonomia da vontade,
percebemos divergência no que cada um espera com tal conceito. Para Piaget, o
homem autônomo e para Durkheim, o adulto normal.
2.3.1 Homem autônomo X adulto normal
A teoria piagetiana trata do homem universal, o homem ideal, aquele que
buscamos encontrar. Segundo La Taille (2002), para Piaget, “o homem autônomo,
descentrado, racional é um homem possível. E esse homem possível certamente
corresponde, nas grandes linhas, ao homem ideal no qual pensava Kant”.
O autor percebe ainda a teoria piagetiana como
“universalista tanto na pretensão explicativa quanto naperspectiva de desenvolvimento por ela apontada: o homempode se liberar dos ‘lastros’culturais e caminhar para uma
50
humanidade que transcende limites regionais, centraçõesculturais.” (p.149)
Piaget acredita que o homem é capaz de transcender tais limites na busca
do desenvolvimento ideal. Tal afirmativa torna- se clara ao analisarmos a teoria
piagetiana que traz determinado um ponto de partida e chegada no
desenvolvimento, tanto intelectual como moral. Compreendemos que o autor
aponta tal resultado como possibilidade e que o mesmo depende dos estímulos
recebidos pelo indivíduo, embora este mesmo homem capaz de se desenvolver a
partir dos estímulos, é também apto a transcender limites colocados pela cultura e
sociedade na qual vive.
Para Durkheim, o adulto normal é aquele que encarnou o Outro (o ser
social). Segundo Fernandes (1994) “a educação moral define-se, assim, como o
lento e dificultoso processo de inscrição do Outro na subjetividade infantil”. É
através da educação, processo de moralização que a criança vai deixando para
trás sua constituição egoísta e tornando- se “um adulto normal, aquele que não
precisa mais de controles externos (do educador), portador que se terá tornado da
sua própria polícia interna.” (p.62)
Dito de outra forma, enquanto Piaget acredita na possibilidade- e mais,
espera esta com fim ideal - de um homem autônomo, capaz de transcender, de se
libertar da sociedade, da sua cultura, para Durkheim o fim ideal é o homem capaz
de interiorizar as regras desta sociedade de forma a não mais precisar de
cobrança externa.
Temos três visões distintas sobre o mesmo objeto: a socialização infantil.
De um lado Piaget do lugar da Psicologia compreendendo que o homem constrói
sua moralidade na interação com o meio social, porém percebe este homem
capaz de se libertar dos lastros da sociedade. Do outro Durkheim, olhar da
Sociologia que concebe este homem como que mergulhado na sociedade .
Sociedade esta que é a autora da moral. É ela que dita as normas vigentes. E a
51
criança, voz infantil, objeto desses discursos e negada pelas duas visões, que vai
insinuar-se nessa pesquisa e falar sobre a sua socialização. Ela, sujeito
heterônomo e ainda não- normal, tem o que dizer sobre o mundo que a quer
conformar ?
2.3.2 Uma breve discussão sobre a hegemonia da Justiça
Entendemos que tanto Piaget como Durkheim buscavam o que há de
científico na moral. Dessa forma, Durkheim fala de disposições fundamentais para
a vida social, Piaget nos fala de tendências do pensamento que são mais fortes ou
não de acordo com o desenvolvimento intelectual e os estímulos do ambiente. No
entanto, ao pensarmos a moral dessa forma estamos extraindo dela o que há de
mais racional, mais individual, enquanto o desenvolvimento moral pressupõe a
vida no social, o relacionamento com outras pessoas. Quando falamos de direitos
e deveres nos parece que estamos olhando o coletivo, buscando garantir o bem
comum, mas será que não estamos sendo individualistas?
Quando cumprimos nossos deveres para com os outros, o fazemos pelo
cumprimento dos deveres ou o fazemos porque é direito do outro? O meu direito
pressupõe o dever do outro e assim vice- versa. Estamos olhando as duas faces
da moeda, porém quando cumpro o meu dever o faço porque é direito do outro.
De certa forma tenho obrigação moral com outro. É uma obrigação externa.
Independente da minha vontade. Tenho que cumprir. O não cumprimento gera
uma sanção, uma punição, uma conseqüência. Que valor há nisso? Há valor?
Sim! Há o valor da justiça imperando. O valor do que é racional, do que
pode ser cobrado. Porém quando estamos falando de outras virtudes morais, que
não foram racionalizadas, estas não podem ser cobradas. Tornam-se doação, é
por inteiro e nada tem de individual, e sim de coletivo, sou generosa porque não
52
recebo nada em troca, sou fiel sem cobrar do outro sua fidelidade. Existe o dever
de ser fiel? Posso cobrar de alguém fidelidade? Generosidade?
De acordo com Comte- Sponville(ibidem),
“Não há sujeito moral sem fidelidade de si para consigo, e énisso que a fidelidade é devida: pois de outro modo não haveriadeveres! É nisso também que a infidelidade é possível: como afidelidade é virtude da memória, assim a infidelidade é suafalta”. (p.17)
Se respeitamos leis, se temos ideais, assim o é pela fidelidade. O que me
leva a lutar por uma causa? A fidelidade que tenho a ela. Ainda em Comte-
Sponville, compreendemos que“a fidelidade não é um valor entre outros, uma virtude entreoutras: ela é aquilo por que, para que há valores e virtudes. Queseria a justiça sem a fidelidade dos justos? A paz, sem afidelidade dos pacíficos? A liberdade, sem a fidelidade dosespíritos livres? E que valeria a própria verdade sem afidelidade dos verídicos? Ela não seria menos verdadeira,decerto, mas seria uma verdade sem valor, da qual nenhumavirtude poderia nascer. Não há sanidade sem esquecimento,talvez; mas não há virtude sem fidelidade.” (p.16)
Ora, talvez não consigamos compreender o valor de tal virtude pela
racionalidade. Ela foi colocada no lugar da subjetividade pela nossa cultura. Este
lugar que desprezamos, pois sobre ele não temos poder algum. Está no campo da
vontade. Será possível falar de autonomia da vontade num lugar que
autonomizamos as regras pelo simples fato de que isso se faz necessário, porque
isto nos é cobrado? Mas percebo belo, simples e verdadeiro falar de autonomia
quando sem cobranças opto por ser generosa.
Segundo Comte- Sponville (ibidem) “A generosidade é a virtude do dom.
Não se trata mais de ‘atribuir a cada um o que é seu’, como dizia Spinoza a
propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é seu, o que é de quem
oferece e que lhe falta.” Eis a grandeza moral: dar sem esperar receber!
53
CAPÍTULO III
TRANÇANDO OS FIOS DA TEORIA AO UNIVERSO MORAL DACRIANÇA
“Nunca um costume é indefensável, inferior e bastardo, para quem o segue.”(Luís da Câmara Cascudo)
Falar de socialização na escola pública implica adotar uma perspectiva
que busque compreender o movimento de socialização de dois lugares
distintos :o lugar da escola e o lugar da família de classe popular. Não estamos
falando de duas instituições sociais ou mesmo comparando-as, o que estamos
é olhando para as duas em relação. O que nos faz perceber a necessidade de
analisar a diversidade de posições sociais entre a escola e a família destas
crianças, investigando e considerando tais diferenças. Diferenças estas que
fazem desta relação um confronto entre as posições sociais dos membros em
questão.
Temos de um lado a família de classe popular, do outro a escola,
que apesar de ter como público, alunos na grande maioria de classe
popular, trabalha com os valores que a instituição escola elaborou ao longo
da sua história. De acordo Com Thin (2006), são dois “pólos de lógicas
socializadoras”,
“em um pólo da confrontação encontramos as lógicasescolares incorporadas pelos professores e ancoradas nainstituição escolar e na história social de seus agentes.Essas lógicas estão inscritas no mundo escolar desocialização e de relação com a infância dominantes emnossas formas sociais.” (p.8)
54
Segundo Thin (ibidem), estamos abordando, portanto, “diferenças
sociais entre grupos e indivíduo”. (p.4 )
Neste capítulo será apresentada a instituição de ensino que foi campo
de pesquisa, os sujeitos selecionados para este estudo, bem como a escolha
destes e a análise dos dados por nós realizada, trazendo o discurso da
criança. É o ponto de vista da infância, ponto central deste cruzamento sobre
o movimento de socialização na relação família e escola.
Tal análise se fez a partir das considerações por nós elaboradas,
tendo como campo teórico a Psicologia do Desenvolvimento, trazendo Jean
Piaget e sua visão de desenvolvimento moral, ampliada por Yves de La Taille
em um diálogo com a Sociologia de Durkheim, no texto Educação Moral, tecida
com as contribuições da leitura de Heloísa Fernandes sobre esta obra.
Não menos importante foi o nosso encontro com Daniel Thin, sociólogo
francês contemporâneo, no que trata da intenção de compreender esta
relação muita das vezes conflituosa entre a escola e os sujeitos da classe
popular, através do conceito por ele trabalhado denominado “lógicas
socializadoras” (2006, p.7)
Esta tomada de dados se deu no contexto de uma pesquisa maior,
intitulada: “Socialização na escola – expectativas de famílias, de professores e de
alunos: consonâncias e dissonâncias”, sob a coordenação da professora da
Universidade Federal Fluminense Dra. Lea Pinheiro Paixão .
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O peso de uma tradição: a instituição e o aluno
De acordo com Oliveira (2006, mimeo), relatamos a seguir um breve
histórico do IEPIC - Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, campo da
nossa pesquisa que recebeu este nome em homenagem a um professor
fluminense em 1965.
Em 1955, quando ainda era denominado apenas Instituto de
Educação foi transferido para o atual endereço. Nesta ocasião fora desligado
definitivamente do Liceu Nilo Peçanha ao qual tinha se juntado em 1931,
quando na época, ao primeiro cabia a escola normal e ao segundo o ensino
ginasial. Foi quando então, anexou- se ao Grupo escolar Getúlio Vergas e ao
Jardim de Infância Maria Guilhermina que eram fixados na mesma Travessa
onde hoje se localiza o IEPIC.
Em 1975, por meio do parecer nº 1133/75 do Conselho Estadual de
Educação, o IEPIC implantou a reforma do ensino de 2º Grau, com o curso de
professores habilitados. No entanto, apesar de algumas mudanças físicas,
desligamentos e agregações o Instituto de Educação de Niterói, assim
conhecido até 1965 foi fundado em 1835, sendo esta a Primeira Escola
Normal do Brasil.
O Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, atualmente mantém
o curso de formação de professores, bem como os segmentos de Educação
Infantil e Ensino Fundamental. Atende a população da redondeza, provenientes
na sua maioria do Morro do Ingá e do Morro do Palácio, lugares estes
ocupados por facções rivais do tráfico de drogas. Sendo o sujeito desta
pesquisa a criança, focalizamos neste estudo o primeiro segmento do Ensino
Fundamental.
56
O IEPIC hoje
Segundo a coordenadora pedagógica da instituição em setembro de
2005, o alunado do IEPIC vem sofrendo grandes modificações ao longo dos
anos. Este colégio que em outros momentos fora disputado pela população,
tinha por hábito ser constituído “por alunos de classe média, que tinham
acompanhamento familiar”. Hoje, convive com uma realidade diferente, atende
a classe popular , que traz para este espaço outros valores que são ainda
desconhecidos pela instituição escola.
Primeira escola normal do Brasil, foi fundada com o intuito de formar
professores primários, aqueles que seriam responsáveis pela instrução e mais
do que isto, pela civilização, a repressão do lado selvagem do homem. Apesar
dos percalços históricos , dos descaminhos e dos descompassos do real
objetivo o que ficou foi o peso de uma tradição: uma escola superior no sentido
57
de estar acima das demais, uma escola por muitos, almejada o que os levava
à disputa por uma vaga e com tantas reformas no ensino acabara por atender
aqueles que ao seu redor se fixaram, sem mais ter o domínio de escolher
o seu alunado, ou seja, de extrair da massa os considerados melhores ,
aqueles que seguramente dariam certo, teriam futuro. Tal expectativa em
relação ao IEPIC se faz presente não somente no discurso do corpo docente,
como nas falas dos próprios alunos “Eu não sei porque é a maior escola da
América Latina... e não tem alunos de qualidade”. ( Jayane- 9 anos )
O IEPIC na visão da pesquisadora
No nosso olhar,uma escola de formação de professores, que tem como
um de seus objetivos servir de campo de estágio . Uma escola com uma
estrutura física grande, constituída por quatro blocos: dois prédios térreos, um
para a Educação Infantil, outro para as Classes de Alfabetização e algumas
turmas do 1o Segmento do Ensino Fundamental no turno da manhã; dois
compostos por três andares, um para o Ensino Fundamental ( 5a a 8a no turno da
manhã) e (1a a 4a no turno da tarde) e o outro para o Curso de Formação de
Professores, um amplo pátio e uma quadra coberta.
Crianças jogando bola na quadra
58
O pátio
Lugar mais sedutor da escola, o pátio agrupa as crianças
diariamente para a realização das situações mais secretas e interessantes.
É o dia a dia da escola, tempo em que as relações se constroem da
maneira mais simples, com jeito de criança ...
Crianças brincando no pátio
Crianças durante o recreio
59
Uma escola grande, bonita, limpa, bem cuidada e aparentemente
segura, é esta a primeira visão que temos do IEPIC.
Os portões
Os portões de ferro fecham cada um dos prédios que compõem esta
escola e que nos dias em que lá estivemos permaneceram durante todo o
tempo trancados com um cadeado.
O prédio que aparece na foto a seguir é o prédio denominado bloco
B, no qual nos fixamos para a realização das tarefas que compõem a
pesquisa. Numa de nossas visitas, enquanto procurávamos a coordenadora
pedagógica que nos acompanhou durante a pesquisa, com o objetivo de
comunicá-la nossa presença na escola, fomos participantes de uma situação
que relataremos aqui.
Crianças durante o recreio
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Alunos e a coordenadora pedagógica esperando para entrarem no prédio B
Para sairmos deste bloco, que é mantido constantemente trancado
com cadeado, fomos orientados por uma professora no corredor do colégio
que solicitássemos à pessoa responsável pela cantina, dona Juracy, que
abrisse o portão, pois esta tem a posse da chave, embora não seja sua
atribuição. Ao chegarmos no portão e chamarmos dona Juracy, uma aluna
uniformizada que estava do lado de fora esperando para entrar, nos disse:
“ nem adianta. Ela já disse que não vai abrir, porque isso não é trabalho
dela.” Ainda assim, insistimos e dona Juracy veio abrir , permitindo que a aluna
entrasse. No entanto, ao abrir o portão dona Juracy, justificou sua recusa
inicial dizendo que “o Felipe (funcionário da escola que tem esta atribuição), fica
se escondendo para não vir abrir o portão. Mas no fim do mês, o
contracheque do estado, quem recebe é ele.”
Tal relato tem a intenção de apresentar uma das muitas vezes que
nós enquanto visitantes da instituição ficamos esperando por alguém que
abrisse o portão para que entrássemos, o que a nós inicialmente se mostrou
como segurança. No entanto, é importante ressaltar que presenciamos várias
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situações nas quais percebemos os alunos uniformizados, no seu turno de
estudo, esperando ora para sair, ora para entrar estando o portão trancado
e nenhuma pessoa responsável com a função de abri-lo, fazendo com que
estes aguardassem alguns minutos.
Outra situação que comprova esta afirmação aconteceu neste mesmo
dia, quando voltávamos para o bloco B após encontrarmos a coordenadora . Ao
retornarmos ao prédio, que novamente estava trancado, fui até a cantina onde
estava dona Juracy para pedir que esta abrisse o portão, pois não havia
ninguém que o pudesse fazer. Ao entrar na cantina e ser percebida por dona
Juracy, esta disse: ” Mas, de novo! Eu vou lhe emprestar a chave, você abre
e me devolve aqui.” Assim foi feito, abri o cadeado e voltei para devolver a
chave, enquanto Rafael ( aluno da UFF que neste dia nos acompanhou ficando
responsável pela filmagem) ficou tomando conta do portão, pois haviam alguns
alunos querendo sair do bloco. Entramos e trancamos o portão. Os alunos
ficaram reclamando dizendo que tinham permissão para sair . Procurei
explicar-lhes que eu e Rafael não trabalhávamos na escola e que desta
forma não tínhamos autorização para permitir que os alunos saíssem pelo
portão e que eles ficassem esperando pelo Felipe que era a pessoa que
tinha tal autoridade. Os alunos ficaram reclamando.
O portão como o lugar que recebe quem chega e sai é sempre um
espaço interessante de se observar. Num outro dia, em que fomos ao IEPIC
presenciamos outra cena no portão do Bloco B que nos mostra a visão que a
escola tem das famílias que atende. Enquanto a coordenadora nos
encaminhava à sala onde seria realizada a filmagem do grupo focal, uma
senhora que estava responsável por abrir o portão naquele momento fez-nos
um comentário ao nos aproximarmos dela, dizendo:" Uma pessoa que tem filhos
levadíssimos, arranjou mais um. Daqui a três anos esta
criança virá perturbar a gente aqui! ”. Referindo-se a uma senhora que estava
próxima com uma criança de poucos meses de vida no colo
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e outras moças (vestidas com o uniforme da escola) em volta
brincando com o bebê.
O corredor
Espaço onde transitam crianças e adultos durante todo o dia, o
corredor do bloco B na foto retratado, em muitos momentos foi-nos cenário
de um grande desafio: encontrar as salas de aula dos alunos sujeitos da
pesquisa. Muitas foram as informações equivocadas de professoras ou
estagiárias sobre a localização das turmas que procurávamos, informação
certeira tinham as crianças. Estas sim conhecem o espaço da escola.
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Na nossa visão se faz relevante uma observação quanto à organização
deste espaço. Durante o horário de aula as crianças transitam pelo corredor
para irem ao banheiro, beberem água e outras necessidades mais. Nos dias
que visitamos o IEPIC, percebemos que não havia a presença de pessoas
circulando, vigiando este espaço o que chamou nossa atenção ao nos
depararmos com estas carteiras depositadas no corredor bem abaixo de
aberturas nas paredes com o intuito de ventilar , mas que permitem a
passagem de uma criança por este orifício. Assistimos e intervimos a algumas
crianças que utilizando as carteiras debruçaram-se para olhar o que ocorria
no pátio, vale lembrar que estávamos localizados no terceiro andar do prédio.
A segurança
Ao avaliarmos nossas visitas no IEPIC, nossa opinião sobre a
segurança começa a tomar outro rumo: entrar no pátio da escola como
visitantes não nos foi em momento algum complicado. Passamos por um
portão, no qual constantemente tem a presença de uma pessoa na função
de verificar quem entra e quem sai. No entanto, nossa identificação por meio
da fala foi o suficiente para entrarmos nos diversos horários que lá
estivemos.
Horário de entrada, horário do recreio o que observamos no pátio,
foram inúmeras crianças brincando... Sentindo falta de adultos no local
procuramos: onde estariam os responsáveis por aquelas crianças? Não
encontramos. Os portões que “guardam“ os prédios fechados, ou melhor,
trancados. O que nos fez pensar: a segurança está para as crianças, ou para
as salas de aula ?
Quando nos vimos diante das carteiras depositadas no corredor, local
este, onde as crianças transitam livremente, sendo necessária somente
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uma autorização da professora para saírem da sala sem mais uma vez, a
presença de alguém responsável no corredor, nos perguntamos: onde está a
segurança dessas crianças ? Entretanto, esta foi uma preocupação nossa e
que não encontramos eco nas falas dos sujeitos da pesquisa.
Enfim, este cenário já começa a contar sobre um modo de
socialização. Já podemos ler no espaço, as práticas para a socialização
dessas crianças, e o uso que as crianças fazem deste espaço.
Os sujeitos da pesquisa
A escolha dos sujeitos desta pesquisa se fez mediante indicação de
um grupo de professoras que foram selecionadas para a realização do grupo
focal do corpo docente, parte integrante da pesquisa citada anteriormente. A
este grupo foi solicitado que ao preencher um questionário indicasse dois
alunos para participarem do grupo focal das crianças. Sugerimos então, a
recomendação de um bom aluno e de um mau aluno. Foram assim denominados
a partir de algumas conversas com a equipe pedagógica desta instituição nas
quais as coordenadoras ao relembrar os bons tempos de IEPIC, quando este
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era formado por bons alunos , e comparando com os dias atuais quando
não sabem o que fazer com os “maus” alunos.
Ao recolher os nomes, providenciamos as autorizações para a
participação destas crianças na presente pesquisa. Foram encaminhadas 17
autorizações e retornadas 11 .Os participantes não serão identificados pelo
nome, apesar de termos autorização para veiculá - los, serão então referidos
conforme tabela a seguir:
Criança número nome idade série
C1 Thayane 9 anos 3a série
C2 Thaynara 9 anos 3a série
C3 Joseane 12 anos 3ª série
C4 Janderson 9 anos 3ª série
C5 Jayane 9 anos 3ª série
C6 Marlon 14 anos 3a série
C7 Ana Flávia 9 anos 3a série
C8 Anna Caroline 9 anos 3ª série
C9 Jonathan 9 anos 2ª série
C10 Orlando 10 anos 4a série
C11 João Felipe 12 anos 4a série
A pesquisa
O trabalho empírico se dividiu em três etapas : a primeira se deu com a
realização de um grupo focal que teve como objetivo ouvir o discurso dos
sujeitos da pesquisa sobre a socialização que vivenciam no espaço escolar .
A segunda etapa teve a intenção de aprofundar a compreensão a
propósito do conhecimento sobre as regras escolares e as punições ou
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recompensas que acompanham estas normas. Para tanto, utilizamos um jogo
de trilha, jogo que é do conhecimento das crianças e propusemos a estas
que elaborássemos juntos as regras necessárias para o jogo , representando
as premiações ou punições necessárias de acordo com as regras escolares.
Com o objetivo de aprofundar temas,o terceiro momento tratou-se de
uma entrevista realizada individualmente ou em pequenos agrupamentos, sobre
o processo de socialização que acontece na escola e na família e como a criança
compreende essa relação família X escola no que tange o assunto. Além disso,
foi apresentado um dilema moral trazendo para a discussão a presença de
“sentimentos morais” que se fizeram presentes nos momentos anteriores.
Considerações teórico-metodológicas
Ao avaliarmos os pressupostos da instituição escola sobre
socialização, na relação com a família de classe popular , identificamos algumas
questões que necessitam de atenção. Além da baixa escolarização em geral
destas, o que de certa forma as afasta deste contexto por não conhecê-lo
bem, percebemos a grande distância cultural entre estas camadas sociais: a
classe média, representada pela escola e a classe popular. Dessa forma
assistimos de um lado a forma escolar de socialização , que de acordo com
Thin compreendemos a constituição desta
“no decorrer de um longo processo histórico, como forma derelações sociais e de socialização que, sem sercompletamente homogênea, partilha um certo número detraços articulados entre si e que caracterizam uma maneirade socializar que se impôs como predominante em váriassociedades modernas.” (Thin, p.8)
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Ou seja, é ainda hoje o modelo de socialização dominante . E do outro
lado a classe popular vivenciando no espaço social a imposição desta
cultura que não é a sua e se esta é a dominante cabe-lhes então reconhecer- se
como dominados. Porém falta-nos perguntar sobre a forma de socialização da
classe popular. Ora, se tão grande é a diferença entre estes lugares, é de se
esperar diferenças também nas práticas socializadoras e ainda a reflexão que
antecede tais práticas, em outras palavras o que Daniel Thin chamou de
lógicas socializadoras.
A distinção entre as lógicas socializadoras da escola e das famílias
de classe popular acabam tornando- se uma oposição tamanha diferença
existente entre esses dois mundos. O mundo escolarizado, dominante, que
obedece a lógica ocidental e o outro mundo tão próximo e tão distante, o mundo
não escolarizado, dominado pela força que se impõe, no entanto, que resiste
e encontra a seu modo formas de lidar com ela sem se deixar vencer. Ainda
assim, dizemos que tal confronto é desigual, pois quem possui a lógica
vigente, que orienta, que manda é o dominador, é ele que cita as normas da
escola, lugar pelo qual, todos querem passar, pois acredita- se que através
dele brote a possibilidade de vislumbrar um futuro melhor.
Encarar tal discussão significa abandonar a perspectiva dominante e
reconhecer a possibilidade de uma lógica diferente, pois vivida, experienciada
de maneira diferente e, decorrendo desta lógica, práticas distintas. Não se
trata de assumir uma postura relativista frente à legitimidade que o modo
escolar conquistou ao longo dos tempos, mas de permitir enxergar a
possibilidade de um confronto entre lógicas e práticas socializadoras
distintas, onde cada qual será modificada pela interferência da outra. Não
significa, deste modo, encontrar o certo e o errado, mas as diferenças no que
constitui o mundo social destas crianças. E o que percebemos foi que ao
buscar a voz infantil enunciando as diferenças, encontramos lugares de
resistência à hegemonia da lógica escolar.
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Se pensarmos a socialização como algo além da interiorização das
normas vigentes, ampliando este processo de maneira a abarcar as diversas
formas de vivências possíveis, sejam individuais ou grupais, relacionadas a
histórias de vidas resultantes das condições sócio-econômico-afetiva de cada
um, compreenderemos a escola e a família como lados da mesma moeda,
ou seja , estão juntas neste processo , apesar de nem sempre como parceiras.
Apresentação dos dados
“ As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem a nossa língua.”
Larrosa (1998)
Como definição de selvagem segundo o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa temos entre outras, aquele “que ainda não foi domesticado”,
significado este que traduz o pensamento de Durkheim sobre a criança.
De acordo com Fernandes (1994), Durkheim apresenta duas naturezas
humanas, a nossa individualidade e o Outro em nós.
“ Eis por que a criança, carente da segunda natureza, privadaque está ainda do Outro interno, é o ser de falta pois,literalmente, falta- lhe um ser, e o melhor. A criança é, então, oradicalmente outro do adulto e do educador. Está aberto ocaminho que Durkheim percorrerá sem sobressaltos: acriança é o outro, o estrangeiro, o bárbaro, o desconhecido, oestranho. Será analogicamente aproximada ao louco, aodéspota, ao bárbaro ( homem primitivo), pois o que importa émarcar sua diferença de estatuto.” ( p. 79- 80)
Pouco nos importa compreendê-la, o que a nós vale é marcar sua
diferença, destacar não o que vemos, mas o que lhe falta a partir da visão
que temos de “homem autônomo” como queria Piaget ou “adulto normal”
como esperava Durkheim.
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Este trabalho tem como objetivo principal responder a seguinte
questão: Como podemos tomar a criança como sujeito de suasocialização?
Nesta pesquisa compreendemos que a criança se faz sujeito pela
linguagem. Ao falar sobre o seu processo de socialização mais do que
reproduzir o discurso do adulto ela o reelabora retirando-o do lugar de quem
fala sobre o outro, passando-o para o lugar do sujeito que fala sobre si.
Nos propomos, pois, a investigar a fala da criança sobre o seu
processo de socialização. O que fala esta criança? Esta fala é confiável?
Para responder tais questões, iniciamos o trabalho de campo com a realização
de um grupo focal, que teve como norteador o roteiro a seguir apresentado, na
intenção de fazer emergir destas falas, indicadores do que esta criança
pensa e como elabora seu discurso sobre tal processo.
Grupo Focal – Tarefa 1
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Os grupos focais podem ser descritos, de maneira geral, como
entrevistas que se fundamentam na relação desenvolvida dentro de um grupo.
O fator primordial da utilização dos grupos focais é a possibilidade que estes
oferecem de estabelecer troca de idéias sobre o assunto – foco- de
interesse, durante um tempo limitado, no qual as questões são discutidas e
aprofundadas no grupo.
Os grupos operativos, assim chamados por Pichon- Rivière (1998),
primeiro autor a desenvolver técnicas de trabalho em grupo, consistem na
realização de trabalhos em grupos, cujo objetivo é promover, de forma
econômica, um processo de aprendizagem. Para o autor, aprender em grupo,
significa realizar uma leitura crítica da realidade, apropriando- se ativamente
desta realidade.
O papel dos pesquisadores, no grupo focal, foi o de dirigir a discussão
de forma semi- estruturada, cuidando para que o tema não fosse desviado.
As falas das crianças foram filmadas, mediante autorização dos pais para
veiculação da imagem. A seguir apresentamos o roteiro que utilizamos nesta
etapa da pesquisa.
ROTEIRO PARA O GRUPO FOCAL- TAREFA 1
O que é ser criança?No que é diferente ser adulto ou ser criança?A escola é igual ou diferente da casa?O que não pode na casa?O que não pode fazer na escola?A professora gosta de você? Por que?O que a professora gosta que as crianças façam?O que a professora não gosta?Por que você acha que é assim?Quem inventou essas regras?Diga como um bom aluno deve se comportar na escola.
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Após a realização do grupo focal e uma primeira leitura dos dados
coletados nas falas dos sujeitos da pesquisa, voltamos ao campo com o
objetivo de focar na compreensão que estas crianças tinham sobre as
regras da escola . Para isso, apresentamos ao grupo o jogo das regras
escolares, que se tratou de um “jogo de trilha” , jogo popular entre as crianças.
O que o diferenciou dos demais na nossa proposta foi, a participação das
crianças na elaboração dos cartões que acompanha o jogo, indicando
punições (carta 2) ou recompensas (carta 1) de acordo com a transgressão ou
obediência às regras escolares.
( carta 1) ( carta 2)
As crianças elaboraram, portanto as regras,e as mesmas discutiram
entre si o “valor” de cada ação atribuindo a cada, uma sanção: punição ou
recompensa. Esta etapa, assim como o grupo focal e a entrevista apresentada,
a seguir, foram registradas em vídeo.
E o terceiro momento, elaborado a partir da análise dos dois
primeiros encontros, foi uma entrevista realizada individualmente ou em
pequenos grupos com a intenção de aprofundarmos os dados coletados
anteriormente. A junção das três etapas nos forneceu a base de dados para
as categorias de análise deste trabalho que apresentaremos agora, através
das falas das crianças, sujeitos da nossa pesquisa.
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Tais falas serão apresentadas por meio de episódios, que são
recortes de cada uma das etapas do trabalho. Os episódios serão
apresentados por uma numeração que indica sua ordem dentro de um tema
por nós organizados, a partir da primeira leitura dos dados realizada. Este
tema abarca de maneira geral, as categorias que utilizamos na análise do
trabalho. Logo a seguir, como identificação da etapa, citaremos as tarefas
numeradas de acordo com a ordem da realização do trabalho. Apresentamos
um exemplo da legenda para a leitura dos episódios:
( T/1) Tarefa 1- Grupo Focal
( T/2) Tarefa 2 - Jogo das Regras
(T/3) Tarefa 3 - Entrevistas
P 1 / (2) ou (3)
Pesquisador ( 1),(2) ou (3)Nestas tarefas contamos com a participação dedois membros do grupo de pesquisa da UFF
C (?)
Fala da criança . A numeração a seguir, está deacordo com a tabela apresentada anteriormente,sobre os sujeitos da pesquisa.
C ( nid) Criança não identificada
Estes episódios foram re-ordenados a partir das categorias
construídas. E podem ser utilizados em mais de uma categoria.
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3.1 A definição de ser criança
Como primeiro tema na busca da apreensão do discurso infantil
sobre o seu processo de socialização encontramos a criança como ser social,
que pensa sobre o seu lugar na sociedade e o define em duas expressões .
3.1.1 Criança como aluno
Episódio 1: O que é ser criança?
T1/C2-É brincar.T1/C1 Pode fazer um milhão de coisasT1/C2- É. Fazer dever de casa, dever de aula.T1/C1- EstudarT1/C2- A melhor coisa é brincar.T1/C5- Ser criança você pode pegar um livro e ler.T1/C1- As avós tambémT1/P1- O Orlando está dizendo que o adulto também pode fazer isso
Como vemos no episódio 1 ao se deparar com a pergunta “ O que é
ser criança?” a primeira fala corresponde ao que se pode fazer.
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Ser criança permite brincar e a brincadeira pode ser traduzida em
uma diversidade quase infinita de possibilidades. Pode-se criar , inventar,
simular e ser...
No entanto, ser criança também pressupõe ter deveres a cumprir:
“ dever de casa, dever de aula”.
Não podemos desconsiderar o fato de que estas crianças ao serem
argüidas se encontravam no ambiente escolar, falando sobre ser criança
para professoras, por outro lado vemos a necessidade de se ponderar também
sobre a força da escola como lugar da meninice, transformando o tempo de
ser criança no tempo de aprendizagem escolar, ou seja, o tempo de ser
aluno. Porém o que destaca neste episódio é o fato de que estas crianças
pensam sobre o seu lugar na sociedade.
Quando surge algo que pode ser também realizado pelo adulto,
nasce aí a distinção, uma distinção necessária. Se a atividade pode também
ser realizada por um adulto, esta não pode definir criança. Ser criança
pressupõe ser diferente do adulto. Será que essas crianças estão
simplesmente reproduzindo a fala do adulto, como nos diria Piaget?
Não. Essa criança demonstra que conhece a lógica socializadora.
Recebe esta lógica não como “inculcação”, como nos diria Durkheim, mas
como alguém, sujeito deste processo que compreende a lógica vigente e
reelabora o discurso do mundo adulto tornando –o seu.
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3.1.2 Ser criança em distinção de ser adulto
Episódio 2: O que é diferente da criança e do adulto?T1/C2- Criança é pequeno, adulto é grande .( demonstra em gestos)T1/C1- Adulto trabalha e as crianças estudamT1/C5 -Mas de vez em quando os adultos fazem coisas erradas...T1/C2 -Tem vezes que o adulto manda criança trabalharT1/C5- Isso é uma vergonha. Criança pedir esmola na rua.
De acordo com o episódio 2 a primeira diferença entre a criança e o
adulto diz respeito primeiro às dimensões físicas, e em segundo trata das
obrigações. É quando surge o trabalho como atividade distintiva do adulto.
Portanto, quando essa criança trabalha, aparece a indistinção entre adulto e
criança, e a explicação se diz numa palavra: exploração. Não é a criança que
trabalha como atividade normal, mas é o adulto que “manda criança trabalhar.”
E isto é sinalizado como erro: “de vez em quando os adultos fazem coisas
erradas...” Mas por que sinalizar desta forma? Seria desnecessário demarcar
assim, se considerássemos que os adultos errassem tanto quanto as crianças.
Mas é a criança o ser de falta, ser incompleto, ser que tem muito, o
que aprender. Estando em oposição ao adulto pressupõe- se então que o
segundo seja um ser completo. Segundo Sarmento (2004), juntamente com a
criação da escola, houve o recentramento do núcleo familiar no cuidado dos filhos,
a produção de disciplinas e saberes periciais, e a promoção da administração
simbólica da infância. Conjuntos de discursos sobre a criança que partiam de duas
representações centrais: a “criança-anjo, natural, inocente e bela e a criança-
demônio, rebelde, caprichosa e disparatada” (Sarmento, 2004). Esses discursos
afirmavam, entre muitas medidas de proteção e controle, a partir destas
concepções, a diferença radical entre a criança e o adulto. Diferença essa
expressa por uma desigualdade: as crianças seriam incapazes de participação
plena no mundo social, por déficits diversos. As crianças seriam seres
incompletos, que precisam passar pelos processos de socialização – tendo a
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escola, nos séculos seguintes, ocupado um lugar privilegiado nesta tarefa – para
se tornarem membros ativos do mundo social.
No discurso das crianças, o trabalho como atividade do sujeito adulto as
define na diferença.
No episódio 3, que trata dos erros infantis, vemos a criança rindo e
assim expressando um certo movimento de subversão.
“ O que será, que será?Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiarPorque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrarE todos os meninos vão desembestarE todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o padre eterno que nunca foi láOlhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca teráO que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem juízo.”( Chico Buarque)
Somos nós capazes de conter o riso do outro? Somos nós capazes
de governar alguém que não pretenda se deixar governar?
Criança não faz “coisa errada”, só porque ainda não conhece o certo,
mas como os adultos erram muitas vezes por desejar desafiar. E a
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transgressão é perigosa, segundo Fernandes (1994), “ a transgressão instaura
a dúvida nesse universo de crenças e de certezas[...]” (p. 163)
Episódio 3: Você disse que às vezes os adultos fazem coisas erradas e ascrianças não. Criança faz coisa errada?
T1/ G- claro (risos)T1/C7- De vez em quando, de vez em quando não.T1/C5- O sonho da mãe é a criança (trecho não identificado) mas, às vezes acaba seenvolvendo com drogas.
Percebemos ainda no episódio 3 , a presença do discurso social para
o pobre : é a criança pobre se emaranhando no mundo das drogas .É a
criança re-significando as suas práticas a partir do discurso do outro.
3.2 Relações entre as famílias e escola
Diferente é o entendimento de socialização entre escola e a família
de classe popular, como trataremos neste trabalho. Como falar de socialização
sem levar em conta as distintas formas de vida social? É possível pensar
em igualdade de práticas sociais diante de tanta diversidade de vivências
entre as classes sociais? Classes sociais diferentes, com experiências de
vida diferentes, obedecem a um mesmo modo de relação social ?
As relações sociais produzidas na escola nos mostram práticas
socializadoras muito diferentes, e até mesmo contraditórias, das relações
sociais familiares. Daniel Thin (2006) nos diz que o que há é uma
“ confrontação desigual”, são dois pólos de lógicas socializadoras : o pólo das
lógicas escolares que é resultante de um processo histórico e o pólo das
lógicas populares.
Tal desigualdade é percebida na imposição que a lógica e as
práticas escolares exercem sobre as famílias de classe popular, visto que a
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escola tanto é um lugar desejado, quanto desconhecido. As famílias das
classes populares desconhecem a totalidades das regras escolares, restando a
estes a conformação das exigências da escola. Se a escola possui “as
regras” dominantes, as que vigoram, então é da escola o lugar legítimo,
conseqüentemente são ilegítimas as lógicas e práticas das famílias
populares. As próprias famílias assumem essa posição de ilegitimidade na
relação com a escola, mas como as crianças percebem essas relações?
Episódio 4: O que tem de diferente na casa e na escola?
T1/C3- Na escola a gente estuda e na casa a gente brinca.T1/C2- Não. Na escola a gente também pode brincar, no recreio.T1/C1- ÉT1/C8-- Na escola a gente aprende.T1/C2- Em casa a gente também pode aprender.T1/C10- Até no livro.
A distinção entre um espaço e outro é marcada pelas diferenças de
possibilidades de ação. O que pode fazer na escola, pode fazer em casa? Ou o
que pode fazer em casa, pode fazer na escola?
É a visão da casa e da escola como espaços distintos que possuem
na visão da criança finalidades e possibilidades que lhes são peculiares. Como
vemos no episódio 2 , estes espaços são tão demarcados que existe a
preocupação de não confundir um com o outro.
Episódio 5: O que é confundir a nossa casa com a escola?T1/C5- É fazer as coisas que você faz em casa é fazer na escola.T1/P1- Então, é isso que eu tô perguntando. O que pode fazer em casa que não podefazer escola.T1/C7- tipo jogar vídeo –gameT1/C5- Ficar com o pé em cima da cadeira, isso faz no sofá. Na escola tem carteira.T1/C10-Tem muito dever.
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A escola é lugar de responsabilidades, lugar de obrigação. A criança na
escola é vista como aluno, a relação existente entre o adulto e a criança na
escola “é, antes de tudo uma relação pedagógica. O único sentidoda relação é a educação. Os adultos que rodeiam as criançastêm como única tarefa educá-las e formá-las através deatividades que não têm outro fim senão esta formação dasmentes e dos corpos “. ( Thin 2006, p.9) (grifos nossos)
Segundo o ponto de vista da criança, este é o fundamento da escola,
formar, preparar... Como trabalhar com a possibilidade de relaxamento,
diversão? Escola é lugar de ordem, disciplina, regras...
3.2.1 Confronto de relações na figura dos sujeitos
Durante este trabalho, algo que muito nos chamou a atenção foi a
distância que pareceu existir entre a escola, no papel da professora e a
família. Ao perguntarmos sobre a relação entre a professora e a família,
obtivemos como resposta, o desconhecimento, como podemos verificar no
episódio 6 .
Episódio 6: Sua professora gosta da sua família?Entrevista 1-T3/C2- Ela nem conhece.T3/C1- A minha também nem conhece.T3/C1- A minha não conhece a minha mãe.T3/P2- É? Mas o que ela diz assim, ela fala alguma coisa sobre a sua família, sobre a sua casa, sobre as coisas que vem da sua casa? ( C2 sinaliza que sim)T3/P2-Fala? O que ela fala?T3/C2- É. Ela vive falando que vai encontrar com a nossa mãe, que vai falar o que agente ta aprontando na sala de aula. Que queria muito conhecer a minha mãe.T3/C1- Ela não conhece minha mãe, ela não conhece... Eu acho que ela conhece meuirmão sim. Mas , eu não sei. É que ... a minha professora, se a gente apronta, ela vai lá,quando vê a mãe fala pra ela tudo,minha mãe bota de castigo.T3/P2- Mas, ela gosta da sua mãe?T3/C1- Gosta quando ela bota a gente de castigo.
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A família e a professora não se conhecem, no entanto, a professora
demonstra “gostar” da família, quando sente-se apoiada por ela . Na
perspectiva da criança a professora gosta da mãe “quando ela bota a gente
de castigo”, ou seja, a família é chamada à relação no momento da sanção.
Observemos no episódio a seguir:
Outra simpatia surge entre a escola e a família, quando a primeira vê
seu trabalho valorizado. Na voz da professora a escola reconhece e aprecia a
família que trabalha de acordo com os seus objetivos. É a criança que
percebe a admiração da professora à sua família por meio do seu discurso.
No episódio seguinte, vemos reforçada a falta de comunicação, a
distância existente entre a família e a escola.
Episódio 7: Sua professora gosta da sua família?
Entrevista 2-
T3/C5- Ela só gosta do meu pai e da minha mãe só.T3/P2-O que ela fala dos seus pais?T3/C4-- Fala coisa boa.-T3/P2- Fala coisa boa, que tipo de coisa boa? Você sabe me dar um exemplo dealguma coisa que ela tenha falado?T3/C4- NãoT3/C5-GostaT3/P2- Ela não faz nenhum comentário sobre as coisas que vem da sua casa ...T3/C5- Mais ou menos ( sinaliza com a mão)T3/P2- Mais ou menos , como assim mais ou menos?T3/C5- Ah , que a família dá estudo pra ela.
Episódio 8 : Sua professora gosta da sua família?
Entrevista 3-T3/C8- Ela não conhece a minha família?T3/P2-O que é que ela fala das coisas que vem da sua casa?T3/C8-Não.T3/P2-- Não fala nada? (Sinaliza que não.)
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3.2.1.1 As tarefas escolares como objeto na relação
Diante desta falta de contato, surge o dever de casa como mediador
da relação. É por meio dele que a família avalia o trabalho escolar e a
escola observa o acompanhamento e dedicação familiar para com as
atividades escolares. De acordo com Thin (2006) percebemos a ambivalência
da família quando ora se incomoda com a falta de tarefas , como vemos nos
episódios a seguir, e ora acha injusto,a grande quantidade destas.
Episódio 9: Sua mãe gosta do dever de casa?Entrevista 1-T3/C2- Gosta.T3/C2- É . E a minha professora que passa quase um mês sem mandardever de casa ela já começa a reclamar.T3/C1- Fala que... Eu falo pra minha mãe bem que ela faz muito dever.Aí eu pergunto sempre quando a gente ... a gente faz o dever e a gentetá atrasada a gente pergunta a tia se pode fazer em casa. Porque quasesempre a tia não dá dever de casa. Ontem eu tinha que fazer dois deveresde casa e deixar o caderno em casa pra eu fazer o resto...T3/P2- Mas quando vai muito pra casa. O que a sua mãe fala?T3/C2- A minha mãe acha maravilhoso. É bom que eu não vejo televisão.T3/C1- A minha mãe acha injusto.T3/C2- a minha mãe acha maravilhoso porque ela acha que é bom porque eu não vejo televisão.Só dá pra ficar sentada fazendo dever de casa.T3/C1- Ah ela acha injusto se tiver muito dever né. Aí ela bem fala .Ela fala as respostas bem de alguns e outros ela deixa, muito difíceis ela deixa bempra mim fazer. As facinhas que eu já sei ela fala. Fala porque eu já sei, né?
Segundo Thin , “A ambivalência vai aparecer, por exemplo,quando os paispedem aos professores que sejam rígidos e severos, e aomesmo tempo protestam contra algumas sanções: de umlado, eles esperam que as modalidades de manutenção daordem escolar correspondam ao modo de autoridadefamiliar; de outro, eles tendem a querer proteger osmembros da família contra o poder dos agentes dasinstituições, com uma espécie de obsessão quanto àinjustiça e à estigmatização a respeito de sua família.”(2006, p.18)
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Encontramos o dever de casa com múltiplas funções: a de ocupar a
criança, “ minha mãe acha maravilhoso porque ela acha que é bom porque
eu não vejo televisão “ , como é reforçado no episódio seguinte.
Outra função do dever (dever de aula e dever de casa) é ser uma ação
reconhecida pela família como útil a, expectativa que a família deposita na
escola como possibilidade de ascensão social.
Ainda na visão da criança, o dever é percebido como castigo, como
podemos observar no episódio a seguir
Episódio 12: Vocês acham que as professorasgostam de vocês?
T1/C10- a professora não gosta de mim, porque ela passa muito dever.
Episódio 10: Sua mãe gosta do dever de casa?Entrevista2-T3/C4- Sinaliza positivamenteT3/C3 e C5- – Gosta.T3/P2 Gosta? E o que ela fala quando você leva muito dever de casa?T3/C4-- Fala nada.T3/C3- Nada.T3/P2- Fala nada? E quando leva pouco?T3/C4- Fala nada.T3/C3- Nada.-T3/C5- A minha gosta de tudo.Passo a manhã inteirinha fazendo dever.T3/P2- E quando tem pouco dever?T3/C5- Eu faço o dever e começo a brincar. Ela gosta.
Episódio 11: sua mãe gosta da escola?
Entrevista 1-T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, ela querque a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.
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3.2.1.2 Regras da casa e da escola : as possibilidades de ação
A socialização é um processo que se expressa na aplicação de
regras, ajustadas com as normas dominantes da sociedade .
Segundo Thin ( 2006), tais normas são anunciadas pelas concepções
normativas da socialização que“reduzem o sentido da socialização à interiorização de normassociais dominantes ou à produção de indivíduos capazes deviver em conformidade com as leis e normas próprias a umaformação social em uma dada época.” (p.3-4)
Ainda de acordo com Thin, ( ibidem) compreendemos que
“analisar as relações entre as famílias populares e escolanessa perspectiva requer que se abandone a visãodominante que caracteriza essas famílias pela incoerência ,negligência,’ anormalidade’, e considerar que as práticas e asmaneiras de fazer dos pais não são totalmente incoerentes,que elas têm sua própria lógica, ou melhor, que elas nãoparecem incoerentes senão quando confrontadas com asnormas da escola e, de modo mais amplo, com as normasdominantes da vida social.” (p.3)
E dessa forma nos perguntamos: a escola e as famílias populares
trabalham com as mesmas regras? ou ainda, trabalham da mesma forma
com as regras? Como as crianças percebem tais diferenças?
Episódio 13: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 1-T3/C1- Brincar com brinquedos, ver televisão.T3/C2-Na minha casa, o que eu posso fazer lá e não posso fazer aqui é...Brincar.T3/P2-Brincar. Brincar de quê?T3/C2- Brincar com brinquedos, bonecas, panelinha...T3/P2-Por que não pode?T3/C1- Porque aqui é escola. Não dá!T3/C2-Aqui é lugar de estudar.T3/C1- É!
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É a escola vista como o lugar da obrigação infantil: o estudo.
Episódio 14: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 2-T3/C5- – Ficar mais relaxado em casa. Na escola não pode.T3/P2–Como assim relaxado?T3/C5- Ah , descansar assim... E na sala não dá.T3/P2- Por que não dá?T3/C5-Porque a professora fala: parece que ta em casa. Ta na sala de aula!T3/C4-- Na sala ao pode fazer nada.T3/P2- É. O que pode fazer me casa que não pode fazer na escola?T3/C4-Brincar.T3/P2- Brincar? Só isso? Na escola não pode brincar?T3/C4-Só no recreio mesmo.T3/P2- E você? ( direcionando para C3)T3/C3- Não sei.T3/P2-Não sabe? O que você costuma fazer em casa que você não faz naescola?T3/C3- Brincar.
No confronto com as ações de relaxar e brincar, emergem na diferença
uma imagem do estudar: rigidez corporal, controle de emoções, seriedade...
Percebemos na fala de C5 a diferença sendo marcada pela professora: casa e
escola são lugares distintos, portanto de práticas e possibilidades diferentes. O
que fazemos na escola? Como nos referimos às tarefas escolares ? Deveres!
São estes os “deveres” das crianças: cumprir o que a escola propõe. Mas em
casa também há as obrigações...
No episódio a seguir, perguntamos a criança sobre as ações que
podem ser realizadas em casa e não podem ser feitas na escola. Neste
momento não compreendemos que esta criança nos falava sobre trabalho
infantil... Só nos demos conta ao transcrevermos a entrevista. Observemos a
fala desta criança:
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Episódio 15: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 3-( sinaliza que sim)T3/P2- O que?T3/C8- É.... arrumar casa, lavar louça, varrer o quintal. Só.T3/P2- Só? As outras coisas todas, que você faz na sua casa, você faz na escola?T3/C8- NãoT3/P2- Não? O que você faz em casa? Você ajuda em casa. Lava louça, varre o quintal, arruma a casa. O que mais que você faz na sua casa?T3/C8- almoço. (sinaliza com o dedo que não)T3/P2- almoça...Não?( silêncio... estala os dedos, olha ao redor, parece dispersa, bate palma)T3/P2- Você brinca em casa?( T3/C8 sinaliza que sim)T3/P2- O que mais você faz em casa? (Silêncio)
As crianças que distinguem- se dos adultos pelo trabalho -discurso
fundador da infância-, são crianças que trabalham. Essa contradição no
discurso revela o confronto de lógicas socializadoras :é na lógica escolar que
criança não trabalha. Na realidade das camadas populares as crianças
trabalham, mas na escola declaram que isso é errado.
Ao invertermos a situação e questionarmos sobre as possibilidades
da escola em comparação com a casa vemos a criança com dificuldade de
encontrá-las.
Episódio 16: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 1-T3/C1-É... aí eu não sei. ( cruza os braços)T3/P2- Não sabe?T3/C1- Ah, sei. Ficar correndo pelo corredor...Fazendo besteira , comendo toda hora...T3/C2- Não. Correndo pela sala de aula, porque em casa não tem espaço, tem estante, sofá...É não pode fazer isso em casa porque não tem espaço.T3/P2- Você disse que pode comer toda hora na escola e em casa não pode. Como é queisso?T3/C1- Não. Não, como é que você falou? Não pode, mas em casa pode. Aí, não a gente nãopode fazer na escola e que pode fazer em casa é botar o pé... na parede. Nenhum dosdois a gente pode.( sinaliza com o dedo negativamente) Nem na escola, nem lá em casa.T3/P2- Tem alguma coisa que pode na escola e que não pode em casa?T3/C1- Não.T3/P2- Não? ( Silêncio )T3/C2-Também não.
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A dificuldade em apontar as possibilidades que a escola traz nos faz
refletir sobre este lugar. Lugar de regras, de obrigações, lugar de possibilidade
sim! A escola como ideal republicano seria lugar de liberdade!
Episódio 17: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 2-T3/C5- Isso é difícil!T3/P2- Difícil?T3/C5- Sei lá!T3/P2- Não sabe também? ( dirigindo- se à C3 e C4) Vocês falaram que na escola, queem casa pode brincar e na escola não. O que acontece com quem brinca na escola?T3/C5- Quem brinca se diverte. Isso é em casa.T3/P2- Por que não pode se divertir na escola?T3/C5-Porque aí as pessoas começam a brigar, arrumar confusão, xingar...T3/P2-E o que você acha?T3/C4- Não sei.
No entanto, o que vemos é o comportamento desejado pela escola
como comportamento da obediência. Eis um paradoxo: a escola tem como
objetivo trabalhar para autonomia conforme Piaget a definiu, mas trabalha com
práticas que sustentam a heteronomia dos sujeitos em relação às regras e à
autoridade.
De acordo com Fernandes ( 1994),
“[...] as escolas primárias moralizam as crianças obrigando-as à cópia do adulto normal: obediente, sacrificante esubmisso ao desejo do Outro. Uma pedagogia perseguida poruma única obsessão: constituir na criança, esse ser da falta,aquilo que lhe falta, o Outro internamente inscrito edominante.” (p.147)
Retomando a questão sobre a distinção das possibilidades de ação
entre a casa e a escola, surge o silêncio.
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Episódio 18: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 3-C8- (Silêncio revira os olhos, coloca a mão na boca, tampa o rosto, parece estarpensando) T3/C8- O que tu falou?T3/P2- O que você pode fazer na escola que você não pode fazer em casa?(Silêncio – parece pensar)T3/C8-Brinca na escola?( C8 sinaliza que sim)
O silêncio, a procura por alguma resposta demonstra mais uma vez a
impossibilidade de pensar a escola como lugar de possibilidades. Escola que
lugar é este? No episódio 19, sobre a relação família e escola, observemos a
fala de C2.
Episódio 19: sua mãe gosta da escola?
Entrevista 1-T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/C2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, elaquer que a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.
Em outro momento, encontramos a mesma criança falando sobre a
expectativa familiar em relação à escola.
Episódio 20: Tem alguma coisa que ela não gosta?Entrevista 1-T3/C1-ah hamT3/P2- O quê?T3/C1-Garoto que fica batendo bem nas meninas.T3/C2-É que os garotos fica batendo na gente. Que a gente xinga asprofessoras. E ela também vive enchendo o meu saco dizendo que se eunão estudar , eu não vou ter um trabalho, um trabalho direito.
Em ambos os episódios, reforça- se a idéia do investimento da família e
da escola, na valorização da ação de estudar . Mas, ainda assim, as crianças
não conseguem formular as ações escolares como possibilidades . Aliás, elas
são descritas, como veremos adiante, como impossibilidades ou interdições.
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3.2.3.1 Regras e limites
Apesar das obrigações coexistirem em ambos os espaços, o que
percebemos são práticas diferentes. Sendo a casa esse espaço de liberdade
onde quase tudo é permitido, é com o estabelecimento de limites que a família
demarca até onde se pode ir.“[...] A transgressão de limites que não podem serultrapassados, sejam eles limites territoriais ou deaceitabilidade, acarreta diferentes formas de repressão verbalou física. Os pais fixam os limites a serem respeitados deforma imperativa, ou seja, eles são pouco negociáveis, e foradele concedem toda liberdade.” (Thin, 2006, p.11)
Enquanto na escola“a socialização passa pela aprendizagem de regras, e arelação entre o mestre e o aluno deve se basear em regrasimpessoais ou ‘ suprapessoais’, [...] as disciplinas escolaressão entretecidas pela aprendizagem das regras (regrasgramaticais, regras matemáticas, regras de apresentação etc.)(ibidem, p.9)
Essa é uma das grandes diferenças entre as lógicas socializadoras,
segundo a pesquisa de Thin.
Como as crianças de nossa pesquisa percebem essas diferenças?
Episódio 21: Mas o que pode fazer na escola que em casa não pode? E o quena casa você pode fazer, mas na escola não .
Entrevista 2T1/C5- Brigar.T1/C7-Brigar, pular o muroT1/C10- XingarT1/P1- Você pode xingar em casa?T1/C10- sinaliza que não e riT1/C2- Correr!T1/C1- Correr. É correr na hora que manda ficar quieto.T1/C10- Responder. Responder a professora.T1/P1- Mas você responde sua mãe?T1/C10- sinaliza que nãoT1/C1- De vez em quando
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Há, porém, situações intoleráveis tanto na escola quanto em casa,
como bater no outro, xingar, situações que vão contra o direito alheio, o
direito de ser respeitado.
Episódio 22: Pode xingar em casa?Entrevista 1-T3/P2- E em casa pode xingar?T3/C1 e C2- Não.T3/C1- Isso é proibidoEntrevista 2 -T3/C3,C4 e C5- Não.Entrevista 3-(sinaliza de cabeça baixa que não)T3/P2- Não? Por que?T3/C8- É palavrão!
Xingar na escola não é permitido... “Nem em casa:“ isso é proibido!”
Episódio 23: Pode xingar na escola?Entrevista 1-T3/C1 e C2-Não.T3/C2-Nem em casa.T3/C2-Isso é proibido!Entrevista 2 –T3/C3, C4e C5 -Não.Entrevista 3-T3/C8-_Não.(sinaliza com a cabeça que não)
A diferença, portanto, se dá na postura adotada pela família ou pela
escola, em relação ao que é “proibido”. Enquanto em casa há liberdade desde
que não se extrapole o limite, a escola, trabalha com a compreensão das
regras, busca alcançar a “autonomia” da criança. A escola
“ [...] valoriza a autonomia, entendida como a capacidade de ascrianças se comportarem , por si mesmas, de acordo com asregras da vida escolar e, de modo mais amplo, social. Aautonomia ( forma de autocontrole ) assim concebida e nãoapenas buscada, mas às vezes também esperada pelosprofessores, que gostariam que seus alunos fossem
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autônomos desde o momento em que entram em sua sala deaula.” ( Thin,2006, p.11)
Apesar da escola se propor desenvolver suas práticas de forma a levar
os alunos ao autocontrole nos perguntamos: quais os mecanismos utilizados
pela escola com vistas a subsidiar a construção da autonomia? O que vemos
é a autonomização da regra. Trabalha- se com o intuito de levar os alunos à
incorporação das regras pré- estabelecidas, a aceitação da regra como sendo
necessária para vida em grupo, porém sem questionamentos. Concordamos
com Fernandes quando diz que “as escolas primárias moralizam as crianças
obrigando-as à cópia do adulto normal : obediente, sacrificante e submisso ao
desejo do Outro”(p.147)
Para Piaget, porém, a construção da autonomia se daria a partir da
possibilidade do sujeito perceber a “humanidade” das regras, pondo-se como
sujeito co- construtor desse universo moral. Não seria por obediência à regra,
por suposto, que se conseguiria portanto construir essa autonomia.
Enfim, onde está a diferença entre estas maneiras de socialização?
Conforme Thin (2006), está no tempo de socialização. A família trabalha com o
dia-a- dia, a aprendizagem acontece a partir dos acontecimentos do cotidiano.
O tempo da escola é estruturado, direcionando-o ao máximo para
aprendizagem. Há a preocupação da ocupação contínua, sobretudo das
crianças de classe popular “cabeça vazia, oficina do diabo”. O ócio não é visto
como possibilidade de criação, mas como ausência do espírito de disciplina. É a
possibilidade do surgimento de outras coisas que não a moralidade.
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3.3 Família e escola: um olhar que se cruza
O que pensa a família sobre esta escola? E a escola, o que pensa
destas famílias?
Ao iniciarmos o nosso trabalho de campo, nos deparamos com uma
fala que a nós demonstrou insatisfação por parte da escola em ser hoje um
espaço de todos. A escola durante muito tempo foi espaço destinado a uma
minoria que tinha objetivos e valores similares a esta. No entanto, a
escolarização é direito de toda criança, seja ela branca ou negra, rica ou
pobre. E a visão da escola sobre as crianças de classe popular é uma visão
discriminadora. Como em toda regra tem exceção , não são todos, é claro, que
estão na escola e que não se identificam com o perfil de um bom aluno. Mas
tal preconceito existe e a nós se faz evidente nas falas das coordenadoras.
Em setembro de 2005, quando lamentavam a modificação do alunado deste
colégio, que no ano passados era constituído “ por alunos de classe média, que
tinham acompanhamento familiar”, professoras expressavam uma baixa
expectativa sobre os sujeitos que atendem e suas famílias.
Tal situação não é privilegio brasileiro, segundo Thin, a França nos
anos 90 já percebia alteração na escolaridade. “Alguns autores avaliam que se
passou do discurso de luta contra desigualdades a um discurso de proteção da
sociedade contra uma ameaça vinda de bairros populares, cultural e
economicamente deserdados “ ( Cruz, Paixão e Mello, mimeo).
Como vemos no episódio 24, as crianças, ao serem questionadas
sobre a visão da família, sobre a escola, expressam diferentes respostas: a
mãe que gosta, a mãe que tem suas restrições e a mãe que odeia.
92
Entretanto o que mais nos chamou atenção foi a palavra violência. Na
sociedade atual, violência é um termo que nada qualifica, mas a todos
intimida. Os sujeitos de nossa pesquisa por muitas vezes citaram o termo
violência mostrando-nos que na visão deles esta é uma constante no
cotidiano escolar. Na segunda tarefa realizada, o jogo das regras, as crianças
chegaram a elaborar o seguinte cartão das regras:
Utilizando o termo violência associado à forma negativa, dizem que
não fazer violência merece um prêmio, inserindo tal ação num discurso de
regra.
Episódio 24: a mãe de vocês gostam dessa escola?T1/C3- GostaT1/C7- Mais ou menos... Violência , com arma...( restante da fala não identificada)T1/C9-Mais ou menosT1/C10- Não.T1/C5- A minha odeia! Ela odeia essa escola.T1/C11- Gosta.T1/C6- Gosta.
93
Percebemos então, que o que há é uma expectativa de violência nesta
escola. É algo que parte da instituição através da segurança destinada às
salas de aula, das famílias que reclamam da falta de segurança pra seus
filhos, temendo os bandidos, as drogas, e se repetem na fala das crianças.
Não estamos desconsiderando a preocupação das famílias e da escola, uma
vez que este colégio parece já ter sido alvo da violência e vive sob a ameaça
deste fantasma. Mas temos que considerar que a apropriação do discurso
da violência parece voltar- se sobre as crianças e estas reelaboram o
discurso aplicando-o a práticas que eram consideradas práticas “ infantis” de
molecagem, bagunça, indisciplina mesmo.
Recorremos a La Taille quando este diz que:
“Embora não sejam causa exclusiva da construção dasrepresentações de si, os olhares e juízos alheios desempenhamum papel fundamental. Uma vez que participam, com outrosfatores, da construção dos valores associados àsrepresentações de si, tais juízos não encontram uma “páginaem branco”sobre a qual escrevem e impõem, sem mais , suasaprovações e censuras. Antes, trata- se de um embate entre asimagens que o indivíduo tem de si e olhares judicativosalheios..” (ibidem:71)
Embora encontremos na fala das crianças os discursos da família
reelaborados pelos sujeitos de nossa pesquisa, o episódio a seguir
demonstra,no entanto, que há aqueles que ainda se reconhecem neste
ambiente. Encontramos famílias que “optaram” por permanecer neste
espaço, uma vez que o reconhecem como seu .É a escola como segunda
casa: “minha mãe gosta porque meus primos todos estudam aqui.” Estudar
nesta escola é quase uma tradição.
94
Episódio 25: sua mãe gosta da escola?
Entrevista 1-T3/C1- GostaT3- C2- GostaT3/P2- Do que ela mais gosta na escola? T3/C1- Ela?T3/P2-É. T3/C1-Não sei.T3/P2- Como é que você sabe que ela gosta da escola?T3/C1- Ah ela fala. Ela fala que gosta . Eu pergunto, ela fala de tudo. Que gostade tudo.T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, ela querque a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.T1/P1- Ela acha legal?T1/C11- AchaT1/C6-Porque a minha irmã, minha prima, meus irmãos estuda tudo aqui.
Porém há do outro lado o discurso social que acompanha o pobre e a
escola do pobre : “[...] aqui não tem muita segurança, todo mundo briga toda
hora”. A fala em destaque no episódio 26 nos apresenta como falta de
confiança no papel protetor da escola. A segurança da qual essas crianças nos
falam, diz respeito ao poder de guarda e proteção que a escola deve ter sobre
as crianças. E esse poder é questionado pelas famílias , que percebido pelos
sujeitos de nossa pesquisa, se expressa no discurso destes.
Episódio 26: sua mãe gosta da escola?
Entrevista 2-T3/C3 e C4- sinalizam com a cabeça afirmativamenteT3/C5- A minha odeia.T3/P2- O que a sua mãe fala da escola? (dirigindo-se à C5)T3/C5- Que aqui não tem muita segurança, todo mundo briga toda hora.No ano passado era assim: todo dia tinha uma briga,aí agora também tem.Mas não tem tanta segurança, entra qualquer um, se acontecer coisaerrada a gente fica no prejuízo.T3/P2- A mãe de vocês gosta da escola. Do que ela mais gosta, vocês sabem?T3/C3- A minha mãe gosta porque meus primos todos estudam aqui.( C4 fala por duas vezes com a mão na boca.A pesquisadora pede para repetir e na terceira vez faz gesto de cansaço, irritação.)T3/C4- A minha mãe gosta porque meus primos tão aqui na escola.
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Há ainda a indiferença.
Episódio 27: sua mãe gosta da escola?
Entrevista 3-T3/P2-Ah é? Sua vó gosta da escola?(C8 sinaliza que sim)T3/P2 Gosta?T3/C8- Não sei!T3/P2- Nunca perguntou? (sinaliza positivamente)
No episódio a seguir, percebemos situações que exemplificam a
“violência” vivenciada nesta escola: “garoto que fica batendo nas meninas”, a
falta de respeito por parte dos alunos, que precisam ficar na escola, afinal a
escola é a possibilidade de uma vida melhor.
Podemos fazer uma analogia com a pesquisa de Daniel Thin na
França, quando este nos conta que
“nos mínimos atos de resistência ao esforço socializador daescola – como a recusa a retirar um boné – passa-se a ler osindícios de uma futura possível ação violenta em nível socialmais amplo. A classe popular, alvo do temor, passa a sercolocada em suspeição no interior da instituição que tem comoobjetivo republicano a democratização das relações. Podemosdizer que é uma estrutura de pensamento perversa em suaorigem, nos encaminhamentos que assume e nasconseqüências sociais e políticas que tomam forma a partir desua naturalização. “ ( Paixão, Cruz e Mello, mimeo, p.13)
Episódio 28: Tem alguma coisa que ela não gosta?
Entrevista 1-T3/C1-ah hamT3/P2- O quê?T3/C1-Garoto que fica batendo bem nas meninas.T3/C2-É que os garotos ficam batendo na gente. Que a gente xinga as professoras.E ela também vive enchendo o meu saco dizendo que se eu não estudar , eu nãovou ter um trabalho, um trabalho direito.
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O outro grupo sinaliza como desagrado, a postura da diretora, é a
criança sendo desrespeitada...
Episódio 29: Tem alguma coisa que ela não gosta?
Entrevista 2-T3/C5- A diretoraT3/C4- A diretoraT3/P2- A diretora? Por que? (direcionando para C4 que sinaliza com a cabeçanegativamente)T3/C5- Porque ela não fala com educação com a gente. Ela não dá boa tarde.Ficana sala: Oh fulano , quero saber porque você não tem isso. Aquela arrogância! (Falaempinando o nariz)T3/P2- E você dirigindo- se para (C4), sabe se tem alguma coisa que a sua mãenão gosta?T3/C4 –Sei . A diretora.T3/P2- A diretora também. Por que?T3/C4- Não sei.
A figura de autoridade deve acolher as famílias, essa crítica expressa
nas falas das crianças revela a voz familiar e é elemento de transgressão da
autoridade pela desqualificação das famílias, a criança formula que a autoridade
é arrogante.
3.3.1 Drogas e Violência
No episódio 30, vemos novamente a questão da violência , porém
agora atrelada a uma outra idéia: as drogas.
Episódio 30: Por que não gostam?
T1/C9- Muita violênciaT1/P1- Dentro da escola? Entre as crianças? E os adultos?T1/C9- Todos eles?T1/P1- E os professores?T1/C9- Não.T1/P1- Ta falando dos meninos mais velhos?T1/C9- ÉT1/C10- Sempre na hora da saída minha mãe vê briga...T1/C10-Fala que tem muita briga, muita violênciaT1/C5- Eu não sei porque é a maior escola da América Latina... e não tem alunos dequalidade. A diretora... tinha que ser para cada série uma qualidade. As brigas, asarmas, as drogas. (trechos não identificados)
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Na fala em destaque no episódio anterior, percebemos no discurso da
criança, a expectativa familiar em relação a esta escola, que possui uma
tradição, um porte, um nome, mas que não tem alunos à sua altura. É o
discurso da família, da escola, e da criança que se apropriou deste, sequer
percebendo que é dentre outros, sujeito do qual se fala.
Num outro momento durante o grupo focal propomos às crianças que
elas inventassem as regras da escola , qualquer uma que elas quisessem
e entre elas surgiu novamente a questão das drogas como vemos no episódio
a seguir.
Episódio31: Se a gente fosse inventar as regras dessa escolaT1/C2- Eu ia inventar não ver TVT1/C5- A diretora não mandar na gente.T1/C1- Não ter brigaT1/C9- Não ter violênciaT1/C8- Não ter confusãoT1/C10-Não ter bagunçaT1/C9-Não responder a tiaT1/C5- Não ter venda de drogas aqui na escola.T1/C7- Porque tem ( sinaliza com a cabeça)
Mais uma vez, observamos o discurso de apropriação da escola
representando-a de forma ambivalente: lugar de perigo e lugar de ascenção
social. Além da formulação da escola e suas regras na negação, na interdição.
Falar o que se pode fazer na escola : “isso é difícil!”. O que sabem é o que
“não” pode fazer na escola.
3.3.2 Violência ao redor da escola
Questionamos sobre a presença das drogas na escola e o que
obtivemos como resposta demonstra que a “violência da escola” citada
pelas crianças está na verdade na ordem do discurso, como podemos
perceber no episódio a seguir.
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Episódio 32: Venda de drogas dentro da escola ou do lado de fora?T1/C5- Um dia eu vi isso na rua, fiquei desesperada...T1/P1-- do lado de fora ?T1/C5 – sinaliza afirmativamenteT1/C1- (conta uma história não identificada)T1/C2- (- conta outra história também não identificada)T1/C8- (também conta uma história que não identificamos, mas é sobre o lugaronde ela mora)T1/P1- Quem contou essas histórias para vocês?T1/C8- Minha mãe T1/C2- Eu vejo no jornalT1/C5- (fala não identificada, ma o assunto é sobre drogas)T1/C1- Depois que eu ouvi isso. Eu disse: mãe, eu quero mudar de escola. Euquero ir pra (nome de outra escola- não identificado). Lá xinga mais, bate mais.Então eu quero ir pra escola da minha tia...
3.3.3 Violência fora da escola
Com a intenção de apreender o sentido da palavra violência na
lógica da criança insistimos com o tema inserindo outro contexto.
Episódio 33: E onde vocês moram, tem violência lá?Entrevista 1-T3/C1-Tem.T3/C2- Bastante. Mas agora que botaram uma cabine de polícia lá não tem mais não.T3/P2- E quem faz violência lá?T3/C2- Os bandidos.T3/P2- Os bandidos ?T3/C2- Traficante e tem vez até polícia.T3/C1- Com troca de tiro. ( demonstra com as mãos)T3/P2- - E eles são moradores de lá. Eles moram lá?T3/C2- O que? Os traficantes? T3/P2- – É.T3/C2- Ah ham. Teve uma vez que eles tavam na laje da minha casa.T3/C1- Eu conheço bem um. Mas, a polícia foi lá e perguntou por ele e a gente falavaque não conhecia. ( sinaliza negativamente com o dedo)
99
Ao mesmo tempo, que essas crianças nos dizem que, no lugar onde
moram há trocas de tiros dizem-nos logo após, que nunca viram uma cena
de violência.
Episódio 34: Vocês já viram alguma cena de violência?Entrevista1-T3/C1 e C2-... não.T3/P2-Não?T3/C2- Lá onde a gente mora não.
No episódio seguinte uma das crianças entrevistadas nos diz que :
“ escuta os tiros e mais nada...”e o que mais nos chama atenção é que
esta mesma criança no episódio seguinte ao perguntarmos se eles teriam
sido testemunhas de alguma cena violenta nos diz que “ só na escola”.
Episódio 35: E onde vocês moram, tem violência lá?Entrevista- 2(C3 e C5 sinalizam com as mãos, indicando mais ou menos)T3/P2- Mais ou menos?T3/C5- escuta os tiros e mais nada...T3/P2- Quem faz a violência?T3/C5- Os bandidos.
Que violência é esta que existe nesta escola?
Episódio 36: Vocês já viram alguma cena de violência?Entrevista 2-T3/C5- Não.T3?C3- Eu já.T3/C5- Só na escola!T3/P2- Pode me contar? ( direciona para Joseane)T3/C3- Eu não lembro!T3/P2-Não lembra?T3/C4-Eu já ! ( levanta o dedo para falar) Eu vi uma pessoa perder o pescoço naminha frente.
100
Podemos perceber nos episódios anteriores que estas crianças
moram num lugar onde convivem com a violência: “troca de tiros”, uma
pessoa que perde a cabeça na frente da criança, porém continuam dizendo
que a escola é um lugar violento. Observemos ainda os próximos episódios:
Episódio 38: Violência com a criançaT3/P2- Você pode me contar alguma cena de violência que você tenha visto, semme falar nome?T3/C8- Violência? Tem uma violência comigo. (abaixa a cabeça)T3/P2-- Violência com você. Então me conta como é que foi essa violência?T3/C8- Sempre quando eu venho pro colégio, tem uma menina que chama Fabiana e fica implicando comigo toda hora. Aí a mãe dela conversou com a minha mãe.. Elas conversaram. Aí quando eu tô sozinha fica me dando dedão, xingando... Aí,uma vez ela puxou o meu cabelo aí nós saímos no tapa. Eu dei tapa nela. Eu deisoco nela... (esconde o rosto)
Percebemos que o termo violência foi re- significado por estas crianças
que estão utilizando este termo para denominarem , aqui, “brigas de
crianças”.
3.3.4 Violência no IEPIC
Campo da pesquisa o IEPIC é o cenário de grande parte de situações
até aqui relatadas, para sair deste lugar vago da violência como discurso,
perguntamos: tem violência no IEPIC? E mais: conte- nos uma cena .
Episódio 37: E onde você mora, tem violência láEntrevista 3-T3/C8- TemT3/P2-- Quem é que faz a violência lá?T3/C8- ah tia! Não vou falar o nome não.T3/P2-- Não precisa falar o nome .T3/C8-alguns meninos .T3/P2-- Alguns meninos que moram lá?T3/C8- Algumas meninasT3/P2- que moram lá?T3/C8- É
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Episódio 39: Tem violência no IEPIC?Entrevista 1-T3/C1 e C2- Existe! T3/C1 e C2 - BastanteT3/P2- Quem faz violência no IEPIC?T3/C1- Todo mundo.T3/P2– Você concorda?T3/C2- Todo mundo também.T3/P2 - Todo mudo? Me conta assim, uma história de violência aqui no IEPIC, quevocês saibam.T3/C1-Na hora da saída, bem um garoto bem tava batendo bem no outro garoto limpinho. Aí o garoto bem não agüentava e ele disse: para, para, aí ele sentou bem e ficou assim.( tampou os olhos com as mãos e abaixou a cabeça no colo ).Aí bem o negócio bem foi lá . Ele bem foi lá e deu um chute naquele lugar dele.T3/P2- E você, lembra de outra história?T3/C2- Eu não sei se essa história é verdade, mas falaram que um dia o garoto brigoutanto que chegou a arrancar um pedaço da orelha dele. A orelha não, o dedo. Quebrou odedo dele. Não sei se é verdade não.T3/P2- Você não viu?T3/C2- Não vi. Mas tão falando.T3/P2 –Você lembra de alguma coisa que você tenha visto, que você considere violento?T3/C1- Ela viu isso que eu falei , junto comigo. ( apontando para C2) (C2sinalizapositivamente com a cabeça)
O que constatamos aqui novamente é uma “ briga de criança”, que
ainda que seja ou não violenta, tem como sujeito a criança. Além das
histórias que se contam ...
Episódio 40: Tem violência no IEPIC?Entrevista 2T3/C3,C4 e C5 sinalizam positivamenteT3/C5- Tem . Pô, muita!T3/P2- Quem faz a violência no IEPIC?T3/C3, C4 e C5-- O s alunosT3/P2- Os alunos? Que tipo de violência (referindo- se a C4)você pode me explicar alguma coisa que você tenha visto de violenta no IEPIC?T3/C4- Dar pedala Robinho, ficar batendo nos outros...(A pesquisadora dirige- se para C3 que sinaliza com a cabeça negativamente)T3/P2-Você nunca viu nenhuma situação de violência?T3/C3- Já.T3/P2- Então, me conta uma.T3/C3- Briga ...Das garotasT3/P2-- As garotas brigam? (C3 sinaliza que sim)T3/C5- Elas brigam muito... Uma puxa o cabelo da outra...T3/P2-- Vocês brigam?T3/C5- Um dia só!
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Puxar cabelo, dar “pedala Robinho”, podem ser comparados à troca
de tiros ?
Episódio 41: Tem violência no IEPIC?Entrevista 3-T3/C8- Muita. (sinaliza com as mãos)T3/P2-- Muita? Quem faz a violência no IEPICT3/C8- Os alunos, as pessoas de fora, só.T3/P2- Me conta uma história de violência que você tenha visto aqui no IEPIC. Você lembra de alguma coisa que você já viu?Então me conta. Como é que foi? (Abaixa a cabeça, pensa)T3/C8-- Essa história, história aconteceu na quinta- feira passada.T3/P2-O que aconteceu quinta- feira passada aqui?T3/C8-- Um menino aqui, um menino aqui. Eles estão brincando aí, ficou um xingando o outro,xingando o outro. Aí o outro foi pra cima do outro,o outro foi pra cima do outro. Um pra cima do outro, aí começou a briga. Aí veio adiretora e falou : Anda! Vamos pra sala! Aí um menino falou: não tia, ele fica brigandocomigo. Aí ele pegou o menino levou ele, jogou no chão e um deu tapa no outro.
O que vemos mais uma vez é a re- significação do discurso da
violência social para o ambiente “escola pública” e então nos perguntamos:
como esta criança se vê e se pensa neste contexto sócio- discursivo?
3.4 A visão infantil sobre autoridade
“Ele se achava na região dos asteróides 325, 326, 327, 328329 e 330. Começou, pois, a visitá- los, para procurar umaocupação e se instruir.O primeiro era habitado por um rei. Orei sentava-se, vestido de púrpura e arminho, num trono muitosimples, posto que majestoso.”(trecho retirado do livro: “OPequeno Príncipe”, p.37)
O Pequeno Príncipe, ao sair em busca do conhecimento como
fazem nossas crianças depara-se imediatamente com uma figura de
autoridade: o rei. Na escola e na família as crianças convivem com figuras de
autoridade, em ambos os casos com grande peso na formação delas, não
importa o tamanho do trono, o que importa é fazer de seu reino majestoso.
103
De acordo com Fernandes,
“o educador torna- se prisioneiro do Outro, só é ativo como eenquanto porta- voz do padrão da normalidade do mundoadulto. Não é como sujeito que ele encontra a criança, mascomo padre, juiz, rei, governante, hipnotizador, colonizador,segundo o repertório que o Outro apresenta e obriga adramatizar. Comprometido com o fantasma, seu lugar nacena oscila entre o sedutor - sei o que lhe falta, tenho o quelhe falta, mire- se nesse espelho (do Outro)[...] e o censor –sua vigilância contínua avalia os desvios e retifica a rotagraças a punições cuja visada é a vergonha e a impotência”.(1994,p. 149)
Este é o papel da autoridade: representar o Outro.
3.4.1 Figuras de autoridade
No episódio a seguir vemos a criança apontando as figuras que
representam tal papel, seja em casa ou na escola. Aqui discutem o poder delas:
quem é mais bravo? Quem pode mais?
Episódio 42: Quem é mais brava a mãe ou a professora?T1/C5- A professora!T1/C1- A mãeT1/C2- A minha mãe! (levantando o dedo)T1/C1- A professora até que é boazinhaT1/C8- A minha mãe é mais brava.T1/C5- A professora não é brava, mas as estagiárias...T1/C7- É. (restante da fala não identificada)T1/C5- O pai é mais bravo.T1/P1- O pai é mais bravo?T1/C9- A mãe !T1/C5-- Não. O paiT1/P1- Quem é mais bravo: os pais ou a professora ?T1/G- os paisT1/C2- O meu pai.
104
“Ser mais bravo”, pode indicar uma ação sancionadora mais
diretamente ligada ao corpo, ou um xingamento, meios estes utilizados pela
família, diferente da escola que se utiliza, de punições simbólicas.
Independente do lugar que se exerce este “poder” a autoridade
desempenha a mesma função e utiliza para isto meios distintos, mas cujos
objetivos são os mesmos. O que diferencia os pais da professora é a forma do
exercício da autoridade. Enquanto a escola busca o autocontrole , a família
trabalha na imposição de limites e inibição de comportamentos, o que segundo
Daniel Thin, faz com que “os pais sejam com freqüência percebidos pelos
professores como fracos do ponto de vista da autoridade que exercem sobre
suas crianças (ao mesmo tempo ‘ muito rígidos’ e ‘ muito permissivos’)”.
(2006,p.12)
Escola e família trabalham com prêmios e punições diferentes. Embora
nem sempre a escola concorde com os métodos de disciplina da família , que
muitas das vezes envolvem agressões físicas, recorrem a elas quando sua
autoridade está em xeque.
Observemos o episódio a seguir que utilizamos na relação família e
escola, e o repetimos aqui com o intuito de reforçar a situação da professora que
busca apoio da família através da punição e ao mesmo tempo como nos
mostrou Fernandes (1994) “visando a vergonha e a impotência da criança.”
105
Episódio 43: Sua professora gosta da sua família?Entrevista 1-T3/C2- Ela nem conhece.T3/C1- A minha também nem conhece.T3/C1- A minha não conhece a minha mãe.T3/P2- É? Mas o que ela diz assim, ela fala alguma coisa sobre a sua família, sobrea sua casa, sobre as coisas que vem da sua casa? (C2 sinaliza que sim)Fala? O que ela fala?T3/C2- É. Ela vive falando que vai encontrar com a nossa mãe, que vai falar oque a gente ta aprontando na sala de aula. Que queria muito conhecer a minhamãe. Até ontem mesmo. Ontem eu tinha falado que a minha mãe tava grávida aí ontem ela já perguntouse a minha mãe já sabia o que era o bebê. Eu falei que era homem.E é.T3/C1- Ela não conhece minha mãe, ela não conhece... Eu acho que ela conhecemeu irmão sim. Mas , eu não sei. É que ... a minha professora, se a gente apronta, elavai lá, quando vê a mãe fala pra ela tudo,minha mãe bota de castigo.T3/P2- Mas, ela gosta da sua mãe?T3/C1- Gosta quando ela bota a gente de castigo.Fabiana- O que ela fala? Sua professora fala o que sobre isso? Quando ela ficasabendo , quando ela fez uma queixa e a sua mãe te botou de castigo? O que elafala?T3/C1- Ah, ela fala. Poxa, a Thaynara e a Thayane ,eu vou imitar ela, a Thaynara e aThayane ta hor –rí- vel ! Elas estão conversando na hora da aula, na hora do recreioelas sobem atrasadas e ainda elas ficam bem de besteirinha bem na sala,conversando...
Yves de La Taille desenvolveu um trabalho intitulado “Vergonha: a ferida
moral” no qual apresenta a evolução do sentimento de vergonha e a sua
progressiva associação com a moral, segundo ele, este está ligado ao
sentimento de auto- respeito , necessário à honra, motivação essencial ao agir
moral, condição para a expressão do respeito pelas outras pessoas.
E o que percebemos na escola é que a exposição da criança,
fazendo-a sentir vergonha é uma tática. De acordo com Fernandes (1994),
“´[...] o sistema de penalidades escolares é o veículo da inscrição interna da
linguagem do Outro:a censura se transforma em vergonha e a punição em culpa.”
(p. 165) Estamos, portanto, falando de sentimentos morais no processo de
socialização.
106
Quando nos referimos ao “ sentimento moral” , o fazemos de acordo
com Yves de La Taille, que ao citar a personalidade moral o define como
sentimentos que a pessoa experimenta e a leva à uma virtude.
3.4.2 Autoridade e Afeto
Segundo Piaget (1988) o respeito é ”um sentimento misto,[...] composto
simultaneamente de afeição e de temor [...] cuja importância excepcional na
formação ou no exercício da consciência moral foi ressaltada por todos os
moralistas.” (p. 64) Ou seja, o respeito se dá através de um misto do amor e
do medo. O que busca a autoridade senão o respeito? Fernandes (1995) nos
diz que a autoridade no papel de “colonizador não é um domesticador que
obriga externamente a criança,[...] seu desejo é obrigá-la internamente. (p. 152)
É o que Durkheim chamou de “ idéia sugerida”.
Não obrigamos o outro, mas buscamos seduzi-lo, a tarefa é fazê-lo
desejar . E na escola a figura de autoridade que melhor desempenha este
papel é o professor. Aquele que estabelece com a criança o laço afetivo.
Não é raro entre professores ouvirmos queixas de que os alunos de outra
professora não respeitam as demais. Ora o respeito se dá por duas vias: o
“afeto” e o “medo” e na escola fazemos isto muito bem. Observemos o
episódio a seguir:
107
Episódio43: Vocês acham que as professoras ou a professora gostam de vocês?T1/C7- Eu acho (sinalizando também com a cabeça)T1/C3- sinaliza que simT1/C8- neste momento, não responde, nem demonstra reação, enquanto todos falamjuntosT1/C10- a professora não gosta de mim, porque ela passa muito dever.T1/C5- As estagiárias dá pra olhar no olhar delas e ver que elas não gostam da genteT1/P1- Por que?T1/C5- Sei lá, elas maltratam a genteT1/P1- A professora, não?T1/C5- Não. As estagiárias.T1/C5- Elas querem jogar nossas coisas fora.T1/C8- abaixa a cabeça, tampa o rosto e diz: a professora ela não gosta dos alunos que não respeitam ela
Duas situações aqui a nós demonstram relevância: as estagiárias que
maltratam a gente, “dá pra olhar no olhar delas que elas não gostam da
gente” a professora “não. As estagiárias” . As professoras só querem o bem de
seus alunos. Quando não gosta de algum aluno, não gosta porque ele não a
respeita. A culpa é do aluno. Ele é que não merece o seu afeto.
Em uma de nossas visitas ao IEPIC, testemunhamos uma cena que
confirma a diferença da autoridade que encarna o afeto e aquela que
encarna o medo e que relatamos a seguir:
Estávamos no corredor à espera de Filipe, inspetor de disciplina do
Colégio, o único naquele prédio. Parados no corredor, bem em frente à sala
dos professores que estava vazia, e à sala do Filipe que segundo os sujeitos
desta pesquisa , é denominada “sala do terror”, quando ouvimos o diálogo que
lá ocorria e assistimos parte do acontecimento – o que a visão do corredor
nos possibilitou enxergar.
Sentado numa cadeira atrás de uma mesa estava Filipe que
repreendia uma aluna de mais ou menos 9 anos, por ter desobedecido às
regras da sala de aula. Do outro lado da mesa estava a aluna sentada numa
cadeira, ao seu lado abaixada , estava a professora da turma consolando-a,
inclusive acariciando-a enquanto esta chorava ao ouvir a bronca de Filipe.
108
É a professora companheira que só levou o caso ao inspetor, pois era
necessário. Aquela bronca era importante para a menina. Era o seu dever! E
Filipe encarna o terror. É ele quem briga, é cruel . Junto com as estagiárias
demonstra não gostar das crianças.
Episódio 44: Vocês acham que as professoras ou a professora gostam devocês?T1/C10- Ela gosta de mim porque ela passa muito dever.T1/P1- Ah! Ela gosta.T1/C10- Ela não gosta de mim porque ela passa muito dever.T1/P1- Gosta ou não gosta?T1/C10- Gosta.
O que percebemos aqui é a contradição. Pelas nossas observações,
nos parece que C10 “brinca” com a contradição. A professora gosta de mim.
Sei disso! No entanto, percebe o dever como castigo. Se ela gosta de mim, por
que passa tanto dever?
3.4.3 Autoridade e as regras
“_ Ah ! Eis um súdito, exclamou o rei ao dar com oprincipezinho.[...] como estava cansado, bocejou._É contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse omonarca. Eu o proíbo ._ Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz umalonga viagem e não dormi ainda..._ Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos quenão vejo ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridadepara mim. Vamos, boceja! É uma ordem!_ Isso me intimida... eu não posso mais... disse oprincipezinho todo vermelho._ Hum! Hum ! respondeu o rei. Então ... então eu te ordenoora bocejares e ora...Ele gaguejava um pouco e parecia vexado.”( trecho retiradolivro: “O Pequeno Príncipe”, p.37 - 38)
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Episódio 45: Quem que vocês acham que inventou essas coisas: o que deve fazer,o que não deve fazer? O que pode fazer? O que não pode fazer?
T1/C9-- A diretora.( falam todos juntos, não identificamos)T1/C10- Fazer bagunça, conversar, brincar.T1/P1- Mas quem inventou esta regra? O Marlon falou assim: não pode responder aprofessora, não é? Quem inventou? Quem disse isso: não pode xingar a professora?T1/C2- Minha mãe que disse.T1/C6- Nossa mãeT1/C9-- Nossa professora, nossa tia
Quem inventou estas regras? A diretora, a autoridade maior.
Episódio : 46 Quem inventou as regras da sala?T1/C2- A professoraT1/C1- Não os alunos que escreveramT1/C2- Mas a professora que dita as regras pra gente escrever.T1/C1-É.
O poder da autoridade reside na obediência que os “súditos” tem de
suas regras. Uma regra que não é respeitada por ninguém não tem validade.
Será que somos nós que devemos aceitar e interiorizar as regras ou são
elas que devem ser razoáveis para que todos as aceitem?
“Porque o rei fazia questão fechada que sua autoridadefosse respeitada. Não tolerava desobediência. Era ummonarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava ordensrazoáveis. Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general setransformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, aculpa não seria do general, seria minha [...]É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar,replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Seordenares a teu povo que se lance ao mar, farão todosrevolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porqueminhas ordens são razoáveis.” ( trecho retirado livro: “OPequeno Príncipe”, p 38- 40)
110
A autoridade só é assim reconhecida se encarnar as regras. Segundo
Durkheim (1984),”o que a idéia de regra encerra, independente da idéia de
regularidade. É a noção de autoridade”. (p. 128)
Como nos disse Fernandes (1994) o professor é o porta- voz,“o mestre como pessoa particular que aplica o castigo, maslimita- se a ser o representante de regras escritas gerais,supra- pessoais. Ele mesmo deve se submeter à ‘ sentenças’ ,impondo- se o silêncio, mostrando em cada momento oexemplo daquele que cumpre as ‘ regras’”. (Vicent, Lahire eThin, 2001, p.31)
3.4.4 Autoridade e sanções
Devemos sempre atrelar a autoridade às sanções? Se à autoridade
cabe representar as regras, poderíamos dizer que a sanção: prêmio ou
punição, é o que a regula? Apresentaremos a seguir as punições da casa e da
escola. Como estes lugares se distanciam e se aproximam a partir das
sanções aplicadas pelas “autoridades“ na visão da criança .
3.4.4.1 As punições de casa
De acordo com Thin (2006) , a escola e a família trabalham com
punições diferentes, enquanto a escola trabalha com as regras e tem suas
sanções regimentadas, a casa trabalha com os limites. A transgressão
destes se apresentam como briga .
Episódio 47: O que acontece se você xingar em casa?
Entrevista 1-T3/C2- No primeiro dia eu fico sem dente.(as duas se olham e riem)T3/C1- No primeiro dia eu fico engessada.
111
Se estes castigos de fato acontecem ou permanecem na ordem do
discurso, o que nos interessa, é que o discurso destas crianças, nos revelam
qual o significado das punições domésticas para elas.
Episódio 49: O que acontece se você xingar em casa?Entrevista 3-T3/C8- Minha vó bota pimenta na boca, dá um tapa na boca e bota ovoquente.T3/P2- O quê? Não escutei.T3/C8-- Um ovo cozido na boca.
Este foi um momento que nos fez calar, talvez tenhamos sentido a
presença do ovo cozido em nossa boca. Para ajudar- nos a compreender o
significado da situação recontamos um trecho do texto “NEGRINHA” de
Monteiro Lobato.
Negrinha era uma menina órfã, filha de mãe escrava, vivia sempre
escondida pela casa da patroa, uma senhora, mestra na arte de judiar de
crianças. E foram estas as personagens da história do ovo quente, relatada
a seguir:
Episódio 48: O que acontece se você xingar em casa?
Entrevista 2-T3/C3- Não.T3/P2- O que acontece se xingar em casa?T3/C3- a gente apanha.T3/P2- Apanha?T3/C5-- A mãe fala que vai botar pimenta na nossa boca...T3/C4- Fica de castigo.
112
“ Uma criada nova furtara do prato de Negrinha – coisa de rir –um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. Acriança não sofreou a revolta – atirou-lhe um dos nomes comque a mimoseavam todos os dias.– "Peste?" Espere aí! Você vai ver quem é peste - e foi contar ocaso à patroa.[...]– Eu curo ela! – disse, e desentalando do trono as banhas foipara a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.– Traga um ovo.Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e demãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de péuns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam amísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardavatrêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou aponto, a boa senhora chamou:– Venha cá!Negrinha aproximou-se.– Abra a boca!Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. Apatroa, então, com uma colher, tirou da água "pulando" o ovo ezás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse,suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse.Negrinha urrou surdamente, pelo nariz.Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceberaquilo. Depois:
_Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?“
O ovo quente é uma tradição brasileira de castigo, que acompanha a
história dos escravos. “Negrinha” assim como C8 são destinatárias dessas
práticas.
Conforme Thin (2006), a autoridade da família de classe popular “se
manifesta sob a forma de sanções contextualizadas, isto é, sanções aplicadas
diretamente ao ato repreensível ou reprovado, e que têm como objetivo primeiro
interromper o ato.” (p.11)
113
3.4.4.2 As punições da escola
Ainda na busca de compreender o significado da punição merecida
para quem xinga em casa, trazemos a fala desta criança sobre a punição
da escola.
Episódio 50: O que acontece se alguém xingar na escola?
Entrevista 3-(abaixa a cabeça, esconde o rosto)T3/C8- Não acontece nada tia !T3/P2-Nada? E por que não pode, então?T3/C8-- Por que é um palavrão.T3/P2- Não vai acontecer nada com quem xingar?T3/C8- Vai tomar uma suspensãoT3/P2 – Ah então acontece alguma coisa. Acontece?T3/C8- Acontece
Ora para esta criança que vive sob a ameaça da dor da tortura
física, ainda que tenha ficado somente na ameaça - disso não sabemos - o
simbólico perde sua validade e então banaliza: “não acontece nada”. O que é
uma suspensão comparada com um ovo fervendo dentro da boca?
De acordo com Fernandes (1994),
“a eficácia da pena depende da administração racional daspunições. Ela deve parecer respeitável e não absurda, [...] Épor isso que a punição ‘ só mantém toda a sua virtude quandopermanece no estado de ameaça’ (E.M.,p. 166).Em sumaquanto mais se ascende na escala das punições, tantomaior sua ineficácia.”(p. 167)
Observemos os episódios seguintes:
114
Episódio 2: O que acontece se alguém xingar na escola?Entrevista 1-T3/C1- Manda pra diretoria.T3/C2- Leva suspensão, vai pra sala da diretora.T3/C1-É ! Vai pra sala mais horrível do mundo (fala tampando a boca, olhandopara a amiga)Entrevista 2-T3/C3- SuspensoT3/C5-Vai pra sala do FilipeT3/C4- ExpulsoT3/P2- Na sala do Filipe...T3/C5- Leva uma suspensão.
A suspensão e a expulsão são punições da ordem do simbólico. O
que elas representam é o afastamento da criança do ambiente escolar, a
perda do direito à escola. Para estas crianças cuja escola é vista como
possibilidade de uma vida melhor, estarem na escola não é visto como um
direito, mas como quase uma oportunidade, tornando a sala do Filipe, a
sala do terror, a “sala mais horrível do mundo”...
Episódio 53: O que é sala do Felipe?
T1/C6- É aquele homem lá de óculos.T1/C7- Ele não usa óculosT1/C8- Ele usa simT1/C2- É um homem que busca a gente lá em baixo.T1/G-todos falam juntos. Não conseguimos identificarT1/C1- Ele vai lá na minha sala e fala pro meu primo que é da minha sala. Fala assim praum monte de pessoa: vem você! Vem você! Vem você! (aponta com o dedo imitando a situação). Vai lá em baixo fica falando... E aí quando agente quer fazer xixi que a gente sobe de volta, ele fala para ir todo mundo pro banheirode baixo, chega lá ta trancado.T1/C8- fala não identificadaT1/G- (Falam todos juntos e não identificamos as falas)(T1/C1 gesticula com os braços, parece estar falando sobre brigas, percebemospalavras soltas)T1/C1- Bate aqui, bate aqui, bate aqui.T1/C5- E a diretora não faz nada só no ar condicionado sentada.T1/C5- A diretora... parece que ela fica lá no ar condicionado... só isso
No entanto, ao mesmo tempo, que temem à autoridade do Filipe, que
não é a autoridade maior da escola, atacam a autoridade da diretora como
115
vemos no episódio acima quando a criança diz “E a diretora não faz nada só no
ar condicionado sentada.”
Ao compararmos a autoridade doméstica com a autoridade escolar,
percebemos a criança demarcando a diferença:a escola pune quando o aluno
não compreende a diferença entre casa e escola.
Episódio54: Quem coloca mais de castigo os pais ou as professoras?T1/Cnid-Minha mãe (criança não identificada)T1/C10- A professoraT1/C1- Meu pai.T1/C5- A gente confunde a nossa casa com a escola.
É o sujeito justificando a sanção como merecedora pela criança
que não percebe tal diferença. Quem é que demarca a diferença entre a
casa e a escola?
Episódio 55: Quem é que não deixa trazer brinquedo, ter brinquedo na escola?T/3/C1- A professora.T3/P2- E se trouxer , o que acontece?T3/C2- Ela pegaT3/C1- A tia pega! E fica com ela por um mês inteiro e depois no final do ano ela entrega.(sinaliza com a mão ...)T3/C2- Final do ano não. Final do mês.T3/C1- É mesmo.
É a professora que não deixa trazer brinquedo. É a professora que
sinaliza “parece que tá em casa. Tá na sala de aula”, ou seja, a autoridade
escolar cobrando o cumprimento das regras
116
Episódio 56: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 2-T3/C5- – Ficar mais relaxado em casa. Na escola não pode.T3/P2–Como assim relaxado?T3/C5- Ah , descansar assim... E na sala não dá.T3/P2- Por que não dá?T3/C5-Porque a professora fala: parece que ta em casa. Ta na sala de aula!T3/C4- Na sala ao pode fazer nada.T3/P2- É. O que pode fazer me casa que não pode fazer na escola?T3/C4-Brincar.T3/P2- Brincar? Só isso? Na escola não pode brincar?T3/C4-Só no recreio mesmo.T3/P2- E você? (direcionando para C3)T3/C3- Não sei.T3/P2-Não sabe? O que você costuma fazer em casa que você não faz na escola?T3/CCC3- Brincar.
O que percebemos nos episódios descritos sobre a autoridade e
sanções é que cada uma delas representam as regras do seu contexto: na
escola é o simbólico que pune utilizando castigos “morais” - a exposição do
aluno , levando-o ao sentimento de vergonha ou a aceitação da culpa, e a
família de classe popular utilizando- se de castigos corporais.
3.5 Universo Socializador da escola
A escola como desejava Durkheim é o ambiente moralizador por
excelência . Sua função está intimamente ligada ao processo de socialização.
Queremos adentrar a lógica infantil e conhecer pelos olhos da criança o
papel da escola.
117
3.5.1 Ações desejadas
Episódio 57: O que as professoras gostam que vocês façam?T1/C5- Dever.T1/G-Dever de casa, passar de ano, aprender,T1/C2--dever, dever, dever...DesenharT1/C9- ObedecerT1/C6- Não fazer bagunça, não gritar.T1/C2- quando a gente desenha pra ela.T1/C10- Faz o dever de casa.T1/C7-. Respeito
Estas são segundo as crianças ações desejadas pela escola
representada pela professora. Como podemos observar no episódio a seguir
estas se repetem.
Episódio 58: coisas muito legais que a gente pode fazer na escolaque seja muito legal.
T2/C5- Você passou na matéria...T2/C8- Você é inteligenteT2/C4-Passar de ano.T2/C8- Você é bom aluno.T2/P1-O que é ser bom aluno?T2/C5-- Respeitar a professoraT2/P1- Então põe aí. Você respeitou a professora.T2/C8- Respeita tia! Respeitou não, você respeitaT2/C2- Não jogar lixo no mar. ( se reportando a uns cartazes que estavam presos naparede no fim da sala)T2/P1- Na escola.T2/C2- Mas não pode jogar lixo no mar.T2/P1- Eu sei, mas não jogar lixo no mar. Tem mar no IEPIC?
Episódio 59:– O que a gente pode fazer de bom ?T2/C6-Não jogar lixo no chão.T2/C9- Respeitar a estagiária.
Relevante se faz destacar a regra enquanto proibição. Solicitamos que
as crianças dissessem –nos “coisas muito legais ” de se fazer na escola e
118
o que nos responderam? Entre outras, não jogar lixo no chão, por que não
dizer jogar o lixo na lixeira?
Episódio 60:– O que mais a gente faz na escola...T2/C9-- Você não fazer violênciaT2/P1- Não fazer violência?T2/C2- Você não...T2/C1- (fala não identificada)T2/C5- Você não comeu chiclete dentro da sala de aula.T2/P1-Peraí. Olha só. É legal não comer chiclete? Você não comeuchicletedentro da sala de aula. É isso?T2/C5-ÉT2/P1- Ou você não faz violência?
Não comer chiclete na sala de aula, não fazer violência... É a regra
descrita pelo negativo. É a força da punição!
Episódio 61: O que é respeitar ela?
T1/C8- Não responder ela. RespeitoT1/C5-Não fazer bagunça!
Dentre as ações desejadas não fica dúvida que a mais importante
é respeitar a professora. No episódio, sobre as “coisas muito legais” de se
fazer na escola, a criança afirma que ser bom aluno é “respeitar a
professora.” E logo após corrige: “ respeita tia! Respeitou não, você respeita”. Não
pode ser um fato isolado, tem que ser contínuo, desrespeitar a professora é
algo quase imperdoável.
119
Bom aluno é aquele que corresponde às expectativas da
professora. Eis algumas falas das professoras, quando questionamos os
critérios por elas escolhidos, denominando os sujeitos da pesquisa como
bom aluno:
1- “Faz as atividades com muita rapidez. É esperta. Faz mais
exercícios do que qualquer um outro da turma.”
2- “Sempre corresponde ao que lhe é solicitado. Não apresenta
dificuldades de aprendizagem. Fala- se com ela apenas uma vez.”
Episódio 62: Como é que um bom aluno se comporta?
T1/C9- Ficar quieto e obedecer aos professores.T1/C6- Ter um bom estudo... deixar ela falar.T1/C3- não responde, parece resistirT1/P1- (insiste com C3), como é que é um bom aluno?T1/C3- responde em baixa voz, não conseguimos identificar.T1/C7-Acho que ... aprender mais (trechos não identificados)T1/C5-(resposta não identificada)T1/C8- ser estudioso (esconde o rosto e ri.)T1/C2- Ser estudioso, obedecer à professora as estagiárias. Não fazer bagunça, não falarmuito na sala de aula...T1/C8- Respeitar ... aprender... só!T1/C1- Fazer aquilo que as professoras gostam: estudar, aprender. Não pode ficarbrigando dentro da sala...T1/C2- (Fala não identificada)T1/C10- ter disciplina, educação, aprender, nunca repetir o ano.T1/Cnid-ter higieneT1/C11-Não brincar...(restante da fala não identificada)
120
3.5.2 Ações indesejáveis
O que de pior uma criança pode fazer na escola? Como podemos
verificar nos episódios a seguir o pior é fazer o que a professora não gosta,
aquilo que lhe aborrece, “ela gosta de viver em paz!”
Episódio 63: Qual é pior coisa?
T1/C10- A pior coisa é responder.T1/C6-- Ficar parado na frente dela. Ficar respondendo, ficar sentado na frente dela...ficar enchendo o saco dela. Ela gosta de viver em paz!T1/C9- De responder ela.T1/P1- E tem gente que responde ela?T1/C9- sinaliza que simT1/C2- Na minha sala em vários.T1/C8- cantar música de funkT1/C10-Xingar elaT1/P1- Como é que xinga a professora? Xinga nome feio?! Alguém faz isso aqui?T1/G-sinaliza que simT1/C2- Chama ela de chata!
É novamente o sentimento de respeito aparecendo. Faltar com o
respeito alheio é uma das piores ações que alguém pode cometer. No episódio a
seguir, surge a desobediência.É a escola trabalhando como queria Durkheim,
incentivando o aparecimento do “espírito de disciplina”.
Episódio 64: Coisas muito ruins de acontecer na escolaT2/C5- Ir pra sala do terror!T2/C5-Ir pra sala da diretoraT2/P1- Mas não é ir pra sala da diretora. Eu to falando o que é que a gente não pode fazer na escola? Fala uma coisa muito ruim.T2/C2-Não brigarT2/C9- Não desobedecer a professoraT2/P1-l- Desobedecer a professora é bom ou ruim? T2/G - RuimT2/P1- Vai ganhar um castigo?T2/C9-sinaliza que sim.
121
Episódio 65: Fala alguma coisa muito ruim de acontecer na escola. Que aprofessora fica muito zangada
T2/C5- Não fazer o dever de casa.T2/C7- Fugir
Brigar, xingar a professora, bater no amigo, não fazer tarefa de casa,
matar aula, desobedecer à professora, fazer guerra de tangerina... Estas são
ações indesejáveis na escola. Mas o que é o pior?
Episódio 67: O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim? Fala umacoisa muito ruim?
T2/C9- BrigarT2/C7- Não. Empurrar um amigo da escada.T2/C5- Não. Dar um soco na cara.T2/P1-- Peraí. Fala alguma coisa que faz a gente ir pra sala do Felipe. Fala umacoisa que faz a gente ir pra sala do Felipe?T2/C2-Fazer bagunça na sala de aula.T2/C5-Ficar correndo no corredorT2/C5-BrigarT2/P1-- Brigar de bater ( gesticula) ou de discutir?T2/C8- Brigar de baterT2/C8- ( fala não identificada)T2/P1- O que que ela falou?T2/C2-Guerra de tangerinaT2/C8- Espirrou tangerina no meu olho tiaT2/P1- Assim: você fez guerra de tangerina. Fazer guerra de tangerina é bom ou ruim?T2/G- – RuimT2/C6- Espirra dentro do olho. Arde!
Como vemos não há um consenso, algumas vezes surgem regras
estabelecidas: não fazer bagunça, não ficar correndo no corredor, mas em
outros casos surgem situações de desrespeito ao outro: bater, atirar algo,
diríamos ações de brutalidade com os outros, como confirma o episódio
seguinte:
122
Episódio 67: pensa no pior que se pode acontecerT2/C9-- AtirarT2/P1- Atirar... tiro?T2/C7-- Pedra.T2/P1- Bota assim, atirar qualquer coisa (pedra) atirar no colegaT2/C2- Atirar pedra!
Vemos a criança se apropriando da lógica social da escola. Ela
compreende o que pode e o que não pode e vai além, percebe regras que
servem para manter o ambiente comum organizado e às que se referem
diretamente ao respeito pelo outro. Apesar de não ser um consenso entre
elas, percebemos algumas crianças que hierarquizam as regras dizendo- nos
que há aquelas que não devem ser transgredidas e outras que ainda estão
presas à sanção. Se “fazer bagunça na sala de aula” ou “ficar correndo no
corredor”, pode levá-los à Sala do Filipe, é algo muito grave.
3.5.3 Discussão infantil sobre ação e sanção
A cada atitude nossa corresponde uma conseqüência , ou seja, a
cada ação uma sanção, que pode ser um prêmio ou um castigo. Assim
funciona o nosso universo regulador.
Episódio 68: Ser inteligente vale quanto?
T2/C5- Pule 7 casas.T2/C2- Não só pode valer 4T2/P1- Por que? Fala por que? Fala!T2/C2--( fala não identificada)T2/P1- Ta então, vale 4 casas. Você é inteligente ganha 4 casas.T2/C8-- Não tia
Ser inteligente vale 4 casas, e respeitar a professora? Como vimos nas
ações desejáveis é a mais importante, um bom prêmio é ter a possibilidade
de jogar o dado duas vezes e avançar no jogo.
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Episódio 69: Você respeitou a professora, você ganha o que?T2/C2-- Ganha umas 6 casasT2/Cnid- 5T2/P1- 5? Também tem outras coisas que você pode ganhar. Você pode jogar odado de novo. Tem várias coisas que você pode fazer.T2/C5- Pode jogar o dado duas vezes.T2/P2- Jogar o dado duas vezes?JT2/C5- É!
Vale ressaltar que o que vale não é o respeito por uma pessoa, mas
pela professora- autoridade pelo afeto, no episódio a seguir acompanhamos a
discussão sobre o valor da sanção de quem respeitou a estagiária: avançar
uma casa. Respeitar a estagiária não vale tanto: “as estagiárias são chatas lá
na sala ”.
Episódio 70: Você respeitou a estagiária, você ganha o que?T2/C5-As estagiárias são chatas lá na salaT2/C2- É muito chata.T2/P1- Você respeitou a professora jogou o dado duas vezes, você respeitou aestagiária ganha o que?T2/C2-- Pula 1 casaT2/C9- mostra com o dedo o número 1T2/C8- 3!T2?C2- mais 1T2/C8- Ah, ta!
Não fazer violência é algo importante e de valor, avança 7 casas, vale
mais que respeitar a estagiária e ser inteligente .
Episódio 71: Você não faz violência. Vale o que?T2/C9- 5T2/C8- 7T2/C2- 5T2/P1- TaT2/C2- 5T2/P1- Você não fez violência aonde?T2/C9- na sala de aulaT2/C2- Na escolaT2/P1- Foi isso. Foi ele que falou aonde?T2/C9- Na sala de aulaT2/P1- Você não fez violência na sala de aula você pulou 7 casas.
124
No episódio a seguir podemos perceber como o imperativo das
regras se coloca com força diante das ações. Surge a discussão sobre o que
é mais importante respeitar a professora ou não jogar lixo no chão? E é a
mesma criança que frisa a importância de se respeitar à professora , que
agora questiona o valor da sanção.
Episódio 72: Põe assim: você jogou lixo na lixeira. Quanto que ganha?T2/C2- Parabéns!Vale 3T2/C9- mostra 4 dedos.T2/C8-- 7 tia.T2/P1- Mas é mais legal. Olha aqui:passar na matéria ganha 6 casas. Respeitar a professorajoga o dado duas vezes. Não jogar lixo no chão, vale mais do que tudo isso aqui?T2/C8-- Não. Vale 2 casas.T2/P1-- Não mas o que é mais importante. Jogar o lixo na lixeira ou respeitar a professora?T2/G-- Respeitar a professoraT2/C5-Respeitar a professora!T2/P1-l- É isso que vocês acham? Então não pode ser prêmio maior. Tem que serequivalente.T2/C8-Não tia. Jogar lixo na lixeiraT2/P1- É mais importante do que respeitar a professora?T2/C8- É!T2/C2-– Não é!T2/C8 Ah! ( deita no chão e esconde o rosto)T2/P1-- Eu não to falando que não é importante Ana Carolina. É muito importante.Eu to perguntando o que é mais importante.T2/C8- Não jogar lixo no chão.T2/P1-- O que que é mais grave: jogar lixo no chão ou não respeitar a professora?T2/C2-- Não respeitar a professoraT2/C5-- Se não respeitar a professora você vai pra sala do terrorT2/P1- É? Então bota aí vai pra sala do terror. Ah não! Ir pra sala do terror é castigo. Andequantas casas?T2/C9- 3 !T2/C2-Não 2!
A sanção facilita o entendimento da gravidade da ação, não respeitar a
professora tem destino certo: a sala do terror!
No episódio a seguir a questão é não comer chiclete na sala de
aula. Além de merecer prêmio, a discussão gira em torno do que é mais
importante, entre outros, para os sujeitos da pesquisa não comer chiclete é
mais importante do que respeitar a estagiária.
125
Episódio 73: Querem do chiclete também?
T2/P1- você fez uma coisa boa porque você não comeu chiclete. Você ganha quanto?O que você ganha?T2/ C9- 6T2/G- 5T2/C2- Não. 2 casasT2/C8-- 5T2/P1- Deixe eu lembrar aqui pra vocês. Ser inteligente você pula 4 casas. Passar na matéria vale 6 casas, não fazer violência na sala de aula ganha 7 casas.Respeitar a estagiária vale 1 casa. Jogar lixo na lixeira vale 2. Respeitar a professora faz você jogar o dado 2 vezes. Não comer chiclete, vale quanto?T2/G- 5T2/P1- Vale mais do que ser inteligente?T2/G- Não. 3!T2/C6- Não tia, vale 2T2/P1- Dois é o mesmo do lixo na lixeira.T2/C8-- 3.T2/P1- 3? Então vai.T2/P2- Você não comeu chiclete na sala, na escola...T2/C2- Eu comoT2/C8- Na sala de aulaT2/P1-No prêmio você não comeu chiclete aonde?T2/C9- Na sala de aula.T2/P1- Por que , fora da sala de aula pode comer chiclete?T2/G- Pode!T2/P1- Então ta. Na sala de aula.T2/P3- Vale mais do que respeitar a estagiária?T2/C9- NãoT2/P3- Ali. Respeitar a estagiária pula uma casa. Não chupar chiclete, não mastigarchiclete vale mais do que isso?T2/G- sinalizam que sim inclusive C9T2/P1 É Eles acham que respeitar as estagiárias não é muito legal...
Desobedecer a professora é muito grave: “Imagine quem faz uma coisa
dessa... ” a punição deve ser equivalente.
126
Episódio 74: Desobedecer a professora é bom ou ruim?T2/G - RuimT2/P1- Vai ganhar um castigo?T2/C9- sinaliza que simT2/P1- Qual é o castigo?T2/C1- Pular três casasT2/P1- Pular pra frente?T2/G- Não, não. VoltarT2/C7- mostra dois dedos.T2/P1- Desobedecer a professora volta duas ? Quanto é ruim?T2/C2- Você volta duas casas.T2/C3- 7 casas.T2/P1-Não. Se você obedece a professora joga duas vezes o dado e aí fala se você não respeitar a professora , você desobedecer. A professora fala assim:Não pode sair da sala aí você sai correndo da sala e foge da sala . Então você vai voltar...T2/C2- Volta 6 casas!T2/P1-- Isso é muito ruim, né?T2/C1-– Imagine quem faz uma coisa dessa...
Xingar como já vimos é algo “proibido”, seja em casa ou na escola. O
que é mais grave, desobedecer à professora ou xingar o amigo? Como
podemos verificar no episódio relatado a seguir , por pior que seja
desobedecer a professora, para uma das crianças, xingar um amigo é visto
como mais grave. Vale ressaltar que a criança que discute a gravidade da
situação e se coloca no lugar do outro, ou seja, nos termos piagetianos, é
uma criança capaz de se descentrar e enxergar o ponto de vista alheio, é a
mesma criança que anteriormente frisou a importância de se respeitar à
127
professora e relativizou tal respeito ao comparar com a importância de se
valorizar a ação de jogar lixo no chão.
Pode parecer um pouco contraditório, mas se ao avaliarmos tal
questão nos dermos conta que estamos falando daquela criança que realiza
atividades como :” [...] arrumar casa, lavar louça, varrer o quintal.” E ainda é a
mesma criança que ao xingar em casa, recebe a ameaça da avó que
coloca “pimenta na boca, dá um tapa e bota ovo quente... Um ovo cozido na
boca.” Olhando desta forma, talvez possamos pensar que xingar é algo
imperdoável : “ se eu xingar você, vai gostar?”
Episódio 75: Mas xingar quem? A professora ou os amigos?
T2/P1- Aqui. Vamos imaginar nós estamos na classe a professora tá lá na frente, aí a gente vai e fala um xingamento pro colega, um xingamento muito ruim. É isso que você tafalando?Então põe assim:você xingou o seu colega. É isso?T2/C5-Volte 6 casasT2/P1-Você xingou seu colega. Virou pro seu colega do lado e falou: bobo feio, cara de mamão , alguma palavra feia. Isso vai acontecer uma coisa boa ou ruim com você?T2/C2-- Volte 6 casasT2/C8-- 27 casasT2/P1-Você desobedeceu a professora, você voltou 6 , se você xingou o seu colega você vaivoltar...T2/G-5,6,7,4T2/P1- se você falar 7, quer dizer que é pior xingar o colega do que desobedecer a professora. É isso?T2/C8- ÉT2/C2-–Não.T2/C8- Ta bom.T2/P2- por que você acha que é?T2/C8-se dirige para C2 e diz: se eu xingar você vai gostar?T2/C2- Não. Mas é ruim desobedecer a professora.T2/C8- Abaixa a cabeça.T2/P1- Ana Carolina Você ta certa. Fala pra mim. Você acha pior xingar um colega do quedesobedecer a professora? Então põe aí.T2/ C2-( fala não identificada)T2/P1- Esse é da Ana Carolina. Quantas casas irá voltar?T2/C8- 7 casas
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Segundo as crianças , sujeitos desta pesquisa, ir para a sala do Felipe é
algo realmente aterrorizante. O que seria grave a ponto de merecer uma
punição deste tipo? Brigar, bater, empurrar um amigo da escada.
Observemos o episódio seguinte:
Ir para a sala do Filipe como uma das piores punições é uma sanção
relacionada a situações graves. Ao questionarmos os sujeitos da pesquisa
quanto a ações que levem a tal sanção, percebemos situações de
desrespeito a regras estabelecidas como: “fazer bagunça na sala de aula”;
mas também percebemos situações por eles definidas como mais graves,
àquelas que faltam o respeito com o outro como : “brigar de bater”. No
episódio que segue, as crianças nos apresentam “a guerra de tangerina”
como uma situação grave que analisamos por dois aspectos: na visão da
escola, a desordem coletiva com a merenda escolar e na visão da criança que
já foi vítima, a dor causada. Observemos :
Episódio 76 : O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim?Fala uma coisa muito ruim.
T2/C5- Vai pra sala do FelipeT2/P1- Ta. Mas aqui não tem a sala do Felipe. Só se a gente fizer a sala do Felipe aqui, aí você vai ficar de castigo na sala do Felipe sem jogar uma rodada.T2/C7- Uma não tia, duasT2/P1- Ta. Na sala do Felipe você vai ficar duas rodadas sem jogar. Então vamos lá. O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim? Fala uma coisa muito ruim.T2/C9- BrigarT2/C7- Não. Empurrar um amigo da escada.T2/P1- Ta. Alguma coisa violenta ?T2/C8- Empurrar da escada.T2/P1- Você empurrou um amigo da escada É muito ruim?T2/C5- Não. Dar um soco na cara.T2/P1- Peraí. Fala alguma coisa que faz a gente ir pra sala do Felipe.T2/C2- Fazer bagunça na sala de aula.T2/C5-Ficar correndo no corredorT2/P1- Isso é mais grave do que bater ?T2/C5-BrigarT2/P1- Brigar de bater ( gesticula) ou de discutir?T2/C8- Brigar de baterT2/C5- De baterT2/P1- Então bota assim:você brigou entre parênteses bater no colega. Vá pra sala doFelipe . Sabe que quem for pra sala do Felipe vai ficar sem jogar, né?
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Fazer guerra de tangerina: molecagem de criança, mas é grave ,
dizem aqueles que já foram alvo : “espirra dentro do olho. Arde!” Vale uma forte
punição. E deixar de cumprir a tarefa de casa, o quanto isto é grave? Como
podemos perceber no episódio a seguir, a discussão demonstra o desacordo
entre as crianças .
Episódio 77 : Fazer guerra de tangerina é bom ou ruim?T2/G-– RuimT2/P1- Que castigo?T2/C6- Espirra dentro do olho. Arde!T2/P1-ÉT2/C7- Fica três rodadas sem jogar.T2/P1-Fica três rodadas sem jogar. É tão ruim assim?T2/G Não!T2/G-É sim!T2/P1- O que acontece com quem faz guerra de tangerina ?T2/C2- Uma rodada sem jogarT2/G – 2T2/C8- 100 rodadas sem jogar.T2/C9- 1 hora na sala do Felipe.T2/P1- 1 hora?T2/C2-A gente escolhe um e essa pessoa tem que trocar os seus pontosT2/P1- Ta. Então põe aí. Troca os seus pontos pelo... Ah peraí. Se você faz guerra detangerina e escolher trocar os pontos com quem ta ganhando? Você ganhou um prêmioT2/C5- 1 hora lá fora.T2/C9- é.T2/P1- Uma hora é muito tempo, gente.T2/C2- Não... Troca com quem tem menos pontos que a gente.( todos falam juntos)T2/P1- Então ta. Vamos fazer: você fez guerra de tangerina e troca os pontos com quem tem menos pontos?T2/C5- Volta pro começo!T2/C8- É.T2/C9-- ÉT2/P1- Volta pro começo!
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A insatisfação da criança que não conseguiu fazer valer sua vontade nos
faz perguntar: qual a sua relação com a tarefa de casa? Faz sentido , quando
ao avaliarmos descobrimos que esta é a criança que nos diz que: “e ela
(referindo-se a mãe ) também vive enchendo meu saco dizendo que se eu
não estudar, eu não vou ter um trabalho direito.”
Episódio 78 : Não fez o dever de casa, volte quantas casas?T2/ C9- 1. PulaT2/C7 – 10T2/C9-1T2/P1- é tão grave assim?T2/C7- é.T2/P1-- é muito ruim. Volte quantas casas? Ele falou 1 ela falou dez.T2/C5- Uma? Uma nãoT2/P1-- é muita diferença. Quanto que é grave?T2C4- 3T2/P1- 3?T2/C7- Então 5T2/P1- 3 ou 5?T2/C6- 5T2/9- 3T2/P1- Se a gente volta 5 casas quer dizer que é muito grave. Gente não fazer o dever de casa volta quantas casas?T2/G- 3,5,3T2/C7- 5!T2/C9- 3!T2/C7- 5!T2/C9- 3!T2/C7-5!T2/P1- Joseane vai decidir.T2/C7- 5!T2/P1- Joseane quantas casas?T2/C3- 3T2/P1- ProntoT2/C2- Chata. Porcaria!T2/P1- Oh. Xingou o colega, vai voltar 7 casas...
131
Fugir da escola merece como sanção ir para a sala do Filipe:
suspensão. Mas isso ainda não é o que de pior pode acontecer.
O pior é a sala da diretora. Espaço fantasiado pelas crianças : “ parece
que ela fica lá no ar condicionado... só isso ”.
4.1 O olhar da criança sobre o mundo moral
O que vê a criança ao olhar para o mundo moral no qual está
inserida? Mais do que regras, que de acordo com La Taille, é o que cabe à
moral, identifica também o que está por trás das regras , os ideais, ou seja, a
ética.
Nas seções que seguem, vemos que as crianças além de
compreenderem o universo moral escolar inserem- se neste ambiente não
Episódio 79 : Você fugiu do colégio.T2/C8- Volte 10 casas.T2/P1- Olha você ta normal no recreio, de repente você sobe no muropula o muro e sai correndo para rua. Então?T2/C9- Toma uma suspensãoT2/P1-Aqui, o que é suspensão?T2/C8- Vai pra sala do FelipeT2/P1- Vai pra sala do Felipe
Episódio 80: O pior que pode acontecer ?T2/C9- A diretora!JT2/C5-Ir pra sala da diretoraT2/C9- AtirarT2/P1- Atirar... tiro?T2/C7- Pedra.T2/P1- Bota assim, atirar qualquer coisa (pedra) atirar no colegaT2/C2- Atirar pedra!T2//P1 -Então aqui eu vou fazer a sala da diretora. Aqui é a sala da diretora. A sala da diretora faz gente ficar 3 rodadas sem jogar. Pronto!
132
como alguém que aceita um “mundo instituído” , mas como alguém que
partilha deste . É a criança que se mostra como sujeito da sua socialização.
4.2 As regras das crianças
Ainda tratando das relações sociais apresentamos o olhar das
crianças sobre as regras escolares, não como compreendem ou interpretam
as regras do mundo social, mas como sujeitos da socialização pensam e
organizam o universo social da escola.
E se as crianças pudessem criar as regras , que regras teríamos?
Foi esta a proposta: reinventar as regras da escola!
O que vemos a seguir, não é muito diferente da ordem social vigente.
Poderíamos então tomar esta criança como sujeito de sua socialização?
Sim. Afinal, não fugir da grade que cerca a sociedade atual não significa não
ser ator social. Se nos fosse dado à oportunidade de inventar uma nova
ordem social, não faríamos muito diferente. Não desconstruir a organização
social historicamente constituída não significa ser heterônomo, mas demonstra
que a criança não só é capaz de compreender as regras escolares como as
lógicas socializadoras da escola re-significando o seu processo de
socialização fazendo-se sujeito deste. Observemos o episódio 1 sobre as
regras escolares.
Episódio 81: E se vocês fossem fazer as regras. Que regras fariam?T1/C10- Não xingar.(falas não identificadas)T1/C2- Eu ia inventar não ver TVT1/C5 -A diretora não mandar na gente.T1/C1- Não ter brigaT1/C9-- Não ter violênciaT1/C8- Não ter confusão T1/C10- Não ter bagunçaT1/C9-Não responder a tiaT1/C5- Não ter venda de drogas aqui na escola.T1/C7- Porque tem (sinaliza afirmativamente com a cabeça)
133
Dentre as regras das crianças, uma contradiz o princípio de
autoridade máxima, autorizado pela família. No confronto entre lógicas
socializadoras distintas, percebemos a possibilidade de ver romper a
heteronomia, embora não possamos dizer que esta criança seja autônoma.
Segundo Freitas (2003),“Piaget chamou de autonomia a capacidade do sujeito deelaborar normas próprias, a qual se constitui nas relaçõesde cooperação: ‘ esta autonomia é empregada aqui semuma conotação filosófica. Ela designa somente apossibilidade do sujeito de elaborar, ao menos em parte, suaspróprias normas’.(Piaget, 1954, p. 534)“ (p.93)
Entendemos que a vida em sociedade não nos permite ter normas
próprias. Somos autônomos moralmente quando percebemos que podemos
transgredir regras para sermos éticos. Piaget descreveu o desenvolvimento
moral iniciando- o no nascimento, período denominado por anomia, que se
caracteriza pela incapacidade de obedecer regras, devido a dificuldade de
compreensão causada pela incipiência dos quadros mentais, atravessando pela
heteronomia, momento no qual a criança já interioriza as regras mas as
conhece como coação do adulto, visando chegar a autonomia, estágio no qual
o indivíduo é capaz de tomar decisões por si mesmo, identificando- se como co-
autor das regras e responsável por sua manutenção.
O que colocamos em discussão na teoria piagetiana é seu o caráter
universal, e que a nós se apresenta como algo desvinculado do contexto
sócio- cultural.
Um determinado conjunto de relações sociais não é universal, cada
grupo social desenvolve e mantém sua cultura. Piaget, em sua teoria atrelou o
desenvolvimento moral ao desenvolvimento cognitivo. Mas será que a moral
se constrói assim como o pensamento? Se uma família privilegia um
conjunto de valores, estes farão parte da construção moral das crianças
134
desta família, o que significa que nem todas as crianças terão a mesma
base para o desenvolvimento. Culturas diferentes privilegiam organizações
sociais diferentes. Entendemos que Piaget assim concebe o desenvolvimento
moral próximo do racional até porque em seu modelo a justiça se faz a própria
moral. E sendo esta uma virtude racional , pode-se pensar que a moral aspire
ser, na teoria piagetiana, universal.
Nesta pesquisa percebemos o surgimento de outros sentimentos
morais, apontando para a presença de outras virtudes no desenvolvimento
moral das crianças – sujeitos desta pesquisa, o que nos permite pôr em
questão a universalidade de uma teoria sobre o desenvolvimento moral.
Apresentaremos agora os sentimentos morais encontrados e as virtudes às
quais os trançamos.
4.3 Para além das regras
Durante a realização deste trabalho sentimentos morais emergiram
das conversas das crianças, o que a nós mostrou que esta criança não
somente conhece, pensa e re- significa a lógica socializadora da escola, como
tem um julgamento ético destas ações. Assim como nós, a criança respeita a
regra moral, mas é capaz de olhar para além da regra buscando os
fundamentos éticos que levou a sociedade à elaboração destas.
Com o objetivo de aprofundarmos os dados que encontramos, até
aqui dividimos o grupo em grupos menores, conforme a descrição a seguir:
a) uma dupla- C1 e C2, duas amigas “quase inseparáveis” estudam na
mesma turma, sentam em carteiras próximas. Durante os dias que estivemos
com eles, se mostraram muito amigas;
135
b) C3, C4 e C5 – crianças da mesma idade e série, mas de turmas
separadas , no caso de C5, sua fala destoa de todos: é a fala que mais
reproduz o discurso social do pobre, porém na terceira pessoa. Ela não se
reconhece ali;
c)C8- criança que optamos em realizar esta parte da entrevista
individualmente por termos observado o seu comportamento que se destacou
durante todo o trabalho.
A metodologia utilizada para esta parte da entrevista foi, a mesma
utilizada por Piaget, Kolhberg e Yves de La Taille, pesquisadores que
trabalham na busca da compreensão do desenvolvimento moral. Em relação
ao método empregado, concordarmos com Piaget (1994) quando diz que, “o
único bom método no estudo dos fatos morais consiste, seguramente, em
seguir de perto o maior número possível de casos individuais.”(p.22) No
entanto, o nosso objetivo aqui é o de aprofundar algumas falas destas
crianças coletadas em outros momentos e que a nós pareceu estarem
envolvidas por sentimentos morais. Ainda, acreditamos nos pequenos grupos
por favorecerem o diálogo.
Apresentaremos a seguir algumas falas que nos fizeram unir tais
crianças à elaboração do dilema :
O primeiro sentimento por nós percebido foi o sentimento de respeito
pela autoridade do professor . O valor atribuído à obediência à professora ,
bem como a estima das famílias destas crianças pela escola e o aparente
sentimento de amizade entre C1 e C2 , nos fez elaborar um dilema moral
envolvendo o respeito pela autoridade do professor, pela obediência e o
sentimento de amizade a nós traduzido, na virtude fidelidade. Observemos
algumas falas destas crianças que nos levaram a preparar tal dilema.
136
Apresentação dos dilemas
De acordo com os episódios (13 e 25), para estas crianças escola é
lugar de estudar. Outra observação que fizemos foi a de que estas crianças
são acompanhadas pelas famílias e que estas tem grande expectativa sobre
o desempenho escolar de seus filhos, como podemos observar no episódio
(6).
O episódio (1) nos mostra a preocupação destas crianças em relação à
possibilidade da professora recorrer à família relatando sobre o
comportamento das crianças na escola. No episódio (3) definem ser bom aluno
como sinônimo de ser obediente. E quando falamos sobre desobediência, no
episódio (10) uma delas nos responde: “imagine quem faz uma coisa dessas...”
Estas foram algumas falas que nos levaram a apresentar a estas
crianças o dilema a seguir que tem a intenção e colocar em confronto a
amizade e a autoridade:
Mariana é uma aluna muito boa, e tem uma melhor amiga, que se chamaAlice, as duas fazem tudo juntas, são muito amigas mesmo. Na semana quepassou a Mariana ficou doente e perdeu muitas aulas de matemática. No diaque ela voltou para a escola, a professora resolveu dar uma prova da matériaque a Mariana tinha perdido. A prova começou e a professora avisou quenão queria que colassem de jeito nenhum. Mariana estava muito nervosa,desesperada, porque não sabia nada, e Alice sabia tudo, e acabou a provarapidinho. A professora então teve que sair para resolver um problema, epediu para Alice que tomasse conta da turma. Mariana, desesperada, pediu
137
pro amigo que estava do lado dela para ensinar ela a fazer um problemade matemática. Alice vê a amiga colando e... O que será que ela faz?
A seguir o diálogo das crianças com a pesquisadora:
P2- O que será que ela faz?
C2 - Alice entregou a Mariana para a professora.
C1- Eu também acho. Concordo!
P2- Por que?
C1- Porque isso não pode fazer . Senão tira um zero bem grande, né? (parece
esperar confirmação)
Problematizamos a questão:
P2- Mas se a professora não soubesse que ela tinha colado ela não ia
ganhar um zero bem grande. Ia?
C1- Não. Se a outra contasse ia.
Inserimos a criança na situação: já não é mais o que a criança acha
que Alice faria, mas o que ela acha que deve fazer...
P2- Você acha que ela deve contar?
C2- Eu acho. Porque a professora...
C1- Também
C2- A professora não gosta que cola das provas dos outros e deixou a
Alice cuidando da sala. É obrigação dela falar.
Percebemos o grande peso da obediência. A cola não é julgada por
si, pelo o que ela representa, mas pelo fato de que “a professora não gosta
que cola [...]”, no entanto, se você fosse a Mariana...
138
P2- E se você fosse a Mariana, que tivesse ficado doente e aí você não
tivesse, aquela matéria você não aprendeu. A professora ensinou e você não
tava na sala.Na hora da prova você não sabia nada. De repente você pediu
pro amigo do lado te ajudar e aí a sua amiga vai e conta pra professora.
Como é que você ia se sentir?
C2 Ah sei lá. Ia achar que era injusto. É porque eu tava doente, não sabia nem
a primeira resposta da prova. Aí vai lá a professora deixa a minha melhor
amiga cuidando da sala e vai lá e me entrega. Isso não é melhor amiga.
Percebemos que quando se trata do geral, ela opta pela autoridade,
mas ao colocarmos a situação no particular, ela opta pela amizade. O que a faz
rever o seu julgamento é o ponto de vista.Colocando-se como sujeito da
situação , relativiza a justiça e a autoridade da regra.
O que neste momento conta já não é mais a cola ou a obediência à
professora, o sentimento do respeito pela professora é ofuscado pelo
sentimento de amizade: “isso não é melhor amiga”. Percebemos nesta fala a
palavra injustiça ligada ao sentimento de amizade. Injusto quer dizer que ela
se refere à fidelidade como regra . Aponta outras relações não legitimadas
pelo nosso social.
P2- Então, se você fosse a Mariana, você acharia injusto e se você fosse
Alice, você ia entregar a Mariana?
C1 e C2- Eu não.
P2- Por que não?
C2- Ah! Porque ela é minha melhor amiga e também porque tava na sala
de aula pra aprender. Não tava no corredor correndo, tava doente em casa.
P2- Mas você acha que a Alice aqui da história , Mariana e Alice, a Alice deve
contar então, pra professora?
139
C2- Não.
C1- Eu concordo.
São as crianças refazendo seus julgamentos...
P2- Então mudaram de idéia?
C1- Não.
P2-Vocês não falaram que ela devia contar?
C2- Ah, agora eu mudei.
P2-Você mudou?
C2- Mudei.
P2-Por que você mudou?
C1- Porque isso ia... A minha amiga podia tirar um zero bem grande né, aí
ela podia repetir o ano aí eu não ia falar pra professora, por isso. É melhor
ficar com a amiga no outro ano do que perder a amiga nesse ano que ela ta
agora, pra ela ficar no outro ano. Não dá!
P2- Você acha mais importante manter a amizade ou falar pra professora?
C2- Eu acho manter a amizade
C1- Eu também.
O segundo dilema apresentado ao grupo formado pelas crianças C3, C4
e C5, traz novamente a amizade no confronto com a autoridade da
professora. O sentimento de respeito pela figura do professor é algo que se
destaca no trabalho. No entanto, para o grupo a seguir parece que este está
atrelado à punição equivalente ao desrespeito à autoridade. Uma das crianças
selecionadas para este grupo, C5 mostrou-nos através de suas falas
reproduzir um discurso social elaborado para o pobre, quase determinando
que este sujeito está fadado a viver à margem da sociedade. O que nos levou
a elaborar um dilema que colocaria duas pessoas em questão: a professora-
autoridade por todos respeitada e uma criança- aluna deste colégio, que
segundo C5 “não tem alunos de qualidade.”
140
A criança indicada neste trabalho por C5 é considerada na escola como
“boa aluna”. Podemos conferir na fala da professora, quando solicitamos a
esta que nos explicasse o critério utilizado denominando os alunos indicados
como bom ou mau aluno, sobre esta aluna, nos disse: “ É uma aluna
‘madura’, tem muito estímulo em casa, os pais são presentes e participativos.”
Enquanto que os demais alunos: C3 e C4, são considerados “ maus alunos”,
pelas professoras. Observemos a fala das professoras sobre estes ao
solicitarmos que nos explicassem os seus critérios denominando estes como
maus alunos:
C3- “Não tem dificuldade de aprendizagem, mas não tem limite. Seu
problema é de limite!”
C4- “Não faz o exercício, ele é ‘respondão’, não quer ir para a sala de aula,
além de não querer copiar nada. O aluno não leva o seu material para a escola.
Ele também é muito implicante”.
No episódio (4), observamos a fala de C5 sobre a escola, que se
assume como lugar para estudar, na voz desta criança, e assim o faz
porque é necessário, como se possibilitar liberdade, fosse o mesmo que abrir
espaço para brigas, confusões, em uma palavra: indisciplina. Esta mesma
criança no episódio (2), reafirma que a escola não é boa porque não tem
“alunos de qualidade...”
Durante o jogo de regras, enquanto discutíamos sobre o valor das
sanções relativas as regras: jogar lixo na lixeira e respeitar a professora, C5
no episódio (7), explica o valor através da sanção aplicada ao desrespeito
destas.
141
Estas foram algumas falas que nos levaram à elaboração do dilema
a seguir que tem a intenção e colocar em confronto a amizade e a
autoridade.
Eram duas meninas da terceira série que eram muito amigas.Uma eraMariana e a outra Alice. Num dia, quando voltaram do recreio, encontrarama professora muito triste porque disse que a Alice tinha rasgado o seu livro.Alice disse que não tinha sido ela, mas todos os alunos ficaram do lado daprofessora.
A seguir o diálogo das crianças com a pesquisadora:
P2- Se isso acontecesse com você e a sua amiga, ou seu amigo o que você faria?
Acreditaria na sua amiga ou ficaria do lado da professora?
C5- Do lado da professora
C3- Do lado da professora
C4- Do lado da professora também
P2- Por que?
C5- Porque a amiga pode estar mentindo!
Ela é enfática. A criança pode mentir, então problematizamos:
P2- E a professora, não?
C5- Não.
P2- Alguém já passou por uma situação parecida com essa?
(sinalizam que não)
O discurso de C5 é forte e conduz de certa forma o grupo.
142
P2- Se você fosse a Alice, vamos supor, um de cada vez. Se C3 fosse a Alice
e a C5 fosse amiga de C3. Então C3 estaria dizendo que ela não teria
rasgado o livro. Você acreditaria na sua amiga?
C5- Acreditaria.
P2- É? E por que nesta situação você ficaria do lado da professora?
C5- Porque a Alice poderia estar mentindo.
P2- E por que a Alice poderia estar mentindo e C4 não?
(Depois de um tempo em silêncio, C5 sorri)
O sorriso nos mostra a dúvida da aluna e então, insistimos:
P2- Você disse que a Alice poderia estar mentindo e você ficaria do lado da
professora . Mas, se fosse C3 e a sua professora, você disse que ficaria do
lado de C3, certo?
C5 - Certo.
P2- Por que?
C5- Mas alguém pode ter ido na sala, rasgado o livro da professora e colocado
a culpa na Alice.
P2- Repete!
C5- Alguém poderia ter rasgado o livro e colocado a culpa na Alice
P2- Que alguém?
C5- Outro aluno da sala.
P2- E aqui no caso da Alice e da Mariana, também não poderia ter acontecido
isso?
C5- Poderia.
P2- E você ficaria do lado da professora ou do lado da Alice?
C5- Do lado da Alice. (sorri)
P2- Do lado da Alice? Então você mudou de opinião. Mudou?
(sinaliza que sim)
143
P2- E você, C3, se a Alice fosse a C5. Você ia acreditar nela ou você ia
ficar do lado da professora?
C3- Do lado da C5.
P2- Por que?
C3- Ah porque a C5 não mente.
P2- A C5 não mente. E a Alice mente?
(sinaliza levantando os ombros indicando que não sabe)
Ora como falar de alguém que eu não conheço? A Alice pode mentir,
mas C5 é “boa aluna”, não mente !
P2- E C4, o que você acha disso?
C4- Ficar do lado do meu amigo.
P2- Por que?
C4- A professora deve ta mentindo.
P2- E o seu amigo pode ta mentindo?
C4- Não.
P2- Não? Por que você acha que ele não pode ta mentindo e a sua
professora pode?
C4- Porque ele é o meu melhor amigo.
P2- Ele é o seu melhor amigo. E para você ele não iria mentir?
C4- Pra mim não.
Estamos falando aqui do respeito pela autoridade da professora que
é colocado em questão pelas crianças quando estas se deparam tendo
como controvérsia, a fala de um amigo. Não é de qualquer aluno que
estamos falando, mas de alguém que se conhece. Mais uma vez
percebemos, a virtude fidelidade atrelada as relações destas crianças. Na
fala de C4 , é a professora que pode mentir, mas ao ser perguntado sobre a
possibilidade do amigo mentir a resposta é clara: “pra mim não.” Ele pode
mentir pra qualquer pessoa, mas pra mim... ele é meu amigo, me é fiel
144
De acordo com Comte-Sponville (1999)
“ fidelidade à lei, não como divina mas como humana, nãocomo lei universal mas como particular ( mesmo que essa leiseja universalizável, e deve sê-lo), não como lei atemporalmas como histórica: fidelidade à história, fidelidade àcivilização e às Luzes, fidelidade à humanidade do homem![...] “ ( p.22)
Fidelidade ao amigo, se a tenho por alguém , certamente foi
conquistada. Não queremos julgar moralmente os fatos, mas mostrar que ao
nos desenvolvermos moralmente outras virtudes que não a justiça
entrelaçam- se a nós, o que pode muitas vezes traduzir-se em “dramas
morais” que seria a “ luta “ de duas virtudes: a fidelidade de um amigo e a
justiça- pelo sentimento do que é certo fazer, que como em toda luta o
objetivo é a vitória de uma sobre a outra.
O respeito à autoridade foi quebrado! A amizade prevaleceu ao
respeito pelo professor. Mais uma vez percebemos nesta pesquisa , que uma
teoria sobre a moralidade que se traduza unicamente em justiça não nos é
suficiente.
O terceiro e último dilema traz outras virtudes: a generosidade e a
gratidão. Como colocado anteriormente este dilema foi apresentado a uma
criança: C8.
C8, se mostrou no episódio (3) como uma criança que trabalha, no caso
desta pesquisa a única que nos relatou realizar trabalhos domésticos, ou
seja , que possui experiências distintas. No episódio (4) percebemos outra
situação que a distingue das demais crianças: os castigos corporais.
145
Em entrevista com outras crianças, surge como punição doméstica
para a ação de xingar, apanhar, “a mãe fala que vai botar pimenta na
nossa boca”. Mas no caso de C8, não é a fala de alguém que diz que vai
botar pimenta, mas alguém que “bota pimenta na boca, dá um tapa e bota ovo
quente.” Castigos estes, que comparados ao da escola: uma suspensão, que
é do simbólico, ofusca a gravidade da punição escolar .
Ao nos depararmos primeiramente com o episódio (50), vimos C8
como uma criança destemida, talvez atrevida, disposta a colocar em xeque a
autoridade escolar. Mas ao analisá-la isoladamente percebemos que não é
assim. Esta criança respeita a autoridade escolar, como podemos verificar no
episódio (58) , além de valorizar um “bom aluno”, que aparentemente busca
ser, como podemos observar na fala da professora : “Ela é sempre atenciosa,
educada, faz os exercícios corretamente, os quais sempre vêm prontos de casa.
Ela está sempre pronta a ajudar o professor e os colegas”. O esforço
demonstrado por C8 para ser um “bom aluno” a nós se apresentou também
como busca do afeto da professora.
No próximo episódio vemos surgir a presença do dinheiro como
valor...
Episódio 82: Você passou na matéria, isso é bom ou ruim?T2/G- Bom!T2/P1- A gente vai ganhar um prêmio ou vai ganhar um castigo?T2/C8- Dez reais!
Dado este para nós relevante e que foi utilizado no dilema que a
apresentamos . Mas o que mais nos chamou atenção nesta criança foi a fala
que aparece no episódio ( 75).
146
Nesta fala percebemos a criança capaz de se colocar no lugar do
outro e desafia a amiga: “se eu xingar você vai gostar?” E além disso,
relativiza a autoridade da professora ao comparar as ações. Estamos
falando de ações diferentes e que esta criança atribui valores diferentes:
desobedecer à professora é ruim, mas comparado a xingar um amigo, ou
seja, desrespeitá- lo é pior. Entendemos que quando esta criança frisa em
outro episódio citado anteriormente: “respeita tia! Respeitou não, você respeita”,
não é a figura da autoridade – a professora, que é importante respeitar, mas o
que tem valor aqui é o sentimento de respeito. É o que Piaget chamou de
reciprocidade. Esta criança se coloca no lugar do outro. É o imperativo
categórico de Kant, que diz que devemos sempre agir de maneira que a nossa
ação possa se transformar numa máxima universal: “se eu xingar você vai
gostar?”
Por estas observações , elaboramos um dilema onde confrontamos o
mérito de um bom aluno e a generosidade .Observemos o dilema a ela
apresentado:
Era uma vez uma menina chamada Joana, que era a única menina que eraestudiosa da sua classe. Enquanto todas as crianças faziam bagunça, elaestudava e fazia as tarefas que a professora passava. Um dia a diretora fezum concurso para ver quem fazia a melhor redação, e Joana ganhou oconcurso. O prêmio era 10 reais. Joana tinha trazido de casa várias coisasgostosas pro seu lanche neste dia, mas foi até a cantina, na hora dorecreio, e gastou o dinheiro do prêmio comprando um cachorro-quente euma lata de refrigerante. Joana adorava cachorro-quente. Quando foi sentarna mesinha para comer o lanche, Joana percebeu que uma outra menina dasua idade que nunca levava merenda estava sentada na sua frente. O nomeda menina era Jaqueline, e ela nunca falava nem brincava comninguém.Estava sempre sozinha.Joana viu, assustada, quando Jaquelineestava comendo um pão com manteiga, e uns meninos vieram correndo e
147
derrubaram o pão de Jaqueline no chão, e ainda por cima pisaram no pãodela.
P2- Como acaba esta história?
(pensa e responde de cabeça baixa)
C8-Joana foi lá perto da menina e ofereceu o lanche dela.
A pesquisadora insiste:
P2-Ofereceu que lanche? O que ela trouxe de casa ou o cachorro quente?
C8- O cachorro quente.
P2- Por que?
C8- Porque o menino derrubou o lanche dela
P2- Mas se você fosse a Joana, você faria isso?
C8- Claro!
P2-Claro, por que claro?
C8- Porque a menina tava sem nada pra comer ,tia.
Apesar da certeza que esta criança nos passa de que não há outra
coisa a ser feita, insistimos:
P2- Mas, cachorro quente é o que você mais gosta. Mesmo assim você dava
pra ela?
(sinaliza que sim)
C8- Dava.
P2- Você já passou por uma situação como essa, alguma vez?
(sinaliza positivamente)
P2- Você consegue se lembrar e me contar?
C8- Ah, não!
148
Ah não!? O que a faz se recusar ? Não lembra? Ou não quer se
expor como a criança que em algum momento, por algum motivo que
desconhecemos tenha ficado sem lanche? Insistimos:
P2- Você se lembra de alguma vez que você tenha tido uma atitude dessa?
C8-Não.
P2- Não? Alguém já fez alguma coisa parecida com você? Por você?
(sinaliza positivamente com a cabeça)
P2- Já?
(sinaliza que sim)
P2- Você lembra? Pode me contar?
C8- Não. (abaixa a cabeça)
P2- Não?Por que não pode?
C8- Não lembro muito. (mantém a cabeça abaixada)
P2-Conta o que você lembra.
C8- A Jayane
P2- Então conta pra mim rapidinho, o que é que a Jayane fez?
C8-Não quero contar não tia. Eu não lembro muito não, tia.
P2-Conta só o que você lembra. A Jayane foi legal com você alguma vez. Foi
isso?
C8-Foi.
Percebendo que C8 não estava se sentindo muito à vontade para
os contar então perguntamos:
P2- Você não quer falar?
C8 - Não. (sinalizou negativamente com a cabeça)
P2- Então ta. Uma pena ...
C8 -Não quero falar disso não, tia. Isso é passado.
149
P2-Eu sei que é passado. Mas eu não conheço esse passado. Queria
saber...Então, só olha pra mim, pra gente terminar aqui. Numa certa situação
a Jayane foi legal com você. Foi isso?
C8- Foi
Depois de muito insistir, porém respeitando a vontade da criança , esta
resolveu nos contar .
P2- Como é que foi essa situação? Não tem nada a ver com lanche?
C8- Não.P2- Não?C8- Eu vou te contar. É que a Jayane, ela sempre trazia um biscoito de casa e
ela me dava, mas eu tinha lanche.
Percebemos aqui a criança que enfatiza o fato de ter lanche, o que a
nós parece dizer que não quer passar pela criança que não leva lanche, o
que justifica a dificuldade que encontramos para que ela nos relatasse o
episódio.
P2-Ah! E você gostava desse biscoito?
C8- Gostoso! Era aquele de goiabada que você trouxe naquele dia, sabe?
P2-Sei.
C8- Era aquele...
P2-Como é que você se sentia quando a Jayane dava o lanche dela pra
você.
C8- Eu não sentia nada, ela que dava...
P2-Mas, você ficava feliz, se sentia bem?
C8- Não. Eu tinha o meu lanche.
Confirmando nossa suspeita ela mais uma vez destaca: “eu tinha o
meu lanche.”
150
Porém o que mais nos interessa aqui é a primeira resposta desta
criança: “Joana foi lá perto da menina e ofereceu o lanche dela.” E ao
insistirmos perguntando: você faria isso?, nos responde imediatamente: “claro!”
Mas cachorro quente é o que você mais gosta. Mesmo assim você dava pra
ela? Responde- nos : dava”, afirmando também com a cabeça. Do que estamos
falando aqui? De generosidade. De acordo com Comte-Sponville (1999), “ A
generosidade é a virtude do dom. Não se trata mais de "atribuir a cada um o que é
seu", como dizia Spinoza a propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é
seu, o que é de quem oferece e que lhe falta.” ( p. 75 )Que obrigação moral teria
C8 em doar o seu lanche preferido?
Nenhuma. Quem poderia lhe obrigar a tal ação? Quem poderia dizer
que seria seu dever doar o seu lanche, o que ela mais gostava, que ganhou
por merecer a uma criança que não era sua amiga: não falava com ela, não
brincava com ela ?
Isto é generosidade!
Mas não só. Percebemos em C8, a capacidade de se colocar no
lugar do outro, é a reciprocidade. C8, não só consegue se perceber no lugar
daquela menina que não tinha lanche, mas lembra de um momento em que
alguém teve uma atitude “generosa” com ela e parece ter aprendido com o ato:
podemos falar em gratidão.
De acordo com Comte- Sponville (1999), a gratidão é uma virtude e
“O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar queela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, porconseguinte, há mérito - apesar do prazer ou, talvez, por causadele - em senti-la.” (p.116)
151
Enfim, percebemos em C8, sentimentos e virtudes que contradizem o
modelo de criança heterônoma ou não- normal, bem como nos dois dilemas
anteriores. Retomemos:
Nos dois primeiros dilemas, que tratam do confronto entre a amizade
e o respeito à autoridade, temos como primeira e imediata resposta das
crianças, a escolha pela autoridade . Elas são claras e determinadas ao optarem
pela autoridade. Mas quando são levadas a mudarem o seu ponto de vista,
inserindo- se na situação, fazendo-se sujeito desta, optam pela fidelidade ao
amigo. O que estas crianças estão nos mostrando? Há uma outra forma de
se relacionar que não esta baseada unicamente na justiça, das regras
hegemônicas, consideradas universais.
Estamos falando, porém, de uma lógica contextualizada, onde o
sujeito não vê somente a regra, mas o contexto, do qual faz parte . Esta não
é universal, mas relativa às experiências e vivências, ainda que haja um
entendimento da existência das regras hegemônicas.
De acordo com La Taille, podemos traduzir a ética como os ideais e a
moral como as regras. Diríamos que estamos falando de uma teoria onde os
pólos da questão dialoguem: a moral, na praticidade das regras e a ética no
valor das virtudes. Não estamos desconsiderando as regras desta sociedade
pautada em uma concepção de justiça, mas apontando para a necessidade
de abarcamos outras virtudes nas relações sociais. Estas crianças estão nos
mostrando que é possível. Basta mudarmos o nosso ponto de vista e
assumirmo-nos como sujeitos de nossa moralização ou, ainda, assumir nossa
autonomia.
Enfim, não se trata aqui de discutir heteronomia ou autonomia moral,
ou mesmo classificar estas crianças como heterônomas ou autônomas
como fez Piaget, mas de apresentá-las como sujeitos da sua socialização,
152
que pensam o universo moral sob uma lógica distinta da lógica vigente que
não desconsideram, mas que também não se restrinjam à ela. O que nos faz
afirmar que há um trançamento de virtudes no desenvolvimento moral.
153
RETRANÇANDO A CRIANÇA:O SUJEITO SOCIAL
“Não havendo assunto pequeno, mas pequeno investigador,cada aspecto da cultura, cada ângulo da atividade humana,permite porcentagem analítica bem inferior a seu volume real.”
Luís da Câmara Cascudo
Este trabalho pretendeu compreender a fala da criança de maneira a
colocá-la num patamar de seriedade junto dos discursos considerados legítimos
sobre o processo de socialização. As falas apreendidas nos encontros com o
grupo de crianças nos proporcionaram um levantamento de dados que se
interrelacionaram neste trabalho nas seguintes categorias: definição de criança,
família e escola: visões que se cruzam, a visão infantil sobre autoridade, universo
socializador da escola e o olhar da criança sobre o mundo moral. Estas categorias
construídas configuraram- se como grandes temas, nos quais procuramos abarcar
a visão da criança sobre a socialização na escola.
A partir da compreensão da fala dos sujeitos desta pesquisa, faz- se
necessárias algumas reflexões, sobre as questões implicadas na temática
discutida, o que faremos a seguir, em forma de considerações finais.
A criança que se apresentou nesta pesquisa, demonstra não somente
apreender o discurso e a lógica social vigente, como fazer-se sujeito desta ao
refletir, reelaborar e re-significar a voz do Outro. Diferente do que esperava
Durkheim, que pensava a criança como um “selvagem” que só após a inculcação
das normas sociais se libertaria do egoísmo próprio do ser humano para a vida em
sociedade, a criança participa dos processos de seu meio social como sujeito que
fala e pensa. Bem como, ao analisarmos os dados, discordamos de alguns pontos
da teoria de Jean Piaget, importante referencial teórico sobre o desenvolvimento
154
infantil, que pensa esta criança heterônoma, ou seja, aquela que segue a regra de
outrem.
Não se trata afinal de apresentarmos a criança como heterônoma ou
autônoma moralmente, mas de discutir sobre o lugar dessa criança no processo
de socialização. Será que podemos dizer que essa criança simplesmente aceita a
regra do mundo adulto?
Não. O que apreendemos neste trabalho, foi a fala da criança que nos diz
que pensa sobre o seu papel na sociedade. É a criança como aluno, em primeiro
lugar. Criança como sinônimo de ser aluno, aquele que precisa ser formado. Em
segundo, a criança como diferente do adulto, diferenças físicas, diferenças de
atividades: compreendendo- se como um ser diferente do adulto nos mostra que
possui uma lógica diferente deste. Mas ao nos mostrar isto, demonstra que
enxerga a expectativa do mundo social do adulto em relação a ela. Não é a
criança que não fala ou que não sabe o que falar, mas é o adulto que não ouve,
porque não sabe ouvir criança.
Esta criança percebe e aponta as diferenças entre as duas instituições
sociais em questão neste trabalho: família e a escola. Instituições estas,
responsáveis fundamentais no processo de socialização desta criança.
Percebendo a diferença entre estes dois lugares distintos – casa e escola –lê a
relação muitas das vezes conflituosa, mas que também firma parcerias (quando
se percebem impotentes). Há, porém, diferenças e espaços demarcados com a
intenção de não haver confusão nos papéis: é a criança – filha e a criança – aluno.
Neste espaço-tempo da infância, em que a criança lê as lógicas
socializadoras da escola e da família, percebemos que esta lê, reflete e se
apropria do discurso social. E estamos aqui falando de uma sociedade perversa,
como nos diz Thin, que pensa e espera da criança de classe popular nada além
155
da marginalização, ou seja, de ser um agente da violência . É a criança vendo a si
como sujeito da violência.
Percebemos na criança, sujeito da nossa pesquisa, a possibilidade de
transgressão. Transgressão como movimento e instauração da dúvida. É a
criança quebrando a hegemonia do social e suas leis, através do confronto
entre lógicas socializadoras distintas, coloca em questão o papel da autoridade
através do riso.
A transgressão como movimento de quebra da hegemonia representa
a possibilidade da construção da autonomia como nos fala Piaget. O sujeito
da nossa pesquisa, se mostra neste movimento no confronto entre as lógicas
socializadoras distintas: lógica familiar e escolar. É neste cenário que realiza a
sua leitura e reelabora o discurso tornado-se sujeito dele. Como podemos
então, desqualificar o espaço doméstico “ por seus interesses restritos, muito
individuais” como nos disse Durkheim?
Será que podemos desqualificar virtudes como a fidelidade, a
generosidade no desenvolvimento moral da criança por representar
sentimentos morais da esfera privada?
O que vimos neste estudo nos permite colocar em discussão o império
da virtude justiça como expressão de toda a moral. Considerando porém, que
sendo a virtude justiça a mais racional de todas, à escola – lugar da racionalidade
cabe fazer valer a sua supremacia, uma vez que esta pode ser traduzida com os
critérios objetivos que a escola conhece e compreende. Porque assim se moldou.
A escola se fundou numa sociedade que se construiu nas bases da justiça.
Mas o que nos interessa aqui, é que essa criança, sujeito da nossa pesquisa
nos diz que é possível pensar uma moral diferente.
156
Sabemos que as demais virtudes não podem ser explicadas racionalmente,
não porque são subjetivas, mas porque as retiramos do espaço da
racionalidade, dessa forma como ensiná-las? Mas ao colocá-las em discussão
juntamente com a justiça, abrimos um espaço para a valorização de um outro
modo de pensar. É uma lógica diferente, mas possível, porque se apresenta
nas entrelinhas das nossas relações sociais.
Educar a criança tendo como princípio a educação integral, como nos
propõe os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental,
primando pela ética, significa reavaliar que tipo de educação moral tem proposto a
escola. Para isto recomendamos além do aprofundamento destas questões em
pesquisas posteriores, uma reavaliação no currículo do curso de formação de
professores, como forma de discutir o desenvolvimento moral e o processo de
socialização, espaço este por nós desconhecido na grade que compõe este curso
e que se apresenta a nós de extrema importância .
157
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160
Anexo
161
Roteiro de entrevista para as crianças grandes
1a parte: Perguntas comuns a todos:
Iden
tific
ação Nome e idade
O que você pode fazer em casa que não pode fazer na escola? Quem éque não deixa? O que acontece com quem faz?O que você pode fazer na escola que não pode fazer em casa? Quem éque não deixa? O que acontece com quem faz?Pode xingar na escola? O que acontece? Pode xingar em casa? O queacontece?
Reg
ras
na c
asa
e na
esco
la
Quando você bate em alguém em casa, o que acontece? Quando vocêbate em alguém na escola, o que acontece?Sua mãe gosta da sua escola? O que sua mãe mais gosta na escola ? Oque sua mãe não gosta?Sua professora gosta da sua família? O que sua professora diz da suafamília?Se a professora não passa dever de casa, o que a sua mãe fala? E o queela fala quando a professora passa muito dever?
Rel
ação
fam
ília
e es
cola
Se você não conseguir fazer o dever de casa por algum motivo, o que aprofessora fala?Existe violência no IEPIC?Quem faz a violência no IEPIC?Me conta uma história de violência que tenha acontecido no IEPIC.Existe violência onde você mora?Quem faz a violência lá?Me conte uma história de violência que tenha acontecido onde você mora.Você tem medo de alguém na sua casa? Por que?Você tem medo de alguém na sua escola? Por que?
Vio
lênc
ia n
a es
cola
e n
a
casa
É certo bater no amigo? E se ele te bater primeiro?
Fala
da
cria
nça Se você pudesse mudar alguma coisa na escola, o que você mudaria?
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