Trans-Andara ENTREATO de Vicente Franz Cecim

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1 Viagem a Andara oO livro invisível TRANS-ANDARA Vicente Franz Cecim TEATRO

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Viagem a Andara oO livro invisível

TRANS-ANDARA

Vicente Franz Cecim

TEATRO

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ENTREATO

Para interpretação mímica dos dois personagens

por um único Ator

em cenário nu de qualquer elemento.

Ao mesmo tempo, um capítulo inédito do

Dom Quixote de la Mancha

que Cervantes não escreveu, pois, no fim do capítulo XXVIII, da parte II,

fez Dom Quixote e Sancho Pança adormecerem à noite

e, na frase seguinte, os despertou já na manhã seguinte

e os pos novamente em marcha

- sem revelar o que eles teriam sonhado.

O SONHO que eles tiveram é o ENTREATO

entre o PRÓLOGO e o EPÍLOGO da peça.

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PRÓLOGO

Gradualmente a cena se ilumina sobre a IMAGEM de Gustav Doré,

ao fundo, em grandes dimensões. VOZ, fora de cena, lê o texto

abaixo, primeiro a parte em espanhol, e, em seguida, a parte em

português. Ao fim da leitura, silêncio. Gradualmente e cena

novamente escurece.

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VOZ

y Don Quijote se acomodó al pie de un olmo y Sancho al de una haya, que

estos tales árboles y otros sus semejantes siempre tienen pies, y no manos. Sancho

pasó la noche penosamente, porque el varapalo se hacía más sentir con el sereno.

Don Quijote la pasó en sus continuas memorias, pero, con todo eso, dieron los ojos

al sueño

e eis que os Sonhos Mútuos vindo

se sonhando Pai e Filho,

houvessem eles, em Transe, despertado em Andara:

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ATO ÚNICO

Gradualmente a cena se ilumina sobre o ator.

ATOR

SONS INCIDENTAIS CONFORME SUA FALA.

me permites que fique aqui um pouquinho, ele disse, até que pare a chuva?

Mas que chuva, eu lhe disse, se não está chovendo, tu não estás ouvindo as pesadas

batidas das gotas caindo em toda a Terra, ele me perguntou, e eu parei um instante

de recordar as minhas pedras que havia esquecido em casa, se aquilo era uma casa, o

Fosso ou Nesga de vida onde eu morava, para prestar atenção nas tais gotas. Não

ouço nada, eu lhe disse. Nada? Ele me perguntou e, então, começou a tirar as roupas

com alívio, pois estava sentindo muito calor, me disse e me mostrou seu

corpo suado e

Vamos até o lago, me convidou, mas que lago, eu lhe perguntei, não vejo lago

algum, mas podes imaginar um lago, ele me disse, e então eu lhe disse que estava

sentindo falta das minhas pedras que havia esquecido naquele Destroço onde eu

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morava e que preferia voltar para buscar as pedras que nunca saía sem elas, do que ir

ao tal lago. Mas na margem do lago há muitas pedras, ele estava me dizendo, e não

vais te arrepender, de todos os tamanhos, cores, consistência, resistência, pesos,

formas. Há muitas redondas? Eu lhe perguntei. Redondas? Por que, ele me

perguntou, porque prefiro as redondas, eu lhe disse. Sim, sim, muitas redondas ele

me disse, e eu lhe perguntei essas redondas são grandes ou pequenas, e ele me disse

São do tamanho da tua cabeça e da minha. Isso não me garante nada, eu lhe disse,

porque tua cabeça é muito maior que a minha e certamente tu vais preferir as

maiores porque combinam mais contigo, eu, ele me disse espantado, eu? Não, estás

bem enganado a meu respeito, não me conheces. Ou me conheces de algum lugar, e

se me conheces de algum lugar exijo que tu me digas imediatamente, não tenho

muito tempo mais a perder. Cravou as unhas no meu rosto e isso fez com que

viessem à tona através da minha pele várias gotas de sangue, o que estás fazendo, eu

lhe perguntei, bastante zangado, não te bastam as gotas de chuva quando não há

chuva alguma caindo em toda parte e ainda me vens fazer gotejar o meu sangue, ora,

ele me disse, o lago é logo ali adiante, vamos logo e lá acabaremos com esta

diferença que se interpôs entre nós, como tu sabes, todo lago é feito de um número

infinito de gotas de água e lá nos poremos de acordo: eu encontro as gotas da chuva

que tanto procuro e tu poderás lavar o teu rosto e secar o teu sangue, mas, antes, eu

lhe disse, vou te fazer o mesmo que fizeste comigo, e lhe cravei também as minhas

unhas em seu rosto, pensei que fosse resistir firme como eu, que fosse um adulto,

mas começou logo a chorar e só então eu percebi que era apenas uma criança, não

me faças mal não me faças mal, eu lhe implorei, já agora também com os meus

olhos cheios de água: as Lágrimas, elas logo vêm jorrando em abundância ao menor

apelo que se faz a Elas, de onde tiraste o direito de me fazer chorar assim, eu lhe

disse, não te conheço de parte alguma, ainda agora estava aqui sozinho pensando nas

minhas pedras que ficaram lá em casa e tu me apareceste com essa tua conversa de

chuva, que chuva, que chuva, anda diz logo, eu lhe gritei. Mas como, ele me disse,

como não me reconheces se és o meu pai

ele me disse isso e foi logo correndo para mim com os braços abertos para me

abraçar, dizendo Papai, papai, finalmente te reencontrei desde que me perdi de ti por

haver nascido

pois como eu não o havia reconhecido logo? Era ele, sim, era o meu filho que

estava ali prestes a me abraçar,

mas não se pode confiar assim imediatamente em um estranho sem antes o

submeter às Provas, e então eu lhe disse, Pára onde estás.

Como posso ter certeza se és mesmo o meu filho ou não, ou se apenas te

pareces tão horrendamente com ele que o meu Medo já ia me fazendo te aceitar

como o meu filho perdido, sem te submeter a nenhuma prova? Isso, não. Tens que te

submeter às provas. Fui lhe dizendo isso enquanto ele se projetava todo para mim

com os braços abertos para me abraçar, mas sem deixar de manter as minhas unhas

enfiadas no seu rosto, no que estávamos na mesma situação, porque ele também não

retirara as suas unhas fincadas do meu rosto

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e assim ficamos um instante assim: ele com seu abraço suspenso no ar e eu

com a minha mão livre erguida diante de mim, para evitar a sua aproximação e o

desafogar de todo o seu desamparo de toda uma vida procurando pelo pai que havia

lhe dado origem, aquele abraço que mesmo que ele fizesse menção de me dar

somente com o seu braço livre me parecia que fosse me afundar sem remédio nas

minhas lágrimas que a essa altura já eram muito copiosas. Como vamos fazes agora?

Ele estava me perguntando. Não podemos ficar assim como estamos: tu com as tuas

unhas cravadas no meu rosto, eu com as minhas cravadas no teu, e o pior é que

estamos ambos chorando, eu lhe disse, e em vez de gotas da chuva que foram o

motivo de eu ter me aproximado de ti e parado um momento ao teu lado só recebo

de ti essas gotas de lágrimas, mas tu também estás chorando, eu lhe disse, e até

quando vais resistir a essa perda de sangue pois teu sangue goteja abundantemente

do teu rosto, é que não vês o teu próprio rosto, me disse ele, porque estás sangrando

tanto quanto eu, ora

eu disse, só vejo para nós dois uma saída: vamos juntos ao lago e lá

lavaremos os nossos rostos e depois nos despediremos um do outro como estranhos

que jamais tivessem se encontrado, concordas? Sim, ele disse, para mim está bem o

que propões, mas não volto atrás em nada de tudo que fiz até agora: mantenho

minhas garras no teu rosto e choro por ter te achado como se deve chorar ao se

recuperar um pai perdido, e eu, eu lhe perguntei, pensas que também não estou

quase começando a chorar pelas minhas pedras que esqueci lá em casa? E se nunca

mais achar o caminho da minha casa, e se quando eu voltar a ela, se um dia

conseguir voltar, já um Outro terá entrado furtivamente e levado com ele as minhas

pedras. Uma coisa eu te asseguro, eu lhe disse, te procurarei pela vida afora e te

darei uma surra brutalmente se por tua causa eu perder as minhas pedras, mas tu não

precisas me ameaçar com essa tal surra, ele me disse, pois sendo eu teu filho, não

devo reconhecer os direitos de um pai sobre um filho, sendo talvez o principal o

direito de me surrares até a morte, olha bem o que tu dizes, eu lhe disse, não é justo

que sendo tu um estranho que se chega a mim me pedindo que lhe revele a chuva

que perdeu por aí em suas peregrinações pela vida, por acaso és cego? não é justo,

como eu estava te dizendo, que ainda venhas me ameaçar de morte. Só podes ser

mesmo o meu Pai, ele me disse, porque consegues ler tão facilmente os meus

pensamentos, não há segredos em mim para ti, pois percebeste tão bem que quando

eu estava mencionando uma Morte de fato não me referia à minha, mas à tua: espero

que quando fores me surrar, me surres tanto que isso te custe a tua própria morte

pelo esforço gasto, não a minha. Maldito sejas, eu lhe disse, sem retirar as unhas do

seu rosto, no que continuávamos igualados, pois ele mantinha suas unhas em meu

rosto. E ficamos imóveis nos encarando: seu abraço continuava suspenso no ar e o

meu braço livre continuava erguido a minha frente para manter seu corpo afastado

do meu. Olha, eu disse, já quase nem posso mais ver o teu rosto, tal a quantidade de

gotas de lágrimas que saem dos meus olhos e esse véu de gotas de sangue que foi se

formando da mistura com as minhas lágrimas, se tudo isso não cessar rapidamente,

em breve irá te ocultar inteiramente de mim.

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Não, isso não, ele me disse, não quero justamente agora que te reencontrei

perder o meu pai novamente, já não sou tão jovem quanto pareço, e meus dias estão

quase se esgotando. Eu olhei bem firmemente para o rosto dele e por entre as gotas

de lágrimas e de sangue, as minhas lágrimas por ter me comovido tanto pelo fato do

meu filho perdido ter me reencontrado antes da nossa morte e as minhas gotas de

sangue por esse filho ter reaparecido assim tão subitamente me enfiando suas unhas

no rosto, mas nada puder comprovar sobre a sua idade, porque também as suas gotas

de lágrimas e do sangue que saia das feridas abertas pelas minhas unhas me

ocultavam inteiramente o seu rosto. Por que te ocultas assim de mim, eu lhe disse,

não sabes que eu sou o teu Pai e que entre pais e filhos não existem segredos? É bem

possível que assim seja, ele me disse, mas que garantias me dais de que és realmente

o meu Pai e não um estranho qualquer desses que de repente nos aparecem pela vida

se dizendo nossos pais, sem apresentar prova alguma disso?

Mas eu tenho as provas, eu lhe disse. Tu é que não tens provas alguma para

apresentar.

Enquanto assim discutíamos, íamos distraidamente nos movendo e quando

vimos já estávamos na margem do Lago. Comparemos, ele me propôs, comparemos,

se não tens confiança em mim, os nossos rostos nas águas do Lago. Sim, eu lhe

disse, com isso comprovarei que: ou ambos estamos errados, e não há a menor

semelhança entre nós, ou ambos estamos certos, e a semelhança dos nossos rostos

vai nos deixar lívidos de espanto, ou, embora tu te pareças comigo, eu não me

pareço em nada contigo, ou ainda que, embora eu me pareça contigo tu não

parecerás em nada comigo, e com isso ficará esclarecida essa ilusão e essa miserável

história para fazer crianças adormecerem, de que somos pai e filho, e poderíamos

seguir os nossos caminhos separadamente como sempre andamos pela vida, Papai,

ele me disse, como podes ser tão cruel assim comigo, fazendo com que o nosso

reencontro tantos anos esperado por mim possa ser desmentido pelo mero reflexo

dos nossos rostos num lago? Além do mais, eu lhe disse, se quiseres te aperceber

disso, vais ver que agora mesmo começou a soprar um vento dos mais violentos, e

as águas do Lago estão tão crispadas e agitadas que, misturando as imagens dos

nossos rostos,

não nos permitirão ver nada. E ficaremos órfãos, os dois, de uma Imensa

Dúvida.

Mesmo assim, ele me disse, eu insisto que ambos nos submetamos à Prova,

embora reconheça que nessas águas revoltas, e ainda por cima tendo, ambos,

os nossos rostos cobertos de gotas de sangue e lágrimas, as nossas chances de ver

claramente quais são as nossas relações estejam reduzidas à quase nada. Oh, eu lhe

disse, então queres tanto achar o teu Pai assim, que chegas ao ponto de desafiar a

própria Natureza, e expandir os seus limites impostos aos homens, só faltava agora

que me mandasses fazer parar o Vento.

Pois é exatamente o que te peço, ele me disse, porque se és o meu Pai tão

procurado, não podes me negar assim logo o meu primeiro pedido, e se não o fazes,

ficarei achando que não o fazes menos porque não queres, do que porque não podes

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atender ao meu primeiro pedido, que prova eu poderia obter mais definitiva que esta

de que me enganei achando que havia achado o meu Pai? Ah, ah, eu lhe disse, com

um sorriso de anjo decaído, um tanto sarcástico, então me negas, eu lhe gritei no

rosto, enquanto uma lufada mais violenta do Vento ia me atirando no Lago, onde eu

então submergiria para sempre e me livraria desse Filho que assim me nascera

repentinamente do Nada de quem todos somos filhos, perdidos, Vou fazer as minhas

últimas orações, eu lhe disse, e já estava prontamente preparado para imergir quando

ele me puxou de volta para a margem usando as unhas que não retirava do meu

rosto, aquelas garras, que força tu tens, meu Filho, eu lhe disse, e a minha admiração

por seu vigor crescia velozmente, pois logo notei que embora fosse ainda uma

criança, já tinhas músculos poderosos, que saltavam aos olhos de sob a pele que

cobria o seu corpo, és um filho bem forte, eu lhe disse. Nesse instante,

se alguém fosse passando por ali e nos visse assim: eu com a minha

expressão de admiração e orgulho, e ele exibindo toda a sua musculatura em favor

do seu Pai finalmente reencontrado,

quem passasse não poderia deixar de derramar também algumas lágrimas,

comovidas. Agora, ele me dizia, estou percebendo que vai começando a cair sobre

nós a noite, e isso me deixa bastante preocupado, porque deveria voltar para casa

antes do anoitecer: meu pai está lá me esperando, e se demoro além do que nós

combinamos antes que eu saísse, em busca do meu Pai, é quase certo de que ele irá

se vestir às pressas e sair atrás de mim, me procurando por toda parte. Sim, eu lhe

disse, vejo que és um bom filho, e por isso te quero para mim, embora não te

reconheça como filho, talvez porque manténs as tuas unhas no meu rosto e as

minhas lágrimas e as minhas gotas de sangue me impeçam de te ver nitidamente.

Ora, ele disse, se pensas que com esse argumento vais me fazer retirar as

minhas unhas do teu rosto, estás bem enganado. Além do mais, foste tu mesmo o

culpado: se tivesses me dado a devida atenção assim que te apareci e te dispusesses

a ouvir as batidas das gotas de chuva caindo por toda a Terra, como eu havia te

pedido que ouvisses, nada disso nos teria acontecido e a estas horas eu já estaria de

volta à minha casa e nos braços do meu pai: imagino seu desespero, por não me ver

de volta ainda, isso já está passando de todos os limites, tão velozmente quanto esta

Noite cai sobre este Lago. E quero te avisar, para que depois não te mostres

surpreendido, que tudo o que aconteceu entre nós será contado minuciosamente ao

meu pai que agora pobre homem corre nas Trevas procurando por mim, enquanto tu

te manténs insistentemente iluminado pelo luar desta Lua que agora vem se refletir

nas águas do Lago

como se quisesses me forçar a ver o teu rosto ao luar como não conseguiste

que eu o visse claramente à luz do sol, mas eu te asseguro que, mesmo à luz da Lua,

não te pareces em nada com o meu Pai. Ele ia dizendo isso

e já eu o estava puxando para nos ocultarmos atrás do tronco de uma Árvore,

pois ouvira passos precipitados, uma respiração arfante, um tropel de animal

correndo atravessando a Noite e de nós se aproximando - Pai, ele quis gritar,

chamando

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mas lhe tapei a boca enquanto o Homem desesperado passava e sumia

novamente na Noite da qual havia surgido, e, lhe disse suavemente, para que não se

assustasse com a minha Voz: por que me chamas, já me tens aqui contigo

- Pai, ele me disse, então tu és o meu Pai?

- Certamente, eu lhe disse.

O tropel foi se afastando e desaparecendo longe. Aqueles cascos

- Onde está tua irmã, minha filha? Eu lhe perguntei.

- Como posso saber, ele disse, irrompendo em prantos. Todos me asseguram

que sou filho único. Soluçou.

Mas logo já estava me espancando com um galho arrancado da Árvore, e me

gritava, Me contaram tudo, não podes mais fugir à tua culpa, não negues, pois sabes

bem que tu a mataste. Eu, eu lhe disse com espanto, eu? Como poderia, se nunca

tive uma filha, se nunca tive filho algum. Não terá sido aquele que acaba de passar

por nós, aquele animal desesperado, buscando nesta Noite por um filho que perdeu

para sempre? Ele não passou correndo ao luar inutilmente?

Deixa então que eu o chame, para comparar o meu rosto ao dele, ele me disse,

se não és o meu Pai, não tens nada a temer,

Sim, pode ser, eu lhe disse, chama por ele. Mas não será a sua Dor: a desse

que acaba de passar por nós, meu filho, meu Filho tão querido, enfim reencontrado,

pois quanto te procurei, minha criança, toda a minha vida e já estava perdendo a

esperança de te encontrar quando me apareceste assim de repente procurando abrigo

da chuva,

não será a Dor dele, te asseguro, prova suficiente de que é o teu Pai,

e para perceber a diferença entre nós bastará que compares a dele com a

minha própria dor, e vejas como ela é Imensa,

já que não tiras as tuas garras do meu rosto e parece que nunca mais irás tirar,

vê ao menos isso, que a minha é uma dor muito maior que a dele, eu te asseguro, e

como Pai que sou te advirto:

- Cuidado,

pois esse estranho poderá muito bem voltar, com seu tropel desesperado,

e do fundo do seu Desespero tentar te iludir, fingindo que está sentindo

profundamente a tua falta, e que sofre imensamente por não teres ainda voltado à tua

casa, pois, sem dúvida, ele poderá voltar, se for chamado, com a intenção de enganar

a nós dois

Mal acabava de dizer estas palavras, aconchegando a ele no meu peito

E já estava aquele Outro voltando, assustado, passando por nós sem nos ver

tanto lhe cegava o seu desespero de Animal buscando através da Noite não se saberá

o que

sim, agora eu lembro: um filho perdido,

temendo que algum outro se fizesse passar por seu pai

e o roubasse dele, seu legítimo pai, assim correndo na noite com os olhos

cheios de lágrimas, já sentindo e imaginando como seria grande e dolorosa a sua

perda,e então

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- Pai, ele gritou de novo

o Outro parou na margem do Lago

espreitou os Ares, na ausência ruidosa do seu Tropel, havia se instalado ao

redor de nós um Silêncio sem nem brisas que agitassem as águas do Lago, sem o

menor murmúrio da Noite

a Lua quieta sobre nós, e seu reflexo de outra Lua nas águas.

- Vê, eu lhe disse, assim como a lua pode se enganar achando que há outra

Lua na superfície do Lago, sem saber que é ela mesma que está aí refletida

como haverás de te iludir com esse Outro, aí, diante de nós, arfando,

ao ponto de achares que ele, e não eu, sou o teu Pai?

Sim, ele me disse, há tantos Encantamentos se lançando através da vida, os

outros nada sabem sobre nós, os outros, e nós nada sabemos sobre nós mesmos,

então, eu lhe disse, deixemos que esse Animal também vá embora, também passe,

como o outro que antes passou por nós nas agonias do seu desespero, se perdendo

nesta noite,

pois, afinal, que garantia poderemos ter de que ele é o mesmo, que é o teu

Pai, o que passou por nós antes, e que agora está de volta? São tão semelhantes esses

Animais Desesperados, tornados assim tão iguais pela Dor que sentem, que

facilmente nos enganam com falsas aparências. E, além do mais, se o teu Pai já

passou por nós sem nos ver, por que tu deverias procurar por ele,

se já me tens aqui contigo, ó meu Filho?

Sim, o que posso querer mais da vida, ele me disse.

Nesta Noite assim, tão escura que já vai devorando a Lua em suas dobras de

Trevas, já não tenho a ti, meu Pai, e já não estamos tão unidos quanto sempre

estivemos, eu com as minhas unhas cravadas no teu rosto, tu, com as tuas unhas

cravadas no meu, e já não tenho o consolo pela minha grande espera de um dia te

encontrar ao te ter aqui comigo, com os olhos cheios de Lágrimas, como os meus

estão cheios de Lágrimas por finalmente termos nos achado, e se não encontrei a

Chuva que buscava, se não ouviste como te pedi as batidas das suas gotas caindo

sobre toda esta Terra onde é tão comum isso de filhos que buscam por pais e pais

que buscam por filhos, ambos com tão reduzidas chances de se encontrarem,

enquanto aqui, agora, posso ouvir, como uma compensação, e tão

nitidamente,

as gotas de sangue que brotam de sob as nossas unhas cravadas em nossos

rostos, caindo, pesadas, no chão, na margem deste Lago onde talvez tenham caído

todas as chuvas, todas as suas gotas aqui se reunindo, e aqui é que ela, a Chuva, me

esperava, ó Pai?

Deixemos todas as nossas inquietações para amanhã, meu Filho, eu lhe disse.

Agora, a melhor coisa que faríamos seria nos deitarmos debaixo daquela árvore

e repousar. Adormecer. Um novo dia já irá nascer

- E a cada dia se renovam as nossas esperanças, não é, Pai? Ele me disse

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eu ainda podia ouvir, longe, desaparecendo, mergulhando cada vez mais na

distância, o tropel do pai daquela criança, que a procurava, atravessando a Noite

desesperado sob a Lua

Filho, eu disse, ouve

Mas ele já havia adormecido com a cabeça pousada no meu peito

Sentindo as suas unhas sempre cravadas no meu rosto, e sem retirar as

minhas unhas do seu

o que mais então eu poderia fazer, senão, apertando o seu corpo contra o

peito, adormecer, também, soluçando

Gradualmente a cena novamente escurece.

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EPÍLOGO

Gradualmente a cena novamente se ilumina sobre a segunda

IMAGEM de Gustav Doré, ao fundo, em grandes dimensões. VOZ,

fora de cena, lê o texto abaixo, em espanhol. Ao fim da leitura,

silêncio. E gradualmente e cena novamente escurece.

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VOZ

y al salir del alba siguieron su camino

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IMAGENS:

Do PRÓLOGO

Gustav Doré: ‘dieron los ojos al sueño’

Do EPÍLOGO

Gustav Doré: ‘y al salir del alba’

Fragmentos dos originais de Cervantes:

Extraídos de ‘Cervantes/Obras completas’ (Aguilar, Madri, XVIII edição, 1975).

Tomo II. Novelas. Don Quijote de la Mancha, parte II, capítulo XXVIII, página 691.