Tarzan - Livro 01 - Tarzan Dos Macacos - Edgar Rice Burroughs

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  • Tarzan filho de ingleses, porm foi criado por macacos (manganis, na linguagem dos smios, criada por Burroughs) na frica, depois da morte de seus pais. Seu verdadeiro nome John Clayton III, Lorde Greystoke. Tarzan o nome dado a ele pelos macacos e significa Pele Branca. uma adaptao moderna da t radio mito lg ico- l i terr ia de her is c r iados por animais.Podendo ser relacionado com Mowgli de Kipling, Rmulo e Remo, e mesmo Robinson Crusoe de Daniel Defoe, ele , no entanto, diferente de todos eles, porque Edgar Rice Burroughs, seu autor, soube enquadr-lo num mundo, dar-lhe uma linguagem prpria, criar-lhe aquilo a que literariamente hoje se pode chamar um Universo, o Universo de Tarzan.

  • Assiste-se, atualmente, em todo omundo ao ressurgimento de Tarzan.NaFrana,porexemplo,ondeumdecreto-leiassinadopelomarechalPetain,comadatade21deSetembrode1941,baniuporcompletodastelas,dosjornaisedaslivrariasonomedeTarzan,nuncasechegouapublicarcompletamentetodososseus livros.Aofaz-loagoraumaeditorafrancesa,conheceuumxitonico, jquenoVerode1970osdois livrosmaisvendidosforam:LeParrai, deMarioPuzo(quetratadaMfia)easrieTarzan.Numrpidoinquritofeito,verificou-se que os seus leitores eram de todas as idades, desde os 12 at aos quarentaanos,masapredominnciaeraexercidaporumpblicodevinteecincoatrintaecincoanos.

    Porquestexitoconstantedeumpersonagemquenasceuem1912,quaseenvergonhado,naspginasdeuma revistapopularchamadaAll Story?Podendoser relacionado comMowgli de Kipling, Rmulo e Remo da Bblia, e mesmoRobinson Crusoe de Daniel Defoe, ele , no entanto, diferente de todos eles,porqueEdgarRiceBurroughs,seuautor,soubeenquadr-lonummundo,dar-lheumalinguagemprpria,criar-lheaquiloaqueliterariamentehojesepodechamarumUniverso-oUniversodeTarzan.

  • CAPTULO1

    NomarConheciestahistriaatravsdealgumquenotinhaqualquerinteresseem

    contar-me,ouemcont-la aquemquerque fosse.Devo-a, talvez, influnciaexercida, sobre o narrador, por um excelente vinho. Pelo menos quanto aoprincpio.E, durante os captulos que se seguiram at conclusoda estranhanarrativa,influenciouseguramenteaminhaprpriaincredulidade.

    Quandoomeujovialanfitriodescobriuquetinhacontadotantacoisaequeeuestava inclinadoaduvidar,oseu toloorgulhoretomoua tarefaqueovinhogeneroso principiara, e foi assim que me mostrou provas, sob a forma de umvelhomanuscrito e de antigos registros doDepartamentoColonial Ingls, paraapoiarmuitosdosmaisrelevantesaspectosdasuanotvelnarrao.

    No digo que a histria seja verdadeira, porque no testemunhei osacontecimentosaqueelaserefere,masofatode,aocont-la,euatribuirnomesfictciosaosprincipaisprotagonistas,demonstrasuficientementeasinceridadedaminhaprpriaconvicodequepodeserverdadeira.

    Asvelhaspginasamareladasdodiriodeumhomemquemorreuhmuitosanos,eosregistrosdoDepartamentoColonial,concordamperfeitamentecomanarrativa do meu jovial hospedeiro. Assim, eu reproduzo a histria tal comolaboriosamenteareconstituutilizandoessasdiversasfontes.

    Seoleitornoaacharcrvel,pelomenosconcordarcomigoemconsiderarque nica, notvel e interessante. Pelos registros doDepartamentoColonial,comopelodiriodohomemquemorreu,ficamossabendoqueumjovemnobreingls, a quem chamaremos John Clayton, LordGreystoke, foi encarregado delevar a cabo uma investigao especialmente delicada sobre as condies devidanuma colnia inglesa, na costa ocidental de frica, entre cujos indgenas,criaturas simples, uma outra potncia europia, segundo se sabia, estavarecrutando soldados para o seu exrcito de nativos - exrcito que utilizavaexclusivamenteparafazerarecolhaforadadaborrachaedomarfim,nastribosselvagensaolongodoCongoedoAruwimi.

    Osindgenasdacolniainglesaqueixavam-sedequemuitosdosseusjovenseram aliciados por meio de promessas tentadoras, mas que poucos delesregressavamparajuntodassuasfamlias.

    Osinglesesdefricaiamaindamaislonge,fazendoqueessespobresnegroseram mantidos praticamente em escravido, visto que, quando terminava otempodoseualistamento,osoficiaisbrancos,explorandoaignornciadeles,lhes

  • diziamquetinhamaindadeservirdurantevriosanos.AssimoDepartamentoColonialnomeou JohnClaytonparaumnovoposto

    nafricaOcidentalInglesa,masasinstruesconfidenciaisincidiamsobreumainvestigaocompletaquantoao injusto tratamentodesditos ingleses,negros,pelosoficiaisbrancosdeumapotnciaeuropiaeamiga.As razespelasquaisele foienviado, todavia, sodeescasso interesseparaestahistria,porquenochegouafazerqualquerinvestigaonem,defato,chegousequeraoseudestino.

    Clayton era o tipo de ingls que gostamos de associar comosmais nobresmonumentos de histricas proezas sobre centenas de campos de batalha -umhomemforteeviril,tantomentalmentecomomoralefisicamente.

    Tinha uma estatura acima da mdia, olhos cinzentos, feies corretas efirmes,umportealtivoqueindicavaumasadeperfeitaeanosdetreinomilitar.Ambiespolticas tinham-no levadoapedir a transfernciadoexrcitoparaoDepartamentoColonial,eassimvamosencontr-lo,aindanovo,encarregadodeumadelicadaeimportantemissoaoserviodaRainha.

    Quando recebeu a sua nomeao, ficou ao mesmo tempo contente eperplexo. A preferncia parecia-lhe ter o aspecto de uma bem merecidarecompensa por laboriosos e inteligentes servios, um patamar para postos demaior importncia e responsabilidade. Mas, por outro lado, tinha casado trsmesesantescomMissAliceRutherford,eeraaidiadelevarasuajovemmulherparaoisolamentoeosperigosdafricatropical,queodeixavaperplexo.

    Por amor dela teria recusado a nomeao, mas Alice no o consentiu,insistindo,pelocontrrio,emqueaceitasseealevasseconsigo.

    Me e irmos, irms, tias e primos, manifestaram vrias opinies sobre oassunto,masahistrianocontaquaisosconselhosquederam.Sabemosapenasque,numaluminosamanhdeMaiode1888,John,LordGreystoke,eLadyAlice,embarcaramemDoveracaminhodefrica.

    UmmsdepoischegaramaFreetown,ondefretaramumpequenoveleiro,oFuwalda, que devia lev-los ao seu destino final. E, nesse ponto, John, LordGreystoke, e Lady Alice, sua mulher, desapareceram dos olhos e doconhecimentodoshomens.

    DoismesesdepoisdoFuwaldalevantarferroepartirdoportodeFreetown,meiadziadenaviosdeguerra,britnicos,percorreramoAtlnticoSulembuscadelesoudopequenoveleiro,enotardouqueosdestroosdesteltimofossemencontrados no litoral de Santa Helena. Isto convenceu o mundo de que oFuwalda se perdera com corpos e bens, e destamaneira as buscas terminaramquandomal haviam principiado - embora a esperana persistisse, em coraessaudosos,durantemuitosanos.

  • O Fuwalda, um barco de cerca de cem toneladas, era do tipo dasembarcaes que se encontravam freqentemente em servios costeiros noextremoSuldoAtlntico -comtripulaescompostasporautnticaescriadomar,criminososfugidosdaforcaerufiesdetodasasraasenaes.

    OFuwaldano constitua exceo regra.Osoficiais eramhomens rudes,violentos, que odiavam os tripulantes e eram odiados por eles. O capito,conquanto fosse ummarinheiro competente, era feroz namaneira de tratar osseus homens. Conhecia, ou usava, pelo menos, apenas dois argumentos paratratar com eles, o cacete ou o revlver, e pouco provvel que os tripulantescontratadosporeletivessemcompreendidooutros.

    Aconteceu assimque, ao segundodia depois da partida deFreetown, JohnClayton e a sua jovemmulher assistiram a cenas, no convs do Fuwalda, quenuncahaviamjulgadopossveisforadascapasdoslivrosquecontavamhistriasdomar.

    Foinamanhdosegundodiaquecomeousendoforjadoumelodoqueviriaa formarumacadeiadeacontecimentosdosquais resultaria,paraalgumaindanonascido,umavidasemparalelonahistriadahumanidade.

    Doismarinheirosestavam lavandooconvsdoFuwalda,oprimeiromestreencontrava-sedeservio,eocapitodetivera-separafalarcomJohnClaytoneLadyAlice.Oshomenstrabalhavamrecuandonadireodopequenogrupo,queporsuavezestavadecostasparaeles.

    Foram-seaproximandoatqueumficoudiretamenteatrsdocapito.Seessehomemtivessepassado,estaestranhanarrativanuncateriasidoregistrada.Mas,nessemomento,ooficialvoltou-separaseafastardeLordeLadyGreystokeaofaz-lo tropeou no marinheiro e caiu ao comprido no convs, entornando obalde,demaneiraqueaguasujaoencharcou.

    Porinstantes,acenafoisimplesmenteridcula,massporuminstante.Comuma rajada de violentas pragas, a cara congestionada pela raiva e pelahumilhao, o capito levantou-se e, com um tremendo soco, derrubou omarinheiro. O homem era idoso e de pequena estatura, de forma que abrutalidadedogestosetornoumaisflagrante.Ooutromarinheiro,todavia,noeravelhonembaixo-corpulentocomoumurso,comumbigodenegroegrosso,fortepescoodetouroentreenormesombrosmacios.

    Ao ver o companheiro cair, o homem curvou-se e, com um rugido surdo,lanou-se sobre o capito e aplicou-lhe um soco violento que o fez cair dejoelhos.De vermelho que estava, o capito ficou lvido - porque aquele gestosignificavaummotimabordo.E,nasuacarreiradeviolncias,ocapitojhaviaantesenfrentadoedominadomotins.Semmesmoselevantar,tirouorevlverdo

  • bolsoedisparou-oqueima-roupasobreamontanhademsculosqueseerguiasobreele.Noentanto,emboraomovimentofosserpido,quasetorpidafoiainterveno de Lord Greystoke. A bala, dirigida ao corao do marinheiro,acertou-lhenumaperna,porqueJohnClaytonbateranobraodocapitoassimqueovirapuxarpelaarma.

    Houveuma trocadepalavrasentreClaytoneocapito,emqueoprimeirodeclarouclaramentequelherepugnavaabrutalidadecomqueostripulanteseramtratados e que no suportaria cenas de tal gnero enquanto ele e Lady Aliceestivessem a bordo. O capito esteve prestes a dar uma resposta irada, maspensandomelhor deumeia volta e afastou-se, grunhindo entre dentes.No seatrevia a hostilizar um oficial ingls, porque o poderoso brao da rainhamanobrava um instrumento de castigo que ele conhecia e temia - a Armadabritnica.

    Os dois marinheiros levantaram-se, o mais velho amparando o camaradaferido.Este,queeraconhecidoentreosseuscompanheirosporBlakeMichael,experimentoureceosamenteapernae,verificandoqueelaagentavaoseupeso,voltou-separaClaytoncomumapalavraderudeagradecimento.

    Embora o tom fosse brusco, as palavras do homem tinham evidentementeumaboainteno.Concluiuspressasobrevediscursoeafastou-se,coxeando,na direo da proa, na aparente inteno de fugir a um prolongamento daconversa.

    Novoltaramaverohomemdurantevriosdias, epor seu ladoocapitono lhes concediamais do quemonosslabos contrariados, quando era foradofalando com eles. John Clayton e Lady Alice tomavam as suas refeies nocamarotedocapito,comotinhamfeitodesdeoprimeirodia,masestearranjava-sedemaneira aqueos seusdevereso impedissemde comer aomesmo tempoqueeles.

    Os outros oficiais eram homens rudes, iletrados, pouco acima, em posiosocial,dostripulantesaquemmaltratavam,efugiamaqualquercontactocomonobreinglsesuamulher.

    De modo que os Claytons se viram entregues a si mesmos, quasecompletamente.O fato, emsi, estava emperfeito acordocomos seusdesejos,masporoutro lado isolava-osdavidanopequenoveleiro -demaneiraquenopodiamestarcientesdosacontecimentosdiriosqueembreveiriamculminaremsangrentatragdia.

    Havia, no ambiente dobarco, essa qualquer coisa indefinvel quepressagiadesastre. Aparentemente, que os Claytons soubessem, tudo corria como antes;mas ambos sentiam a aproximao de um perigo desconhecido, embora no

  • falassemarespeito.NosegundodiadepoisdeBlackMichael tersidoferido,Claytonchegouao

    convsatempodeverocorpoinertedeumdostripulantes,queeralevadoparabaixoporquatrodosseuscamaradas,enquantooprimeiromestre,empunhandoumpesadocacete,olhavaferozmenteparaopequenogrupo.

    Claytonnofezperguntas-noprecisavafaz-las-enodiaseguinte,quandoograndevultodeumnaviodeguerra, ingls, surgiunohorizonte, estevemeiodecididoa exigirqueLadyAlicee ele fossem levadosparabordo.EstavacadavezmaisconvencidodequenadadebompoderiaresultardasuapermanncianosombrioedesagradvelFuwalda.

    Cercadomeio-dia estavamaoalcancedevozdonavio ingls,masquandoClaytonsedispunhaasolicitarasiloaocapito,obvioridculodeumtalpedidotornou-se bruscamente flagrante. Que razes poderia ele apresentar, aocomandantedobarcodeSuaMajestade,paradesejarvoltarparaoportodeondeexatamente viera ? E se ele declarasse que dois marinheiros insubordinadoshaviam sido rudemente tratados pelos seus oficiais ? Ririam dele, emboradiscretamente,eatribuiriamoseudesejodesairdoveleiroaumanicacausa-covardia.

    JohnClayton,LordGreystoke,nopediuparasertransferidoparaonaviodeguerrabritnico.Nessamesmatardeviuograndevultodesaparecernohorizontedistante,masnoantesdetersabidooqueconfirmavaosseusmaioresreceioseo fezmaldizer o falso orgulho que o impedira de procurar, umas horas antes,quando isso erapossvel, a seguranapara a sua jovemmulher, uma seguranaagoradefinitivamentedesaparecida.

    Era ameio da tarde quando o velhomarinheiro, que havia sido derrubadodiasantespelocapito,seaproximoudopontoondeseencontravam,encostadosamurada,vendosumirnohorizonteonaviodeguerra.Ovelhoestavapolindoosmetais,eaochegarpertodeClaytondisse,emvozbaixa:

    -Vaihaverbarulhonestebarco,sir,enoesqueaoqueeudigo.Vaihaverbarulho.

    -Quequerdizercomisso,meuamigo?...perguntouClayton.-Notemvistooquesepassa?Noouviudizerqueocapitoeosoficiais

    tm aleijadometade da tripulao?Duas cabeas partidas, ontem, e trs hoje.BlackMichaelestoutravezcomonovo,enohomemparaseficarcomestascoisas.Podetercertezadisso.

    -Querdizerqueatripulaopretendeamotinar-se?- Amotinar-se?... -quase gritou o velho. - Amotinar-se? Essa gente quer

  • assassinar-nos,soueuquemodiz.-Quando?-Notarda,sir.Notardamaseunovoudizer-lhesquando.Jfaleidemais.

    masoSenhorfoicorreto,nooutrodia,eeupenseiquedeviaavis-lo.Nofalenocasoequandoouvirtirosvparabaixoefiquel.Tenhacuidadoenofale.senometem-lheumabalanascostelasesoueuqueodigo.

    E o velho marinheiro continuou a polir os metais, afastando-se do pontoondeosClaytonsseencontravam.

    -Umaperspectivaanimadora,Alice...-comentouClayton.-Deveavisarimediatamenteocapito,John...-disseela.-Talvezsepossaaindaevitaropior.- Suponho que deveria. mas por motivos puramente egostas estou quase

    decidido a no falar. Faamoshomenso que fizerem, agoranospouparo emreconhecimentoporeusalvaravidadeBlackMichael.Mas,sedescobriremqueostra,noterocontemplaesconosco,Alice.

    -S temumdever, John. e essedever consiste emdefender as autoridadesconstitudas. Se no avisar o capito, ser to responsvel pelo que acontecercomosetivesseajudadoaconspirao.

    -Vocnocompreende,querida,-replicouClayton.-emvocqueestoupensando,eomeuprimeirodeveresse.Ocapitoprovocouasituaoemquevai encontrar-se. Portanto, porqu arriscar minha mulher aos horroresimpensveisdeumaameaadesseshomens,numatentativaprovavelmenteintilpara o salvar das conseqncias dos seus prprios erros? Voc no faz idia,querida,doqueaconteceriaemtalcaso,seessesrufiesconseguissemdominaroFuwalda.

    -O dever o dever, John, e nenhum argumento pode alterar isto.Eu noseriadignadetercasadocomumLord,setivessedeserresponsvelpelofatodeele no cumprir umdever ntido.Compreendo o perigo que poderemos correr,masestouprontaaenfrent-locontigo.

    - Seja como quiser, ento... - respondeu ele, sorrindo. - Talvez estejamosinventando complicaes. Embora eu no goste do aspecto das coisas abordodeste barco, talvez no venham sendo assim to ms. possvel que ovelhomarinheiroestivesseadarvozaosdesejosdoseudio,emvezdesereferira fatos reais.Motins no altomar talvez fossem freqentes h uma centena deanos,masnesteanodegraade1888soacontecimentosbastanteimprovveis.A vai o capito para o seu camarote, agora, Se tenho de avis-lo, mais valeacabarjcomisso,porquenotenhoestmagoparafalarcomessebruto.

  • Com estas palavras, John Clayton encaminhou-se descuidadamente para opassadioe,ummomentodepois,batiaportadocamarotedocapito.

    - Entre. - respondeu a voz rouca do oficial. E acrescentou, ao ver queClaytonentravaefechavaaportaatrsdesi:-Oqueh?

    -Venhoparainform-lodeumaconversaqueouvihoje.Pensoque,emborano haja nada de concreto, deve estar precavido. Em resumo, os homenspreparamummotim.

    -mentira! - rugiu o capito. -E se esteve novamente a interferir com adisciplinadestebarco,ouameter-senaquiloquenolhedizrespeito,podesofrerasconseqnciaseirparaoinferno!Noquerosaberseumlordouno!Eusouocapitodestenavio,edaquiemdiantenosemetanaminhavida!

    O capito tinha-se exaltadode talmaneira que tinha a cara congestionada.Gritou a plenos pulmes as ltimas palavras, sublinhando cada frase comtremendossocossobreamesa,aomesmotempoqueagitavaooutropunhonadireo de Clayton. Este manteve-se impassvel, olhando calmamente para oexcitadohomem.

    -CapitoBillings.-disseele,porfim.-Sedesculpaaminhafranqueza,devofazer-lhe notar que um perfeito asno. Com estas palavras, deumeia volta eafastou-se,comoindiferente-vontadequelheerahabitualequeseguramenteiafazerexplodirumhomemcomoBillingsnumatorrentedeimproprios.

    Assim, embora o capito pudesse facilmente ter sido levado a lamentar assuaspalavrasprecipitadas,seClaytontivessetentadoconvenc-lo,asuairritaoestavaagorairrevogavelmentenopontoemqueolordacolocara,edesapareceualtimapossibilidadedeseentenderemparabemdeambos.

    -Bem,Alice... -disseClayton,quando regressoupara juntode suamulher,creio que poderia ter poupado palavras e flego. Esse homem mostrou-seextremamenteingrato.Quasesaltouparamim,comoumcoraivoso.Eleeoseubarco podem ir para o inferno, pelo que me diz respeito. Se estarmos emseguranaforadisto,usareitodasasminhasenergiasemolharpornsprprios.Creioqueoprimeiropassoparaessefimservoltaraonossocamarote,paraeuverificarosmeusrevlveres.Lamentoqueasarmasmaiores tenham idoparaoporo,comabagagem.

    Encontraram o camarote num estado de completa desordem. As roupas,tiradasdasmalas edos sacos, estavamespalhadas, e at as camashaviamsidoviolentamenterevolvidas.

    -evidente,quealgumestavamaisansioso,arespeitodasnossascoisas,doquensprprios.--comentouClayton.-Vejamosoquefalta,Alice.

  • Umabuscacuidadosarevelouquenadatinhasidoroubado,anoserosdoisrevlveres de Clayton e a pequena quantidade de munies que ele tinhaseparado.

    - Exatamente as coisas que eu mais desejava tivessem deixado. - disseClayton-.eofatodeasteremlevadoparece-mepelomenossinistro.

    -Quefazemosagora,John?Talveztivesserazoemdizerqueanossamelhorpossibilidade estava emmantermo-nosneutros. Seosoficiaispuderemevitaromotim, nada temos a recear, mas se os amotinados vencerem, a nossa frgilesperanaestariaemnotertentadotomarpartidocontraeles.

    - Tem toda razo, Alice. Vamos manter-nos no meio da estrada. Quandocomeavamapr emordemocamarote,Claytone amulherviram, aomesmotempo,umpedaodepapelqueapareciapordebaixodaporta.

    Claytonbaixou-separaapanh-lo.e ficousurpreendidoaov-lodeslocar-semaisparadentro.Compreendeuentoquealgumestavaaempurr-lo,do ladodefora.Rpidoesilenciosodeumaisumpasso,estendendoobraoparaabriraporta,masAlicesegurou-lheopulsoquandoeleiadarvoltaaopuxador.

    - No, John. - sussurrou ela. - Eles no querem ser vistos, portanto nodevemoscontrari-los.Noseesqueadequenosmantemosnomeiodaestrada.

    Claytonsorriueficouimvel.Ficaramambosaolharopedaodepapelatqueesteparou,completamentedoladodedentro.EntoClaytonapanhou-o.Eraum pedao de papel branco, sujo, toscamente dobrado em quatro. Viram umabrevemensagem,quaseilegvel,numaletraquemostravaclaramenteotrabalhopenosodequemescrevera.

    Traduzida, era um aviso para os Claytons no se queixarem da perda dosrevlveres e no repetirem o que o velhomarinheiro havia dito -sob pena demortesenoobedecessem.

    - Acho que no temos outra soluo. - disse Clayton, com um sorrisocontrafeito.-Tudooquetemosdefazerficarquietos,esperadoquevenhaaacontecer.

  • CAPTULO2

    AcasanaselvaNotiverammuitoqueesperar,poisnamanhseguinte,quandoClaytonsaa

    doseucamaroteparaohabitualpasseiopeloconvs,antesdopequenoalmoo,estalouumadetonao,elogooutra,eaindaoutra.Oqueeleviuconfirmouosseus piores receios. Enfrentando o pequeno grupo de oficiais, estava toda atripulaodoFuwalda,comandadaporBlackMichael.

    primeira salva de tiros, dos oficiais, os homens correram em busca deabrigos.Ento,depontosestratgicos atrsdosmastros,da rodado lemeedacabina central, responderam ao fogo dos cinco indivduos que constituam aautoridadeodiadaabordodobarco.

    Dois dos tripulantes tinham cado sob as balas disparadas pelo capito, eestavamnos lugaresondehaviamtombado,entreoscombatentes.Masentooprimeiromestrerolounoconvs,eaumsinaldeBlackMichaelosamotinadoslanaram-seaoataquedosoutrosquatro.Oshomensapenashaviamreunidoseisarmasdefogo,eamaiorpartedelesempunhavamcroques,machadosgrandesepequenos,ealavancasdeferro.

    Ambos os grupos praguejavam e blasfemavam de terrvel maneira, o que,conjuntamentecomasdetonaeseosgritosdosferidos,transformavaoconvsdoFuwaldaemqualquercoisasemelhanteaumpesadelo.

    Antes queos oficiais pudessem recuarmeia dzia depassos, os tripulantesestavam sobre eles. Ummachado, brandido por um negro corpulento, abriu acabeadocapito,desdeatestaatoqueixo.Instantesdepoisosoutrosestavamderrubados,mortosouatingidospordezenasdegolpesoubalas.

    Brevee feroz tinha sidoo trabalhodosamotinadosdoFuwalda.Durantealuta, John Clayton permanecera tranqilamente encostado junto da sada dopassadio,fumandopensativamenteoseucachimbocomoseestivesseassistindoa um desafio de cricket sem grande interesse. Quando o ltimo oficial caiu,Clayton pensou que era hora de voltar para junto de sua mulher, no fossemalgunsdoshomensdatripulaoencontr-laembaixo,sozinha.

    Embora exteriormente calmo e indiferente, ele no deixava de se sentirapreensivo e inquieto, intimamente. Receava pela segurana de Alice entreaqueleshomensmeioselvagens,emcujasmosasorteosentregara.Quandosevoltou,paradesceraescada,ficousurpreendidoaovera jovemdepnumdosdegraus,logoatrsdele.

    -Hquantotempoestaqui,Alice?

  • -Desdeoprincpio, John.Que coisa horrvel!Que esperanapodemos ter,empoderdetalgente?

    - A esperana de que nos sirvam o pequeno almoo. respondeu John,sorrindocorajosamente,numatentativaparaatenuarosreceiosdela.-Pelomenosoquevoudizer-lhes.Venhacomigo,Alice.Nopodemosdeix-lossuporquecontamoscomqualqueroutracoisaquenosejaumtratamentocorts.

    Entretantooshomenstinhamcercadoosoficiaiseosferidos,esemqualquerespciedecompaixoouescolhaatiravamunseoutrosparaomar.

    Damesmaformaprocederamquantoaosmortosoumoribundosdoseulado.Acertaaltura,umdostripulantesavistouosClaytonegritou,correndoparaeleseerguendoummachado:

    -Aquiestomaisdoisparaospeixes!MasBlackMichaelfoiaindamaisrpido,eohomemtombou,comumabala

    nas costas, antesdepoderdarmeiadziadepassos. Soltandoum fortebrado,BlackMichaelatraiuasatenesdosoutroseexclamou,apontandoparaLordeLadyGreystoke:

    -Essessomeusamigosedevemserdeixadosempaz!Entendido?Agorasoucapitodestenavioeoqueeudisseroquesefaz.-interrompeu-se,voltou-separaClaytoneacrescentou:-Nosemetamemnada,eningumlhesfarmal.

    OsClaytonsseguiramtoletraasinstruesdeMichael,quedapordiantemal viam a tripulao e nada sabiam dos planos que os homens preparavam.Ocasionalmenteouviamecosdedisputasedesordensentreosamotinados,eporduasvezesescutaramosomameaadordetiros.Noentanto,BlackMichaeleraumchefeadequadoquelebandoderufies,epareciaconseguirumasuficientesujeiosregrasqueimpunha.

    No quinto dia depois da morte dos oficiais, o vigia avistou terra. BlackMichael no sabia se tratava de uma ilha ou de um continente,mas informouClaytondeque,severificassemqueolugarerahabitvel,eleeLadyGreystokeseriamdesembarcados,comassuasbagagens.

    -Ficarobemdurantealgunsmeses.-explicouMichael-,eentretantotalvezsejamoscapazesde encontrarumacostapovoada, emalgum lugar, edispersar.Entoeufareicomqueogovernoinglsseja informadoarespeitodeambos,emandaroumbarcodeguerraparaosrecolher.Seriamuitodifcildesembarc-losnumazonacivilizadasemquenosfizessemumaporodeperguntas.enenhumdenstemrespostasconvenientesparadar.

    Clayton protestou contra a desumanidade de os deixarem num litoraldesconhecido,mercdeferase,possivelmente,deselvagensaindapioresque

  • asferas.Masdenadaserviramassuaspalavras,anoserparairritaremBlackMichael

    eassimfoiforadoadesistireatiraromelhorproveitopossveldeumasituaoruim.

    Cercadastrshorasdatardeestavampertodeumalinhadecostamuitobelaedensamentearborizada,emfrentedaentradadoquepareciaumpequenoportonatural. Black Michael enviou um dos botes, com homens encarregados desondarema entrada everemseoFuwaldapoderiapassar comsegurana.Umahora depois os homens regressaram com a informao de que havia bastantefundo,tantonaentradacomoadiante,naangra.Antesdanoite,oveleiroficoutranqilamente ancorado, na diminuta baa cujas guas tranqilas lembravam asuperfciedeumespelho.Asmargens,altas,eramdegrandebeleza,cobertasdeverdurasemi-tropical,enadistnciaoterrenosubiaapartirdomar,emcolinaseplanaltosquaseunicamentecobertosporflorestasprimitivas.Noseviamsinaisdehabitaes,masqueolugarerahabitvelprovavam-noossinaisevidentesdevidaeaabundnciadeaves,sobretudo.Haviatambmabundnciadeguadoce.Debordopodiamdivisarobrilhodopequenorioquedesaguavanabaa.

    Quando a noite desceu, Clayton e Lady Alice estavam ainda encostados amurada,olhandoembaixoolugarondeiamficar.Dassombrasdaflorestadensavinham as vozes dos animais selvagens. O profundo rugido do leo e,ocasionalmente,ogritoagudodeumapantera.

    Alice aninhou-se nos braos do marido, numa apavorada antecipao doshorrores que os esperavam na densa escurido das noites futuras, quandoficassemssnaquelaterrasolitriaeselvagem.

    Mais tarde, BlackMichael foi ter com eles, demorando-se apenas o temposuficienteparaosavisardequedeviampreparar-separadesembarcarpelamanh.Clayton tentou convenc-lo a lev-los para um lugar mais hospitaleiro,suficientementepertodacivilizaopara lhespermitiraesperanadeencontrarsocorros. Mas nem pedidos, nem ameaas, nem promessas de recompensa,conseguiramdemov-lo.

    - Sou o nico homem, a bordo, que no prefere v-los mortos emboraconcorde que seria a nica maneira de garantir a nossa segurana. Mas BlackMichaelnohomemparaesquecerumfavor.Salvou-meavida,umavez,eemtrocapoupoasua.Mastudooquepossofazer.Oshomensnotolerariammaisse no desembarcarem depressa, eles podem mudar de idia a respeito de osdeixarvivosesolta.Voup-losemterra,comasbagagense tudooque lhespertence,almdealgunsutensliosdecozinhaeumasquantasvelasforadeuso,paraserviremdetendas.Levarotambmcomidaquechegueparaseagentaremat descobrirem caa e frutos.Dispondo das vossas armas, podero viver aqui

  • bastantebematvirembusc-los.Quandoeueoshomensestivermoslongeeemsegurana, tratarei de informar o governo ingls quanto ao lugar onde ficaram.Nopodereidizerexatamenteonde,porquenosei.Maseleshodeencontr-los.

    Depois deMichael se afastar, os Claytons desceram em silncio, cada umdelesmergulhadonosseuspensamentos.JohnClaytonnoacreditavaqueBlackMichael tivesse amenor inteno de avisar o governo ingls sobre o paradeirodeles,enemsequertinhacertezadequeoshomensnoestivessempreparandoqualquergolpetraioeiroparaamanhseguinte,quandofossemlev-losaterracomas suasbagagens.ForadasvistasdeBlackMichael, qualquerdoshomenspoderiaassassin-los,deixandoempazaconscinciadoimprovisadocapito.

    Mas,aindaqueconseguissemescaparaessedestino,noseriaparaenfrentaroutrosperigosigualmentegraves?Sozinho,JohnClaytonpoderiateresperanadesobreviver durante anos, porque era um homem forte, de compleio atltica.Mas que aconteceria a Alice nessa outra vida que em breve surgiria, entre asdificuldadeseosperigosdeummundoprimitivo?

    Clayton estremeceu ao pensar na tremenda gravidade, na desesperanahorrveldasituaoemque ficavam.MasamisericordiosaProvidnciano lhepermitiu prever completamente a realidade pavorosa que os esperava nassombriasprofundezasdaflorestaprimitiva.

    Cedo,namanhseguinte,asnumerosasmalasesacosforamlevadasparaoconvsedescidasparaosbotesqueesperavamafimdeastransportarematerra.

    Haviaumagrandequantidadeevariedadedecoisas,poisosClaytonstinhamprevisto uma estadia de cinco a oito anos na sua nova casa. Assim, alm dasmuitascoisasnecessriasquehaviamtrazido,existiamtambmmuitosobjetosdeluxoeadorno.

    BlackMichaelestavadecididoaquenadapertencenteaosClaytonsficasseabordo.Seriadifcildizerseacausaeraacompaixoporelesouadefesadosseusprpriosinteresses.

    Sem dvida que a existncia, a bordo de um navio suspeito, de objetospertencentesaumoficialinglsdesaparecido,seriacoisamuitodifcildeexplicaremqualquerportodomundocivilizado.

    To grande era o interesse dele em cumprir as suas intenes, que insistiupara que fossem restitudos a Clayton os revlveres que lhe haviam sidosurrupiados.

    Nospequenosbotes carregaram tambmcarne salgada ebiscoitos, almdeuma pequena poro de batatas e feijes, fsforos, utenslios de cozinha, umacaixacomferramentaseasvelasforadeusoqueBlackMichaelprometera.Como

  • se ele prprio receasse o mesmo de que Clayton suspeitara, Black Michaelacompanhou-osaterraefoioltimoapartirquandoospequenosbotes, tendorenovado,norio,asreservasdeguadoce,voltaramnadireodoFuwalda.

    Enquanto os botes se moviam devagar sobre as guas calmas da pequenabaa, Clayton e sua mulher ficaram a v-los afastar-se e ambos se sentiampossudosporumadolorosapremoniodedesastreeesperana.

    E atrs deles, na crista de uma pequena elevao de terreno, outros olhosespreitavam,olhosmuitojuntos,malvolos,brilhandosobtestaslisasecobertasdedurosplos.

    Quando o Fuwalda transps a sada da angra, e desapareceu atrs de umpromontrio, Alice lanou-se nos braos de Clayton e soluou, sem poderdominar-se. Enfrentara corajosamente os perigos do motim. e de nimo fortehavia encarado o terrvel futuro. Mas agora, que o pavor da total solido osenvolvia, os seus nervos tensos cederam e veio a reao. Clayton no tentouimpedi-la de chorar.Eramelhor que a natureza, suamaneira, a aliviasse dasemoestantotempocontidas,antes,queAlice-poucomaisdoqueumamenina-pudesserecuperarodomniodesimesma.Decorreramlongosminutos.

    - Oh, John!... -exclamou ela, finalmente -, Que horror, isto tudo! O quevamosfazer?

    - H apenas uma coisa a fazer, Alice. -respondeu ele, to calmo como seestivessem confortavelmente sentados na sala da sua casa -, e trabalhar. Otrabalhopodeseranossasalvao.Nodevemosconcederansmesmostempoparapensar,porqueissolevaria loucura.Temosdetrabalhareesperar.Tenhocerteza de que viro nos socorrer, e depressa, assim que correr a notcia dodesaparecimento do Fuwalda e mesmo que Black Michael no cumpra a suapalavra.

    -Mas,John.sefssemosapenasvoceeu...-Ossoluossacudiram-nadenovo-.poderamossuportar,eusei.Mas...- Sim,querida. - atalhouClayton, suavemente -, tambmpensei nisso.Mas

    temosdeenfrentarasituao,comoqualqueroutraquesurgir,corajosamenteecom amaior confiana na nossa capacidade de resolver as dificuldades, sejamquaisforem.Hcentenasdemilharesdeanos,osnossosantecessoresdessevagoedistantepassadotiveramdeenfrentarosmesmosproblemasquenstemos,etalvezatnestasmesmasflorestasprimitivas.Ofatodeestarmosaqui,agora,aprovadequevenceram.Quepodiameles,quensnopossamostambm?Eatmelhor,poisestamosarmadoscomsculosdeconhecimentossuperioresetemososmeiosdeproteo,defesa e subsistnciaque a cincianosdeu, edosquaiseles eram totalmente ignorantes. O que eles conseguiram, Alice, com

  • instrumentosearmasdepedraedeosso,nspoderemosconsegui-lotambm.-Oh,John!Eugostariadeserumhomem,comumafilosofiadehomem,mas

    sou apenas uma mulher e vejo as coisas mais com o corao do que com ainteligncia.Eoquevejo muitohorrvel,muito impensvelpara traduzir empalavras.Sdesejoquetenharazo,John!Fareiomelhorquepuderparaserumacorajosamulherprimitiva.dignacompanheiradohomemprimitivo.

    OprimeiropensamentodeClayton foiarranjarumabrigoparadormirem,

    noite.Algumacoisaquepudesseservirparaproteg-losdosanimais.Abriu a caixa que continha os rifles e as munies, deviam ambos estar

    armados contra um possvel ataque, enquanto trabalhassem. Ento, juntos,procuraramumlugarparadormirnessaprimeiranoite.

    A uma centena de metros da praia havia uma pequena poro de terrenoplanoerelativamentelivredearvoredo.Decidiramqueconstruiriamaliumacasapermanente, mas pensaram que, no momento, bastava construir uma pequenaplataformanasrvores,foradoalcancedosanimaisselvagensemcujosdomniosse encontravam. Para tal fim, Clayton escolheu quatro rvores formando umretngulo com cerca de oito ps quadrados, e cortando compridos ramos deoutras rvores improvisou uma armao entre os quatro troncos, a uns trsmetrosdealturadocho,prendendocomfirmezaasextremidadespormeiodecordasqueBlackMichaelforabuscaraoporodoFuwaldaelhesforneceracomlargueza.

    Atravessados sobre essa armao, Clayton colocou ramos mais pequenos,muito juntos.Depois cobriu aplataforma comgrandes folhasque cresciamemprofuso por ali, e sobre as folhas estendeu uma grande lona de vela, dobradavriasvezes.

    Doismetrosacimadaprimeiraarmouumaoutraplataforma,maisleve,paraservirdecobertura,edosladosdeixoupenderoquelherestavadalonadevelas,comoparedes.Quandootrabalhoficouconcludo,ClaytoneAlicedispunhamdeum pequeno ninho relativamente confortvel, para o qual ele transportou asmantaseapartemenospesadadabagagem.

    Entardecia, e aproveitaram as horas de luz que ainda restavam para aconstruodeumaescada tosca,queservisseaAliceparaalcanaroseunovolar.Durantetodoodia,aflorestaemvoltaenchera-sedeavesagitadas,depenasbrilhantes, e de pequenos macacos barulhentos e danarinos que pareciamespreitar,comevidenteefascinadointeresse,osrecm-chegadoseaconstruodo maravilhoso ninho. Embora Clayton e sua mulher tivessem estado semprealerta,noviramanimaismaiores,conquanto,emduasocasies,tivessemnotado

  • que osmacaquinhos guinchavam e fugiam, aos pulos, da prxima elevao deterreno, lanando olhares assustados por cima dos pequenos ombros emanifestando, to claramente como se falassem, que estavam apavorados poralgumaterrvelcoisaquealipermaneciaescondida.

    Antesdanoite,Claytonconcluiuasuaescadae,enchendoumagrandebaciacomgua,nacorrenteprxima,eleeAlicesubiramparaarelativaseguranadoseuquartoareo.Porquehaviacalor,Claytondeixaraascortinaslateraissobreaplataformaqueserviadeteto.Quandoestavamsentados,comoturcos,sobreoscobertores,Alice, olhando para as sombras, cada vezmais densas, da floresta,estendeusubitamenteumadasmoseagarrouumbraodeJohn.

    -John.-sussurrouela.-Olha!Queaquilo?Umhomem?QuandoClaytonolhounadireoqueelaapontava,viuoquelhepareceuum

    grande vulto que mal se podia distinguir das sombras e estava de p sobre aelevao de terreno. Por ummomento o vulto ficou imvel, como escuta, edepoisdesapareceunaescuridodaselva.

    -Oqueera,John?-Nosei,Alice.-respondeuele,gravemente.-Estmuitoescuroparasever,

    etalvezfosseapenasumasombraprojetadapelaluanascente.-No,John!Senoeraumhomem,eracomcertezaumaenormeegrotesca

    imitaodeumhomem.Oh,John!Tenhomedo.Ele a abraou, murmurando-lhe ao ouvido palavras de amor e de

    encorajamento.Poucodepoisbaixouascortinas,prendendo-ascomfirmezaaosramos, de maneira que, com exceo de uma pequena abertura na direo dapraia, estavam completamente tapados. Era agora noite escura, no interior dofrgilabrigo.Estenderam-sesobreasmantas,tentandoconseguir,pelosono,umabrevetrguadeesquecimento.

    Claytonestavadeitadodefrenteparaaabertura,tendoaoalcancedamoumrifleevriosrevlveres.Malhaviamfechadoosolhosquandoogritoapavorantedeumapanteraecoounaselva,atrsdeles.Afera foi seaproximando,atquepuderamouvi-la diretamente abaixo da plataforma.Durante umahora oumaisouviram-na fungar e arranhar o tronco, mas por fim a pantera afastou-se eatravessou a praia. Clayton pde ento v-la claramente, na luz do luar - umgrandeebeloanimal,omaiorqueeleviraatento.

    Duranteaslongashorasdanoiteapenasdormiramcurtossonos.Asnoitesnaselvaestocheiasdemilharesderudosdavidaselvagem.JohneAlice,comosnervos tensos, foram acordados em sobressalto, por gritos agudos, a cadamomentomaisfortesemaisoumenosprximos,epelosmovimentosfurtivosdegrandescorpos,noterrenoabaixo.

  • CAPTULO3

    VidaemorteA manh encontrou-os quase to cansados como na vspera, embora as

    primeiras luzes do dia dessem uma profunda sensao de alvio. Logo queconcluramofrugalpequenoalmoo,compostoporcarnedeporco,salgada,cafe biscoitos, Clayton comeou a trabalhar na casa, compreendendo que nopoderiam ter segurana nem paz de esprito, durante as noites, at que quatrofortesparedesefetivamenteseinterpusessementreeleseavidanoturnadaselva.

    A tarefa era difcil e ocupou-o durante quase um ms, embora ele noconstrusse senoumnico e pequeno compartimento.Utilizou, na construodabarraca,pequenostroncoscomcercadeseispolegadasdedimetro,tapandoasbrechascombarroqueencontrounoterreno,apequenaprofundidade.Numadasextremidadesfezumalareira,compedrasquetrouxedapraiaefixoutambmcombarro.E, quando a casa ficoupronta, aplicou ainda camadasdebarro emtodaa superfcieexterior - sobrepondo-asatobterumaespessuraadicionaldemaisquatropolegadas.

    Naaberturaqueserviadejanela,dispsramospequenoscomcercadeumapolegadadedimetro,toentrelaadosqueformavamumaslidagradecapazdeseoporforadequalqueranimal.Assimtinhamareventilaoadequada,semdiminuiraseguranadabarraca.Otelhado,emformadeA,foitecidocomramosdelgados sobre os quais estendeu ervas da floresta, compridas e resistentes, elargasfolhasdepalmeira,tudocobertocomumacamadafinaldebarro.

    Clayton fez a porta com tbuas das caixas que tinham contido bagagem,pregando tbuas umas sobre as outras, entrecruzadas, at formar uma slidaespessura de cerca de trs polegadas, to resistente que ambos riram aocontempl-la depois de pronta.A surgiu uma dificuldade, porqueClayton notinhamaneiradesuspenderumaportatomacia.Noentanto,aocabodedoisdias de trabalho conseguiu fabricar dois gonzos demadeira rija, e assimpdecolocaraportademaneiraafech-laeabri-lafacilmente.

    Orevestimento interioreoutrosretoquesfinaisforamacrescentadosdepoisde terem se instalado na barraca, coisa que fizeram assim que o telhado ficoucolocado.Duranteanoiteempilhavamcaixotesemalascontraaporta,eassimtinhamumahabitaorelativamentecmodaesegura.

    A construo de uma cama, cadeiras, mesa e prateleiras, foi tarefacomparativamente fcil, demodo que ao fim do segundoms estavam com ainstalaoconcluda.Excluindooconstantereceiodeserematacadospelasferas,

  • easensaode total isolamento,nosesentiam infelizesnemdesconfortveis.Denoite, asgrandes feras rosnavame rugiamemvoltadabarraca,mas - tantouma pessoa pode habituar-se a rudos freqentemente repetidos - em brevedeixaramdelhesprestaratenoedormiamprofundamenteatdemanh.

    Por trs vezes tinham avistado, grandes vultos de aspecto quase humano,iguais ao que haviam visto na primeira noite, mas nunca bastante perto parasaberem,comcerteza,seessesvultoseramdehomensoudeanimaisselvagens.

    Ospssarosdemuitascores,eospequenosmacacos,tinham-sehabituadopresena deles. Como parecia evidente que nunca tinham visto antes criaturashumanas, passados os primeiros dias de susto e de surpresa foram-seaproximando progressivamente,movidos pela estranha curiosidade que dominaas criaturas selvagens da floresta ou da plancie, de maneira que, ao cabo doprimeiro ms, alguns dos pssaros j aceitavam comida das mos amigas dosClaytons.

    Uma tarde, enquanto Clayton trabalhava para acrescentar a sua barraca, qual pensava ligarmais dois ou trs compartimentos, alguns dosmacaquinhosvieram aos saltos e aos gritos, atravs das rvores, da direo da elevao deterreno. Olhavam para trs, enquanto fugiam, e finalmente pararam junto deClayton,guinchandoexcitadamentecomoparaavisardeumperigo.

    EfoientoqueJohnClaytonviuoquetantoapavoravaospequenossmios-ohomem-feraqueeleeAliceapenastinhamconseguidoentreverocasionalmenteesporinstantes.

    Aproximava-seatravsdaselva,meioerguido,apoiandonocho,devezemquando, os enormes punhos fechados um gigantesco macaco antropide.Enquantoavanava ia soltandoprofundosgrunhidosguturais, eporvezesumaespciedeladridorouco.

    Claytonestavaaalgumadistnciadabarraca,tendo-seafastadoparaderrubarum tronco que lhe parecera particularmente perfeito para os seus projetos deconstruo.

    Tornara-se descuidado em conseqncia demeses de constante segurana,nosquaisnuncaavistaraumsanimalperigosoduranteashorasdodia,eassimhaviadeixadoos rifles e revlveresnabarraca.Agora viaomacacogigantescoavanar, esmagando as moitas, na sua direo, e vindo de um ponto quepraticamente lhe cortava a retirada. Sentiu um calafrio percorrer-lhe a coluna.Sabia que, armado apenas com um machado, as probabilidades contra talmonstro eram na verdade muito tnues. E Alice? Deus! O que aconteceria aAlice?

    Havia ainda uma ligeira possibilidade de alcanar a barraca. Voltou-se e

  • correu,soltandoumbradodealarmeparaqueAlicefechasseaportanocasodomacacolhecortarocaminho.Aliceestavasentadajuntodabarraca,eaoouvirobrado levantou a cabea e viu o gorila saltar com espantosa rapidez -mais depasmar num animal to grande e desajeitado para interceptar o caminho deClayton.Comumgritorouco,ajovemcorreuparaabarracae,aoentrar,lanoupara fora um olhar que lhe encheu a alma de terror. A fera tinha encurraladoJohn, e este parara, empunhando omachado com asmos, pronto a brandi-locontraogorilaquandoeleatacassefinalmente.

    -Fecheetranqueaporta,Alice!.-gritouClayton.Eupossoenfrentarestebruto,comomachado!MasJohnsabiaqueestavavotadoaumahorrvelmorte,ea jovem tambm o compreendeu. O macaco era um macho enorme, pesandoprovavelmente cento e cinqenta quilos. Os olhos, muito juntos e ferozes,brilhavam sob os plos hirsutos da testa fugidia; e os dentes brancos, grandes,apareciamnum esgar de fria enquanto ele parava ummomento diante da suapresa.

    Sobre o ombro do bruto, Clayton podia ver a porta da barraca, a umadistnciademenosdevintepassos,eumaondadepavorenregelou-oaoverqueAlice reaparecia, armada com um dos rifles. A jovem sempre tivera medo dearmas de fogo, nas quais nunca tocava, mas agora corria para o gorila com atemeridadedeumaleoaquedefendesseascrias.

    -Paratrs,Alice!PeloamordeDeus,paratrs!Mas ela no obedeceu. e nesse momento o gorila lanou-se ao ataque, de

    modo que Clayton nada mais pde dizer. Firmando os ps no cho, Claytonlevantouomachadoedesferiuumgolpecomtodoopoderdosseusmsculos,masopoderosobrutoagarrouaarma,arrancou-adasmoseatirou-aadistncia.

    Com um rugido, o animal saltou sobre a presa e ia cravar-lhe os dentesquando estalou umadetonao seca, e umabala o atingiu nas costas, entre osombros.EmpurrandoClaytonederrubando-o,ogorilavoltou-separaenfrentaronovoinimigo.

    Diante dele estava a frgil mulher, apavorada, tentando em vo dispararnovamente.Masajovemnocompreendia.Omecanismodaarma,eocobatia,intil,sobreocartuchovazio.

    Quase no mesmo instante Clayton levantou-se e, sem pensar na suaimpotncia perante a fera, correu para afastar o gorila do corpo de Alice queperdera os sentidos. Conseguiu-o quase sem esforo, e o grande corpo rolouinertenoterreno,morto.

    Abalafizeraoseuefeito.UmrpidoexamepermitiuaClaytonverificarqueAlicenoestavaferida.O

  • gorilatinhaprovavelmentemorridonoinstanteexatoemqueiasaltarsobreela.Suavemente,Johnlevantousuamulher,levou-aparaabarraca-masdecorreramduas horas antes que recuperasse os sentidos. As primeiras palavras delaassustaramClayton.

    Poucodepoisdeabrirosolhos,Alicefitouointeriordabarracaemurmurou,comumsuspirodealvio:

    - Oh, John! to bom estar realmente em casa. Tive um sonho horrvel,querido.SonheiquejnoestvamosemLondres.Masnumlugarhorrvelondegrandesferasnosatacavam.

    -Vamos,Alice,vamos.-disseele,tocando-lhenatesta.-Tentedormiroutravezenocanseasuacabea,commaussonhos.

    Nessa noite uma criana nasceu na pequena barraca beira da selvaprimitiva,enquantoumleopardorosnavadiantedaporta,eseouvia,aolonge,orugidopoderosodeumleo.

    LadyGreystokenuncaserecompsdochoquecausadopeloataquedogorila,e embora vivesse durante mais um ano, depois do nascimento do filho, novoltoumais a sair da barraca e no conseguiu convencer-se completamente dequenoestavana Inglaterra.Porvezes interrogava John, a respeitodos rudosque ouviam durante as noites. A ausncia de criados e amigos, os mveisestranhamente toscosdo seuquarto, eram tambmmotivosdeperguntas.Mas,desdequeJohnnotentassequalqueresforoparaengan-la,Alicenuncamaisentendeuosentidodaverdade.Soboutrosaspectoseraperfeitamenteracional,ea alegria e felicidade por ter um filho, e as constantes atenes do marido,tornaram esse ano realmente feliz para ela, o ano mais feliz da sua jovemexistncia.

    Clayton no ignorava que ela estaria cheia de angstia e de apreenses, seestivesse na posse das suas faculdades mentais. E, mesmo que ele sofressehorrivelmenteporv-laassim,haviaocasiesemque,poramordela,semostravaquasealegre,paraqueelanocompreendesse.

    HaviamuitotempoqueJohnperderaqualqueresperanadesersocorrido,anoserporacidente.Comincansvelzelo,continuaraatrabalharparaembelezarointeriordasuabarraca.Pelesdeleoedepanteracobriamocho,armrioseestantes tapavam as paredes. Estranhos vasos, feitos por ele com o barro daregio,continhamlindasflorestropicais.

    Cortinastecidasdecompridaservas,edebambus,escondiamasjanelas.Maisainda:comaspoucasferramentasdequedispunha,tinhatrabalhadomadeiraparaforrarasparedes,ecolocaraumsobradoliso.

    O fato de ser capaz de executar estas tarefas, que sempre lhe haviam sido

  • estranhas,admirava-o.MasgostavadotrabalhoporqueofaziaparaAliceeparao filho que viera encoraj-los e anim-los, embora acrescentando asresponsabilidadesdeleeagravandooquehaviadeterrvelnasituao.

    Duranteoanoqueseseguiu,Claytonfoivriasvezesatacadopelosgrandesgorilas que haviam passado a infestar as vizinhanas da barraca. Mas, comonuncamais voltara a sair semo rifle eos revlveres, os ferozes animaisnooassustavam.

    Tinham aumentado a proteo das janelas e fixara uma slida tranca demadeira,naporta.Assim,quandosaaparacaarouapanhar frutos -comoeraconstantemente necessrio para assegurar a subsistncia -, no receava quequalqueranimalpudesseentrarnapequenacasa.Aoprincpioconseguiracaaratravs das janelas da barraca, mas por fim os animais aprenderam a temer oestranholugardeondevinhaosomtrovejantedorifle.

    Nosmomentosdecio,JohnClaytonlia,porvezesemvozalta,paraAlice,umdosmuitoslivrosquetrouxeranabagagem.Entreesseslivroshaviabastantespara crianas -livros de estampas, de primeiras letras, histrias ilustradas comtexto. Ao sarem de Inglaterra j sabiam que o beb nasceria muito antes depoderempensaremvoltar.Outrasvezes,JohnClaytonredigiaoseudirio,quedesde sempre se habituara a escrever em francs e onde registrava osacontecimentosdasuaestranhavida.Guardavaessedirionumacaixademetal,fechada.

    Umanodepoisdonascimentodo filho,LadyAlicemorreu tranqilamente,duranteanoite.Tocalmofoioseufim,quedecorreramhorasantesqueClaytonseconvencessedaverdade.

    Ohorrorda situao invadiu-o lentamente, e duvidosoque tenhaalgumavezcompreendidoaenormidadedasuapenaeatremendaresponsabilidadequerecaa agora exclusivamente sobre ele, de cuidar de uma criana ainda topequena.

    Oltimoregistro,noseudirio,foifeitonamanhqueseseguiumortedeAlice,eanarraostristesacontecimentosnumtomimpessoalqueaumentaaindaadolorosasignificaodaspalavras.Sente-senelasumaapatiaenorme,feitadecansao, de pena e de desesperana, uma apatia que nemmesmo o golpe tocruelpdesacudirparamaissofrimento:

    Omeufilhinhochoraporcomida.Oh,Alice,Alice!Quedevoeufazer?E,quandoJohnClaytonescreveuasltimaspalavrasqueasuamoalguma

    vezpoderiaescrever,deixoucairacabeasobreosbraospousadosnamesa-amesa que construra para aquela que estava ainda estendida, fria e imvel, nacama,pertodele.

  • Durantemuitotemponenhumrudoperturbouosilnciodemortedomeio-dianaselva;anoserogemerdesoladodacrianacomfome.

  • CAPTULO4

    OsmacacosNa selva do planalto, a umamilha de distncia domar, Kerchak, o velho

    gorila,entregava-seaumaexplosoderaivaentreasuatribo.Osoutrosmembrosda tribo, sobretudoosmais jovensemais leves, foram

    refugiar-senosramosmaisaltasdasgrandesrvores,paraescaparemsuaclera,arriscandoavidasobretroncosquemalsuportavamoseupeso,deprefernciaaenfrentarem a fria de Kerchak. Os machos adultos fugiram em todas asdirees, no sem queKerchak partisse a coluna dorsal de um deles, entre asmandbulaspoderosas.

    Umainfelizfmeaescorregoudeumaposioinseguranumramoalto,ecaiunochoquaseaospsdeKerchak.Comumgritoselvagem,omachoenfurecidosaltou sobre ela e mordeu-a ferozmente, arrancando-lhe um pedao de carne.Logodepois,comotroncoquebrandiamaneiradecacete,Kerchakesmigalhouacabeadafmea.

    FoientoqueKerchakviuKala,umamacacaque,regressandodeirprocurarcomida, coma suapequena cria, ignoravao ataquede raivadograndemacho.Bruscamente,avisadapelosgritosagudosdosdemais,Kala saltouembuscadesegurana. Mas o gorila enfurecido estava perto dela, to perto que a teriaagarrado por uma perna se Kala no tivesse dado um furioso salto no ar,afastando-se rapidamente, de ramada em ramada - um risco perigoso que osgrandesmacacosraramentecorrem,anoserquesejamperseguidostodepertoque no tenhamoutra alternativa.Kala saltou e agarrou-se,mas ao projetar-separa outra rvore, a violenta sacudidela fez com que a cria, que se seguravadesesperadamentenoseupescoo,casseparabaixo.Kalaviuofilhotorcer-seevoltearnoespao,attombarnochodeumaalturadedezmetros.

    Comumgritorouco,Kalaprecipitou-separajuntodacria,sempensarsequernaameaadeKerchak.Mas,quandoapanhouopequenoanimaleoapertouaopeito, ele tinha morrido. Com pequenos grunhidos, Kala ficou sentada,embalandoofilhomorto.NemKerchakseatreveuaatac-la.

    Com a morte da cria, o seu impulso de raiva demonaca deixara-o, tosubitamentequantoseapoderaradele.

    Kerchakeraumenormegorila-rei,pesando talvezcentoeoitentaquilos.Asua testa era recuada emuitobaixa, os olhos avermelhados, pequenos emuitojuntosdonariz largo e tosco,machucado.Asorelhas eramgrandes edelgadas,menores,todavia,doquenamaioriadosanimaisdaespcie.Asuaferocidade,e

  • aenormefora,tinham-nofeitochefedapequenatriboentreaqualnasceracercadevinteanosantes.

    Agora,emplenovigor,nohaviaoutrogorilaemtodaagrandeflorestaquese atrevesse a contestar o seu direito de chefia. Nem mesmo outros animais,maiores,omolestavam.

    OvelhoTantor,oelefante,eraonico,entretodososanimaisselvagens,queno temia Kerchak -e era tambm o nico a quem Kerchak temia. QuandoTantor fazia ouvir o seu bramido, o gorila e os seus companheiros corriam arefugiar-seentreasrvores,noplanaltosuperior.

    A tribo de antropides sobre a qualKerchak reinava commos de ferro eagudaspresas,contavadeseisaoitofamlias,ecadafamliaeracompostaporummacho adulto, as suas fmeas e as crias. Ao todo, a tribo compunha-se desessentaousetentagorilas.

    Kala era a fmea mais nova de um macho de nome Tublat (nome quesignificanarizquebrado),eacriaquemorreraeraasuaprimeiracria.Kalanotinhamaisdenoveoudezanosdeidade.Noentanto,apesardasuajuventude,era grande e poderosa, um esplndido animal demembros geis e fortes, comuma testaaltaearredondadaquedenotavamaior intelignciadoqueamaioriadascriaturasdasuaespcie.

    Tinha tambm uma grande capacidade para o amor e para a angstiamaternais.Nodeixavaporissodeserumaenormeferadeumaraadegorilastalvezmais inteligente doque as outras. o que, com a sua enorme fora, faziadelaumanimaltemvel.

    Quando a tribo compreendeu que a fria de Kerchak chegara ao fim, osgorilasdesceramdosseusrefgiosevoltaramaocupar-sedasvriastarefasqueochefeinterrompera.Ascriasbrincavamesaltavamentreostroncoseasmoitas.

    Algunsdosadultosestenderam-separadescansarsobreochoatapetadodeerva alta e folhas secas, enquantooutros voltavampedras e troncos cados embusca dos pequenos bichos da terra e rpteis que constituam parte da suaalimentao.

    Ainda outros exploravam as rvores em busca de frutos, nozes, pssaros eovos. Tinha passado talvez uma hora quandoKerchak os chamou e, com umgrunhido de comando para que o seguissem, partiu na direo do mar.Avanavamquasesempresobreoterreno,quandoesteeradescoberto,seguindoapistados elefantesque, nas suas idas e vindas, tinhamdesbravadoosnicoscaminhos existentes naquele labirinto de troncos, mato,cips e arbustos. Aocaminharem, faziam-no de uma forma balouante e desajeitada, pousando ospunhosnochoelanandoospesadoscorposparafrente.

  • Mas, quando tinhamdepercorrer zonas de rvoresmais baixas,moviam-semaisdepressa,saltandoderamoemramocomaagilidadedemacacospequenos.Duranteajornada,Kalanodeixoudeapertarcontraopeitoasuacriamorta.

    Pouco passava do meio-dia quando alcanaram uma pequena elevao deterrenoquedominavaapraiaonde,abaixodeles,seerguiaabarracaparaaqualKerchaksedirigia.

    Kerchaktinhavistomuitosdosseusmorrerememconseqnciadobarulhofeitopelopequenopaupreto,empunhadopeloestranhomacacodepelebrancaqueviviaali.E,namenteconfusadeKerchak,surgiralentamentea idiadeseapoderar daquela coisa que causava a morte, e de explorar o interior domisterioso refgio. Desejava, ao mesmo tempo, sentir os poderosos dentescravadosnopescoodoestranhoanimalqueaprenderaaodiareatemer-eporissomesmovieraalgumasvezes,coma tribo,espreitar,esperandoaocasiodeapanhardesprevenidoomacacobranco.

    Ultimamentehavia desistidode atac-lo, oumesmode semostrar. Porque,cada vez que algum dos outros gorilas o fizera, o pequeno pau negro rugiraenviandoasuamensagemdemorte.

    Mas naquele dia no havia sinais do inimigo nas proximidades e, de ondeestavam,osgorilaspodiamverqueaentradadorefgioestavaaberta.Devagar,cautelosamente e sem rudo atravessaram aquela ponta da selva, na direodabarraca.

    Nogrunhiram,nodeixaramescapargritosderaiva.Opequenopaunegroensinara-osaseremprudentesparanodespertarema

    sua ira.Avanaram, at queKerchak, oprimeiro, alcanou a porta e espreitoupara dentro. Atrs dele vinham dois outros machos, e logo depois Kala, quecontinuavaaapertaraopeitoofilhomorto.

    Dentro, viram o estranho macaco branco imvel, com a cabea pousadasobreosbraos,sobreacama,cobertocomumpanodevela,estavaumvulto,eacurtadistnciaouviamosgemidosdeumacriana.

    Kerchak entrou, sem rumor, curvando-se para atacar. e foi ento que JohnClayton se levantou em sobressalto, e se voltou. O espetculo com que sedeparoudecertoopetrificoudehorror.Dentrodabarracaestavamtrsenormesgorilasmachos,elforapodiasentirapresenademuitosoutros.

    Nunca soube quantos, porque os seus revlveres estavam suspensos daparededistante,juntodosrifles-eporqueKerchakatacou.

    Quandoogorila-rei largouaformainertequetinhasidoJohnClayton,LordGreystoke, voltou a sua ateno para o bero,masKala chegou antes dele, e

  • quandoKerchaksecurvavaparaapanharacriana,agrandemacacaapanhou-aesaltouparatrs,atravsdaporta,indorefugiar-senoaltodeumaenormervore.AoapanharofilhovivodeLadyAlice,Kaladeixoucair,nobero,ocorpomortodasuaprpriacria.Aoouvirogemidodovivo,obedeceraaoapelouniversaldamaternidade,quebrotarado seupeito selvagem, e aqueomorto jnopodiacorresponder.

    Agrandealtura,dominandooseureceio-osgorilasssearriscamnosramosmais fortes emaisbaixasdas rvores, que suportamo seupeso -aconchegou acrianachorosacontrao seio.Eembreveo instinto - to fortena ferozgorilacomo tinha sido no seio da terna e bela Alice Clayton - o instinto do amormaternal,secomunicouaoentendimentoembrionriodacrianahumana,queseaquietou.

    Afometranspsadistnciaentreambos,eassimofilhodeumlordedeumaladybebeuoleitedoseiodeKala,amacaca.

    Entretanto, na barraca, os outros gorilas examinavam tudo, desconfiados.Tendo-se assegurado de que Clayton estava morto, Kerchak voltou as suasatenesparaovultoestendidosobreacama,cobertoporumpedaodetecidobranco.Timidamente levantou a lona,mas quando viu o corpo damulher queestava debaixo, arrancou bruscamente o sudrio e agarrou, entre as mospoderosas,opescoobrancoefrgil.Poruminstantedeixouqueosseusdedossecravassemnapelefria,masento,compreendendoqueamulherestavamorta,largou-aecontinuouaexaminaroquehavianabarraca,novoltandoatocarnoscorpos,parasempreimveis,deLadyAliceoudeSirJohn.

    O rifle, suspenso da parede, foi a primeira coisa a chamar a sua ateno.Tinha desejado, durante meses, aquele pau negro que continha a morte empequenos troves, mas agora, que o tinha ao seu alcance, mal dispunha decoragemparaseapoderardele.Cautelosamente,aproximou-sedoobjeto,tensoealerta,prontoparafugirseelefalassenasuavozroucaerugidora-talcomotinhaouvidocontarnasltimaspalavrasdaquelesque,por ignornciaou ferocidade,haviam atacado o macaco branco. Profundamente, na sua intelignciarudimentar, alguma coisa lhe dizia que aquele pau trovejante s era perigosoquandoemmosquesoubessemutiliz-lo.Masassimmesmodecorreramvriosminutosantesqueseatrevesseatocar-lhe..

    Hesitante, ps-se a caminhar de um lado para o outro, diante do rifle,movendo a cabea demodo a nuncadeixar de fitar oobjetodos seus desejos.Utilizando os longos braos como um homem poderia utilizar muletas,balanandodesajeitadamenteoenormecorpo,omacaco-reicontinuouaandardeum lado para o outro, emitindo grunhidos roucos e gritando agudamente, porvezes-essegritoqueumdosrudosmaisapavorantesdaselva.

  • Atqueparouemfrentedorifle.Devagar,levantouagrandemoatquasetocarorebrilhantecanodaarma,maslogorecuouecontinuouacaminhar.Eracomose,demonstrandoasuacoragemnaquelaprimeiratentativa,egritandocoma sua voz potente, o gigantesco gorila estivesse animando-se, a construir oimpulsoqueolevariaaapanharorifle.

    Parououtravez,eagoraconseguiuforaramoattocarnofrioao,masdenovo recuou e recomeou a andar. Repetiu a estranhamanobra, novamente e,comcrescenteconfiana,atqueagarrouaespingarda.Verificandoqueelanolhefaziamal,comeouaexamin-laatentamente.Apalpou-adeumextremoaooutro, espreitou para o interior do longo cano, mexeu na mira, na coronha, efinalmentenogatilho.Durantetodasestasoperaesosoutrosgorilastinham-sereunido junto da porta, observando o chefe.Os outros, que tinham ficado noexterior, diligenciavam ver. De sbito, um dedo de Kerchak fez presso nogatilho.Umestrondoensurdecedorencheuabarraca-eosgorilasqueestavamjuntoealmdaportacaramunssobreosoutros,nansiadefugir.

    Kerchak ficou igualmente assustado, to assustado que, sem sequer pensaremselibertardoobjetoquecausaratotemerosorudo,saltouparaaportacomamocrispadasobreorifle.Quandopassouatravsdaabertura,amiradorifleprendeu-senabeira daporta - que se abria para dentro com suficiente foraparafecharobatenteatrsdogorila.QuandoKerchakparou,acurtadistnciadabarraca,ecompreendeuqueaindaseguravaorifle,deixou-ocaircomosefosseum ferro em brasa, e no tentou pegar-lhe de novo. O estrondo fora muitoimprevistoe forte,paraos seusnervos,masestavaagoraconvencidodequeoterrvelpaunegroerainofensivodesdequenolhetocassem.

    Decorreuumahoraantesqueosgorilas se animassemaaproximar-seoutravezdabarraca,paracontinuaremassuasinvestigaes.Mas,quandofinalmenteofizeram,descobriramcompenaqueaportaestavafechadaetoseguramentefirmequenopodiamfor-la.Ofecho,inteligentementecolocadoporClayton,tinhacadoquandoKerchakfugira.Eosgorilastambmnoconseguirampassaratravsdasjanelasfortementeprotegidas.

    Depois de vaguearem pelas redondezas, durante algum tempo, os grandesmacacosretomaramocaminhodaflorestadensaedoterrenomaisalto,deondetinham vindo. Kala no desceu imediatamente, com a sua cria adotiva, masKerchak chamou-a e, comono houvesse clera na voz dele, amacaca saltouagilmentederamoemramoejuntou-seaosoutros,nocaminhoderegresso.

    Osgorilas,quehaviamtentadoexaminaraestranhacriadeKala,tinhamsidorepelidos com grunhidos ameaadores e presas prontas, acompanhados depalavras de ameaa. Quando, porm, se assegurara que no fariam mal, eladeixou-osaproximar-sesemtodaviapermitirquetocassemnacriana.Eracomo

  • sesoubessequeoseubeberafrgiledelicado,etemessequeasmosrudesdoscompanheirospudessemmachuc-lo.

    Kalafeztambmoutracoisa,oquetornouacaminhadaumaduraprovaoparaela.Lembrando-sedamortedasuaprpriacria,agarravadesesperadamenteonovobeb,comumadasmos,porondequerqueatriboseguisse.Osoutrosfilhos seguiam s costas dasmes, segurando-se, com os pequenos dedos, aoslongosplosdopescoodelas,enquantoaspernasseprendiamsobossovacosmaternos.

    Mas Kala no fazia assim. Segurava o pequeno vulto infantil do LordGreystoke,apertando-ocontraopeitoondeas frgeismosbrancasseagarramtambmfartapelagem.Kalatinhavistoumacriacairdesuascostasemorrer-enosedispunhaacorrerigualriscocomaquela.

  • CAPTULO5

    OmacacobrancoTernamente,Kalacriouomenino,pasmandoemsilncioporelenoadquirir

    fora e agilidade como os pequenosmacacos de outrasmes. Tinha decorridoquaseumanodesdequeelatomaracontadobeb,eeleaindacaminhavamalenoeracapazdetrepar.Ecomoeraestpido!Kalafalava,porvezes,comoutrasfmeas mais velhas, a respeito da sua cria, mas nenhuma delas conseguiacompreendercomoopequenoeratolentoeatrasadonaaprendizagemdecuidarde simesmo, nem sequer conseguia alimentos, sozinho - e no entanto tinhampassado mais de doze luas, desde que Kala o encontrara. Se as macacassoubessemquetreze luashaviamdecorridoantes,decertoconsiderariamocasocomocompletamenteperdidoesemesperana,poisospequenosgorilasdatriboestavamtoadiantados,emduasoutrsluas,comoodeKala,aocabodevinteecinco.

    Tublat, o companheiro de Kala, sentia-se envergonhado, e se no fosse ocuidadoconstantedafmea,provavelmenteteriaeliminadoacriana.

    -Nuncaserumgrandemacaco,-diziaele.-Tersempredetransport-loeproteg-lo.Paraqueservir,natribo?Paranada,serapenasumacarga.Deixe-odormirparasempre,quietoentreasaltaservas,paraquepossateroutrosfilhos,maisfortes,quenosguardaroquandoaidadepesar.

    -Nunca,Tublat!... - respondiaKala. - Se eu tiver de transport-lo sempre,assimser.

    EntoTublatprocurouKerchak,para lhepedirqueusasseasuaautoridadejunto deKala e a forasse a desistir do pequeno Tarzan - nome que significapele branca e havia sido dado por Kala ao pequeno Lord Greystoke. Mas,quandoKerchak lhe falou a respeito,Kala ameaou-ode abandonar a tribo senoadeixassemempazcomacriana.Eraesseumdosinalienveisdireitosdopovo da selva, quando no se sentiam bem entre os da sua tribo. No amolestarammais, poisKala era uma jovem fmea, forte e gil, e no queriamperd-la.

    Enquantoiacrescendo,Tarzanprogrediamaisrapidamente,demaneiraque,com cerca de dez anos, era um excelente trepador e, no terreno, podia fazermuitascoisasmaravilhosasqueestavamalmdaspossibilidadesdosseusirmose irms. Era diferente deles, sob muitos aspectos, e por vezes os outrospasmavam ante a sua inteligncia superior, mas em tamanho e fora eradeficiente.

  • Aos dez anos, todos os grandes antropides esto completamentedesenvolvidosealgunsdelesalcanammaisdeummetroeoitentadealtura,aopassoqueopequenoTarzaneraaindaumrapaz.Masquerapaz,noentanto!

    Desdemuito pequeno aprendera a utilizar asmos para pular de ramo emramo, maneira de Kala, e enquanto crescia ocupava vrias horas por diapasseandoatravsdosaltosramosdasrvores,comosseusirmoseirms.

    Podia dar saltos de seis metros, pelo espao, nas alturas estonteantes dascopas da floresta, e agarrar, Com infalvel preciso e sem estico aparente,umacipbatidaporventociclnico.Podiadesceroutrosseismetrosdecadavez,em sucessivos pulos que o levavam de ramo em ramo at ao cho, ou podiaatingirascopasdosgrandesgigantesdafloresta,comafacilidadeearapidezdeumesquilo.Emboraapenascomdezanos,eratofortecomoumhomemmdio,detrinta,emuitomaisgildoqueoatletamaisbemtreinadoquepudesseexistir.E,diaadia,asuaforaiaaumentando.Asuavidaentreosferozesgorilastinhasidofeliz;norecordavaoutrotipodevida,nemsabiaqueexistisse,nouniverso,qualquer coisa alm daquela floresta e dos animais selvagens que lhe eramfamiliares.

    Foi quando tinha quase dez anos que comeou a compreender a grandediferena que existia entre ele e os seus companheiros.O seu corpo, pequeno,bronzeado pelo ar e pelo sol, causou-lhe ento uma sensao de profundavergonha, porque, como as cobras e outros rpteis, era quase inteiramentedesprovidodeplos.

    Tentouremediarissocobrindo-se,dospscabea,comlama-masalamasecava e caa.Almdeque, sentia-se todesconfortvel sobessa coberturadebarro,quepreferiuavergonhaaodesconforto.

    Nas terras altas, onde vivia a tribo, havia um pequeno lago, e foi a queTarzan,pelaprimeiravez,viu a suacaraqueas guas tranqilas refletiam.Foinum dia muito quente, na estao das secas, que ele e um dos seus primosdesceram margem, para beber. Quando se debruaram, ambas as pequenascaras ficaram refletidas na superfcie do lago, as ferozes e terrveis feies dogorila,ladoaladocomasfeiesaristocrticasdorebentodeumanobrefamliainglesa.

    Tarzanficouadmirado.Jerabastanteruimserdesprovidodeplos,masteraquelaaparncia.Maravilhou-sedequeosoutrosmacacosolhassemsequerparaele. Aquela boca to pequena, aqueles dentes muito brancos mas diminutos!Como lhepareciamhorrveis ao ladodosgrossos lbiosedaspoderosaspresasdos seus irmosmais favorecidospela sorte!Eonariz insignificante,delgado -to delgado que parecia indicar que estava morrendo de fome. Corouintensamenteaocompar-locomasbelase largasnarinasdoseucompanheiro.

  • Umamploegenerosonariz!comoeleseespalhavapelacara!Deviacertamenteseragradvelterumabelapresena-pensouopobreTarzan.

    Mas, quando reparou nos seus prprios olhos, o golpe final! Um pontocastanho,umcrculopretoedepoistudobranco,emvolta!Horrvel!

    Nem mesmo as cobras tinham uns olhos to feios como os seus! Toabsorvidoestavanaobservaodesimesmo,quenoouviu,atrsdele,orudodasaltaservassecasqueeramafastadaspassagemdeumgrandecorpopeludo.Nem tambm o seu companheiro, o gorila, ouviu esse rudo, porque estavabebendo e o som gorgolejante da gua que chupava abafou a silenciosaaproximaodointruso.

    Vinha amenos de trinta passos atrs deles. Sabor, a grande leoa, curvada,agitava a longa cauda.Cautelosamentemoveu uma das patas, pousando-a semrudoantesdelevantaraoutra.

    Avanava assim, o ventre quase roando o terreno -um grande gatopreparando-se para saltar sobre a presa. Estava agora a dez passos dos doisjovens. Com cuidado, dobrou sob ela as patas traseiras, os grandes msculosdesenhando-sesobapelemagnfica.Estavatoagachadaquepareciacoladaaocho,excetoquantoaoarqueardodorsolustroso,quandosedispunhaasaltar.Acauda estava agora imvel, estendida. Por instantes ficou assim, comotransformadaempedra,eento,comumrugidoterrvel,saltou.

    Sabor, a leoa, era hbil caadora. Para alguma criaturamenos experiente oalarmedoferozrugido,aosaltar,teriaparecidotolo-poismaisfcilpareciaserse casse sobre as vtimas sem aquele grande brado. Mas Sabor conhecia aespantosarapidezdascriaturasdaselva,easuaquaseinacreditvelacuidadedeouvido.Sabiaquenopodiadartalsaltosemfazeralgumrudo.Assim,orugidono era um aviso. Pelo contrrio, soltava-o para paralisar pelo terror as suasvtimas,duranteafraodesegundonecessriaparaqueaspoderosasgarrassecravassem na carne macia, segurando-as sem esperana de fuga. Pelo que sereferia ao gorila, a ttica de Sabor era correta.Opequeno animal encolheu-se,trmulo,apenasporummomento,masessemomentofoifatal.Noaconteceuomesmo com Tarzan, filho de homem. A sua vida entre os perigos da selvaensinara-oaenfrentarasemergncias,easuaintelignciasuperiordava-lheumarapidezdeaomentalmuitoparaalmdaspossibilidadesdosgorilas.Assim,orugido de Sabor, a leoa, galvanizou instantaneamente e ao mesmo tempo osmsculoseocrebrodeTarzan.Nasuafrentetinhaasguasprofundasdolago,atrsdeletinhaamorteimediatanasgarrasenaspresasdaleoa.

    Tarzan sempre detestara a gua, a no ser como meio de saciar a sede.Detestava-aporquealigavacomofrioedesconfortodaschuvastorrenciais,queeletemiaporcausadostroveserelmpagosqueasacompanhavam.Tinhasido

  • ensinado,pelasuameadotiva,aevitarasguasprofundasdolago,eeleprpriovira Neeta, a pequena macaca, desaparecer sob aquela superfcie calma, paranuncamaisregressarsuatribo.

    Mas, dos doismales, a suamente rpida prontamente escolheu omenor, emalaleoacomearaasoltaroseurugido,antesdetertranspostoemvometadeda distncia do seu salto, Tarzan j sentia fecharem-se sobre a sua cabea asguasfriasdolago.Nosabianadareaguaeramuitofunda,masassimmesmoTarzannoperdeuaconfianaemsiprprio,nemareservaderecursosqueeramamarcadasuasuperioridadecomocriatura.Rapidamente,porinstinto,moveuasmoseosps,numa tentativaparavoltar superfcie, e comcertezamaisporacasodoqueporinteno,repetiuosmovimentosdeumcoquandocainagua.Dentro de curtos segundos tinha o nariz fora de gua e descobria que podiamanter-seassimsecontinuasseamover-se.Podiamesmoavanarnasuperfciedolago.Ficousurpreendidoecontentecomaquelanovapossibilidadeadquiridatoinesperadamente,masnodispunhadetempoparapensarnisso.

    Ps-seanadarparalelamentemargem,eassimpdeveraferaquetentaraapanh-lo e estava agora curvada sobreovulto imveldo seu companheiro.AleoaobservavaatentamenteTarzan,decertoesperadequeelevoltasseparaaterra,masorapaznotinhaamenorintenodefaz-lo.Emvezdissolevantoua voz, no apelo comum sua tribo, acrescentando um aviso que impediria ospossveissalvadoresdecaremnasgarrasdeSabor.

    Quaseimediatamenteveioumaresposta,dadistncia,elogodepoisquarentaou cinqenta grandes gorilas saltavam rpida e majestosamente por entre asrvores,aproximando-sedocenriodatragdia.

    frentevinhaKala,quereconheceraavozdoseufilhopreferido,ecomelaamedopequenogorilaquejaziamortosobocorpopeludodeSabor.Emboramaisforte,emaispoderosamentearmadaparaalutadoqueosgrandesmacacos,a leoano tinhaomenordesejo de enfrentar os furiosos adversrios.Comumgrunhido feroz, saltou rapidamente para o mato e desapareceu. Tarzan nadouentoparaterraeiou-se.Asensaodefrescuraedeexaltaoqueaguafrialhe havia comunicado, enchia-lhe o corpo, com grata surpresa.Da por diantenuncamaisperdeu aoportunidadedemergulharno lago,no rio,oumesmonomarquandoissolheerapossvel.

    Durantemuito tempoKala no se habituou a tal coisa. Embora os gorilaspossamnadarquando foradosa isso,nogostamdeentrarnaguaenuncaofazemvoluntariamente.

    A aventura com a leoa deu a Tarzan assunto para agradveis recordaes.Eramcasosassimquequebravamamonotoniadasuavidaquotidiana-quedeoutra maneira consistia num ciclo fechado e sem interesse, feito de procurar

  • comida,comeredormir.AtriboaqueTarzanpertenciahabitavaumterritrioque,grosseiramente,se

    alongavaporumasvinteecincomilhasdecosta,alargando-secercadecinqentamilhas para o interior. Percorriam quase continuamente essa extenso, emborapor vezes se demorassem, durante meses, num mesmo local. Mas, quando sedeslocavamagrandevelocidadeporentreasrvores,erafreqentepercorreremtodooterritrioempoucosdias,oterritriomuitodependiadeabastecimentosde comida, condies de clima e existncia de animais das espcies maisperigosas.Todavia,Kerchakmuitofreqentementeosguiavaemlongasmarchas,pela simples razo de estar cansado de permanecer nomesmo lugar.De noite,dormiam no lugar onde se encontravam quando a escurido os envolviaestendidosnocho,algumasvezescobrindoacabea,emaisraramenteocorpo,comgrandesfolhasdepalmeira.Doisoutrspodiamaninhar-seunsnosoutros,parateremmaiscalorseasnoiteseramfrias,eassimTarzandormiranosbraosdeKala,todasasnoitesduranteaquelesanos.Queograndeanimalamavaaquelacriadeoutra raa, era indiscutvel;por seu lado,Tarzandavagrandemacacatodo o afeto que teria pertencido a sua me, se esta vivesse. Quando ele semostrava desobediente, Kala castigava-o sem todavia ser cruel e muito maisfreqentementeoacariciavadoqueopunia.

    Tublat,ocompanheirodeKala,sempreodiaraTarzan,eemvriasocasiesestivera prestes a pr termo sua jovem carreira. Por sua vez, Tarzan nuncaperdiaaoportunidadedemostrarquecorrespondiaexatamenteaossentimentosdeTublatequandopodia,semrisco,irrit-lo,oufazer-lhecaretas,ouinsult-lo,no o poupava. Encontrava sempre refgio nos braos de Kala ou nos altosramosdasrvores.

    Asuaintelignciasuperior,eastcia,permitiam-lheinventardezenasdeardisdiablicos para atormentar a vida de Tublat. Desde pequeno que aprendera afazercordas, torcendoeentrelaandoas longaservas, ecomessascordas faziaTublat cair, freqentemente, ou tentava enforc-lo trepando s ramadas dasrvores.

    Brincandocomascordas,eexperimentando-as,Tarzanaprenderatambmafazernsdecorrer,comosquaissedivertiaemcompanhiadosjovensmacacos.Umdia,aobrincarassim,Tarzantinhalanadoasuacordasobreumdosoutros,que tentava escapar-se. A corda, que ele atirara mantendo na mo a outraextremidade,caiuporacasosobreacabeadogorilafugitivo,oquefezcomqueesteparassebruscamente,surpreendido.

    Os jovens macacos tentavam sempre imitar Tarzan, mas sem conseguirporquelhesfaltavaastciaehabilidade.Aoverificaroxitodasuabrincadeira,Tarzan pensou que aquele jogo podia na verdade ser interessante, e durante

  • semanasdetreinoaprendeuadominaraartedeatirarolao.Foi a partir de ento que a vida de Tublat se transformou num pesadelo

    constante.Dediaoudenoite,quandodormiaouquandocaminhava,nuncasabiaquandoomalditolaosilenciosocaasobreele,elheapertavaopescoo,equaseosufocava.Kalacastigava,Tublatresmungavaameaasdavingana,eovelhoKerchak,avisado,interveioeameaoutambm.Masdenadaadiantou.

    Tarzandesafiava-os,atodos,eoncorredio,delgadomasforte,continuavaacairsobreopescoodeTublatquandoestemenosoesperava.

    Os outrosmacacos divertiam-se largamente ante a raiva deTublat, porqueeste era um velho desagradvel a quem ningum estimava.No crebro gil deTarzan agitavam-se muitos pensamentos e por detrs dos pensamentos surgiapoucoapoucoaddivadivinadarazo.

    Se ele podia apanhar os gorilas com a sua longa corda feita de ervasentranadas,porquemotivonopoderiaapanharSabor,aleoa?

    Era o embrio de uma idia que, todavia, estava destinada a girar na suamente, no subconsciente e no consciente, at aparecer como uma conquistamagnfica.Masissoaconteceuanosdepois.

  • CAPTULO6

    LutasnaselvaOvagabundeardatribolevava-osfreqentementepertodabarracafechadae

    silenciosaacurtadistnciadapraiaeemfrentedaangranatural.ParaTarzan,erasempreumafontedeinterminvelmistrioeprazer.Espreitavapelasjanelasqueascortinastapavaminteriormente,ousubiaaotelhadoetentavaveratravsdasprofundidades escuras da chamin, numa tentativa sempre v de sondar asdesconhecidasmaravilhasquedeviamestardentrodaquelasfortesparedes.Asuaimaginaoaindainfantilcriavaestranhascriaturas,ldentro,eaimpossibilidadedeforaraentradaampliavamilvezesoseudesejodeentrar.

    Experimentava o telhado e as janelas durante horas, tentando descobrir amaneiradedesvendarosegredo,maspoucaatenoprestavaportaporquelhepareciatoslidacomoasparedes.

    Foinaprimeiravisitasvizinhanas,depoisdaaventuracomSabor,que,aoaproximar-se da barraca, Tarzan notou, ainda a distncia, que a porta pareciaindependente da parede a que estava ligada, e pela primeira vez lhe ocorreu aidiadeexperimentar,porali,foraraentradaquenuncapuderaconseguir.

    Estavasozinho,oquelheaconteciamuitasvezesquandovisitavaabarraca,visto que os gorilas no gostavam daquele lugar. A histria do pau negro etrovejantenadaperderapelofatodeserrepetidasvezescontadadurantemaisdedez anos, e cercara abarracadeserta, dohomembranco, deuma atmosferadefantasmagoriaepavorparaosmacacos.

    Ahistriadasuaprprialigaocomabarraca,nuncaforacontadaaTarzan.A linguagemdosmacacos tinhaumvocabulrioextremamentepobre,de formaqueelesmalpodiamfalardoquetinhamvistoali,sempalavrasparadescreveremcomexatidoasestranhaspessoaseascoisasquelhespertenciam.Assim,muitoantesdeTarzanchegaridadedecompreender,anarrativaconservavaapenasosaspectosfantsticos,essesemplenafora,masospormenorescomeavamsendoesquecidos.

    SmuitovagamenteKalaexplicaraaoseufilhoadotivoqueopaideleeraumestranhomacacobranco,masnunca sequer lhedera a entenderqueamenoteriasidoelaprpria.

    Assim,destavez,Tarzanencaminhou-sediretamenteparaaportaedurantehorasmexeunos gonzos, nopuxador e naparte exterior do fecho.Por fim, derepente,encontrouaexatacombinaodemovimentoseaportarangeu,abrindo-sediantedosseusolhosespantados.

  • Durante minutos no se atreveu a entrar, mas quando os seus olhos sehabituaramobscuridadeinterior,avanoucautelosamente,devagar.

    No meio do cho estava um esqueleto - todos os vestgios de carnedesaparecidos dos ossos aos quais se agarravam ainda pedaos bolorentos quetinhamsidoroupas.Sobreacamajaziaoutroesqueleto,emborabastantemenor,e numpequenoberoum terceiro amontoadodeossos, de uma criaturamuitopequena. A todas essas provas de uma tragdia ocorrida muitos anos antes,Tarzan dedicou apenas uma ateno fugidia. A sua vida selvagem tinha-ohabituadoaveranimaismortosoumoribundos.emesmoquetivessesabidoqueaquelesrestospertenciamaseupaiesuame,ofatonooimpressionariamuitomais. O que atraiu a sua ateno foi o mobilirio e o resto do contedo dabarraca.

    Examinou minuciosamente vrias coisas -, estranhas ferramentas e armas,livros,papel,roupas-opoucoqueconseguiraresistirpassagemdotempoeumidade do ar, to perto da praia. Abriu asmalas e armrios, coisas que nosurpreenderamasuapequenaexperincia,eaencontrouobjetosmuitomaisbemconservados.Entreoutrascoisasdescobriuuma facadecaa,bemafiada, comcuja lmina logo fez uma inciso num dedo. Sem se perturbar com isso,continuouassuasexperinciaseverificouquepodiacortarpedaosdemadeiradamesaedascadeiras,comoseunovobrinquedo.

    Durantealgumtempoissodivertiu-o,masporfim,fartando-se,continuouasua explorao. Num armrio cheio de livros, encontrou um com imagensricamentecoloridas-eraumalfabetoilustrado,paracrianas.

    A.dearqueiroQueoarcodispara.B.debonecaQuesechamaSara.Osdesenhosinteressaram-nograndemente.Viumuitosmacacoscomcaras

    semelhantessua,emaislonge,naletraM,viumacaquinhospequenoscomoaqueles que todos os dias encontrava, saltando entre os ramos da sua florestaprimitiva.Masempartealgumaencontrouilustraesquelembrassemosdasuaprpriatribo;emtodoolivro,nadahaviadesemelhanteaKerchak,aTublatouaKala. Inicialmente tentou tirar das pginas as pequenas figuras, mas logocompreendeuquenoeramreais,emboranosoubesseoquepoderiamserenotivesse palavras para descrev-las. Os barcos, comboios, vacas e cavalos, notinham qualquer significado para ele, mas todavia no lhe pareceram tointrigantes como as estranhas figurinhas que apareciam abaixo e entre osdesenhos coloridos - deviam ser insetos, talvez, porquemuitos tinham pernas,masnoencontrouumsquetivesseolhoseboca.Eraoseuprimeirocontatocomoalfabetoetinhamaisdedezanos.

  • Evidentementequenuncavira,antes,caracteres impressos,nemfalaracomqualquercriaturavivaquetivesseamenoridiasobreaexistnciadelinguagemescrita.Nosabiaquefossepossveller.Porissonoadmiravaquenopudessefazerqualqueridiasobreosignificadodaquelasestranhasfiguras.

    Acercadomeiodolivrodescobriuasuavelhainimiga,Sabor,aleoa,emaisadiante viu Histah, a serpente. Aquilo era maravilhoso e absorvente! Nuncaantes, nos seus dez anos de vida, encontrara uma coisa que lhe desse tantoprazer. E to absorvido estava que no notou a aproximao da noite senoquandoaescuridojnolhepermitiaver.

    Psolivronoarmrioondeoencontraraefechou-o,porquenoqueriaqueoutroencontrasseedestrusseoseutesouro.Entosaiu,nasombracrescente,efechouagrandeportadabarracatalcomoestiveraantesdeledescobrirosegredodoferrolho.Mas,antesdesair,viuafacaquetinhaatiradoparaocho,elevou-aconsigoparaamostraraoscompanheiros.

    Malhaviadadoumadziadepassosnadireodaselva,quandoumgrandevulto surgiu diante dele, vindo das sombras do matagal baixo. Ao princpioTarzan julgou que era umdos seus,mas imediatamente reconheceuBolgani, ograndechimpanz.Ovultoestavatopertoquenohaviapossibilidadedefugir,eorapazcompreendeuquetinhadelutarpelasuavida.Sabiaqueoschimpanzseram inimigosmortaisdasua tribo,equenuncapediamnemdavamtrgua.SeTarzanfosseumgorilaadulto,comoosdasua idadenatribodeKerchak,teriasidomaisdoquebastanteparaenfrentaroadversrio.Maseraapenasumrapazingls, embora espantosamente forte e corajoso, e poucas eram as suasprobabilidadesdevenceroseuferozantagonista.Nassuasveias,porm,corriaosanguedeumaraadelutadores,eaapoiarissotinhaotreinodasuacurtavidaentreosgrandesanimaisdaselva.

    No conhecia omedo, e se o seu corao batiamais apressado era apenaspela excitao da aventura. Se lhe tivesse surgido a oportunidade, teria semdvidafugido,porqueoseuentendimentolhediziaqueoantagonistaeramuitomais poderoso do que ele. Mas esse entendimento dizia-lhe tambm que nopodiafugir,eassimdisps-seaocombate,semreceio.FoiaoencontrodeBolganino momento em que este atacava, batendo-lhe com os punhos fechados -toinutilmentecomosefosseuminsetobatendonumelefante.Mastinhaaindanamoafacadecaaqueencontraranabarraca,equandoaferatentouagarr-lopara o esmagar, o acaso fez com que Tarzan voltasse a lmina na direo dogrande peito peludo. Quando a faca lhe penetrou profundamente no corpo, ochimpanzgritoudedorederaiva.

    Masagoraorapazaprendera,nessebrevesegundo,ausaraquelebrinquedoagudo e rebrilhante, de modo que, quando Bolgani o arrastou para o cho,

  • cravou-lhealminarepetidasvezesnopeito,ataocabo.Ochimpanzlutavamaneira da sua raa, desferindo grandes pancadas com as mos abertas emordendo comos grandesdentes.Pormomentos rolaramno cho,na friadocombate.Tarzancontinuavaavibrargolpescoma faca,masperdiasanguepormuitas feridas e o seu brao tinha cada vez menos fora. Por fim, com umaconvulso espasmdica, Tarzan, o jovem Lord Greystoke, ficou sem sentidossobreoterreno.

    A uma milha de distncia, na floresta, a tribo escutara os gritos dochimpanz.Comoerahbitoquandoalgumperigoosameaava,Kerchakreuniuoseugrupo,emparteparamtuadefesacontrauminimigocomum,eoutraparteporqueochimpanzpodiateroutroscompanheiros.Kerchakqueriatambmverqualdosseusandavaaindafora.

    EmbrevedescobriramqueTarzanfaltava,eTublatops-seaquefossememsocorro dele. O prprio Kerchak no gostava do pequeno animal branco demaneira que deu ouvidos a Tublat e, com um encolher dos grandes ombros,voltouaestender-sesobreomontedefolhasondefizeraasuacama.

    Kala no pensava damesmamaneira.De fato, apenas soubera queTarzanestavaausente,lanara-sequaseemvo,deramoemramo,nadireodopontodeondevinhamaindaosgritosdochimpanz.Tinhaanoitecidocompletamente,masaluanascenteprojetavaasuaclaridadeplida,recortandoestranhassombrasnafloresta,contribuindoparadarumaspectofantsticoescurido.

    Como um grande fantasma, Kala avanava silenciosamente, saltando dervoreemrvore,aproximando-sedocenriodatragdia,queoseuinstintolhedizia no ser longe.Os gritos do chimpanz diziam claramente que ele estavatravandoumalutademortecomalgumoutrohabitantedaselva.Masderepenteosgritoscessarameumsilnciodemortepesounafloresta.

    Kalanocompreendia,porqueavozdeBolganinosltimosgritos,traduziaaagonia do fim, mas nenhum som tinha vindo pelo qual a macaca pudessedeterminar a natureza do adversrio. Que o seu pequeno Tarzan pudesse tervencidooenormechimpanz,parecia-lheimpossvel.Assim,aochegarpertodopontodeondetinhamvindoosecosdaluta,passouamover-semaisdevagarecomextremacautela,curvando-sesobosramosbaixoseespreitandoaescuridomanchada aqui e almpelos raios do luar que passavampor entre o dossel defolhagem.

    Foientoqueviu,numpequenoespaodescoberto,iluminadopelalua,oseupequenoTarzan,cadoecobertodesangue,e juntodeleocorpodeumgrandechimpanzmorto.Comumgritorouco,KalacorreuparaTarzanetomou-onosbraos,apertando-ocontraopeitoeespiandoalgumsinaldevida.

  • Ouviu-o.Ouviuofracobaterdopequenocorao.Ternamente, levou-o de volta atravs da selva escura, at ao ponto onde

    estava a tribo, e durantemuitos dias emuitas noitesmanteve-se ao lado dele,levando-lheguaecomidaeafastandoasmoscaseoutrosinsetosquequeriampousarnasferidas.Nadapodiafazer,almdisso,anoserlamberessasferidaseconserv-las limpas, para que a natureza pudesse exercer mais depressa a suaaocicatrizante.

    NosprimeirosdiasTarzannoquiscomer,agitando-seaespaosnodelriodafebre.Tudooquepediaeragua,queKalalhelevavadanicamaneiraquepodia - na suaprpria boca.Nenhumaoutrame,mesmohumana, poderia termostrado maior dedicao e esprito de sacrifcio do que aquela macacagigantesca,pelopequenorfoestranhoqueodestinoconfiarasuaguarda.Porfim, a febre desceu e as feridas comearam a cicatrizar. Nenhum queixumeescapoudoslbiosdeTarzan,embora,porvezes,asdoresfossemintensas.Umadentadadochimpanzarrancara-lhecarnedopeito,e trscostelashaviamsidoquebradas pelas pancadas. Um brao fora cruelmente mordido, tambm, e nopescoomostravaarranhesfundos.

    Comoestoicismodascriaturasqueohaviamrecolhido,Tarzansuportavaemsilncioosofrimento,preferindoarrastar-separalongedosoutrosadeix-losvercomo estava. S o alegrava a companhia deKala,mas agora ela demorava-semaisquandosaadejuntodele,embuscadecomida.Durantediasedias,opobreanimal s comera o suficiente para se agentar vivo, enquanto Tarzan tinhaestadopior,eemconseqnciadissoficarareduzidoaumasombradesimesmo.

  • CAPTULO7

    AluzdoentendimentoDepois do que lhe pareceu uma eternidade, Tarzan voltou a sentir-se com

    forasparaandar,eapartirdessemomentoasuarecuperaofoitorpidaque,ao cabo de mais um ms, estava to forte e ativo como sempre. Durante aconvalescenatinhalongamentemeditadonasualutacomochimpanz,easuaprimeiraidiafoiirprocuraramaravilhosaarmaqueotransformara,depequenacriatura indefesa, em vencedor de um dos gigantes da selva. Estava tambmansiosoporvoltarbarracaecontinuarainvestigarassurpreendentescoisasquehaviaml.

    Umamanhcedo,partiusozinhopararealizaroseudesejo.Depoisdeumabreve busca encontrou os ossos, limpos de carne, do seu adversrio, e pertodeles, meio escondida sob as folhas cadas, achou a faca vermelha agora deferrugem em conseqncia da umidade do terreno e do sangue seco dochimpanz.

    No gostou da modificao que via na arma, anteriormente clara erebrilhante,masassimmesmoeraumaarmaformidvelqueelepensavausarcomvantagem quando a ocasio se apresentasse. Tinha em mente que no maisvoltariaafugirdiantedosataquesdeTublat.

    Um momento depois estava diante da barraca e em poucos minutosconseguiu manobrar o fecho e entrar. A sua primeira ocupao foi estudar omecanismodessefecho,oquefezexaminando-oatentamentecomaportaaberta.Queriasaberprecisamenteporquerazoseguravaobatente,eporquemeiososoltavaquandoelelhemexia.Descobriuentoquepodiafecharaportapeloladodedentroefoioquefezparanocorreroriscodesermolestadoduranteassuasinvestigaes.Comeouumabuscasistemticanabarraca,masasuaatenonotardouaseratradaparaoslivrosquepareciamexercersobreeleumaestranhaepoderosa influncia. Deixou tudo o mais para se dedicar apenas ao quebra-cabeasqueoslivrossignificavamparaele.Paraqueserviam,equehavianeles?

    Entre os outros livros havia uma cartilha, alguns de primeiras leituras paracrianas,numerososvolumesilustradoseumgrandedicionrio.Examinoutodoseles,masforamas ilustraesquemaisoatraram-emboraosestranhossinaisquecobriamaspginas,noslugaresondenohaviadesenhos,excitassemoseucrebroeprovocassemmeditaoprofunda.

    Agachadosobreamesa,nabarracaqueseupaiconstruraocorpomoreno,nu e macio, curvado sobre os livros que segurava nas mos - deixava que o

  • comprido cabelo negro lhe pendesse para a cara, emoldurando a cabea bemformadaeosolhosbrilhanteseinteligentes.Nessaposio,TarzandosMacacosrepresentavaumaimagemestranhaeaomesmotempocheiadepromessas,umafiguraalegricadeprimitivoabrindooseucaminhodastrevasdaignornciaparaaluzdoentendimento.

    A sua face pequena estava tensa, absorta no estudo, porque apanhara emparte, de uma forma nebulosa e vaga, os rudimentos de uma idia que talvezfosse a chave, a soluo para o enigma dos estranhos sinais. Tinha agora nasmos uma cartilha, aberta na pgina onde havia a imagem de um pequenomacacosemelhanteaelemascoberto,comexceodasmosedacara,porumaestranhapelagemcolorida-assimTarzansupunhaseremascalaseocasacodafigura.Sobaimagemhaviacincopequenossinais:RAPAZEagoraverificavaque, no texto no alto da pgina, esses sinais eram repetidos vrias vezes, porvezes isolados mas, mais freqentemente, reunidos com outros ou na mesmaseqncia em que estavam sob a gravura. Lentamente, foi folheando o livro,observandoosdesenhoseotextoembuscadarepetioexatadoscincosinaisr-a-p-a-z.

    Veioaencontraressarepetiosobumdesenhoondeoutropequenomacacoeumanimaldequatropatas,bastanteparecidocomumchacalapareciamaoladoumdooutro.Ossinaiseram:

    O RAPAZ E O CO. Ali estavam, os cinco sinais juntos que sempreacompanhavam a figurao do pequeno macaco. E assim Tarzan comeou aprogredir,muitolentamente-porqueeraumarduaedifciltarefaessaaquesededicarasemaconhecer,umatarefaquepoderiaparecer impossvelaqualquerpessoa civilizada, a de aprender a ler sem ter omais ligeiro conhecimento doscaracteresda linguagemoudaescrita,amais leve idiadeque talcoisasequerexistia.

    Nooconseguiunumdia,nemnumasemana,ounumms,ounumano;masdevagar,muitodevagar,aprendeu,depoisdetercompreendidoaspossibilidadeslatentesnaquelesestranhosepequenossinais,demaneiraque,aosquinzeanos,conheciaasvriascombinaesdeletrasqueindicavamcadaimagemnacartilhaeemumoudoisdoslivrosdeilustraes.Notinha,decerto,nemamaisvagaidiadousodeartigoseconjunes,verbosoupronomesdequalquergnero.

    Umdia,quandocontavadozeanos,acharaumaporodelpisnumagavetaatentoinexplorada,sobamesa,eaoroarumdelesnotampodamesaficaraencantado ao notar a linha preta que o lpis deixava ao passar. Trabalhou toassiduamente que a mesa no tardou a ficar coberta de crculos e linhasirregulares,eapontadolpiscompletamentegastaatmadeira.

    Entopegououtrolpis,masdestaveztinhaemvistaumobjetivodefinido-

  • tentarreproduzirospequenossinaisqueexistiamnaspginasdoslivros.Eraumatarefadifcil,porqueseguravaolpiscomoalgumpoderiasegurarocabodeumpunhal,oquenoajudagrandementeaescreverdemaneiralegvel.

    Masperseveroudurantemeses,semprequelheerapossvel irbarraca,atque por fim, custa de repetidas experincias, descobriu amelhormaneira deagarrar o lpis de forma a poder dirigi-lo -e conseguiu reproduzir todos ospequenossinais.Assimcomeouaescrever.

    Aocopiarossinaisaprendeutambmoutracoisa:oseunmero.Emboranosoubessecontarcomonsofazemos,tinhanoentantoumaidiadequantidade;abasedosseusclculoseraonmerodededosdeumadassuasmos.Assuaspesquisas, nos vrios livros, convenceram-no de que descobrira todas asdiferentes formas de sinais mais freqentemente repetidos em combinaes, edisp-losemordemcomgrandefacilidade,emconseqnciadasinmerasvezesem que observara o fascinante alfabeto na cartilha.A sua educao progredia,mas as mais importantes descobertas foram feitas na inextinguvel reserva dograndedicionrioilustrado,poisaprendiamaispormeiodeimagensdoquepelostextos, mesmo depois de ter apanhado a significao dos sinais. Quandodescobriuadisposiodaspalavrasporordemalfabtica,deliciou-seaprocurarascombinaesquelheeramfamiliares,easpalavrasqueasacompanhavam,nasdefinies,levaram-nomaisparaafrentenomatagaldaerudio.

    Aos dezessete anos tinha aprendido a ler a cartilha, o livro de primeirasleituras, e compreendera totalmente a verdadeira e maravilhosa utilidade dospequenos sinais.Deixou de se sentir envergonhado do corpo sem plos ou dafisionomia humana, pois agora a razo dizia-lhe que pertencia a uma raadiferentedados seus selvagensepeludoscompanheiros.EraumH-O-M-E-M,eleseramM-A-C-A-C-O-S,avelhaSaboreraumaL-E-O-A,HistahumaS-E-R-P-E-N-T-EeTaboreraumE-L-E-F-A-N-T-E.Eassimapre