ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia

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p: EDUCAÇÃO E SOCIOLOGIA, Émile Durkl Q 3 9' HISTORIA DA GEOGRAFIA, Paul Claval T" 0 OU K É 0 OCIDENTE?, Phillipe Nemo » ESBOÇO PARA UMA AUTO-ANÁLISF,. Pi i> -i 3 2 PAliA UMA SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA, 1 u ^ - -J W - A INTERPRETAÇÃO DAS AFASIAS, Sigm Ç Õ- -1 I o PSICANÁLISE E RELIGIÃO, Eridi Frornm -c AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE is 9 > í •f A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, Olivier Kel ^ n - :' 0 NASCIMENTO DO TEMPO, Ilya Prigog n pi INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, Norbert ~ S AS RELAÇÕF.S INTERNACIONAIS DE 18 -' > ^ ? * REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E CRESCIM Z -; ^r « A EVOLUÇÃO PSICOLÓGICA DA CRIAN > ' f g (0 O MEDICO NA ERA DA TÉCNICA, Karl J ir !? r O PAROXISTA INDIFERENTE, Jean Baud 3 -! p QUESTÕES DE RETÓRICA; LINGUAGE] S S N >' ^ to O PROCESSO DA EDUÍCAÇÃO, Jeroino Br^ 3 -1 '— Z c' í~* o o o n M 5^ -i-^ •_| HERANÇA E FUTURO DA EUROPA, Han T O S rre d L^ TEMPOS CATIVOS: AS CRIANÇAS TV; Li -• S c o ? AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE IS .^: Oi 4* CONCEITOS SOCIOLÓGICOS FUNDAM] m >,/; H 53 ^ !* ACTOS DE SIGNIFICADO, Jeronw Bruner JS AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DESE ra to 4* •*J O MISTÉRIO DA SAÚDE, Hans-Georg Ca g- 3 n O LECÇÃO BIBLIOTECA 7O NORBERT ELIAS INTRODUÇÃO A SOCIOLOGIA

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Sociologia

Transcript of ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia

  • p: EDUCAO E SOCIOLOGIA, mile Durkl Q 3

    9' HISTORIA DA GEOGRAFIA, Paul Claval

    T" 0 OU K 0 OCIDENTE?, Phillipe Nemo

    ESBOO PARA UMA AUTO-ANLISF,. Pi i> -i 3 2

    ! PAliA UMA SOCIOLOGIA DA CINCIA, 1 u ^- -J W

    - A INTERPRETAO DAS AFASIAS, Sigm - -1 I

    o PSICANLISE E RELIGIO, Eridi Frornm

    -c AS RELAES INTERNACIONAIS DE is 9 >

    f A FILOSOFIA DA EDUCAO, Olivier Kel ^ n -

    :' 0 NASCIMENTO DO TEMPO, Ilya Prigog n

    pi INTRODUO SOCIOLOGIA, Norbert ~ S

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    4* CONCEITOS SOCIOLGICOS FUNDAM] m >,/; H 53

    ^ !* ACTOS DE SIGNIFICADO, Jeronw Bruner

    JS AS RELAES INTERNACIONAIS DESE ra to 4*

    *J O MISTRIO DA SADE, Hans-Georg Ca g- 3

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  • Assinada por um dos nomes mximos daSociologia contempornea, esta introdu-o tem o mrito de constituir uma abor-dagem diferente, nada convencional e degrande poder de sntese. Sucessivamente,Norbert Elias retoma as interrogaesformuladas por August Comte acercada Sociologia; fala do papel do socilogocomo destruidor de mitos, das caracters-ticas universais da sociedade humana e dateoria do desenvolvimento social.

  • A cultura como sistema aberto, como acto e dramaque se expressa na palavra e na imagem para anlisee interpretao do quotidiano.

  • Introduo Sociologia

  • Ttulo original:Was ist Soziologie?

    Juventa Verlag, Munique 1970

    Traduo: Maria Lusa Ribeiro Ferreira

    Capa de F.B.A.

    Depsito Legal n 283730/08

    Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogao na Publicao

    ELIAS, Norbert, 1897-1990

    Introduo sociologia. - Reimp. - (Biblioteca 70 ; 16)ISBN 978-972-44-1486-7

    CDU 316

    Impresso e acabamento:PENTAEDRO

    paraEDIES 70, LDA.

    Outubro de 2008

    ISBN: 978-972-44-1486-7ISBN da 3a edio: 972-44-1227-XISBN da 2a edio: 972-44-1005-6ISBN da 1a edio:972-44-0400-5

    Direitos reservados para todos os pases de lngua portuguesapor Edies 70

    EDIES 70, Lda.Rua Luciano Cordeiro, 123 - 1 Esq - 1069-157 Lisboa / Portugal

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  • AGRADECIMENTOS DO AUTOR*

    Se, ao escrevermos uma introduo sociologia, nos des-viamos um pouco dos caminhos usuais e, ao faz-lo, tentamosajudar o leitor a encarar de um modo novo os problemasbsicos da sociedade, em primeiro lugar s podemos confiarem ns mesmos. No entanto, estamos sempre dependentes daajuda, encorajamento, estmulo e sugestes dos outros. Noposso aqui mencionar todos os que, de um ou de outro modo,me ajudaram neste trabalho. Porm, alm do director destacoleco, Professor Dieter Claessens, a quem dedico este livro,devo mencionar explicitamente o Doutor W. Lepenies, que comgrande habilidade e tacto adaptou o manuscrito do autor (dema-siado longo, difcil e no facilmente sujeito a cortes) ao -formatoadequado para a coleco. Volker Krumrey prestou-me conside-rvel auxlio e conselho na preparao do manuscrito. Tambmgostaria de exprimir os meus calorosos agradecimentos aosmeus amigos e colegas Eric Dunning, Johan Goudsblom e Her-mann Korte, pelos estmulos e conselhos que me prestaram.Finalmente, no posso deixar de agradecer ao meu editor Dou-tor M. Faltermaier, cuja pacincia de tempos a tempos pus prova.

    Leicester, 1969

    NORBERT ELIAS

    * Referente* & edio original alem (luventa Verlag, Munique, 1970).

  • PREFCIO EDIO INGLESA

    Norbert Elias foi um dos cientistas alemes que fugiud Alemanha nos anos 30, fazendo da Inglaterra o seu lar.A sua contribuio cientifica fundamental, ber den Pro-zess der Zivilisation, foi publicada em 1939 na Sua, sendotambm publicada a, em 1969, uma nova edio, com umnovo e importante prefcio. No entanto, s agora as prin-cipais obras de Elias, incluindo o presente livro, comeama ser acessveis aos leitores ingleses. Contudo, a obra deNorbert Elias como professor na Universidade de Leices-ter teve uma influncia considervel. Podemos hoje -falarde toda uma gerao de socilogos ingleses que foram seusalunos e que, como tal, difundiram o seu entusiasmo con-tagiante por este tema. Os leitores deste livro reconhece-ro o que os cativou os dotes naturais de Elias comoprofessor. Tambm podemos falar de um interesse reno-vado pela obra deste autor na Alemanha e na Holandaonde, depois de reformado pela Universidade de Leicesterem 1962, leccionou em diversas universidades como pro-fessor visitante. O destino de Norbert Elias tem sido sin-gular pois se o seu maior impacto como professor se deuem Inglaterra, o impacto posterior do seu trabalho cien-tfico tem-se dado no universo acadmico da Alemanha.

    What is Sociology? foi publicado pela primeira vezem 1970, produto tardio da carreira do seu' autor. Naltima frase de uma ltima nota diz-se: ToLa a teoriatardia se desenvolve simultaneamente como continuaode teorias anteriores e como ponto de partida criticodecorrente destas. Embora esta afirmao se refira aMarx, ela tambm se aplica a Elias. Numa breve intro-duo, ilusoriamente superficial, o leitor descobrir uma

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  • nova justificao da sociologia, recorrendo-se s idiasbsicas primeiramente traadas por Augusto Comte. Pos-teriormente, Elias ir retomar categorias bsicas do pen-samento sociolgico, continuando assim a tradio socio-lgica embora tomando uma posio crtica relativamentea contributos maiores tais como os de Marx, Weber e Par-sons. Neste processo vai induzindo o leitor a repensartemas fundamentais do discurso sociolgico tais como indi-vduo, grupo e owros.

    A idia deste tipo de abordagem decorre da prpriaobra socio-histrica do autor. Esta versa essencialmentesobre padres mutveis de interdependncia relativamentes relaes de poder entre os homens em sociedade. A umaprimeira anlise das mudanas de etiqueta, relativas aoaparecimento do absolutismo monrquico (na Franamedieval), seguiu-se um estudo da sociedade cortesCDie hfische Gesellschaft, 1969). Em ambas as obras oautor acentua queda interpenetrao de inmeros interesses e intenes indivi-duais sejam eles compatveis ou opostos e hostis algo vaidecorrendo que, ao revelar-se, se verifica no ter sido planeadonem requerido por nenhum indivduo. No entanto apareceudevido s intenes e actos de muitos indivduos. E isto, naverdade, representa todo o segredo da interpenetrao social da sua obrigatoriedade e regularidade, da sua estrutura, dasua natureza processual e do seu desenvolvimento; isto osegredo da sociognese e da dinmica sociais. [ber den Pro-zess der Zivilsation (1969), II, p. 221].

    evidente que Elias clarifica o Jacto de, nesse jogo deinterdependncias, governantes e reis, personagens impor-tantes e outros, terem uma influncia considervel, insis-tindo no entant no facto de eles prprios constituremuma parte das interdependncias em que so relativamentedominantes [Die hfische Gesellschaft (Neuuned: HermannLuchterhand Verlag, 1969), pp. 213-221].

    Ao relatar sistematicamente esta viso da histria edas diferenas de poder, Norbert Elias deu um contributofundamental para a moderna sociologia. A introduo quese segue pode ser proveitosamente lida em separado, maso leitor aperceber-se- de que Introduo Sociologiase baseia num trabalho cientfico, que rene simultanea-mente aspectos de histria poltica, de psicologia das pro-fundezas e de sociologia, numa sntese original de consi-dervel vigor.

    REINHARD BENDIXUniversidade da Califrnia, Berkeley

    INTRODUO

    Para compreendermos de que trata a sociologia, temosque nos distanciar de ns mesmos, temos que nos consi-derar seres humanos entre os outros. Na verdade, a socio-logia trata dos problemas da sociedade e a sociedade formada por ns e pelos outros. Aquele que estuda epensa a sociedade ele prprio um dos seus membros.Ao pensarmo-nos na sociedade contempornea, difcilfugir ao sentimento de estarmos a encarar seres humanoscomo se fossem meros objectos, separados de ns por umfosso intransponvel. Este sentido de separao expresso,reproduzido e reforado pr conceitos e idiomas correntesque fazem com que este actual tipo de experincia surjacomo evidente e incontestvel. Falamos do indivduo e doseu meio, da criana e da famlia, do indivduo e da socie-dade ou do sujeito e do objecto, sem termos claramentepresente que o indivduo faz parte do seu ambiente, dasua famlia, da sua sociedade. Olhando mais de perto ochamado meio ambiente da criana, vemos que ele con-siste primariamente noutros seres humanos, pai, me,irmos e irms. Aquilo que conceptualizamos como sendoa famlia, no seria de todo uma famlia se no hou-vesse filhos. A sociedade que muitas vezes colocada emoposio ao indivduo, inteiramente formada por indi-vduos, sendo ns prprios um ser entre os outros.

    No entanto, os instrumentos convencionais com quePensamos e falamos so geralmente construdos como setudo aquilo que experiencissemos como externo ao indi-vduo fosse uma coisa, um objecto' e, pior ainda, umobjecto esttico. Conceitos como famia ou escolareferem-se essencialmente a grupos de seres humanos

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  • Interdependentes, a configuraes especficas que as pes-soas formam umas com as outras. Mas a nossa maneiratradicional de formar esses conceitos faz com que essesgrupos formados por seres humanos interdependentes apa-ream como bocados de matria-objectos tais como asrochas, rvores ou casas. Este modo reificante de falar,que tradicionalmente usamos, e os modos usuais de pen-sar sobre grupos de pessoas mesmo quando se trata degrupos a que pertencemos manifestam-se de muitasmaneiras, no s no termo sociedade e no modo comoo consideramos conceptualmente. usual dizermos quea sociedade a coisa que os socilogos estudam. Maseste modo reificante de nos exprimirmos levanta grandesdificuldades, chegando por vezes a impedir a compreen-so da natureza dos problemas sociolgicos.

    No modelo de senso comum que hoje domina a nossaprpria experincia ou a dos outros, a relao com asociedade ingenuamente egocntrica, tal como indi-cado na figura 1. Configuraes como a universidade,a cidade, o sistema e inmeras outras, podem ser substi-tudas por famlia, escola, indstria ou estado.

    Estado

    Indstria -^ .

    Escola. ~~

    Famlia

    Figura lPadro bsico de uma viso egocntrica da socie-dade

    Quaisquer que sejam essas configuraes, o modotpico e predominante de conceptualizar esses grupossociais e a autopercepo que expressam, correspondem

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    geralmente ao diagrama apontado, que nos mostra a pes-soa individual, o ego particular, rodeado de estruturassociais. Estas so entendidas como objectos em cima eacima do ego individual. O conceito de sociedade tam-bm encarado deste modo.

    Para melhor compreender a problemtica sociolgica,ou o que habitualmente se designa como o seu tema,precisamos de reorientar a nossa compreenso do con-ceito de sociedade do modo implcito na figura 2.

    Figura 2 Representao de indivduos interdependentes (fam-lia, estado, f grupo, ^sociedade, etc.)1

    Este diagrama deveria ajudar o leitor a transpor afrgil barreira de reificao de conceitos, que obscurecee distorce a compreenso da nossa prpria vida em socie-dade. Tal reificao um encorajamento constante idiade que a sociedade constituda por estruturas que nosso exteriores os indivduos e que os indivduos sosimultaneamente rodeados pela sociedade e separados delapor uma barreira invisvel. Como veremos, estas con-cepes tradicionais sero substitudas por uma visonaais realista das pessoas que, atravs das suas disposi-es e inclinaes bsicas so orientadas umas para asoutras e unidas umas as outras das mais diversas manei-ras. Estas pessoas constituem teias de interdependnciau configuraes de muitos tipos, tais como famlias,escolas, cidades, estratos sociais ou estados. Cada umadessas pessoas constitui um ego ou uma pessoa, como

    .

    l As figuras reportam-se ao captulo Notas e refern-

    cias, p. 193.

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  • muitas vezes se diz numa linguagem reificante. Entreessas pessoas colocamo-nos ns prprios. '

    Tal como j foi dito, para compreender de qu trataa sociologia temos que estar conscientes de ns prprioscomo seres humanos entre outros seres humanos. pri-meira vista isto parece um lugar comum. Cidades e aldeias,universidades e fbricas, estados e classes, famlias e gru-pos operacionais, todos eles constituem uma rede de indi-vduos. Cada um de ns pertence a esses indivduos issoque significam as expresses a minha, aldeia, a minha uni-versidade, a minha classe, o meu pas. Ao nvel de umalinguagem quotidiana, tais expresses so perfeitamenteusuais e inteligveis. No entanto, se quisermos pensar deum modo cientfico, geralmente esquecemos que possveldesignar essas estruturas sociais de minha, dele, nos-sas, vossas, deles. Em vez disso, referimo-nos habi-tualmente a essas estruturas como se elas existissem nos acima e para alm de ns mesmos, mas tambm acimae para alm de qualquer pessoa. Neste tipo de pensamentp,parece evidente que o eu ou os indivduos particularesesto de um lado, havendo do outro lado a estrutura social,o meio ambiente que me rodeia, a mim e aos outroseus.

    Isto explica-se por vrias razes; aqui apenas nos orien-tamos para uma delas. O constrangimento caractersticoque as estruturas sociais exercem sobre aqueles que asformam particularmente significativo. Procuramos daruma explicao satisfatria a esta imposio, atribuindouma existncia a essas estruturas uma realidade objectiva,que se coloca acima dos indivduos que as constituem epara alm desses prprios indivduos. A maneira correntede formarmos s palavras e os conceitos refora a ten-dncia do nosso pensamento para reificar e desumanizaras estruturas sociais. Isto conduz, por um lado, caracte-rstica metafsica das estruturas sociais, que hoje tantasvezes aparece no pensamento quotidiano e no pensamentosociolgico. Uma das suas expresses mais tpicas residena imagem da relao entre o indivduo e a sociedade,simbolizada na figura 1.

    Esta concepo metafsica posteriormente sustentadapela transposio automtica de modos de pensar e defalar, primeiramente desenvolvidos e testados na investiga-o de relaes naturais em fsica e em qumica. Essesmodos foram transpostos para a investigao das relaessociais entre os indivduos. Antes de ser possvel umaaproximao cientfica dos factos naturais, as pessoas

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    explicavam as foras naturais em termos e modos de pen-sar decorrentes da experincia que tinham das foras inter-pessoais. O sol e a terra, as tempestades e os sismos,que hoje consideramos manifestaes naturais de forasfsicas e qumicas, eram interpretados em termos da suaprpria experincia de fenmenos humanos e sociais.Viam-nos quer como pessoas, quer como resultados deaces e desgnios de pessoas. S gradualmente se operoua transio do pensamento mgico e metafsico para opensamento cientfico interpretativo dos aspectos fsico--qumicos do universo. Esta mudana de perspectiva estlargamente dependente do desaparecimento de modelosexplicativos heternomos e ingenuamente egocntricos,cujas funes foram assumidas por outros modelos dediscurso e de pensamento, mais estreitamente correspon-dentes dinmica imanente dos acontecimentos naturais.

    Ao procurarmos alargar a nossa compreenso dos pro-cessos humanos e sociais e adquirir uma base crescentede conhecimentos mais slidos acerca desses processos isto j em si constitui uma das tarefas fundamentaisda sociologia confrontamo-nos com uma tarefa seme-lhante de emancipao. Tambm nesta esfera as pessoasverificam que esto sujeitas a foras que as compelem.Procuram compreend-las para que, com a ajuda desteconhecimento, possam adquirir um certo controlo sobreo decurso cego dessas foras compulsivas, cujos efeitosso muitas vezes destruidores e destitudos de qualquersignificado, causando muito sofrimento. O objectivo orientar essas foras de modo a encontrar-lhes signifi-cado, tornando-as menos destruidoras de vidas e de recur-sos. Daqui decorre ser fundamental para o ensino da socio-logia e para a sua prtica de investigao, a aquisio deuma compreenso geral dessas foras e um aumento deconhecimentos seguros das mesmas, atravs de camposespecializados de investigao.

    O primeiro passo no parece muito difcil. No difcil compreender que o que pretendemos conceptualizarcomo foras sociais so de facto foras exercidas pelaspessoas, sobre outras pessoas e sobre elas prprias. Noentanto, logo que queremos continuar, partindo desteprincpio, verificamos que o mecanismo social do pensa-mento e da linguagem apenas coloca nossa disposioquer modelos de um tipo ingenuamente egocntrico como mgico-mtico, quer modelos tirados das cincias natu-rais. Encontramos os primeiros sempre que as pessoasProcuram explicar as foras que as compelem com base

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    RodrigoRealce

  • nas representaes que elas prprias formam conjunta-mente com os outros, totalmente em termos de caracterpessoal ou de objectivos ou intenes pessoais de outrosindivduos ou grupos de indivduos. muito comum estanecessidade de nos excluirmos
  • interpretao de processos sociais a longo prazo, em quese inclui a cientifizao do pensamento. Estes processosso totalmente diferentes daquilo a que se chama a his-tria da cincia, contrastando com uma filosofia da cin-cia aparentemente imutvel, tal como a histria naturalera habitualmente contrastada com o estudo do aparen-temente imutvel sistema solar.

    Correspondentemente a estas deficincias na investiga-o de processos de desenvolvimento social a longo termo,ainda nos falta a compreenso geral de uma reorientaoa longo prazo da linguagem e do pensamento nas sociedadeseuropias, nas quais o aparecimento das cincias naturaisdesempenharia um papel central. Tal compreenso essen-cial se pretendemos obter uma viso mais clara e ntidadas transformaes operadas. Tambm facilitaria muitose as pessoas compreendessem que a sociologia atingiuactualmente um novo nvel de experincia e de conscien-cializao. Com o constante feedback do volume semprecrescente de investigao emprica, podemos detectar mui-tos modelos de conhecimento e pensamento e podemostambm, medida que o tempo passa, colocar no devidolugar outros instrumentos de linguagem e de pensamentomais adequados investigao cientfica das representa-es sociais.

    to difcil s cincias humanas emanciparem-se deconceitos heternomos, com os seus conseqentes modosde discurso e de pensamento, como o foi s cinciasnaturais h dois ou trs sculos. Aqueles que nessa alturaabraaram a causa das cincias naturais tinham comonica escolha combater os modelos institucionalizados depercepo e de pensamento de caracter mgico-mtico; hojeos protagonistas'das cincias sociais tambm tm que lutarcontra uma utilizao heternoma de modelos prprios dascincias da natureza que tambm se tornaram firmementeinstitucionalizados.

    Mesmo tendo presente que as foras sociais so forasexercidas por pessoas sobre si mesmas e sobre os outros, ainda muito difcil quando falamos e pensamos, preca-vermo-nos contra a presso social das estruturas verbaise conceptuais. Estas fazem com que as foras sociais pare-am foras exercidas sobre os objectos da natureza for-as exteriores s pessoas, exercidas sobre elas como sefossem objectos. Demasiadas vezes falamos e pensamoscomo se no s as montanhas, nuvens e tempestades,mas tambm as aldeias e estados, a economia e a pol-tica, os factores de produo e o avano tcnico, as cin-

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    cias e a indstria, entre inmeras outras estruturas sociais,fossem entidades extra-humanas, com as suas leis pr-prias e, por conseguinte, totalmente independentes daaco ou da inaco humanas. Surgem no sentido dadopela figura l, como se a sociedade, ou o meio ambiente,exercessem influncia sobre cada ser humano, cada euindividual. Muitos dos substantivos usados nas cinciassociais e no discurso quotidiano so formados e usa-dos como se se referissem a coisas materiais, a objectosvisveis e tangveis no tempo e no espao, existindo inde-pendentemente das pessoas.

    No entanto, isto no significa que actualmente j fossepossvel ensinar e investigar sem este tipo de vocabulriode estrutura cpnceptual. Por mais dolorosamente conscien-tes que estejamos da sua insuficincia, ainda nos impos-svel utilizar meios de pensamento e de comunicao maisadequados. Podamos consequentemente tentar libertar demodelos heternomos de discurso e de pensamento o stockusual de conhecimentos e de linguagem, agora utilizadospara alargar a nossa compreenso das teias humanas e dasconfiguraes sociais. Podamos procurar substitu-los pormodelos mais autnomos. No entanto, qualquer tentativadeste tipo estaria votada falncia. Certas transformaessociais s se podem efectuar se que se podem mesmoefectuar quando houver um desenvolvimento que abar-que vrias geraes. Esta reorientao do discurso e dopensamento uma delas. Necessita de uma grande inova-o lingstica e conceptual. Feita de um modo apressado,poderia fazer perigar as suas possibilidades actuais de com-preenso. claro que em circunstncias favorveis osneologismos simples podem passar muito rapidamente aser utilizados socialmente. Mas a compreenso e afinidadeem relao a novos modos de falar e de pensar nuncase desenvolveu sem entrar em conflito com modos maisvelhos e mais comuns. Torna-se necessria uma reorgani-zao da percepo e do pensamento de todas as muitaspessoas interdependentes numa sociedade. Se uma grandemaioria tiver que reaprender e repensar tudo isto, tendoque se acostumar a todo um complexo de conceitos novos ou conceitos velhos com um novo significado entotorna-se necessrio um perodo de duas ou trs geraes,por vezes mesmo de muitas mais. Por tudo isto, talvezque uma viso mais clara da tarefa comum em curso possafacilitar e apressar uma mudana de orientao, mesmodesta envergadura. O meu objectivo aqui contribuir paraa sua clarificao.

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  • Tendo presente este objectivo, a discusso da dificul-dade e morosidade de uma tal reorientao da linguagemsocial e do pensamento podia dar-nos j uma idia do tipode foras que as pessoas exercem umas sobre as outras.Seria mais fcil compreender que tais foras so total-mente distintas, se a nossa linguagem e pensamento noestivessem to totalmente penetrados por palavras e con-ceitos tais como necessidade causai, determinismo, leiscientficas e outras do mesmo tipo. Estes denotam mode-los derivados de uma experincia prtica no campo dascincias naturais, da fsica e da qumica. Foram mais tardetransferidos para outros campos de experimentao, paraos quais no" tinham sido de modo algum primeiramentedestinados, como por exemplo o campo das relaes huma-nas, a que chamamos sociedade. Neste processo perdeu-sea conscincia da sua relao original com as descobertasrelativas a acontecimentos fsico-qumicos. Assim, apresen-tam-se-nos agora como conceitos gerais, que, de certomodo, surgem como concepes a priori do modo comoos acontecimentos se interligam; todos os homens pare-cem possu-los como fazendo parte de um senso comumou de uma razo inatos, independentes da experincia.

    Na maioria dos casos, quando penetramos numa novarea de experincia, deparamos simplesmente com umainsuficincia de conceitos adequados ao tipo de foras ede relaes que a encontrmos. Tomemos por exemplo anoo de fora. A nossa utilizao da linguagem vulgar,com que comunicamos uns com os outros, exerce umaespcie de fora sobre o discurso e o pensamento dosindivduos. Este gnero de fora de tipo muito diferentepor exemplo da fora da gravidade que, de acordo comas leis cientficas, atrai uma bola para a terra quandoesta lanada ao ar. No entanto, quais so hoje os con-ceitos distintos e especficos que conseguem exprimir estadiferena de um modo claro e inteligvel? Talvez que associedades cientficas, mais do que outros tipos de socie-dade, tenham uma maior oportunidade de inovao nocampo lingstico e social. Mesmo assim, a sua oportu-nidade no ilimitada. Levada muito longe, corre o riscode no ser compreendida pelos outros indivduos. Almdisso, os nossos prprios discurso e pensamento so deum modo geral controlados pelos outros e, se esse con-trolo se perder totalmente, tambm corremos o risco deperdermos o controle sobre ns mesmos, ou de nos per-dermos em especulaes sem limites, em fantasias, brin-

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    cando com as idias. muito difcil dirigir um precursoentre o Cila da fsica e o Carbides da metafsica.

    No se deveria esperar demasiado de um simpleslivro. Uma orientao e inovao radicais como as queagora se esboam, apresentadas com o esforo de definirsociologicamente as relaes sociais, no podem ser man-tidas pela imaginao e o poder criativo de qualquer indi-vduo. Precisam dos esforos convergentes de muita gente.Afinal de contas, o factor crtico a direco do desen-volvimento social em todos os seus aspectos o desen-volvimento da teia de relaes humanas como um todo.Uma onda forte de novas idias pode influenciar o decursodo desenvolvimento social global, contando que as tendn-cias de flutuao na distribuio do poder e nas conse-qentes lutas para o adquirir no levem esta reorientaoa uma paralizao total, destruindo o impulso que a sus-tenta. Na situao actual, as cincias sociais encontrama mesma dificuldade que afligiu as cincias naturaisdurante os sculos da sua ascenso: quanto maior for aclera e a paixo surgidas com o conflito, menor ser apossibilidade de uma mudana para um pensamento maisrealista e menos fantasioso. E quanto mais fantasioso mais longe da realidade for o seu pensamento, menoscontrolveis sero a clera e a paixo. Na antigidade,surgiu rapidamente uma concepo da natureza mais deacordo com a realidade; mas foi posteriormente destrudacom o aparecimento de um novo surto da mitologia ligado absoro de estados menores, auto-governados, por gran-des estados imperialistas. Isto mostra como pode ser fr-gil uma tentativa prematura de mudana. Outro exemplo o desenvolvimento de idias utpicas saindo do pensamentocientfico de caracter social, durante os sculos XIX e XX.Ambos os exemplos apontam para um crculo vicioso; esterepresenta em si mesmo uma das foras compulsivas quenecessitam de uma investigao mais precisa. Refernciasa este facto podero lanar luz sobre as tendncias decientifizao do pensamento, que ainda no tiveram aateno que merecem2.

    Uma das caractersticas que distingue a aquisio cien-tfica do conhecimento de uma aquisio pr-cientfica domesmo, est intimamente ligada ao mundo real dos objec-tos. O modo cientfico d s pessoas a possibilidade dedistinguir mais claramente, medida que se vai avan-ando, as idias fantasiosas dos realistas. primeira vista,isto pode parecer demasiado simplificado. A forte correntede nominalismo filosfico, que ainda invade e obscurece

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  • o pensamento filosfico, veio desacreditar conceitos taiscomo realidade e facto. Mas no se trata aqui deespeculao filosfica, quer de tipo nominalista quer detipo positivista; trata-se sim de, relativamente teoria dacincia, estabelecer algo que possa ser verificado por obser-vaes detalhadas e, se possvel, revisto. Numa certa oca-sio pensou-se que a lua era uma deusa. Hoje temos umaidia mais adequada, mais realista da lua. Amanh poder--se- descobrir que h ainda elementos fantasiosos na idiaque hoje temos da lua, podendo as pessoas chegar a umaconcepo deste planeta, do sistema solar e de todo ouniverso, mais aproximada da realidade do que aquelaque actualmente temos. O comparativo desta assero importante; pode ser utilizado para conduzir as idiasentre os dois potentes e inamovveis rochedos do nomina-lismo e do positivismo, servindo para deter a corrente deuma evoluo a longo prazo de conhecimentos e de pen-samentos. Descrevemos a orientao desta corrente, cha-mando especial ateno para a diminuio dos elementosfantasiosos e para o aumento dos elementos realistas donosso pensamento, como sendo caractersticas da cienti-fizao dos nossos modos de pensamento e de aquisiode conhecimentos. Seria preciso um estudo muito maisprofundo do que aquele que podemos desenvolver nestelivro, para que se investigassem as mudanas de equilbrio,a freqncia relativa e o peso de elementos fantasiosose realistas nos conceitos aceites relativamente s socieda-des humanas. Ambos os conceitos podem ser vistos a mui-tos nveis. O de fantasia por exemplo; pode referir-se aossonhos individuais, aos sonhos acordados e aos desejos, expresso imaginativa pela arte, especulao metaf-sica, aos sistemas colectivos de crenas ou s ideologias,e a muitos mais para alm destes.

    No entanto houve um tipo de fantasia que desempe-nhou um papel indispensvel no processo de cientifizaoe nos processos de aquisio crescente de domnio sobrea realidade. Foi o tipo de fantasia simultaneamente colo-cada em cheque e tornada frutfera por um contactoestreito com a observao factual. Como regra, nas suasmeditaes os filsofos nominalistas no se dignam tra-ar a relao complexa dos factos com a fantasia nem osassimilam conceptualmente. Consequentemente, no estoem posio de explicar ao seu pblico os efeitos da cres-cente cientifizao do pensamento no que respeita a fen-menos naturais no humanos. medida que ocorre esteprocesso, com um constante feedback sobre os aspectos

    prticos, podem aumentar as possibilidades de evitar operigo dos acontecimentos naturais, aumentando tambmas oportunidades de nos encaminharmos para metas quens prprios escolhemos. Por exemplo, como podemosexplicar que em muitas sociedades haja uma melhoria denvel de vida e de sade, seno pelo facto dos nossosconhecimentos e pensamentos nesses campos se teremtornado menos carregados de emotividade e menos fanta-siosos, menos mgico-mticos e mais objectivos e realistas?

    Hoje em dia, muita gente, incluindo os prprios soci-logos, fala da cincia com uma preocupao evidente, porvezes mesmo com um certo desprezo. Perguntam. O que que todas essas descobertas cientficas mquinas, fbri-cas, cidades, bombas nucleares e todos esses horrores daguerra tecnolgica tm feito por ns? Este argumento um exemplo tpico da supresso de uma explicao malaceite e da sua substituio por um tipo de explicaomais aceitvel (um processo chamado deslocao). Defacto, os progressos da bomba de hidrognio foram insti-gados por homens de estado, que seriam os primeiros aordenar a sua utilizao caso a pensassem necessria. Con-tudo, para ns, a bomba nuclear funciona como uma esp-cie de feitio, como um objecto no qual projectamos osnossos medos, enquanto o perigo real na hostilidade rec-proca manifestada por grupos de pessoas nas suas rela-es umas com as outras. de certo modo essa hostilidaderecproca que faz com que grupos hostis dependam unsdos outros, podendo tornar-se to profundamente envolvi-dos que j no consigam encontrar uma sada para essasituao. Censuramos a bomba e a actividade c os cientis-tas, cuja investigao a possibilitou, como pretexto paraescondermos a ns mesmos a cumplicidade que temosnessa hostilidade recproca, pelo menos para escondermosa nossa incapacidade de uma ameaa ou de uma contra--ameaa. Censurando os cientistas, tambm fugimos obri-gao de procurar uma explicao mais realista para osconflitos sociais, que levam a uma troca crescente deameaas entre grupos de pessoas. A queixa de que nostornmos escravos da mquina ou da tecnologia, seme-lhante. Apesar dos pesadelos da fico cientfica, as mqui-nas no tm uma vontade prpria. No podem por siniesmas inventar ou produzir e no podem obrigar-nosa que as sirvamos. Todas as decises que tomam e acti-vidades que desempenham so decises e actividades huma-nas. Projectamos nelas ameaas e coeres mas, se as exa-minarmos mais atentamente, veremos sempre grupos de

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  • pessoas ameaando-se e coagindo-se mutuamente por inter-mdio das mquinas. Quando nas sociedades cientfico--tcnico-industriais atribumos o nosso mal-estar s bom-bas ou s mquinas, aos cientistas ou aos engenheiros,estamos a fugir difcil e talvez desagradvel tarefa deprocurar uma interpretao mais clara e mais realista daestrutura das conexes humanas, particularmente dospadres de conflito que nelas se fundamentam. Estaestrutura a nica responsvel pelo desenvolvimento epela eventual utilizao de armas cientficas, pela vidaatribulada nas fbricas e nas metrpoles modernas.O desenvolvimento tecnolgico tem uma influncia realno curso que tomam as interconexes humanas. Mas arealidade tecnolgica em si mesma nunca pode ser acausa da vida atribulada das pessoas e das foras com-pulsivas; estas so sempre provocadas pela utilizao quefazemos da tcnica e do seu ajustamento estrutura social.Devemos temer, no tanto o poder destruidor das bombasnucleares, como o poder dos seres humanos ou iriaisexactamente das interconexes humanas. O perigo noreside no progresso da cincia e da tecnologia, mas nomodo como so usadas as descobertas cientficas e asinvestigaes tecnolgicas sob presso da sua estreitainterdependncia, reside nas lutas comuns pelas oportu-nidades de distribuio de toda a espcie de poder. Poucose dir destes problemas agudos nas pginas que se seguemdesta introduo sociologia. preocupao fundamentaldesta obra promover a evoluo de um pensamento e deuma imaginao sociais relativamente percepo dasinterconexes e configuraes elaboradas pelas pessoas.Mas poder ser til como introduo, lembrar os pro-blemas agudos que afligem as interconexes sociais.

    A fixao mental em fenmenos familiares e tangveiscomo bombas nucleares e mquinas, ou, num sentido maislato, na cincia e na tecnologia, obscurecendo as causassociais de medo e de mal-estar, sintoma de uma dascaractersticas fundamentais da nossa poca: esta residena discrepncia entre, por um lado, a nossa capacidaderelativamente grande de ultrapassarmos de um modoadequado e realista problemas causados por aconteci-mentos naturais extra-humanos, e, por outro, a nossa limi-tada capacidade de resolver com a mesma segurana osproblemas de coexistncia humana.

    Embora possa parecer estranho, temos dois nveis depensamento j adquiridos. No domnio dos fenmenosnaturais, todos esses processos so elevada e crescente-

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    mente realistas. Este domnio pode ser infinito. Mas den-tro dele, cresce contnua e cumulativamente o capital deconhecimentos cientficos pouco seguros. O nvel de auto-disciplina relativamente elevado, e uma viso pessoal,egocntrica, contrariada por um controlo mtuo rela-tivamente eficiente, por parte de todos os investigadores,orientando as suas observaes e pensamento essencial-mente para os objectos da sua investigao. H relativa-mente pouco espao para que as fantasias egocntricas eetnocntricas influenciem os resultados da investigao,pois estes so postos em cheque e descontados por meiode uma comparao atenta em cada fase ou momento dainvestigao. O elevado grau de auto-controlo na conside-rao dos fenmenos naturais e o correspondente grau decentrao nos objectos, o realismo e a racionalidade depensamento e de aco nestes domnios, j no so exclu-sivos de investigadores especializados. So hoje atitudesbsicas sustentadas por pessoas de todas as sociedadesindustriais mais desenvolvidas. Na medida em que toda anossa vida, mesmo nos seus aspectos mais ntimos, foiinvadida pela tcnica, estes princpios governam todos osnossos pensamentos e aces. Contudo, h ainda lugar nanossa vida privada para fantasias egocntricas sobre osfenmenos naturais, embora na maior parte das vezesexista uma perfeita conscincia de que no passam defantasias pessoais.

    Em contraste, h nas mesmas sociedades um campoimenso para fantasias egocntricas e etnocntricas, queconstituem factores decisivos de percepo, pensamento eaco, em reas da vida social no relacionadas com pro-blemas tcnicos e cientficos. No domnio das cinciassociais nem sequer os investigadores dispem de padrescomuns para um controlo e auto-controlo mtuos, factoque lhes permitiria examinar o trabalho dos seus colegascom tanta segurana como fazem os seus homnimosdas cincias naturais. Nem para eles fcil distinguiraquilo que constitui um produto arbitrrio da fantasiaou de ideais polticos ou nacionalistas, daquilo que um modelo da realidade, teoricamente orientado e veri-ficvel numa investigao emprica. E em grande parte dasociedade os padres sociais de pensamento sobre pro-blemas sociais ainda permitem que nos entreguemos snossas fantasias, sem as reconhecermos como tal. Isto fazlembrar a quantidade de fantasias que havia na IdadeMdia sobre os acontecimentos naturais. Nesta poca, osestrangeiros, particularmente os judeus, eram considera-

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  • dos responsveis pelos surtos de peste tendo muitos delessido massacrados. Neste tempo, no se conhecia umacausa mais cientfica e realista para explicar estas mor-tferas epidemias macias.

    Como acontece tantas vezes, os grupos dominantesconvertiam em fantasias a sua ansiedade (tal como hoje,no controlada por um saber mais realista), o seu medodos horrores inexplicveis da peste e a sua clera apaixo-nada contra aquilo que percepcionavam como um ataqueincompreensvel, fantasias pelas quais viam nos estrangei-ros e nos grupos socialmente mais fracos a causa do seuprprio sofrimento. O resultado era o assassinato emmassa. Durante o sculo XIX, as sociedades europiasforam atacadas por vrias epidemias de clera. Graasao desenvolvimento do controle estatal no que respeitaao domnio da sade pblica, graas ao progresso dosconhecimentos cientficos e difuso de explicaes cien-tficas para a epidemia, esta infeco foi finalmente con-trolada. No sculo XX, tanto a competncia da cinciacomo o grau de prosperidade social cresceram, tornandopossvel que teorias sobre a higiene pblica se concreti-zassem em medidas preventivas. Assim, pela primeira vezdesde que a densidade populacional comeou a aumentar,os europeus esto quase livres da ameaa de uma doenaepidmica e quase se esqueceram dela. No entanto, osnossos pensamentos e aces, no que diz respeito coexis-tncia social, esto quase no mesmo nvel de desenvolvi-mento que o pensamento e comportamento dos medievais,no que respeitava peste. Em assuntos sociais, ainda hojeas pessoas esto sujeitas a presses e ansiedades que noconseguem compreender. Como no conseguem viver naangstia, sem que para tal tenham uma explicao, preen-chem os lapsos de compreenso com fantasias.

    No nosso tempo, o mito Nacional Socialista foi umexemplo deste tipo de interpretao para a inquietaoe angstia sociais. Para elas procurou alvio atravs daaco. Tambm aqui, tal como no caso da peste, a ansie-dade e inquietao sobre as misrias sociais encontraramsada em explicaes fantasiosas, que consideravam asminorias socialmente fracas como agitadoras e culpadas,levando consequentemente ao seu extermnio. Constatamosque caracterstica do nosso tempo a coexistncia deuma compreenso factual altamente realista, no que res-peita a aspectos fsicos e tcnicos, e de solues fanta-siosas dadas aos problemas sociais, problemas esses que

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    actualmente no queremos ou ainda no conseguimosexpcar e ultrapassar com mais eficincia.

    A esperana do Nacional Socialismo em resolver pro-blemas sociais com o extermnio dos judeus surge comoum exemplo mximo do que ainda prevalece universal-mente na vida social da humanidade. No entanto, demons-tra a funo desempenhada pelas explicaes fantasiosaspara a misria social e para a ansiedade, cujas verdadeirascausas no podemos ou no queremos ver. Simultanea-mente, sintomtica de um dualismo significativo do pen-samento contemporneo que haja como que uma capade respeitabilidade dada pelas cincias naturais e pelabiologia a envolver uma fantasia social.

    A palavra fantasia parece inofensiva. No se trata dediscutir se a fantasia desempenha um papel indispensvele construtivo na vida humana. Tal como a capacidade deapresentar uma srie de expresses faciais, de nos rirmosou de chorarmos, a elevada capacidade que o homem temde fantasiar sua caracterstica exclusiva. Mas aqui refe-rimo-nos fantasia de um determinado tipo, ou mais pro-priamente a fantasias que so erradamente aplicadas vida social. Quando no controlado pelo conhecimento dosfactos, este tipo de fantasia, especialmente numa ocasiode crise, coloca-se entre os impulsos mais falveis e mesmomais assassinos que governam a aco humana. Nestassituaes, as pessoas no precisam de ser loucas para darlivre curso a estes impulsos.

    Hoje gostamos de pensar que o elemento de fantasia,que desempenha um papel importante na orientao dasaces e idias de um grupo relativamente s suas metas,no mais do que um esconderijo um disfarce sedutore excitante de propaganda. Imaginamos que lderes astu-ciosos a usam para esconder os seus fins arrojados que,em termos dos seus prprios interesses, so altamenteracionais ou realistas. claro que por vezes o so.Mas quando usamos o conceito de razo em expressestais como razes de estado e o conceito de realismoem termos como Realpolitik e muitos outros conceitossemelhantes, ajudamos a reforar a idia j muito difun-dida de que as consideraes racionais objectivas e realis-tas so geralmente as que dominam, quando h grupos[ue lutam. A utilizao do conceito de ideologia mesmoPor parte dos socilogos mostra a mesma tendncia.Porm, num estudo mais aprofundado, no muito difcilverificarmos que tanto idias realistas como fantasiosasinipregnam grandemente a concepo de interesses de

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  • grupo! Planos de mudana social realizados de um modorealista e metdico mesmo temporrios traados coma ajuda de modelos cientficos de desenvolvimento, souma inovao muito recente. Muitas vezes os prpriosmodelos de desenvolvimento so ainda muito imperfeitos,no correspondendo adequadamente s estruturas sociaissempre mutveis a que se referem. At agora, a histriano tem sido mais do que um cemitrio de sonhos huma-nos. Os sonhos realizam-se muitas vezes a curto prazo;contudo, no seu longo curso, parecem sempre acabar esva-ziados de toda a substncia, sendo, portanto destrudos.A causa que esperanas e objectivos a alcanar estode tal forma saturados de fantasia, que o actual cursode contecimentos na sociedade lhes desfere golpes con-secutivos e o choque com a realidade revela a sua irrea-lidade, como sonhos que so. A esterilidade particular demuitas anlises de ideologias resulta da tendncia paraas considerarmos basicamente como estruturas racionaisde idias, coincidindo com actuais interesses de grupos.A sua carga de afectividade e de fantasia, a sua faltaegocntrica ou etnocntrica de realidade omitida, poispresumimos que elas so uma camuflagem calculada paraum contedo altamente racional.

    Como exemplo, consideramos a situao de conflitoentre as grandes potncias. Esta persiste desde a SegundaGuerra Mundial, tendo influenciado e obscurecido de ummodo sempre crescente os conflitos entre estados em todoo mundo. Parece que os representantes de cada uma dasgrandes potncias pensam possuir um carisma nacionalnico e que s eles e os seus ideais esto aptos a gover-nar o mundo. muito difcil descobrir qualquer realconflito de interesses justificativo da grande escalada depreparao para a guerra.

    As diferenas sociais prticas entre esses representan-tes so obviamente muito menores de que seria de espe-rar, se tivermos presentes os contrastes ntidos entre osseus sistemas de crenas e de ideais. Muito mais do quequalquer conflito real de interesses, o que faz com queas grandes potncias e no s elas sejam reciproca-mente to dura e irremediavelmente hostis a coliso dosseus sonhos. Este antagonismo, que hoje assume umadimenso mundial, assemelha-se consideravelmente na suaestrutura ao antagonismo existente numa antiga Europa,em que os sonhos de prncipes e generais protestantes ecatlicos se chocavam. Nesses tempos, as pessoas eramto apaixonadamente vidas de matar-se indiscriminada-

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    mente umas s outras, devido aos seus sistemas de cren-as, como hoje parecem desejosas de matar indiscrimina-damente, pela simples razo de que alguns preferem osistema de crenas dos russos, outros o dos americanose outros o dos chineses. Tanto quanto podemos observar, essencialmente a contradio entre os sistemas de cren-as dos estados e o seu sentido carismtico de uma mis-so nacional que torna este tipo de interligao opaco eincompreensvel para aqueles que so apanhados nela,o que, por conseguinte, os torna incontrolveis. (Inciden-talmente, os sistemas nacionais de crenas tm pouco aver com a anlise feita por Marx do antagonismo de clas-ses dentro dos estados, anlises que, nessa altura, foi muitoadequada).

    Tambm isto um exemplo da dinmica das inter-conexes sociais, cuja investigao sistemtica cabe sociologia. A este nvel, as configuraes so formadas porgrupos interdependentes de pessoas, organizados em esta-dos e no por indivduos singulares interdependentes. Mas'tambm aqui, as unidades a que as pessoas se referem naprimeira pessoa no s o eu singular mas tambm ons plural so experienciadas como se fossem total-mente autnomas. Quando crianas, na escola, j tinhamaprendido que o estado possua uma soberania ilimi-tada, que era conceptualmente independente dos outrosestados. A imagem etnocntrica da humanidade divididaem estados nacionais anloga imagem egocntricaexpressa na figura 1. As elites dominantes e muitos dosseus seguidores em cada nao (ou pelo menos em cadagrande potncia) imginam-se no centro da humanidade,como se estivessem numa fortaleza, reprimidos e rodeadospor todas as outras naes e, no entanto, separados delas.Tambm neste caso, ainda no se alcanou propriamenteo estdio de autoconscincia em pensamento e aco,expresso na figura 2 tomando-se aqui como unidade debase as naes e no os indivduos singulares.

    Presentemente, ainda mal comeou a esboar-se a con-cepo da nossa prpria nao como sendo uma entremuitas outras interdependentes e a compreenso da estru-tura das configuraes que todas formam. raro encon-trarmos um modelo sociolgico inteligvel da dinmica dasrelaes entre os estados. Tomemos, por exemplo, a din-mica da guerra fria entre as grandes potncias. Ambas48

    partes envolvidas procuram aumentar o potencial doSeu prprio poder, custa do medo perante o potencialde

    poder do adversrio. Assim se justificam os seus receios31

  • recprocos. Continuam, portanto, a aumentar cada vez maiso seu prprio poder o que, por sua vez, instiga o rival afazer um esforo correspondente. Como no h nenhumrbitro com suficiente poder para os fazer sair deste becosem sada, a no ser que ambos os lados se apercebamsimultaneamente da dinmica imanente da configuraoque formam em conjunto, as foras compulsivas faroesforos contnuos para aumentar inevitavelmente o seupotencial de poder. Mas os blocos rivais interdependentese especialmente os oligarcas do partido em ambos os ladosno intuem isto. A sua crena fundamental que o seuprprio perigo e os esforos constantes para aumentaro seu potencial de poder se podem explicar totalmente seapontarmos para o outro lado, para os rivais de momento,com o seu sistema social errado e as suas perigosascrenas nacionais. As naes so ainda incapazes de seolharem a si mesmas como componentes integrais de umaconfigurao, cuja dinmica as obriga a fazer estes esfor-os. A rigidez do sistema antagnico de crenas impede, osoligarcas dos partidos dominantes de ver claramente queeles prprios, as tradies do seu partido e os ideaissociais com os quais justificam as suas pretenses gover-nativas, esto constantemente a perder credibilidade. Estafalha de credibilidade deve-se ao contributo que vo dando hiptese de uma confrontao blica perigosa, ao factode desperdiarem em material de guerra os recursos cria-dos pelo trabalho humano e, finalmente, sua actual uti-lizao de fora. Aqui novamente e, desta vez, de formaparadigmtica, encontramos um domnio altamente rea-lista do meio fsico e tecnolgico, coexistindo com umaabordagem fantasiosa de problemas interpessoais sociais.

    Olhando em-volta, no difcil encontrar mais exem-plos desta discrepncia. Contudo, h muita gente que hojeacredita ser possvel uma abordagem dos problemas sociaisdo ponto de vista da sua prpria racionalidade intrn-seca, independentemente do actual estdio de desenvolvi-mento do conhecimento e pensamento sociolgicos e, noentanto, com a mesma abordagem objectiva que umfsico ou um engenheiro trazem aos problemas cientficosou tecnolgicos.

    Assim, de um modo geral os governos actuais defen-dem talvez de boa f que conseguiro ultrapassar deum modo racional e realista os seus problemas sociaismais prementes. Mas a verdade que s conseguem preen-cher as lacunas do nosso ainda muito rudimentar conhe-cimento dos factos sociais, no que respeita dinmica das

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    interconexes sociais, com doutrinas dogmticas, panaceiasou consideraes de interesses partidrios a curto prazo.Como apenas por acaso tomam medidas, ficam mercdos acontecimentos e os governos percebem to pouco doencadeamento destes como pouco percebem das pessoasque governam. Entretanto, os governados submetem-se aosseus chefes, confiando a estes a tarefa de empenhar osriscos e dificuldades com que a sociedade se depara eexigindo-lhes que, pelo menos, saibam para onde cami-nham. Quanto mquina governativa, burocracia, talvezno seja deslocado dizer, como Max Weber, que a estru-tura das burocracias e as atitudes dos burocratas se tor-naram mais racionais se as compararmos com as dossculos anteriores; mas ser pouco correcto pretendermos,como Max Weber na realidade pretendeu, que a burocraciacontempornea uma forma racional de organizao eque o comportamento dos seus funcionrios um com-portamento racional. Isto altamente enganador. Comoexemplo, apontemos apenas um aspecto: a burocracia tendehoje a reduzir as interdependncias sociais complexas adepartamentos administrativos singulares; cada um delestem a sua rea de jurisdio estritamente definida, sendoequipados com uma hierarquia de especialistas e uma oli-garquia de chefes administrativos, que raramente pensampara alm da sua prpria rea de competncia. Este tipode burocracia est muito mais perto de uma organizaotradicional que, na verdade, nunca foi racionalmente pla-neada, do que de uma organizao clara e cuidadosamentepensada, cuja adequao s funes que desempenhadever estar constantemente sujeita a revises.

    Este exemplo basta. Talvez que com a sua ajuda sedetectem mais claramente certas preocupaes fundamen-tais da sociologia. O facto das sociedades humanas seremconstitudas por seres humanos, por ns prprios, levaa que esqueamos muito facilmente que o seu desenvol-vimento, estrutura e funes dos domnios fsico-qumicose^biolgicos. E importantssimo que haja uma compreen-so gradual e crescente de todos os domnios. Os contactosque temos uns com os outros so to banais e quotidianos,que facilmente escondem o facto de que somos actualmenteP objecto de investigao menos conhecido; somos toignorados no mapa dos conhecimentos humanos como osPlos terrestres ou a face da lua. Muita gente tem medode explorar mais profundamente este domnio, tal comooutrora, se temiam as descobertas cientficas sobre o orga-nismo humano. E tal como antigamente, h pessoas que

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  • argumentam que as investigaes cientficas feitas em indi-vduos humanos por indivduos humanos algo que noquerem so simplesmente impossveis. Mas como homens,a quem falta uma compreenso mais slida da dinmicadas interconexes sociais, vogando desamparados de actosinsignificantes de autodestruio para outros muito maisgraves, e de um deslize para outro, tal ignorncia romn-tica perde muito do seu encanto como permisso paratodos os sonhos.

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    A SOCIOLOGIA- AS QUESTES POSTAS POR COMTE

    Seja ou no socilogo, quem abordar com idias pr--concebidas as obras de grandes homens que durante osculo XIX fizeram evoluir a cincia da sociedade, priva-sede uma herana intelectual importante. Vale a pena sepa-rar algumas das idias que ainda so de utilidade na ten-tativa de construir uma anlise cientfica das sociedades,das que so mera expresso dos valores transitrios dapoca. Enquanto a nossa concepo da herana marxistatem sido demasiadas vezes distorcida por dios e louvores,Augusto Comte (1798-1851), que foi o primeiro a destacara palavra sociologia para ttulo expresso de uma novacincia, tem sido muito menos falado.

    A marca da herana de Comte (que. como que umfantasma presente nos livros de estudo) apresenta-se comouma pea poierenta de museu. E podemos, na verdade,deixar alegremente ao p uma parte considervel dos seusescritos. Comte escreveu muito. O seu estilo foi muitasvezes pomposo. Tinha obsesses, como por exemplo anoo de que todas as coisas importantes eram triparti-das e muito provavelmente foi um tanto ou quantolouco. E, no entanto, se limparmos as suas idias do pdas manias, excentricidades e perturbaes, encontramosna obra de Comte conceitos que so virtualmente novos,idias que foram parcialmente esquecidas ou mal com-preendidas e que so, a seu modo, to importantes para desenvolvimento da sociologia como as de Marx quesairia do tmulo se soubesse que ele e Comte poderiamvir a ser mencionados num mesmo momento. Mas a dis-Paridade entre as suas atitudes polticas e os seus ideaisno deveria constituir obstculo. Aqui, eles no represen-

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  • tam a salvao. Para sermos categricos, Comte foi umgrande homem, e a discrepncia entre os problemas quelhe dizem respeito e as idias que geralmente lhe soatribudas , na maior parte dos casos, espantosa. Nemsempre fcil encontrar as razes desta discrepncia eno ser aqui que o faremos. Comte fez muito mais parao desenvolvimento da sociologia do que simplesmentearranjar-lhe uma designao. Como todos os pensadores,Comte construiu a partir daquilo que os seus antecessoresj tinham produzido. No vamos analisar detalhadamentequais as idias que Comte foi buscar a Turgot, Saint-Simone outros autores e quais das suas idias foram totalmenteoriginais. Ningum comea do nada; todos comeam ondeoutros ficaram. Comte definiu uma srie de questes deum modo mais claro do que os seus predecessores. Trouxenova luz para uma quantidade de problemas. Muitos foramhoje esquecidos, embora tenham um grande significadocientfico. Da sua rejeio podemos inferir que a cinciano progride em linha recta.

    Considera-se Comte no s como o pai da sociologia,mas tambm como o fundador do positivismo filosfico.A sua primeira grande obra, que apareceu em seis volu-mes entre 1830 e 1842, foi o Cours de philosophie positive.A palavra positivo foi usada por Comte como sinnimade cientfico, entendendo por este termo a aquisio deconhecimentos por meio de teorias e observaes emp-ricas1. Comte passou a ser chamado positivista. E umpositivista habitualmente considerado como aquele quedefende a teoria da cincia que sustenta serem e cognioe o trabalho cientfico exclusivamente baseados na obser-vao a partir da qual se constrem as teorias. A idiade que Comte foi um positivista deste tipo uma dasmuitas distores a que foi sujeito o seu pensamento.De tempos a tempos, as pessoas troam da ingenuidadedeste positivismo grosseiro. Admiram-se como foi pos-svel imaginar que se podem fazer observaes no havendopreviamente uma teoria determinante da seleco de factosa observar e uma definio do problema ao qual esper-vamos responder por meio da dita observao. E, noentanto, ningum melhor do que Comte salientou expl-cita e consistentemente a interdependncia da teoria e daobservao, como ncleo de todo o .trabalho cientfico.

    Pois se, por um lado, toda a teoria positiva deve necessa-riamente basear-se na observao, por outro, tambm verdadeque, para que se possam efectuar observaes, os nossos esp-

    ritos necessitam de uma teoria. Se, ao considerarmos os fen-menos, os no relacionarmos imediatamente com alguns princ-pios, no s nos seria impossvel relacionar estas observaesisoladas e, por conseguinte, tirarmos delas um significado, comotambm seramos totalmente incapazes de as recordar e, namaior parte dos casos, os factos passariam despercebidos2.

    A interaco constante destas duas operaes mentais,dirigidas para a sntese terica e os pormenores emp-ricos, uma das teses fundamentais de Comte. Ele foitudo menos um positivista no actual sentido do termo;no acreditava que o trabalho cientfico resultasse de umapura induo da observao de coisas particulares, for-mando-se amplas teorias baseadas em observaes parti-culares, como se fossem quase sua conseqncia. Comtenegou to energicamente esta idia como contrariou aassero de que a investigao cientfica proviesse deteorias puras, formuladas sem qualquer referncia aosfactos, ou de hipteses primeiramente formuladas arbitr-ria e especulativamente, s mais tarde confrontadas comos factos. Comte tinha boas razes para contar to defi-nitivamente com uma tradio filosfica em que se tinhaprocurado provar incessantemente que uma destas opera-es mentais deveria ter precedncia sobre a outra. Durantesculos, deducionistas e inducionistas, racionalistas e empi-ristas, aprioristas e positivistas ou quaisquer que fossemas designaes que reciprocamente se davam, tinham lutadocom uma obstinao tenaz. Ora um leitmotiv da teoriacomtiana da cincia, que a investigao cientfica repousanuma combinao indivisvel de interpretao e observa-o, de trabalho terico e emprico.

    A sua insistncia constante no caracter positivo e cien-tfico de toda a investigao explica-se pelo facto de ele,como filsofo com experincia cientfica, se ter voltadodeterminantemente contra a filosofia dos sculos anteriores.Rejeitou muito particularmente a filosofia do sculo XVIII,cujos representantes se permitiam concluir proposiessem as consubstanciar por meio de uma relao sistem-tica com a observao. Muitas destas proposies eram for-muladas de tal modo que no podiam ser contestadas pelosfactos observados. Comte, escolhendo a designao de posi-tiva para a sua filosofia, exprimiu a sua rejeio cons-ciente desta filosofia especulativa. Ela no tinha relaescom o trabalho cientfico e no progredia cientificamente.A

    representao distorcida de um Comte arquipositivista,Usando o termo no sentido diametralmente oposto s suas

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  • verdadeiras opinies, demonstra uma vingana inconscientepor parte daqueles filsofos que continuaram a trabalharnos moldes da antiga tradio. Embora as solues propos-tas por Comte nem sempre resultassem, embora a sua lutaconstante para exprimir conceitos novos com velhas for-mas de discurso nos torne difcil uma compreenso retros-pectiva dessas idias novas, e embora uma traduo malfeita e incompreensvel tenha obscurecido a obra de Comte,o seu modo de definir os problemas ainda surge como algode fresco e frutfero.

    Trs dos problemas que Comte levantou e tentou resol-ver na sua Philosophie positive tm particular importncianuma introduo sociologia. Comte procurou:

    1. Desenvolver uma teoria sociolgica do pensamentoe da cincia.

    2. Determinar as relaes entre os trs mais impor-tante grupos de cincias do seu horizonte ascincias fsicas, biolgicas e sociolgicas.

    3. Estabelecer na estrutura do seu sistema de cin-cias uma autonomia relativa da sociologia face fsica e biologia uma autonomia firmementealicerada na diferente natureza e finalidade doseu objecto fundamental e determinar os mto-dos de actuao mais adequados para a sociologia.

    A sua formulao de todos estes problemas est estrei-tamente ligada a uma intuio fundamental, comum a mui-tos pensadores da sua poca: a de que as mudanas sociaisno se podiam explicar simplesmente em termos de finse actuaes de pessoas singulares, no se podendo comcerteza explicar pela aco exclusiva dos prncipes e dosgovernantes. Portanto, a sua tarefa seria chegar a instru-mentos de pensamento que nos permitissem reconhecerque os processos gradualmente compreendidos como rela-tivamente impessoais podiam ser expressos teoricamentecomo tal. As nicas categorias e conceitos ento dispo-nveis como modelos para este fim tinham a sua origemnas cincias fsicas e biolgicas. Assim, durante muitotempo, recorreu-se inadvertidamente a instrumentos con-ceptuais, que tinham sido aplicados na resoluo de pro-blemas fsicos e biolgicos, usando-os para resolver proble-mas sociolgicos; isto ainda hoje acontece. Contudo, paraalm disso, era difcil distinguir claramente entre a natu-reza no sentido antigo das cincias naturais e os pro-cessos novos ento em vias de descobrimento, a que hoje

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    chamamos sociedade. Quanto a isto, Comte deu um passoera. frente. Como estudante e mais tarde como professore examinador na famosa Ecole Polytechnique, adquiriuuma educao cientfica e matemtica mais slida do quea da maioria dos homens do seu tempo que se dedicavama problemas sociolgicos. Compreendeu mais claramentedo que os seus predecessores que a investigao cientficada sociedade no podia ser levada a cabo do mesmo modoque as cincias naturais, como se fosse um outro tipo defsica. Diz-se muitas vezes que Comte inventou o termosociologia para a nova cincia. Mas a razo por queinventou uma nova designao foi o ter compreendido quea cincia da sociedade era um novo tipo de cincia; e estacincia no podia abrigar-se sob o mesmo guarda-chuvaconceptual da fsica e da biologia. O avano decisivo deComte foi reconhecer a autonomia relativa da cincia dasociedade vis vis das cincias mais antigas. Dando umnome novo a esta nova cincia expressou claramente estaidia decisiva.

    Comte considerou funo essencial da nova cincia,detectar as regularidades tendenciais do desenvolvimentosocial. Para ele, como para muitos outros pensadores dosculo XIX, o problema bsico centrava-se nas questesprementes postas s elites intelectuais pelo desenvolvi-mento do progresso social e pela situao da burguesia eda classe trabalhadora adentro desse progresso. Pra ondevamos? Onde nos leva o desenvolvimento da humanidade?Ser que se orienta na direco devida e ser essa adireco dos meus objectivos e ideais? O modo como Comteataca estas questes trai o velho dilema que sempre con-frontou os filsofos. Tanto para eles como para os outros,aparecem como especialistas do pensamento. Portanto, o seupensamento centra-se muitas vezes na mente humana, nasua capacidade de pensar, na razo humana como chavede todos os aspectos da humanidade. Um pouco comoHegel sem no entanto se exprimir de um modo meta-fsico Comte considerou umas vezes a evoluo do pen-samento humano como apenas um dos problemas chavee outras vezes como o problema chave da evoluo dahumanidade.

    Marx foi o primeiro a afastar-se desta tradio comcerta determinao. Neste ponto, Comte manteve-se imper-turbavelmente dentro da tradio filosfica. E, no entanto,Para quem examine o problema mais de perto, ntido queele cortou realmente com a tradio filosfica em trsPontos decisivos. A sua ruptura teve conseqncias que

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  • ainda hoje no foram totalmente compreendidas, pois oprprio Comte muitas vezes s as esboou levemente enuma linguagem um tanto ou quanto antiquada. Mas oimpulso que deu foi muito significativo para o desenvol-vimento da sociologia e para a filosofia da cincia.

    V UMA TEORIA FILOSFICA DO CONHECIMENTOA UMA TEORIA SOCIOLGICA DO MESMO

    A teoria clssica do conhecimento e da cincia exa-mina o que acontece quando o sujeito, um indivduosolitrio, pensa, percepciona e realiza um trabalho cient-fico. Comte cortou com esta tradio. Parecia-lhe estranhaaos factos observveis. O pensamento e investigao huma-nos so muito mais um processo contnuo ao longo degeraes. O modo como uma pessoa individual pensa,percepciona e realiza um trabalho cientfico cimenta-se nosprocessos de pensamento das geraes anteriores. Paracompreendermos e explicarmos como que se iniciamestas actividades, tambm temos que examinar o processosocial a longo prazo da evoluo do pensamento e doconhecimento. A transio de uma teoria filosfica parauma teoria sociolgica do conhecimento, o que Comte reali-zou, surge essencialmente como a substituio da pessoaindividual, enquanto sujeito'' de conhecimento, pela socie-dade humana. Se Comte considerava as questes relativasao pensamento centrais para o problema da sociologia,nunca tornou sociolgica a nossa concepo do sujeitopensante.

    DO CONHECIMENTO NO CIENTIFICOAO CONHECIMENTO CIENTIFICO

    Na filosofia clssica europia, o pensamento racional que encontra a sua expresso mais ntida nas cinciasnaturais encarado como o tipo normal de pensamentopara todos os seres humanos. As teorias clssicas do conhe-cimento e da cincia no tm reconhecido que este tipo depensamento s surgiu numa fase tardia da evoluo humanae que durante grande parte desse perodo de desenvolvi-mento as pessoas no se esforavam por obter conhecimen-tos de um modo cientfico. Qualquer teoria deste gneroera posta de lado. Para Comte, tornou-se uma questo cen-

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    trai o problema das relaes entre formas cientficas e nocientficas de conhecimento. caracterstico da sua atitudesociolgica o no ter considerado o pensamento pr-cient-fico fundamentalmente pela sua validade, encarando-o sim-plesmente como facto social. um facto observvel, diziaele, que todo o conhecimento cientfico surge de idias econhecimentos no cientficos. Formulou esta intuio comouma regularidade tendencial do desenvolvimento social:

    ...Cada uma das nossas idias fundamentais, cada ramodo nosso conhecimento, passa sucessivamente por trs diferen-tes estados tericos: o estado teolgico ou especulativo, o estadometafsico ou abstracto e o estado cientfico ou positivo. Poroutras palavras, a mente humana, devido sua prpria natu-reza, utiliza sucessivamente em cada um dos seus campos deinvestigao trs mtodos de filosofar primeiro o teolgico,depois o metafsico e, finalmente, o mtodo positivo3.

    O pensamento e o conhecimento humanos podem nca-rar-se de dois modos, utilizando-se diferentes estruturas con-ceptuais. No primeiro, trata-se da concepo de pessoas indi-viduais, cada uma das quais por sua prpria iniciativa esem que a tal seja instigada concebe a natureza como ummecanismo cego, automtico, sem qualquer fim objectivo,mas funcionando no entanto de acordo com princpiostericos. Se rejeitarmos estas concepo, como Comte rejei-tou, e se considerarmos o conhecimento humano como oproduto final de um processo de evoluo que abarca cen-tenas, talvez milhares de geraes, dificilmente poderemossaber como a procura de um conhecimento cientfico serelaciona com o conhecimento pr-cientfico. Comte tentouestabelecer uma tipologia classificatria dos estados dodesenvolvimento da humanidade. Nela assinalou que pri-meiro reflectimos sobre a natureza inanimada, depois sobrea natureza animada e, finalmente, sobre as sociedades.A nossa reflexo foi primeiramente baseada em especula-es, na busca de respostas absolutas, concludentes e dogm-ticas para todas as interrogaes, com o desejo de explicartodos os acontecimentos emocionalmente significativos emtermos de aces, objectivos e fins de certas entidadescriadoras, sempre consideradas como pessoas. Durante afase metafsica, as explicaes em termos de criadoresPersonificados so substitudas por explicaes que tomama forma de abstraces personificadas. Aqui, Comte visavaespecialmente os filsofos do sculo XVIII, que habitual-mente personificavam abstraces tais como Natureza

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  • ou Razo para explicar muitos acontecimentos. Quando,finalmente, se alcana o estado do pensamento positivoou cientfico num ramo particular do conhecimento, deixa-sede procurar as origens absolutas ou os destinos; estes,embora possam ter um significado pessoal e emocionalbastante relevante, no encontram qualquer suporte naobservao. O objectivo do conhecimento ser ento o deencontrar relaes entre factos reais. Numa linguagem dehoje, poderamos dizer que as teorias so modelos de rela-es observveis. O prprio Comte, de acordo com o est-dio de conhecimento da sua poca, ainda falou em leisque regulam essas relaes. Hoje usaramos termos comoregularidades tendenciais, estruturas e relaes funcionais.

    No entanto, para um trabalho ulterior, o problemaformulado por Comte mais significativo do que a solu-o por ele proposta. Uma teoria sociolgica do conheci-mento e da cincia no pode pr de lado questes rela-tivas ao desenvolvimento dos tipos de conhecimento e depensamento pr-cientficos e sua passagem ao estadocientfico, assim como no pode ignorar quais os proces-sos de transformao social que constituem o contextodeste desenvolvimento. O levantamento deste tipo de ques-tes uma irrupo nas fronteiras at aqui fixadas poruma sociologia do conhecimento, bem como por uma teoriafilosfica do conhecimento. Classicamente, a sociologia doconhecimento limitava-se a tentar demonstrar as relaesque as idias e ideologias pr-cientficas tinham com asestruturas sociais. Os escritores que elaboraram conexesentre certas idias e a condio social particular dos seusdefensores, sempre tenderam para uma viso muito rela-tivista dessas idias, considerando-as meras ideologiassem grande validade cientfica. A circularidade deste argu-mento pode quebrar-se, se investigarmos sobre o perodode completa mudana social durante o qual os processospr-cientficos de aquisio de conhecimentos foram substi-tudos por processos cientficos. A lei comtiana dos trsestados indicava entre outras coisas a possibilidade deconsiderarmos o desenvolvimento das idias e processosde pensamento num contexto mais lato de mudanassociais, no os pondo simplesmente de parte como ideolo-gias falsas e pr-cientficas. Comte assinalou todo estegrupo de questes mas no lhes deu resposta. No entanto,chamou-nos a ateno para um aspecto da relao entreformas cientficas e pr-cientficas de conhecimento, o quetem uma significado considervel para a compreenso daevoluo do pensamento, de todos os conceitos que usa-

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    e, finalmente, da linguagem. Mostrou que a gnesedo conhecimento cientfico s se pode conceber assentandonos alicerces daquilo a que chamou conhecimento teol-gico e ao qual ns talvez chamemos simplesmente conhe-cimento religioso. A explicao comtiana deste facto mos-tra como ele era pouco positivista. As pessoas, explicavaComte, devero fazer observaes para construir as suasteorias. Mas tambm tero que possuir teorias que lhespermitam fazer observaes.

    ... a mente humana foi primeiro apanhada num crculovicioso, do qual nunca teria tido possibilidades de sair se notivesse felizmente encontrado uma sada natural para essa difi-culdade no desenvolvimento espontneo de concepes teol-gicas 4.

    Aqui, Comte tocou num aspecto fundamental da evo-luo humana.

    Imaginemo-nos num tempo em que a sociedade pos-sua um stock de conhecimentos muito menor. Para suaorientao, as pessoas precisavam de ter uma viso com-preensvel, uma espcie de mapa que lhes mostrasse comose relacionavam reciprocamente os fenmenos naturaisque percepcionavam. Hoje, devido ao nosso prprio stockde experincias, sabemos que as teorias (mostrando comoos fenmenos individuais se relacionam uns com os outros)so extremamente teis para a nossa orientao, permi-tindo-nos controlar os acontecimentos, quando so produ-zidos com um feedback constante, proveniente da obser-vao. Porm, nos tempos primitivos, as pessoas no tinhamuma experincia que lhes permitisse saber que a obser-vao sistemtica lhes ensinaria algo sobre as relaesentre os factos. E, no entanto, indispensvel que hajamodelos dessas relaes, para que nos orientemos nonosso mundo, que se construa aquilo a que hoje chama-mos teorias, com base no que Comte descreveu como acapacidade espontnea do homem para formar imagensdas relaes entre factos por meio da imaginao e dafantasia. Esta explicao, dada por Comte na sua lei dostrs estados, sublinha mais uma vez a produtividade deuma teoria do conhecimento baseada na sociologia da evo-luo. um comeo que precisa de ser examinado maisde perto; mas o modelo intelectual que aqui se sublinha certamente merecedor de uma ateno maior do quea que at agora tem recebido.

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  • A INVESTIGAO CIENTFICA DAS CINCIAS

    A tradio filosfica da epistemologia e a teoria dacincia que a acompanha repopsam numa hiptese sobrea relao entre a forma e o contedo do pensamento;ou, expresso de outro modo, entre as categorias e os ingre-dientes do conhecimento, ou entre o mtodo cientfico eos objectos da cincia. Esta hiptese tem sido transmitidade geraes para geraes e indubitavelmente aceite comoevidente. Afirma que a forma do pensamento humano eterna e imutvel, por muito que o seu contedo possamudar. Esta assero corre como um fio inquebrvel aolongo de muitas discusses da teoria filosfica do conhe-cimento. Considera-se que a cincia se identifica pela uti-lizao de um mtodo particular e no pelo caracter espe-cfico do seu objecto fundamental. Comte ops-se decidi-damente a esta separao entre forma e contedo, mtodocientfico e objecto cientfico, pensamento e conhecimento.Pode-se fazer uma distino, dizia, mas no uma diviso.

    Para que em cada instncia do conhecimento haja umacorrespondncia com a natureza especfica e com a complexi-dade dos fenmenos, o mtodo deve ser variado na sua aplica-o e amplamente modificado. Assim, todas as concepes queo encaram como algo de geral so demasiado vagas para teremqualquer utilidade. Nos ramos mais simples das cincias,o mtodo e a teoria no se separam: abstenhamo-nos entode os separar quando estudamos os fenmenos complexos davida social... Portanto, no tentei fazer um cmputo da meto-dologia da sociologia antes de ter lidado deste modo com acincia5.

    Comte referia-se aqui a um problema que desde entotem sido posto de lado: a questo de como as formas depensamento se relacionam com o conhecimento. H provassuficientes de que o conhecimento humano se altera medida que evolui e de que tem aumentado, abarcandoreas cada vez mais latas de experincia com maior con-fiana e adequao. Basta-nos considerar o controlo cres-cente e cada vez mais amplo que exercem sobre as seqn-cias de acontecimentos que nos influenciam. E, no entanto,mesmo nos nossos dias, imaginamos que embora o conhe-cimento possa mudar e crescer h ainda uma lei eterna eimutvel subjacente capacidade humana de pensamento.Mas a nossa distino entre a forma eterna de pensa-mento e os seus contedos mutveis no se baseia

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    numa investigao dos factos verdadeiros. Baseia-se antesna necessidade humana de segurana a necessidade dedescobrir algo de absoluto e de imutvel para alm dasuperfcie mutvel. Muitos conceitos e hbitos de pensa-mento, profundamente enraizados nas lnguas europias,apoiam a idia de que o processo de pensamento natural,necessrio, produtivo e aplicvel a todos os problemas,especialmente aos problemas cientficos. o processo dereduzir mentalmente tudo o que se observa como varivele mutvel a um estado absolutamente imutvel. Uma obser-vao mais atenta mostra-nos que a tendncia que temospara reduzir tudo o que muda a algo de imutvel tem aver com um juzo de valor at ento no discutido, queComte diagnosticou como um sintoma do modo teolgicode pensamento. Considera-se evidente que aquilo que em si mesmo imutvel e que.pode ser detectado em ouna base de toda a mudana, mais valioso do que a pr-pria mudana. Este juzo de valor exprime-se na teoriafilosfica do conhecimento e da cincia na idia de queh formas eternas de pensamento, representadas por cate-gorias ou 'regras a que chamamos lgicas, subjacentesa todas as comunicaes interpessoais de idias atravsdos sculos, quer orais quer escritas.

    Tanto neste caso como noutros, a idia de que asregras de lgica supostamente imutveis constituem narealidade padres regulares presentes em todo o pensa-mento humano, assenta numa confuso (que passa desper-cebida) entre factos e valores. Aristteles, que deu ao con-ceito de lgica o seu significado monumental, compreendeuisto essencialmente, atribuindo-lhe regras, de argumentao,instrues sobre o modo como se deveriam construir osargumentos de uma discusso filosfica e como se pode-riam demonstrar os erros do adversrio. A idia de quea lgica devia constituir a prova da existncia de leiseternas do pensamento s foi associada herana aristo-tlica nos fins da Idade Mdia ou mesmo depois. Quandohoje se usa o termo lgica confunde-se muitas vezes umaassero que as leis da lgica so eternas e universal-mente aplicveis com outra que essas leis tm sido abase do pensamento das pessoas, observveis em cadasociedade e em cada poca. O mesmo se passa com aassero de que existe apenas um nico mtodo cientfico.Tambm aqui aquilo que norma e ideal representadocomo um facto. A transio iniciada "por Comte de umateoria filosfica do conhecimento e do pensamento parauma teoria sociolgica, baseou-se, entre outras coisas, no

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  • facto de Comte ter deslocado do centro da teoria a ques-to de como que a cincia deveria ser conduzida. Preo-cupou-se mais em descobrir quais eram exactamente ascaractersticas especficas do mtodo cientfico, caracters-ticas que distinguiriam o pensamento cientfico do pr--cientfico. Uma teoria cientfica da cincia s pode partirde um exame positivo e cientfico daquilo que as cinciasconseguem realizar, e ter na sua base uma pesquisa cien-tfica, que considera as prprias cincias como o seuobjecto fundamental. Ao longo destas linhas, depressa severifica ser expresso de um determinado juzo de valora idia de que um mtodo cientfico particular, geral-mente o da fsica, possa ser aplicado a todas as outrascincias como um modelo eternamente vlido. Em casoscomo este, os filsofos instituem-se juizes, decidindo comocada um deve realizar o seu trabalho para passar porcientista. At ento, tal como Comte assinalou, o desen-volvimento autnomo da sociologia tinha sido contrariadopela mistura de facto e de valor feita pela filosofia. Estaselou o mtodo usado numa cincia singular a fsicaclssica como se este representasse a quinta essncia domtodo cientfico.

    A abordagem tradicional que a filosofia faz aos pro-blemas egocntrica, pois que se limita questo de como que um indivduo pode adquirir conhecimentos cient-ficos. Contudo, as leis imutveis do pensamento, que apare-cem na filosofia clssica, tm que ser compreendidas comoresultado de um desenvolvimento social do pensamento edo conhecimento durante milhares de anos. Vistas sobeste prisma, surge tambm o problema de haver qualquerjustificao factual para a distino tradicional entre asformas de pensamento, consideradas invariveis e os con-tedos variveis do conhecimento. Certamente que umadas realizaes de Comte o facto de ter abandonado estatradio filosfica ingenuamente egocntrica, orientada parao pensamento cientfico natural. Talvez tenha ido demasiadolonge ao afirmar que, em conformidade com a sua lei dostrs estados, as formas pr-cientficas de pensamento devemnecessariamente transformar-se em formas cientficas. Oraisto tem que estar condicionado orientao tomada pelodesenvolvimento social total. Mas certamente que Comteno foi longe demais ao afirmar que todos os factos cien-tficos de pensamento surgiram de formas pr-cientficas.Estas primeiras formas de pensamento a que ele chamouteolgicas ou metafsicas foram os primeiros e mais espon-tneos tipos de pensamento humano; foram talvez os mais

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    adequados e melhor orientados para a realidade. Esta idiaanuncia outra revoluo coperniciana. E, no entanto,passados mais de cem anos, as perspectivas de Comteencontraram pouco eco, no tendo nunca sido considera-das, desenvolvidas e trazidas ao conhecimento de crculossociais mais latos, como componentes do conhecimentosociolgico. Este facto demonstra as dificuldades que sedepararam e ainda se deparam no caminho do cumpri-mento desta resoluo.

    Em tempos, considerou-se evidente que a terra repou-sava, imvel e imutvel, no centro do universo. Hoje, muitagente considera evidente que os seus prprios processosde pensamento so imutveis para toda a humanidade.Esta idia constantemente reforada pela sua prpriaexperincia; estes processos cientfico e racional de pen-samento tm dado provas de ser cada vez mais vlidosnuma investigao emprica e numa aplicao prtica aospormenores tcnicos da vida quotidiana. Apresentam-seinfalivelmente como os processos certos de pensamento;achamos que foram uma ddiva da natureza, uma mani-festao do senso comum ou da razo algo total-mente independente do seu prprio crescimento numadeterminada sociedade ou do desenvolvimento dessa socie-dade. No nos podemos lembrar, e tambm ningum nosensina, como foi difcil para a nossa sociedade chegar aprocessos cientficos de pensamento, emergentes de modospr-cientficos, e como foi difcil a esses processos cien-tficos ganhar ascendncia sobre todos os estratos sociais.Isto conseguiu-se devido a um ulterior desenvolvimentode stocks de pensamento e conhecimento que tinham sidoanteriormente acumulados por muitas outras sociedadeshumanas. Mas as pessoas no esto conscientes das mudan-as particulares e totais que foram necessrias aos paseseuropeus a fim de lhes permitir realizar a passagem a umpensamento cientfico, primeiramente em ligao com osfenmenos naturais. Assim, toda a gente interpreta instin-tivamente como uma ddiva natural as suas idias racio-nais e as suas atitudes em relao aos factos naturais.Considerou-se automaticamente como sinal de fraqueza oude inferioridade o facto de outros povos noutras socieda-des serem fundamentalmente influenciados nas suas atitu-des em relao s foras naturais pelas idias pr-cient-ficas e mgico-mticas.

    O modo como Comte formulou as suas idias podeimpedir a utilizao da brecha que ele tentou fazer nafortaleza da velha filosofia ou, finalmente, facilitar a ds-

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  • truio completa das suas muralhas. A seqncia dos tiposde pensamento que ele, de acordo com o hbito intelectualda sua poca, designou por leis, compreende-se mais facil-mente se a evoluo das estruturas de pensamento for emsi prpria encarada como um aspecto da evoluo dasestruturas sociais. Comte tinha perfeita conscincia disto,pois falava sobre a relao entre o predomnio dos tiposde pensamento mgico-mticos e o governo de uma classemilitar ou sacerdotal, e da relao entre o predomnio detipos cientficos de pensamento e o domnio de classesindustriais. Desde o seu tempo aumentou tanto o manan-cial de conhecimentos sociolgicos sobre o desenvolvi-mento da sociedade humana, que no seria difcil fazermaior justia diferenciao e complexidade de taisconexes.

    A SOCIOLOGIACOMO CINCIA RELATIVAMENTE AUTNOMAComte demonstrou e explicou parcialmente, que o

    objecto fundamental da sociologia sui generis, nopodendo ser reduzido s peculiaridades estruturais da bio-logia humana ou, para usar a terminologia de Comte,da fisiologia. Foi o discernimento de uma autonomia rela-tiva do objecto da sociologia que constituiu o passo deci-sivo para o estabelecimento da sociologia como cinciarelativamente autnoma. O problema ainda actual. Aindahoje se fazem tentativas de reduzir a estrutura dos pro-cessos sociais biologia ou psicologia. Portanto, vale apena ver o modo como um homem como Comte, h maisde cento e trinta anos, combateu esta concepo errnea.

    Em todos os fenmenos sociais, observamos primeiramentea influncia das leis da fisiologia individual e, para alm des-tas, algo de especial que modifica os seus efeitos e que dizrespeito influncia recproca dos indivduos, singularmentecomplicada na espcie humana pela influncia de cada geraona gerao seguinte. pois evidente que para estudarmos devi-damente os fenmenos sociais devemos comear por ter umconhecimento completo das leis do organismo individual. Mas,por outro lado, a dependncia necessria destes dois tipos deinvestigao no nos obriga a considerar a sociologia como sim-ples apndice da fisiologia, tal como muitos fisiologistas emi-nentes foram levados a crer... De facto, seria impossvel consi-derar o estudo colectivo da humanidade como uma pura deduo

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    feita a partir do indivduo humano, porque as condies sociaisque modificam os efeitos das leis fisiolgicas so precisamentea considerao fundamental. Assim, a sociologia deve basear-senum campo de observaes directas prprias, embora se atenda sua ntima e necessria relacionao com a fisiologia numsentido estrito ".

    Muitas das expresses que Comte utilizou tm desdeento alterado o seu significado. A expresso espciehumana (por vezes traduzida por raa humana) temhoje em dia um ntido travo biolgico. Comte usou-a semesta conotao, como sinnimo de humanidade que, porsua vez, era para ele sinnimo de sociedade.

    A dificuldade intelectual com que se debateu deve-se sua tentativa de explicar a inseparabilidade do estudodas sociedades humanas do estudo das caractersticasbiolgicas humanas, tentando, no entanto, estabelecersimultaneamente uma relativa autonomia das primeirasem relao s segundas. Hoje, esta relao expressa-semais facilmente com a experincia e os novos instrumen-tos de pensamento de que dispomos. De h uns tempospara c tem-se notado, em crculos biolgicos, uma cres-cente difuso da compreenso de tipos especficos de orga-nizao, entre os quais uma hierarquia de nveis interde-pendentes de funes de coordenao e integrao de talmodo que as relaes nos nveis mais complexos de coorde-nao e integrao so relativamente autnomos dos nveismenos amplos. Substancialmente, os nveis mais amplos deintegrao no so mais do que uma combinao de figu-raes de nveis menos amplos, que de certo modo osprimeiros regulam. Porm, o modo como funcionam osnveis mais altos de integrao relativamente autnomono que respeita aos seus componentes:

    A actividade num nvel inferior sempre determinada pelaactividade num nvel superior, mas em cada nvel a coordena-o relativamente autnoma... O princpio da autonomia rela-tiva a cada nvel particular de coordenao e integrao dentrodeste esquema hierarquizado foi recentemente alvo de umaateno especial7.

    Tal como aqui se expe, esta intuio apenas se refere estrutura dos organismos. Mas como,modelo intelectual,ajuda grandemente compreenso das relaes entre oscampos de investigao dos vrios tipos de cincia. Cin-cias como a fsica, a biologia e a sociologia dizem respeito

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  • a diferentes nveis de integrao no cosmos. Tambm aquise encontram em cada nvel tipos de relaes, de estrutu-ras e de regularidades que no podem ser explicadas oucompreendidas em termos do nvel anterior de integrao.Assim, o funcionamento do organismo humano no podeser explicado ou compreendido apenas em termos dascaractersticas fsico-qumicas dos seus tomos; nem o fun-cionamento de um estado, de uma fbrica ou de uma fam-lia pode ser unicamente compreendido em termos dascaractersticas biolgicas ou psicolgicas dos seus mem-bros individuais. Comte reconheceu de um modo inequ-voco a autonomia de certos grupos de cincias dentro detodo o sistema das cincias. Registou esta idia mas noa verificou com a ajuda de uma investigao emprica ede modelos tericos. Esta idia manteve-se nele de ummodo intuitivo. Mas o problema tinha sido detectado.A tarefa agora seria encontrar uma soluo mais convin-cente. Como veremos, os captulos seguintes dedicam umaateno particular a esta tarefa. Temos que mostrar comoe porqu a interpenetrao de indivduos interdependentesforma um nvel de integrao no qual as formas de orga-nizao, estruturas e processos no podem ser deduzidosdas caractersticas biolgicas e psicolgicas que constituemos indivduos.

    O PROBLEMADA ESPECIALIZAO CIENTIFICA

    Por fim, temos de mencionar outra questo posta porComte que antecipou dois dos problemas mais prementesdo nosso tempo. Talvez seja surpreendente que no comeodo sculo XIX um homem se tenha preocupado com asconseqncias de uma especializao cientfica crescentee tenha ponderado de um modo profundo o que se poderiafazer para obviar as dificuldades que, segundo previa, serelacionariam com essa especializao. No podemos enca-rar como coincidncia o facto de pioneiros tais como Comtee Spencer se terem preocupado com um problema de teoriada cincia a que a teoria filosfica da cincia prestavapouca ateno. Em ltima instncia, a diferena de atitu-des deve-se a que a teoria sociolgica da cincia orientaa sua investigao como se as cincias fossem de factosociais, enquanto na teoria filosfica da cincia a visodos factos se mistura com uma viso ideal. Vale a pena

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    ler a formulao comtiana do problema: perdeu poucoda sua actualidade.

    No estdio primitivo do nosso conhecimento no existequalquer diviso regular entre os nossos esforos intelectuais;todas as cincias so simultaneamente cultivadas pelos mesmosespritos. Este processo de organizao dos estudos humanos,primeiramente inevitvel e mesmo essencial transforma-se apouco e pouco, proporcionalmente ao desenvolvimento das dife-rentes classes de conceitos. Devido a uma lei, cuja necessidade bvia, cada ramo do sistema cientfico se separa gradualmentedo seu tronco, logo que cresceu suficientemente para constituiruma disciplina distinta. Isto significa que alcanou o ponto dese tornar apto para chamar a ateno de alguns intelectos.Evidentemente que a esta diviso dos vrios tipos de conhe-cimento pelos diferentes grupos de especialistas que devemoso desenvolvimento notvel verificado actualmente em cada umdos distintos ramos de conhecimento. Isto fez com que fossemanifestamente impossvel ao homem moderno chegar ao conhe-cimento polimtico de todas as disciplinas especializadas, factoto fcil e comum nos primeiros tempos. Em resumo, a divisointelectual do trabalho, levada cada vez mais longe, um dosatributos fundamentais e caractersticos da filosofia positivista.

    Mas, embora reconhecendo os resultados prodigiosos destadiviso do trabalho, e embora