APS e a questão racial, elementos da nossa história
Uma breve introdução
1. A APS vem se debruçando sobre a questão racial porque compreende que não é possível se
pensar no socialismo sem compreendermos as várias faces da formação social brasileira. A
questão racial deve ser pensada de forma estratégica e não como elemento tático nas disputas
cotidianas.
2. Nestes mais de 500 anos, o povo brasileiro luta contra a exploração das elites. A APS entende
que o racismo é um instrumento de dominação criado pelas elites colonialistas, e que é até
hoje uma forma de controle e discriminação da população negra de nosso país. A prática do
racismo no sistema social e político capitalista é estrutural, ou seja, é apoiada pelo estado e
por seus aparelhos ideológicos (meios de comunicação, escolas, universidades etc). Enquanto
houver capitalismo, haverá racismo!
3. Em tempos de hegemonia das políticas neoliberais, o racismo brasileiro tem uma face
institucional e militar: a faxina étnica. Esta política de faxina étnica define – para negros,
“pardos”, “morenos” e “mulatos” – quais são os territórios em que podem viver e a forma
como devem viver. Favelas, periferias, subúrbios e alagados são fenômenos que revelam, no
território urbano, a unidade entre capitalismo e racismo, entre classe e raça. Esta é uma
política de recolonização que divide nossas cidades em territórios distintos: um reservado aos
ricos e brancos; outro, aos trabalhadores e negros.
4. Há alguns elementos que devemos apontar, há um conflito entre uma concepção em que o
racismo aparece como estruturante na formação do Estado e sociedade brasileira e precisa ser
percebido na relação não hierarquizada entre raça e classe, e outra em que o racismo é
compreendido como uma das faces do capitalismo e, portanto, a categoria mais apropriada
para compreender as desigualdades raciais é a categoria classe. Há ainda uma perspectiva que
analisa o racismo sob a onda culturalista e a “pós-moderna”, os discursos sobre o racismo nos
levaria, então, a não buscar uma síntese e sim, nos perder nas aparências da problemática que
fragmentaria a realidade. Assim, os militantes que pensam a questão racial ou de gênero
seriam aqueles que não deteriam com clarividência toda a complexidade da questão.
5. Sem entrar no longo debate que isso suscita, evidenciamos que o nosso esforço de trazer o
debate é afastá-lo da visão pós-moderna e culturalista e também de uma visão engessada do
estruturalismo. Nesse embate, vivemos uma realidade ambígua, dentro e fora da corrente:
enquanto, para dentro, somos considerados por alguns como os “pós-modernos”, para fora,
no movimento negro, somos os que só conseguem pensar raça associado à classe, o que nos
faz ser vistos com certa desconfiança por setores que temem que a questão racial seja
subsumida pela luta de classes.
6. Esta incompreensão em relação a nossa posição é razão suficiente para que, nós, negros
comunistas, sigamos produzindo reflexão teórica e atuando no movimento social negro e nos
diversos movimentos sociais apontando para a centralidade da questão racial em um projeto
de transformação da sociedade brasileira.
7. Esse texto representa um continum do esforço de compreender algumas nuanças da realidade
brasileira no que tange a essa temática e de refletir também as nossas experiências com o
movimento negro. O texto tem três momentos. O primeiro busca evidenciar elementos da
trajetória histórica negra no Brasil, o segundo evidencia alguns elementos das opções
políticas feitas pelo movimento negro e por nós no movimento negro e por fim, elencamos
uma série de tarefas e concepções que são parte do movimento negro e na qual precisamos
nos debruçar.
8. Um traçar histórico
9. As concepções de inferioridade e superioridade entre os indivíduos estruturaram a empreitada
colonialista no século 16 e concretizaram a escravização dos povos originários da América e
dos povos africanos. Ao longo do século 19 o colonialismo consolidou práticas sociais
racistas, amplamente justificadas pela religião cristã na América e pelas demais instituições
da sociedade escravista e definiu diferentes lugares sociais para cristãos, cristãos novos,
judeus, índios e negros.
10. Para ocupar cargos na administração das colônias na América os cristãos teriam que provar
que não tinham sangue impuro, sangue de judeu ou muçulmano. Eis a origem da ideia de
pureza das raças que se propagou e que incorporou negros e índios e ainda hoje é uma
realidade concreta em várias regiões.
11. No Brasil isso se enraizou nas instituições jurídicas, políticas e religiosas, além se impregnar
nas formas de pensamentos e atitudes que excluíam de “direitos sociais” toda uma população
considerada negra ou indígena e mestiça.
12. A gênese da formação da sociedade de classes no Brasil está no Estado escravista que se
organizou de forma a garantir a dominação de uma minoria sobre uma maioria escravizada,
ou seja, foi formado um corpo jurídico, político, legislativo, cultural e religioso que
garantisse a manutenção da ordem escravista.
13. Quando a escravidão deixou de existir o Estado brasileiro garantiu através de diversos
mecanismos o controle sobre a maioria da população agora liberta, um tratamento o mais
próximo da escravidão possível. Isso garantia a continuidade da produção para a exportação e
a manutenção da ordem hierárquica que definia a naturalidade da desigualdade entre brancos
e negros e a sua não contestação.
14. Dentre esses mecanismos destacamos o uso sistemático da repressão institucional, através da
força policial e da aprovação de uma legislação que criava barreira à mobilidade social de
negros e negras, o discurso da harmonia racial o discurso da incapacidade de aprender da
população negra que recorrentemente era usada para reduzir o poder de contestação ou para
reafirmar a sua inadequação ao modelo de civilização desejado.
15. 1.2. Controle: a reorganização da polícia no pós-abolição
16. Estudos sobre as origens da polícia militar na Bahia nos dá a exata medida que cumpre essa
instituição no Brasil. No pós-abolição a polícia se reorganizou como Corpo Militar de
Polícia, e suas funções foram redirecionadas. Os objetivos da polícia perpassavam agora pelo
controle de uma série de homens e mulheres que não mais eram escravos e que, portanto,
poderiam circular livremente pelas ruas das cidades. A prisão/encarceramento era visto como
possibilidade concreta de controle sobre a população negra.
17. O papel da polícia passou de repressão às revoltas escravas para a perseguição aos libertos, o
que nos dá a exata dimensão de que a instituição policial fora reformulada no pós-abolição
para proteger a propriedade privada e conseqüentemente os interesses e proteção dos antigos
senhores de escravos.
18. Como a prática da escravização fora proibida e a figura do capitão do mato tornada obsoleta,
as elites dominantes vão utilizar a policia militar para cumprir o papel institucional dos
antigos “capitães do mato” e transformar o negro liberto em escravo fugido, sob qualquer
alegação, a vadiagem, dentre tantas outras alegações, eram utilizadas sistematicamente como
justificativas para a repressão e encarceramento dos libertos. (Maia, 2002)
19. Assim, a polícia, enquanto agente do Estado cumpriu um papel fundamental na regulação das
relações sociais e nas relações de trabalho, além de garantir a manutenção das hierarquias e
do status quo.
a. Controle: da vagabundagem a ridicularização do negro
20. No inicio do século 20 algumas leis sobreviveram ao fim da escravidão, por exemplo, a que
proibia a entrada de povos de cor no país só deixou de ser uma realidade em 1911, quando o
Brasil precisou estreitar relações com os chineses. Neste período vimos também uma
generalização da ideia de vagabundagem como justificativa para controlar, encarcerar e
perseguir pessoas.
21. Evidenciou-se a disseminação das idéias cientificistas que definiam que as populações negras
eram biologicamente inferiores, beirando ao animalesco, que esta tinham “naturalmente” uma
tendência a preguiça, a violência, não usavam a razão, sem discernimento entre o que era
imoral e moralmente aceito. Os discursos sobre as mulheres negras afirmavam que estas
tinham uma sexualidade exagerada.
22. Assim, afirmar a suposta inferioridade do negro, encarcerar e exterminar foi pensado e feito.
O Estado se empenhou na viabilização do processo de “embranquecimento” da população
brasileira dando continuidade a política de incentivo à imigração, em curso desde o 19.
23. Um dos objetivos desse empreendimento era diluir a mancha negra na brancura dos
imigrantes como afirmou Roquette-Pinto e Lacerda em 1912 em trabalho apresentado no e
sobre o Congresso Mundial da Raça ocorrido na Inglaterra em 1911, estes afirmaram que no
ano de 2012 os brancos representariam 80% da população brasileira, os indígenas, 17% e os
mestiços, 3%, sendo que os negros tendiam a desaparecer de vez do território nacional
(Souza, 2012).
24. Outro era escolher, controlar e impedir os nascimentos dos “degenerados”, “doentes”,
“deficientes” e uma gama impressionante das ditas anomalias além do pré-requisito racial,
como queria a eugenia no Brasil. Um exemplo disso foi a afirmação de Monteiro Lobato
numa de suas várias cartas a Renato Kehl sobre o povo brasileiro
a. [...] pais que nasce torto não indireita nem a pau. A receita [...] para
concertar o Brasil é a única que me parece eficaz. Um terremoto de 15 dias,
para afofar a terra; e uma chuva de adubo humano de outros 15 dias, para
adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita, não? (abril de 1936 in Diwan,
2007, 137)
25. Com força, sobretudo, nos cursos de direito e medicina, as teorias do “racismo científico”
constituíram a base de nosso direito penal e criminal e as campanhas de sanitarização que
tinha como alvo principal as populações negras e pobres das cidades. De acordo com as elites
republicanas, “embranquecer” a nação significava modernizá-la, ou seja, varrer a “mancha
negra” da face brasileira que emperrava o desenvolvimento nacional.
26. Qualquer atitude que subvertesse a ordem ocasionaria, no mínimo, na ridicularização dos
indivíduos. Há um caso relatado pelo jornal A Tarde de 1925 ocorrido nos Estados Unidos
que ridicularizava e ironizava a ideia de se recontar a história a partir do ponto de vista racial.
A perspectiva de subverter o status quo ao buscar uma ancestralidade cristã negra como
forma de estabelecer uma identidade étnica foi um verdadeiro escândalo. Além de um
momento importante para reafirmar que aqui se vivia num paraíso racial e que os EUA eram
um inferno racial.
27. A busca por uma certa identificação racial não era interessante para as elites no Brasil, posto
que poderiam gerar uma série de conflitos e a maioria visível não era constituída por brancos.
Revelar uma batalha racial não era interessante, importante era ridicularizar a busca por uma
afirmação de identidade racial e exaltar a harmonia racial. Para ilustrar vejam a nota que o
jornal produziu.
1. Um Christo de côr de carvão? É o que querem os pretos dos Estados Unidos. 2. [...] Os congressistas decidiram que os crentes de cor devem ter nas igrejas o Christo,
a Virgem e os Santos todos negros e que pretos devem tambem ser os Moysés, Darios e Salomão nas reproduções das edições “negras” do Velho e Novo Testamento. Asseguram os negros eruditos que taes modificações não falseam, antes restabeleciam a verdade historica e desde esse momento os pretos desenhistas, pintores e escultores se esforçam para buscar documentos e realizar a transposição para a ordem negra, de todas as figuras da Historia Sagrada.[...]1
b. O mercado de trabalho
28. A necessidade da formação e regulamentação de um mercado de trabalho no país concentrou
todo o aparato de repressão do estado em torno da marginalização do povo negro. Uma nação
que queria ser um pedaço da Europa na América, punia com encarceramento, perseguição,
porrada, suicídios e homicídios aqueles que eram vistos como “vagabundos”, “cachaceiros”,
“macumbeiros” e “capoeiras” entre outros que punham em risco a consolidação do modo de
vista burguês nos trópicos.
29. Em conjunturas de crise do sistema capitalista ocorre um aumento dos processos de
favelização, encarceramento e extermínio do povo negro e dos pobres como mais um
instrumento de reprodução do sistema capitalista. O histórico da sociedade brasileira indica
1 A Tarde, 19/01/1925, p.8.
que os postos de trabalho já estavam definidos a priori, seguindo os critérios raciais para
proporcionar melhores condições de vida para alguns.
30. Na disputa por melhores condições de vida e de trabalho nas incipientes e nascentes fábricas
no Sudeste havia uma proliferação de discursos que contribuía para garantir o trabalho de
alguns e impedir que outros ocupassem as vagas. Assim, se produzia um discurso em que os
imigrantes eram considerados melhores e mais experientes no trabalho da fábrica, mesmo que
a maioria que tenha chegado ao Brasil fosse de camponês (Domingues, 2004). Por outro lado,
difundi-se a noção de que os negros eram preguiçosos, moralmente inferiores, sexualmente
violentos, abusados, perigosos, entre outros. Assim, os postos de trabalho não deveriam ser
ocupados por estes.
31. Quando pensamos na formação das classes no mundo capitalista na modernidade é necessário
estabelecer relação com a escravidão e com o racismo. O racismo, como o conhecemos, foi
forjado nos século 17 e 18 e serviu de grande justificador para a utilização da escravidão no
trabalho das plantações no Novo Mundo, fundamental para o capitalismo. Ou seja,
capitalismo e racismo nasceram na mesma marcha de expropriação dos indivíduos na sua
relação com o trabalho (Comas, 1960).
32. No Brasil a formação das classes sociais está estritamente ligada à base racial, aqui a
manutenção do status quo está relacionada à forma como os significados raciais podem ser
traduzidos em ações. As classes dirigentes no Brasil são oriundos dos antigos senhores de
escravos que mudaram para não mudar nada, o que nos impossibilita de pensar em classe
sem pensar em raça.
33. Assim, ser branco garantia e garante melhores acessos a empregos, garante pelo menos a
certeza de que seu currículo será analisado numa entrevista, assim como ser negro ou negra
passou a ser sinônimo e de trabalho penoso, insalubre e de baixa remuneração. Como disse o
poeta “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
a. Uma estratégia de dominação: a democracia racial
34. Entre o final do 19 e inicio do 20 se disseminava a noção de que éramos um povo que apesar
de inferior, apesar de não sermos os ditos “grandes países civilizados da Europa” tínhamos
uma característica que nenhuma outra nação possuia. Éramos um povo que convivia
harmoniosamente com todos os outros, aqui brancos e negros conviviam bem, podiam andar
nas mesmas calçadas, freqüentarem os mesmos espaços sem que isso incitasse quaisquer
disputas e querelas, enfim, como diziam alguns jornais do inicio do século, vivamos num
paraíso racial.
35. Muito diferente dos Estados Unidos que era considerado o inferno racial. Essa crença foi
fundamental para reduzir uma série de situações potencialmente conflituosa que fazia parte
do cotidiano dos brasileiros. (Reis, 2000)
36. Silvio Romero, reconhecido homem de ciência no inicio do século 20 expôs nas páginas do
Diário de Noticias uma visão positiva frente ao povo brasileiro, sua noção de mestiçagem
enquanto possibilidade de um futuro povo melhor. Segundo este a raça “ariana, ao reunir-se
no Brasil com negros e com índios, proporcionou a formação de uma sub-raça mestiça e
crioula, distincta da Europa” [...] O povo brasileiro como hoje se nos apresenta, se não
constitue uma só raça composta e distincta, tem elementos para acentuar com força e tomar
um ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos que representar na América um
grande destino cultural-historico”.2
37. Gilberto Freyre mais tarde, ampliará essa concepção para a perspectiva de que o melhor do
Brasil era justamente o seu povo mestiço. Mesmo que esse melhor indique um povo mestiço
cada vez mais branco, de qualquer forma essa ideia foi na contramão das que afirmavam que
o povo brasileiro era um povo degenerado.
38. As noções de harmonia racial se ampliaram para o que passamos a conhecer como
democracia racial, que sintetizou um ideal de convivência entre brancos e negros, possível de
ser verificado na fala de vários intelectuais brasileiros (Thales de Azevedo, Edison Carneiro,
René Ribeiro) e vários intelectuais estrangeiros (Ruth Lands, Donald Pierson, Roger
Bastides). Mas tínhamos também alguns intelectuais que analisaram a sociedade brasileira e
produziram importantes trabalhos que a partir da perspectiva de classe e questionaram a
noção de democracia racial consolidado pela sociedade, como Clovis Moura e Florestan
Fernandes.
39. O movimento negro a partir dos anos 1970 começou a fazer uma série de intervenções na
sociedade para afirmar que a democracia racial foi uma das maiores farsas vivenciadas no
Brasil. Um país maravilhosamente mestiço formado pelo encontro de três raças, branco,
índio e negro. Esse discurso camuflou uma sociedade profundamente desigual e
absolutamente racista.
2 Diario de Noticias, 16/12/1910, P.7.
40. Resistência Negra: o movimento negro e a aps
41. A resistência dos negros e negras contra a opressão durante a escravidão e no pós-abolição e
ao longo do século 20 é fundamental para inspirar através do resgate da sua trajetória
histórica de luta os movimentos sociais na América e especialmente o movimento negro. Este
se constitui das formas mais variadas, mas evidencia um elemento comum, a busca da
superação da condição desigual de sobrevivência em que vive a população negra. As
estratégias de superação vão da denúncia á ação, dentro da ordem e fora da ordem.
Pretendemos nesse item elencar alguns momentos para trazer para a nossa discussão.
42. Assim, é importante falarmos de uma série de organizações negras que estavam ligadas a
religiosidade, seja a cristã ou as africanas e que de diversas formas foram fundamentais para
superar uma série de dificuldades na sociedade e imprimir uma forma de existir, uma maneira
de se relacionar com o mundo. Além destes estão também às ações organizadas para
participar do carnaval e do futebol e outros.
43. Para além destas manifestações temos o primeiro grupo que pensou estrategicamente sobre a
sociedade. Assim, destaca-se neste contexto a atuação da Frente Negra, o TEN (Teatro
Experimental do Negro) na primeira metade do século 20. Também vale a lembrança do
impacto da saída do bloco carnavalesco “Mundo Negro” em 1974, que depois veio a se
chamar Ilê Aiyê, na Bahia, que suscitou uma série de noticias para fora do estado que
evidenciava o horror dos brasileiros quanto àquela manifestação. Importante foi a influência
das lutas por direitos civis nos EUA nos movimentos negros no Brasil após os anos de 1970.
44. Consideramos importantes, também, as conquistas do movimento social negro que redefiniu
as políticas publicas brasileiras ao obrigar o Estado brasileiro reconhecer o racismo como
promotor das desigualdades sociais no Brasil, tendo destaque a Marcha “ZUMBI 100 ANOS
SEM ABOLIÇÃO” e a luta pela implementação das políticas afirmativas no Brasil, que
proporcionou a inclusão dos negros e negras nas universidades públicas através do
mecanismo das “cotas raciais”.
45. Embora o contexto recente revele um conjunto de conquistas no plano institucional, ainda é
fato que a desigualdade persiste e tem se aprofundado e com ela, principalmente em situações
em que a crise do capital atinge o Brasil, cujas saídas apresentadas pelas elites são os planos
de “Ajustes Fiscais” que transferem o ônus da crise para as costas dos trabalhadores,
principalmente pela retirada de direitos, precarização do trabalho e aumento dos impostos.
46. Neste sentido apontamos a necessidade de uma crítica duríssima às entidades de vanguarda
do movimento negro na contemporaneidade que subordinou as suas lutas ao nível das ações
institucionais, aderindo e adotando como prioridade a lógica da disputa por dentro do aparato
do estado em quaisquer governos de plantão, e restringindo, a sua intervenção as políticas de
gabinetes. Voltaremos a falar mais a frente sobre essa atitude adesista.
47. No contexto atual da luta de classe a luta contra o racismo assumiu uma perspectiva
institucionalizada e limitada a inclusão dos negros e negras às ofertas de políticas
compensatórias dentro do formato das políticas neoliberal. Dessa forma tem se elitizado e se
distanciado da periferia, território onde reside a maioria negra.
48. 2.1 Um balanço da nossa atuação no movimento negro
49. A atual conjuntura mostra-nos que há uma lenta, mas vigorosa retomada da ação dos
movimentos sociais seja os sindicais, a exemplos dos servidores públicos e da educação nas
diversas esferas, os de luta por moradia, ou o movimento estudantil, no entanto, o mesmo não
ocorre com o movimento social negro e o feminista. Mesmo levando em consideração que as
questões raciais e as pautas levadas a cabo tanto pelo movimento feminista quanto pelo
movimento de mulheres subsistem integrando pautas de outros movimentos.
50. As cooptações do movimento negro e de muitos de seus integrantes pelos governos do Lula
PT/PL e Dilma PT/PMDB levou a um descenso das lutas. As secretarias com status de
Ministério, a exemplo da SEPPIR, e órgãos semelhantes nos estados e municípios, serviram
para atrair várias lideranças negras para institucionalidade. Como é o caso de dirigentes da
Unegro, MNU, COBEN, CEN e outros agrupamentos regionais, que subordinaram a sua
atuação ao limite da interface com os governos.
51. As bandeiras tradicionais do MN foram minimizadas ou esquecidas sob a desculpa de que
não poderia desgastar o governo porque ele reduziria as desigualdades vividas pela população
negra. Os segmentos do MN que se submeteram aos desígnios desse governo tornaram-se
correia de transmissão do partido e sustentação de seus governos. Por isso a necessidade de
uma organização autônoma e independente do governismo e seus partidos.
52. Foi na tentativa de ocupar esse espaço deixado pelo MN governista que Círculo Palmarino foi
criado. Seu surgimento foi resultado do primeiro ativo de negras e negros da APS que
aconteceu em março de 2005 no Espirito Santo e surgiu para aglutinar a nossa militância que
atuava no movimento negro, mas de forma dispersa, naquela conjuntura as organizações
negras estavam atreladas “às estruturas governamentais, parlamentares e sindicais
patrocinadas por PT e PSDB e pelos governos Lula e FHC”. Naquele momento
acreditávamos que os afro-comunistas poderiam potencializar sua intervenção no MN,
disputando as concepções desse MN.
53. CP deveria então, formar uma nova “corrente política" no movimento negro, autônoma e
distinta das demais organizações do MN que se construíram na forma de entidades. Por conta
deste entendimento, ficou em aberto a definição em relação a nossa participação na CONEN,
no MNU e nas demais entidades e organizações negras, ressalvando-se, no entanto, que a
centralidade de nossa ação se daria por meio do CP” neste sentido o CP seria compreendido
como uma ferramenta de vanguarda para intervenção no MN com possibilidades de ter seus
militantes atuando nas diversas formas de organização do MN de caráter regional ou
nacional. (Relatório do 1° Ativo de negros e negras da Aps “Genildo Batista” Vitória-ES, 11
e 12 de março de 2005.).
54. Assim, o CP foi um dos poucas articulações do movimento negro brasileiro que se afirmava
enquanto corrente do M N, que se propunha a ser aglutinadora dos comunistas, socialistas e
lutadores sociais empenhados em fazer a luta contra a exploração do capital na sua forma
atual de dominação neoliberal, enquanto tal compunha o estreito espaço de aglutinação da
esquerda no movimento negro brasileiro, dessa forma se apresentando como uma novidade já
que seu formato pretendia estabelecer uma dinâmica de movimento e não de entidade.
55. Para resolver o problema com relação a sua face institucional foi proposto a criação do
Instituto Manuel Querido que era sua face institucional e responsável em desenvolver
pesquisas, formação e programas de intervenção no movimento social dos negros e negras.
56. Após o racha ocorrido no V encontro, a APS resultou em três forças distintas, aquela que
ficou com a maioria da executiva nacional, a “Dissidência”, e a que se constituiu
posteriormente como Rosa Zumbi e nós, APS. Os militantes dos dois coletivos recém
formados possuíam atuação no CP, o que gerou expectativas e tensões com indefinições
quanto às posições políticas no movimento social no pós-racha da APS. Este evento resultou
em vários momentos de conflitos na lista do CP, trazendo à tona as divergências de condução
do CP agravada com o racha. Essas divergências levaram a setores da APS que atuavam no
CP a se afastarem e posteriormente a defender a nossa saída dessa organização. Fato que se
consumou em 2012 em face da realização do ativo nacional de negros e negras da APS.
57. Na época os que advogavam a permanência no CP afirmavam a existência de um legado
construído por nós e que, portanto, não havia motivo para sair e sim buscava a permanência
neste e a perspectiva de disputá-lo. Os que advogavam a saída da APS do CP argumentavam
que seus dirigentes tinham práticas antidemocráticas e cupulistas, o que dificultaria uma ação
unitária no cotidiano das relações nos movimentos sociais e foi essa posição que se tornou
vitoriosa
58. De forma contraditória ao discurso alegado para nos afastarmos do CP o processo de
construção dessa decisão, que levou a construção do ativo nacional de negros e da APS,
também revelou práticas antidemocráticas e cupulistas. Percebida pelos métodos empregados
de inchamento de delegação e construção de maioria artificial, prática condenada, herdadas
do contexto da luta sindical e transportadas de forma lamentável para a convivência dos
militantes da APS.
59. Consideramos que o processo anti-democrático do grupo dirigente do CP que veio a se
constituir no Coletivo Rosa Zumbi e na dissidência da APS, pós racha da APS, terminou por
impossibilitar a convivência amistosa dentro do CP, o que tornou a convivência um pouco
difícil, para a busca de consensos para atuar no movimento social.
60. Ilustramos essa situação em quatro momentos em que argumentos políticos e pessoais se
confundem. Foram as situações vivenciadas no Rio de Janeiro, em Belém, em Vitória e um
momento em que dirigentes do CP agiram de forma a restringir e invisibilizar as nossas
lideranças em vários momentos em outras esferas, a exemplo da ação no setorial de negros e
negras do PSOL. Deliberadamente, companheiros, hoje na RZ, intercederam de forma
autoritária e agressiva para descredenciar o companheiro Hamilton na sua indicação para
participar do Seminário Eleitoral nacional do PSOL, em São Paulo em 2012.
61. Apesar da identificação desses problemas, de cortes autoritários, da sua direção consideramos
que o legado de elaboração política do CP faz parte de nossa trajetória de intervenção no
Movimento Negro e, dessa forma, reivindicamos algumas das contribuições políticas do CP
como parte de nossa intervenção no movimento negro, principalmente no que diz respeito a
nos afirmarmos enquanto antiracistas, antiliberais e comunistas.
62. As decisões que tomamos durante a nossa permanência no CP, em relação ao balanço
balanço do MN, e a questão racial como estruturante da dominação de classe continuam em
nosso país, e a luta do povo negro nos diversos momentos da história do país como parte do
processo de construção resistência histórica das classes trabalhadoras contra a dominação.
Essa concepção é parte da nossa construção.
63. Intervenções no Movimento Negro
64. Entretanto, resta-nos fazermos um acerto de contas com a proposta de intervenção dentro do
MN, atualizando as nossas formulações, considerando que o modelo de intervenção proposto
para CP enquanto corrente do MN sinaliza esgotamento já que não foi capaz de responder de
forma efetiva a perspectiva de criação de um espaço para organização da vanguarda socialista
anti-neoliberal e nem de uma organização de massas no interior do MN, neste sentido seria
errôneo persistir com esse modelo de intervenção e cabe buscarmos desenvolvermos novas
formas de intervenção política no MN.
65. Este modelo de organização, o de corrente, coube naquele momento em virtude da existência
da articulação para construção de um Congresso nacional de negras e negros –CONNEB- e
que propunha a articulação de frente de negros e negras através de um programa e plano de
luta que expressasse a necessidade da construção de uma alternativa de poder na perspectiva
do povo negro. Como este espaço era amplo e o PSOL ainda se colocava como alternativa
tímida de atração de novos militantes, atuar como corrente nos permitiria atrair setores
descontentes com o governismo ou suas dissidências para uma atuação unitária, dessa forma
também disputamos as bases sociais das organizações tradicionais
66. Neste sentido é possível que a tendência atual seja o de organizarmos o coletivo de negras e
negras da APS nacionalmente, e partir disso para a criação de uma nova organização social
para intervenção no MN, com perfil de entidade de massas e não de vanguarda. Esta nova
ferramenta nos possibilitaria estabelecer diversos diálogos com o movimento negro e com
setores importantes do movimento social, seja ele o sindical, ou da juventude, a exemplo do
Movimento dos Sem Tetos e do PAJEÙ, CSP-Conlutas e intersindical dentre outros.
67. Sobre a nossa atuação nacional dentro do MN é necessário pensar sobre a criação de uma
frente nacional de lutas dentro do MN somando-se aos diversos setores que fazem oposição
ao governismo e que atuam dentro MN pela esquerda e que sinalizam rachas com suas
entidades de origem a exemplo do campo constituído pela articulação “Em busca da Batida
Perfeita”, Campanha “Reaja”, Fórum de juventude Negra, dentre outros, no sentido de
construir uma pauta unitária que supere a atual centrada em políticas compensatórias.
68. Em relação a política de massas é necessário aprofunda nossa relação com os diversos
movimentos nas periferias das grandes cidades, que lutam, contra o extermínio da juventude
negra e que desenvolve novas formas de organização através dos movimentos culturais.
69. Neste sentido é necessário sairmos do encontro nacional da APS com uma comissão nacional
que seja responsável pela articulação, o mais breve possível de um seminário ou até mesmo
de um ativo nacional de negras e negras que venha dar cabo da tarefa de realizar a atualização
das nossas elaborações que permitam qualificar a nossa intervenção dentro do movimento
negro.
70. 3.1. Uma pauta em construção
71. Reafirmamos que a luta contra o extermínio da juventude negra é fundamental no atual
contexto de consolidação da ideologia neoliberal, momento que ganha força as ações de
encarceramento da juventude negra, através da tentativa de aprovação da redução da
maioridade penal no Brasil e a aprovação da lei da terceirização pela câmara dos deputados, o
que implica em redução da idade para o trabalho e mais precarização da vida da nossa
juventude.
72. No contexto atual da luta de classe, a luta contra o racismo assumiu uma perspectiva
institucionalizada e limitada a inclusão dos negros e negras às ofertas de políticas
compensatórias dentro do formato das políticas neoliberal. Dessa verificamos uma elitização
de setores o MN e o seu distanciamento da periferia, território onde reside a maioria negra.
73. É importante observarmos os diversos grupos de resistências aos processos de faxina étnica
imposto pelas elites, que surgem diuturnamente nos espaços negros da periferia das cidades, a
exemplo do movimento Hip Hop, e de grupos de cultura que buscam romper a barreira do
isolamento e da segregação econômica, sócio espacial e cultural. Para isso propomos
pensarmos o MN a partir da ação direta de mobilização das populações negras contra
opressão capitalista, cujo centro deveria ser a busca por reparações, reformas estruturais,
sociais econômicas e políticas, ao invés de se ater no limite das políticas compensatórias.
Assim indicamos:
1. Por uma Frente Nacional de Luta Negra que unifique o movimento negro combativo
2. Defesa de uma política de reparação e de reformas estruturais
3. Fim, do Ajuste fiscal de Dilma
4. Reforma agrária sob o controle dos trabalhadores
5. Educação pública e gratuita e políticas de cotas que garantam a permanência dos estudantes
cotistas na universidade (casa, bolsa e refeição)
6. Por um Estado Laico e pela revogação do Acordo Lula-Vaticano.
7. Contra a intolerância religiosa! Apoio a Campanha “Quem é do Axé, diz que é”, promovida
por entidades do movimento negro, e que tem como objetivo estimular os adeptos das
religiões de matriz africana a assumirem esta condição durante o levantamento do Censo
2010.
8. Pela desmilitarização da Polícia militar, por uma Política de Segurança Pública Democrática
e Popular, construída com os movimentos populares, sociais, negro, indígena e de direitos
humanos que tenha como marco o respeito aos direitos civis e as liberdades individuais.
9. Pelo respeito aos direitos humanos da população carcerária;
10. Apuração de todos os atos de violação aos direitos humanos de agentes do estado.
11. Contra o Racismo Ambiental. Retomada dos processos de demarcação e homologação dos
territórios quilombolas. Utilizar os instrumentos legais para revogar a Instrução Normativa da
Advocacia Geral da União que atenta aos interesses das populações quilombolas.
12. Organizar uma Conferência autônoma de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR) em
Congresso dos Povos Contra o Racismo, de caráter deliberativo.
13. Propor a criação do programa “Cidade Integrada” com o objetivo de combater a faxina étnica
nos territórios negros urbanos,
14. Por uma política de saúde integral à população negra, no âmbito do município!
15. Em defesa do SUS público, gratuito e de qualidade, com ampliação do atendimento básico!
16. Política de Reforma Urbana! Plano de unidades habitacionais para os sem teto!
17. Respeito, reconhecimento e promoção das manifestações culturais da população negra (funk,
hip hop, capoeira, samba etc).
18. Estender e garantir direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores do mercado
informal.
Salvador, 08 de julho de 2015
Meire Reis
Hamilton Assis
Referências
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DOMINGUES, Petronio José. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-aboliçao. São Paulo. Ed. Senac. São Paulo, 2004.
FERNANDES, Florestan. À Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3. Ed. V.1. São Paulo: Ática, 1978.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 32º ed. Rio de Janeiro: Reccord., 1997.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Cor, Classe e Status nos estudos de Pierson, Azevedo e Harris na Bahia: 1940-60. Texto apresentado ao Seminário “Raça, Ciência e Sociedade no Brasil”. Rio de Janeiro: Patrocínio Centro Cultural. Banco do Brasil, maio de 1995.
_________________________________. Racismo e Anti-Racismo no Brasil.- São Paulo: FUSP; Ed. 34, 1999.
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Reis, Meire L. A. A cor da notícia. Discursos sobre o negro na imprensa baiana 1888-1937. Dis. Mest. Salvador, UFBa. 2000.
Souza, Vanderlei Sebastião de. Santos, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 2011.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das letras, 1993.