UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL
SILMARA DE MATTOS SGOTI
A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS QUILOMBOLAS
CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS DA
COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
SILMARA DE MATTOS SGOTI
A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS QUILOMBOLAS
CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS DA
COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL
Dissertação apresentada em cumprimento às exigências
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção
do título de Mestre.
Orientação: Profa. Dra. Cícilia Krohling Peruzzo
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Sg58c Sgoti, Silmara de Mattos
A comunicação comunitária dos Quilombolas Carrapatos da
Tabatinga: o diálogo como práxis da comunicação interpessoal e
grupal / Silmara de Mattos Sgoti. 2016.
121 p.
Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Escola de
Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016.
Orientação: Cicilia Maria Krohling Peruzzo.
1. Comunicação comunitária 2. Diálogo 3. Comunidade 4.
Quilombolas Carrapatos da Tabatinga - Bom Despacho (MG) 5.
Quilombos I. Título.
CDD 302.2
A dissertação de mestrado sob o título “A COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA DOS
QUILOMBOLAS CARRAPATOS DA TABATINGA: O DIÁLOGO COMO PRÁXIS
DA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL E GRUPAL”, elaborada por Silmara de Mattos
Sgoti, foi defendida e aprovada em 19 de Setembro de 2016, perante a banca examinadora
composta por: Profa. Dra. Cicília Maria Krohling Peruzzo (Presidente/UMESP), Prof. Dr.
José Salvador Faro (Titular/UMESP), Profa. Dra. Cristina Schmidt (Convidada/
Universidade Mogi das Cruzes).
__________________________________________
Profa. Dra. Cicília Maria Krohling Peruzzo
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
___________________________________________
Profa. Dra. Marli dos Santos
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social
Área de Concentração: Processos Comunicacionais
Linha de Pesquisa: Comunicação comunitária, territórios de cidadania e desenvolvimento
social
Ao meu esposo Edilberto e minhas filhas
Thaís e Sophia, por trazerem luz e alegria à
minha vida. Por contribuírem para que eu
alcançasse esse objetivo, e com paciência e
tolerância suportaram minhas ausências. Meu
amor e minha sincera gratidão.
“A educação é comunicação, é diálogo, na
medida em que não é a transferência de saber,
mas um encontro de sujeitos interlocutores que
buscam a significação dos significados.”
Paulo Freire
AGRADECIMENTOS À minha querida professora Dra. Cicília M. Krohling Peruzzo, pela tranquilidade, confiança e
valiosa orientação.
Aos professores Dra. Magali do Nascimento Cunha e Dr. José Salvador Faro pela
contribuição na qualificação do projeto.
À professora Dra. Marli dos Santos, coordenadora do Pós-Com da UMESP, que nas horas
mais difíceis me ajudou a prosseguir.
À Kátia Bizan, secretária do Pós-Com da UMESP, pelos providenciais e-mails, responsáveis
por eu não perder se quer um prazo de entrega, e obrigado pela sua educação, alegria e
competência.
A UMESP por ter sido com muito orgulho aluna de uma instituição crível, e por todo apoio e
suporte dado para realizar a pesquisa.
Ao CNPq que concedeu a bolsa possibilitando o desenvolvimento da pesquisa e sua
conclusão.
Aos meus pais pelo amor e os valores que me deram. Sem vocês não estaria aqui no meu
caminho, pois já caminhei bastante, mais ainda falta chão para trilhar. Sempre os honrarei.
À minha companheira de caminhada no mestrado Cristiane Holanda, pelos momentos de bate-
papo que me encheram de motivação e alegria para continuar na caminhada rumo aos
objetivos.
Ao Douglas Marçal, meu coordenador no SENAC, Instituição que tenho orgulho de trabalhar
como docente, pela compreensão aos tantos pedidos de liberações, para ir aos congressos e
viagens para Bom Despacho. Aos meus queridos mestres da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Prof. Dr. Sérgio Lex e
Profa. Dra. Miriam Rodrigues, pela oportunidade de lecionar na Pós-Graduação desta
Instituição que tanto tenho orgulho de pertencer, e principalmente pelo incentivo para
prosseguir com o mestrado. Minha gratidão.
Aos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga, por permitir relatar um pouco sobre a
comunidade, suas lutas e ideais. A Dona Tiana pela generosidade com que me recebeu em sua
casa para falar da vida e de seu povo, a própria força da mulher negra, que me inspirou a lutar
mais pelos meus ideais. A Sandra Andrade pela boa recepção desde o primeiro encontro.
Muito obrigada à toda comunidade.
SGOTI, Silmara de Mattos. A Comunicação Comunitária dos Quilombolas Carrapatos da
Tabatinga: o diálogo como práxis da comunicação interpessoal e grupal. São Bernardo do
Campo, 2016, p.121. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Faculdade de
Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2016.
RESUMO
O estudo enfatiza a comunicação comunitária dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga,
comunidade localizada na cidade de Bom Despacho, no Estado de Minas Gerais. Os objetivos
são compreender de modo sistemático e com base científica os processos de comunicação das
práticas participativas e de gestão existentes na comunidade, além de verificar se há um
trabalho desenvolvido nos meios de comunicação grupais ou midiáticos de alcance
comunitário ou local, para amplificar as demandas sociais dos quilombolas em Bom
Despacho. A pesquisa bibliográfica construiu o marco teórico sobre comunidades,
comunicação comunitária e uma breve explanação sobre o Quilombo como símbolo de
resistência no Brasil. Utilizou-se a pesquisa etnográfica, sob os parâmetros da dialética, com
apoio da observação participante na investigação de campo, em determinadas atividades e não
de forma permanente, que permitiu um estudo in loco. Foram aplicadas técnicas
complementares de coleta de dados: a entrevista semiestruturada como forma de obter com
clareza as descrições da comunidade e as relações comunicantes no meio cultural que está
inserida: a sua ancestralidade negra, o território real e simbólico e o convívio com a sociedade
local. As entrevistas foram com os líderes comunitários, membros da comunidade e alguns
atores da sociedade local. Complementou-se o estudo com análise documental referente a
comunidade quilombola citada e com dados secundários como: informações já disponíveis em
órgãos públicos e privados ou instituições vinculadas a comunidade. Na conclusão do estudo
verificou-se que o diálogo é a práxis da comunicação comunitária interpessoal e grupal dos
Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Nos processos comunicacionais entre os membros da
comunidade o diálogo crítico se faz presente nas discussões sobre as demandas sociais como:
a importância da identidade quilombola, a valorização da memória dos ancestrais escravos, a
necessidade de resistirem ao preconceito e a desigualdade social na sociedade local, e a luta
pelo direito constitucional de reaver os territórios quilombolas. A comunidade tem uma
comunicação dialógica com a sociedade local, por meio das manifestações culturais, como no
Congado, no qual constatou-se a força comunicante das demandas sociais nos cantos, danças
e indumentárias. Há participação da comunidade nos meios de comunicação de Bom
Despacho em espaços cedidos, de forma esporádica, em rádio comercial para divulgação dos
seus eventos e atividades culturais. A comunidade utiliza rede social para publicar seus
conteúdos, por ser um meio de comunicação de baixo custo e alta abrangência. Não foi
constatado na cidade de Bom Despacho nenhum trabalho desenvolvido nos meios de
comunicação midiáticos de alcance comunitário ou local, para amplificar as demandas sociais
dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. O exercício da cidadania da comunidade em Bom
Despacho é prejudicado, por ser minoria tem baixa representatividade no poder público
municipal, o que resulta em falta de políticas públicas que atenda as demandas sociais da
comunidade, as conquistas sociais da comunidade vieram por meio do Governo Federal.
Palavras Chave: Comunicação Comunitária. Diálogo. Comunidade. Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Quilombo.
SGOTI, Silmara de Mattos. La Comunicación de la Comunidad de Quilombo Las
Garrapatas de Tabatinga: el diálogo como práctica de la comunicación interpersonal y
grupal, São Bernardo do Campo, 2016, p.121. Disertación (Maestria em Comunicación
Social), Faculdade de Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do
Campo, SP, 2016.
RESUMEN
El estudio enfatiza la comunicación comunidad de Quilombolas Garrapatas de Tabatinga,
comunidad situada en la ciudad de Bom Despacho en el Estado de Minas Gerais. Los
objetivos son comprender los procesos con base sistemática y científicamente comunicación
de prácticas de participación y de gestión dentro de la comunidad, así como de verificación
para un trabajo en el grupo o comunidad de los medios de difusión o medios de comunicación
locales para amplificar las demandas los derechos sociales de los quilombos en Bom
Despacho. La literatura construyó el marco teórico sobre las comunidades, la comunicación
comunitaria y una breve explicación del Quilombo como un símbolo de la resistencia en
Brasil. Se utilizó la investigación etnográfica, en la dialéctica de los parámetros, con el apoyo
de la observación participante en el campo de la investigación en ciertas actividades y no de
forma permanente, lo que permitió un estudio in situ. La recopilación de datos técnicos
adicionales se aplicaron: la entrevista semi-estructurada con el fin de obtener una clara
descripción de la comunidad para la interconexión y los enlaces en el medio cultural que se
inserta: su ascendencia negro, el territorio real y simbólico y la interacción con la sociedad
local. Las entrevistas fueron con los líderes comunitarios, miembros de la comunidad y
algunos actores de la sociedad local. El estudio de análisis de documentos se complementó
con respecto quilombo citado y datos secundarios como la información ya disponible en
organismos o instituciones públicas y privadas vinculadas con la comunidad. A la conclusión
del estudio se encontró que el diálogo es la práctica de la comunicación interpersonal y de
grupo de la comunidad de Quilombolas Garrapatas de Tabatinga. En los procesos de
comunicación entre los miembros de la comunidad diálogo crítico está presente en las
discusiones sobre las demandas sociales como la importancia de la identidad quilombola, la
valoración de la memoria de los antepasados esclavos, la necesidad de resistir el prejuicio y la
desigualdad social en la sociedad local, y la lucha por el derecho constitucional de tomar
posesión de los territorios quilombolas. La comunidad tiene una comunicación dialógica con
la sociedad local a través de eventos culturales, como el Congado en el que se encontró la
fuerza de conexión de las demandas sociales en canciones, bailes y trajes. Hay participación
de la comunidad en los medios de comunicación el Bom Despacho en los espacios asignados,
de forma esporádica, en la radio comercial para la difusión de los eventos y actividades
culturales. La comunidad utiliza la red social para publicar su contenido a ser un medio de
bajo costo y alta cobertura. Se encontró en la ciudad de Bom Despacho hay trabajo en grupo o
los medios de comunicación de alcance comunitario o local, para amplificar las demandas
sociales de los Quilombolas Garrapatas de Tabatinga. El ejercicio de la ciudadanía de la
comunidad en buen estado de sufre deterioro por la escasa representación en el gobierno
municipal por una minoría en la ciudad, lo que resulta en una falta de políticas públicas para
satisfacer las demandas sociales de la comunidad. Toda la comunidad conquistado entró por el
Gobierno Federal.
Palabras Clave: Comunicación Comunitaria. Diálogo. Comunidad. Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Quilombo.
SGOTI, Silmara de Mattos. The Community Communication of Quilombolas Carrapatos of Tabatinga: dialogue as a practice of interpersonal communication and group. São Bernardo do Campo, 2016, p.121. Dissertation (Master in Social Communication), Faculdade de Comunicação, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP, 2016.
ABSTRACT The study emphasizes community communication of Quilombolas Carrapatos of Tabatinga,
community located in Bom Despacho in the State of Minas Gerais. The objectives are to
understand systematically and scientifically based communication processes of participatory
and management practices within the community, as well as check for a work in the group or
media community outreach or local media to amplify the demands social rights of quilombos
in Bom Despacho. The literature built the theoretical framework on communities, community
communication and a brief explanation of the Quilombo as a symbol of resistance in Brazil.
We used ethnographic research, in the dialectic of parameters, with the support of participant
observation in the field of research in certain activities and not permanently, which allowed an
on-site study. Additional technical data collection were applied: the interview semi-structured
in order to get a clear community descriptions to and interconnecting links in the cultural
milieu that is inserted: their black ancestry, the real and symbolic territory and the interaction
with the local society. The interviews were with community leaders, community members and
some actors of local society. The study of document analysis was complemented regarding
quoted Quilombo and secondary data as information already available in public and private
bodies or institutions linked to the community. At the conclusion of the study it was found
that dialogue is the practice of interpersonal communication and community group of
Quilombolas Carrapatos of Tabatinga. In the communication processes between the members
of the critical dialogue community is present in discussions about the social demands as the
importance quilombo identity, valuing the memory of slave ancestors, the need to resist the
prejudice and social inequality in the local society, and the struggle for the constitutional right
to repossess the quilombo territories. The community has a dialogical communication with the
local society through cultural events, such as the Congado in which it was found the
connecting force of social demands in songs, dances and costumes. There is community
participation in Bom Despacho media in assigned spaces, sporadically, on commercial radio
for dissemination of the cultural events and activities. The community uses social network to
publish their content to be a medium of low cost and high coverage. It was found in the city of
Bom Despacho no work in group or media community outreach or local, to amplify the social
demands of the Quilombo las Carrapatos of Tabatinga. The exercise of community citizenship
in Bom Despacho is impaired due to low representation in municipal government by a
minority in the city, resulting in a lack of public policies to meet the social demands of the
community. All community conquered came through the Federal Government. Key Words: Community Communication. Dialogue. Community. Quilombolas Carrapatos da Tabatinga. Quilombo.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
CAPÍTULO I – CONCEITOS, TEORIAS E REFLEXÕES: SOBRE COMUNICAÇÃO
E COMUNIDADE .................................................................................................................. 25
Nota Introdutória ao capítulo ..................................................................................... 25
1 A Comunicação: o “agir em comum” ............................................................................ 25
1.1 A Communicatio: o diálogo como laço coesivo da comunidade............................. 29
2 Comunidade nos Clássicos e seu entendimento na atualidade ....................................... 33
CAPÍTULO II – O EMPODERAMENTO DA COMUNICAÇÃO: DO DIREITO
GARANTIDO À ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DA
PARTICIPAÇÃO POPULAR ............................................................................................... 40
Nota Introdutória ao Capítulo ................................................................................... 40
1 Direito à comunicação: o poder de construir pensamentos, plurais e autônomos.......... 40
2 A participação popular na comunicação: o exercício da cidadania ............................... 46
CAPÍTULO III – QUILOMBO CARRAPATOS DA TABATINGA: 300 ANOS DE
RESISTÊNCIA ....................................................................................................................... 49
Nota Introdutória ao Capítulo ................................................................................... 49
1 Quilombo: a materialização da resistência negra e a importância da territorialização .. 49
2 Os quilombolas de Bom Despacho: a história marcada por luta desde a origem .......... 58
2.1 O Direito Constitucional dos remanescentes quilombolas à territoriedade ............. 60
2.2 A desigualdade social abarcada pelo preconceito racial ......................................... 62
2.3 A gestão e os processos de comunicação da comunidade ....................................... 64
2.4 O Congado: a força comunicante das matrizes africanas ........................................ 71
2.5 Chico Rei ................................................................................................................. 75
2.6 Missa Conga ............................................................................................................ 76
2.7 A Festa de Nossa Senhora do Rosário em Bom Despacho e suas Cortes do Reinado80
2.8 A Festa de São Benedito: a expressão comunicante dos quilombolas da Tabatinga84
2.9 Canjerê: 1º Festival da Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais ................ 97
3 A práxis da comunicação comunitária para além dos meios ....................................... 100
3.1 A participação da comunidade nos meios de comunicação de Bom Despacho .... 104
3.2 A comunidade conectada ao Facebook e YouTube ............................................... 106
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 108
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 115
12
INTRODUÇÃO
Os quilombos foram construídos como uma unidade básica de resistência do negro
contra as condições de vida impostas pelo sistema escravista. Hoje, os quilombos constituem
um legado material e imaterial de resistência com os quais os quilombolas desenvolvem e
reproduzem modos de vida característicos num determinado lugar, organizados em forma de
comunidades espalhadas pelo Brasil.
Na Constituição Federal de 1988, foi assegurado às comunidades remanescentes de
quilombos o direito às terras por eles ocupadas, devendo o Estado atuar na titularização das
mesmas. Do direito conquistado pelo movimento negro surge a identidade política do
quilombola. Muitas comunidades, até então em geral ditas como “comunidades negras” ou
que habitavam as chamadas “terras de preto” passam a se assumir quilombolas.
Diante deste fenômeno houve uma ressemantização do conceito de quilombo,
ampliando-o, propiciando que um número crescente de comunidades negras passasse a se
autodeterminar pertencentes a uma comunidade de remanescentes quilombolas com
possibilidades políticas. Iniciou-se a necessidade de uma participação mais ativa das
comunidades quilombolas em busca de seus direitos já garantidos por lei, mas de fato a serem
alcançados na prática. Hoje umas das principais demandas sociais dos remanescentes
quilombolas, entre outras, é de fato ter os territórios quilombolas legalizados em forma de
propriedade para suas comunidades espalhadas por todo Brasil.
Desta forma, as comunidades negras passaram a reafirmar sua identidade, baseada no
resgate do conceito de “quilombo”, com o aparecimento de atores sociais coletivos,
ampliando e renovando o modo de ver e viver a identidade negra, pensando coletivamente em
seus direitos civis bem como nos sociais com uma cidadania mais participativa, lutando para
extinguir sua “invisibilidade social”.
Gostaria de lembrar a existência de mais 3.000 comunidades quilombolas no Brasil,
dado oficial segundo o INCRA1, com demandas sociais semelhantes. As reivindicações vão
desde o direito que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o artigo 682, da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, até as lutas cotidianas: contra o
preconceito da sociedade local onde as comunidades quilombolas estão presentes, a luta por
1Informação de acordo com o site oficial do INCRA ver em: http://www.incra.gov.br/quilombola
2 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.ht
13
fomentos públicos para manter viva a cultura quilombola - língua, danças, eventos religiosos -
e as condições de infraestrutura das terras quilombolas como: escola, saúde e saneamento
básico.
Possibilitar que estas muitas vozes de brasileiros esquecidos e silenciados a mais de
300 anos, que tanto contribuíram para formação socioeconômica do Brasil, diga-se com muita
dor e lágrimas, sejam ouvidas pela sociedade brasileira e avancem em suas reivindicações.
Fato curioso é que muitas pessoas, inclusive participes do meio acadêmico, se quer sabiam da
existência da lei para os remanescentes quilombolas, imaginei o restante da população
brasileira... É urgente a discussão e a divulgação por meio da comunicação, sem interferência
e interesses econômicos, como muitas vezes ocorre na grande mídia sobre as questões dos
povos tradicionais quilombolas, incluindo os indígenas, num país que ainda permanecem
práticas sócio econômicas e políticas sob a égide do colonialismo: latifúndios, exclusão étnica
e outras barbáries de cunho preconceituoso e classista.
As comunidades quilombolas são organizadas, porém com pouca participação nos
meios de comunicação tradicionais, bem como nos comunitários locais. Tive acesso aos
conteúdos jornalísticos sobre os quilombolas na revisão documental em 2014 e constatei que
eles versam, na sua maioria, sobre temas históricos, antropológicos e até mesmo exóticos
sobre o modo de vida destas comunidades, entretanto pouco se fala sobre as demandas sociais
dos quilombolas.
Gerou-se uma reflexão sobre o avanço das conquistas das comunidades quilombolas:
se eles não se manifestarem além dos muros das comunidades, visando ampliar alcance ao
público, as suas demandas sociais serão ouvidas? Terão possibilidade de ampliarem sua
cidadania?
Como diz a autora Cicília Peruzzo (2005, p.33):
O uso dos meios de comunicação pelo cidadão e suas organizações
representativas significa um passo no exercício do direito a isegoria, quer
dizer o direito de se manifestar e ser ouvido. Como ser ouvido por amplos
públicos, se não através da mídia?
Diante deste questionamento o objeto de estudo da pesquisa será a comunidade dos
quilombolas Carrapatos da Tabatinga, localizada na cidade de Bom Despacho, no centro-
oeste do Estado de Minas Gerais. É uma comunidade urbana composta por aproximadamente
500 pessoas, organizada desde 2006 pela Associação Quilombola Carrapatos da Tabatinga. A
comunidade é formada por membros com laços sanguíneos e ancestralidade negra, de origem
africana e escrava. Os elementos de formação da comunidade da Tabatinga em Bom
14
Despacho estão presentes nos dias de hoje, e se concentram em sua territoriedade físico-
simbólico no bairro periférico Ana Rosa (antigo bairro da Tabatinga) sendo possível um
estudo dos processos da comunicação comunitária.
A pergunta central da pesquisa é: quais são as práticas e meios de comunicação
comunitária desenvolvidos no quilombo dos Carrapatos da Tabatinga com alcance na
sociedade local?
A pesquisa bibliográfica inicial sobre os quilombolas da Tabatinga inspirou uma
hipótese a ser investigada: a comunidade dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga tem uma
comunicação comunitária que contribui para amplificar suas demandas sociais e atuar como
cidadãos na sociedade de Bom Despacho.
O objetivo geral da pesquisa é analisar como a comunicação comunitária se faz
presente na Comunidade dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga localizada na cidade de
Bom Despacho, no Estado de Minas Gerais, e os objetivos específicos são:
1. Entender os processos da comunicação comunitária compreendendo as práticas
participativas e de gestão existentes na comunidade;
2. Verificar se utilizam a comunicação como estratégia para ampliar a cidadania;
3. Verificar se há um trabalho desenvolvido nos meios de comunicação grupais ou
midiáticos de alcance comunitário ou local, amplificando as demandas sociais da
comunidade;
4. Estudar as contribuições que a comunicação comunitária pode proporcionar para a
comunidade quilombola e para a sociedade local de Bom Despacho;
5. Verificar a aceitação da Comunidade Quilombola Carrapatos da Tabatinga pela
sociedade de Bom Despacho.
Para atender aos objetivos da pesquisa utilizou-se como metodologia na primeira
etapa a pesquisa bibliográfica para a construção do marco teórico, na segunda etapa o estudo
empírico por meio do estudo etnográfico com apoio de observação participante. E finalmente
como técnica complementar de coleta de dados a entrevista semiestruturada.
15
De acordo com Luna (1998) a pesquisa bibliográfica abrange: publicações avulsas,
livros, jornais, revistas, vídeos, internet, etc. Esse levantamento foi importante tanto para os
estudos baseados em dados originais, colhidos numa pesquisa de campo, como para aqueles
inteiramente baseados em documentos.
A pesquisa bibliográfica constituiu em leitura e análise de referências teóricas e no
confronto dessas com o material coletado. Para Lakatos e Marconi (2005, p. 185) tal pesquisa
“abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde
publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses,
dissertações, internet [...] rádio, gravações em fitas magnéticas e audiovisuais [...]”. Os
estudos empreendidos pelos autores citados nas referências bibliográficas serviram no
embasamento para a construção do marco teórico conceitual. No entanto, estaremos sempre
em movimento, quando necessário recorremos a outros autores e teorias, no intuito de fazer
um recorte da realidade estudada e dar explicações sobre a mesma.
Na segunda etapa, visando o desenvolvimento do estudo do tema proposto, utilizou-
se a metodologia da pesquisa etnográfica, sob os parâmetros do método dialético, com apoio
da observação participante no trabalho de campo.
Lapassade (1991), diz que a expressão etnografia começou a ser utilizada pelos
antropólogos para designarem o trabalho de campo, no decorrer dos quais são recolhidas
informações e materiais que servirão de objeto de uma elaboração teórica posterior.
Segundo Erick Saperas (1998, p. 163) o interesse da etnografia aplicada à pesquisa
de comunicação é formar um modelo de investigação de caráter não contextual destinado a
descrever como se produzem os atos de comunicação em distintas situações (apud
PERUZZO, 2005, p.135).
A metodologia da pesquisa etnográfica possibilitou uma investigação que na
descrição dos processos e práticas da comunicação dos quilombolas trouxe característica
singular no texto, devido à experiência participativa na comunidade como observadora,
conforme diz Oliveira (1996, p. 25), “talvez o que torne o texto etnográfico mais singular,
quando o comparamos com outros devotados à teoria social, seja a articulação que ele busca
fazer entre o trabalho de campo e a construção do texto”.
Ainda, a etnografia “é entendida como um método de pesquisa qualitativa e empírica
que apresenta características específicas” (TRAVANCAS, 2006, p. 100). Tais características
podem ser resumidas no caso do presente estudo da seguinte forma: a riqueza de detalhes que
a ida a campo proporcionou com as visitas à comunidade, a observação dos fenômenos
16
comunicacionais da realidade no lugar em que ocorrem, os eventos realizados com a
participação da comunidade dos Quilombolas dos Carrapatos da Tabatinga, os rituais nas
festas com a participação da comunidade onde se deu a comunicação com a sociedade local, o
contato próximo com o objeto de pesquisa e as interpretações e reflexões que puderam ser
feitas in loco a respeito dos processos comunicantes da comunidade.
Outro fator preponderante é que a presença no local trouxe a observação dos
comportamentos que os atores sociais, os quilombolas e a sociedade local, desenvolvem de
acordo com as situações e com os contextos em que estão envolvidos. As suas interpretações
diante das conversações apareceram em meio às múltiplas vozes e aos significados que
atribuem às diferentes situações sociais. Foram analisados os fenômenos comunicacionais
levando em consideração a realidade social da comunidade quilombola na atualidade e sua
relação com a sociedade local, principalmente em relação à verificação do convívio social, e
como se dá essa relação in loco.
Utilizou-se a observação participante como um pressuposto da investigação
etnográfica para estudar o sistema de gestão da comunicação comunitária dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga, e os mecanismos de participação popular nos veículos de
comunicação local da cidade de Bom Despacho. Sempre observando o que Cicília Peruzzo
(2005, p.136) cita: “Há que se dizer ainda que toda investigação etnográfica pressupõe a
observação participante, mas que nem toda observação participante é etnográfica”. Portanto,
utilizou-se para apoiar a pesquisa de campo do estudo etnográfico proposto com o foco nas
questões acima citadas.
A proximidade, por meio da inserção como observadora no ambiente quilombola,
auxiliou na interpretação das situações levando em consideração o modo como os próprios
integrantes da comunidade vivenciam suas experiências comunicantes.
A observação participante - ou investigação etnográfica - realizada com a
finalidade de observar comportamentos das pessoas em relação aos meios de
comunicação pressupõe a inserção do pesquisador no ambiente investigado
(uma família, uma gangue, um grupo profissional, uma comunidade etc.) e
em geral, objetiva observar como se processa a recepção das mensagens dos
mass media, como elas são entendidas, decodificadas e reelaboradas. Pode
também ter a finalidade de observar os processos comunicativos
interpessoais, grupais ou comunitários, envolvendo os meios massivos ou
outros processos de comunicação, como os grupais, e meios alternativos de
comunicação (PERUZZO, 2005, p. 136).
17
Observou-se as seguintes situações:
a) A gestão e os processos de comunicação interpessoal da comunidade nas
reuniões e decisões de participações em atividades culturais e políticas;
b) As atividades culturais que a comunidade Carrapatos da Tabatinga produz
envolvendo todas as gerações da comunidade, foi observada a participação no
Canjerê 1º Festival da Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais em
novembro de 2015, em Belo Horizonte, com as demais comunidades
quilombolas e indígenas do Estado de Minas Gerais.
c) No mês de abril de 2016 foi realizada a festa de São Benedito na cidade de Bom
Despacho, e a comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga tem participação
ativa com a apresentação do congado realizado pela Guarda Moçambique de São
Sebastião pelas ruas da cidade, momento de encontro com a sociedade local.
Houve a possibilidade de observar como essa comunicação se deu por meio da
manifestação cultural e religiosa;
d) Os possíveis espaços da comunidade nos meios de comunicação local, rádio e
mídia impressa, e como é realizada esta participação.
A observação participante foi realizada durante seis meses, não foi uma permanência
direta, houve participação em determinadas atividades no período de outubro de 2015 a abril
de 2016. O tempo foi suficiente para que a investigação em campo fosse realizada sem
prejuízos para os objetivos do estudo. De acordo com Cicília Peruzzo, (2005, p.143):
Não existe um tempo ideal que possa ser prefixado. Dependerá do tipo de objeto, de quão rápida, ou demoradamente ele se revela ao investigador, das condições em que os mecanismos internos do “objeto” se dão a conhecer ao pesquisador e da capacidade deste em captar suas manifestações explícitas e implícitas. Mas é obvio que o tempo não pode ser curto demais. Poderá ser de meses, um ano ou mais.
O papel de pesquisadora foi desempenhado somente como observadora, não houve
participação como membro da comunidade, ou seja, foi revelada para os Quilombolas
Carrapatos da Tabatinga. A autonomia foi plena, o grupo ou qualquer elemento do ambiente
não interferiu na pesquisa no tocante a formulação dos objetivos e demais fases do projeto,
18
nem no tipo de informação registrada e nas interpretações dadas ao que fora observado.
Utilizou-se como técnica complementar de coleta de dados a entrevista no formato
semiestruturado. Autores como Triviños (1987) e Manzini (1990, 1991, 2003) trazem em suas
publicações definições que caracterizam a entrevista semiestruturada.
Para Triviños (1987, p. 146) a entrevista semiestruturada tem como característica
questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema
da pesquisa, e que o foco principal é colocado pelo investigador-entrevistador. Complementa
o autor, afirmando que a entrevista semiestruturada “[...] favorece não só a descrição dos
fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]” além
de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de
informações (TRIVIÑOS, 1987, p. 152).
Para Manzini (1990, 1991, 2003, p. 154), a entrevista semiestruturada está focalizada
em um assunto sobre o qual confeccionamos um roteiro com perguntas principais,
complementadas por outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista.
Para o autor, esse tipo de entrevista pode fazer emergir informações de forma mais livre e as
respostas não estão condicionadas a uma padronização de alternativas.
Um ponto semelhante para ambos os autores, se refere à necessidade de perguntas
básicas e principais para atingir o objetivo da pesquisa. Dessa forma, Manzini (2003) salienta
que é possível um planejamento da coleta de informações por meio da elaboração de um
roteiro com perguntas que atinjam os objetivos pretendidos. O roteiro serviria, então, além de
coletar as informações básicas, como um meio para o pesquisador se organizar para o
processo de interação com o informante.
Partindo do pressuposto de que uma boa entrevista começa com a formulação de
perguntas básicas, que deverão atingir o objetivo de pesquisa, é possível fazer uma análise do
roteiro para identificar a sua adequação em termos de linguagem, estrutura e sequência das
perguntas no roteiro (MANZINI, 2003).
A entrevista semiestruturada foi realizada com um roteiro preparado previamente,
com a utilização de perguntas descritivas e aplicadas no trabalho, objetivando atingir com
clareza as descrições da comunidade para descobrir os significados dos comportamentos dos
seus membros no seu meio cultural, bem como a relação com a sua ancestralidade, território
real e simbólico e a sociedade local (TRIVIÑOS, 1987, p. 151).
Utilizou-se os dados coletados das entrevistas com os líderes comunitários
quilombolas, e com alguns atores da sociedade local de Bom Despacho com o objetivo de
entender a relação comunicante:
19
a) Interpessoal dos membros da comunidade com sua identidade quilombola e suas
demandas sociais;
b) Da comunidade com a sociedade local de Bom Despacho, como se dá essa
comunicação na percepção dos quilombolas;
c) Dos meios de comunicação da cidade com a comunidade quilombola: os jornais
locais e a rádio comunitária de Bom Despacho.
As líderes da comunidade entrevistadas foram: Sandra Andrade e Dona Tiana. A
escolha de Sandra Andrade foi pelo seu envolvimento ativo na liderança não só da
comunidade Carrapatos da Tabatinga, a qual faz parte, mas também pelo fato de ser
presidente da Federação dos Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´GOLO. Está
diretamente envolvida nas políticas públicas relacionadas às demandas sociais dos
quilombolas em todas as esferas públicas. Tem participação ativa nos eventos e mobilizações
das demais comunidades do Estado e Nacionais, é reconhecida no Planalto Central em
Brasília por sua participação ativa nas audiências públicas no Ministério do Desenvolvimento
Social e Agrário, Secretária Nacional de Assistência Social, e na Secretária de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial. As entrevistas concedidas por Sandra Andrade foram
relevantes para a presente pesquisa no tocante ao conhecimento sobre as demandas sociais
dos quilombolas, as políticas públicas já realizadas e as não realizadas e o que ainda está em
curso. Foi importante para entender como são elaborados os processos comunicacionais entre
os membros das comunidades quilombola da Tabatinga, e se há participação nas discussões
políticas, bem como eram feitas as divulgações das políticas públicas para a comunidade.
Realizei uma entrevista com a líder comunitária Dona Tiana de 83 anos de idade, que
tem uma vitalidade ímpar e exerce uma liderança ativa na comunidade. A entrevista foi
fundamental para entender os processos comunicacionais entre os membros da comunidade
da Tabatinga e com a sociedade local. Foram momentos de muito aprendizado sobre as
matrizes africanas, a identidade quilombola e o que ela representa para os negros da
comunidade. Relatou a importância de reverenciar e homenagear os ancestrais escravos, pois
são símbolos de resistência e luta, e servem para motivar as lutas atuais contra o preconceito e
desigualdade social. Explicou a participação nos eventos religiosos e seus significados.
As entrevistas com a liderança da comunidade foram realizadas com facilidade, cito
os nomes reais das entrevistadas, pois foram autorizados. No decorrer do trabalho de campo
20
houve a tentativa de agendar mais uma entrevista com Sandra Andrade, mas devido ao
momento político do Brasil no início de 2016, a líder comunitária teve que priorizar a agenda
em Brasília e não pode atender à solicitação. As informações foram coletadas por e-mail,
assim não houve impacto no desenvolvimento do estudo.
Realizei também uma entrevista com a secretária de Cultura do Município de Bom
Despacho a Sra. Tânia Maria Teixeira Nakamura, para entender a relação do poder público
municipal com a comunidade dos quilombolas, principalmente nas atividades culturais da
cidade.
A secretária da Cultura do Município de Bom Despacho organiza os eventos na
cidade que tem a participação da sociedade local e da comunidade quilombola de Bom
Despacho. Não houve dificuldade em realizar a entrevista, a secretária atendeu prontamente a
solicitação e autorizou a publicação de seu nome no estudo. A secretária da Cultura relatou a
importância da comunidade quilombola da Tabatinga como patrimônio histórico de Bom
Despacho e falou sobre as verbas para os eventos culturais.
Não foi possível realizar a entrevista com os responsáveis pela rádio Ativa 87,9 FM,
dita comunitária, bem como não foi possível se quer confirmar a informação se a rádio era ou
não comunitária. Foram realizadas várias tentativas para agendar a entrevista com os
responsáveis, entretanto, não retornavam as solicitações. As informações que constam no
estudo sobre a participação da comunidade nos meios de comunicação em Bom Despacho
foram relatadas em entrevista por Dona Tiana. A entrevista com a rádio Ativa FM 87,9 era
significante para o estudo, porque seria uma forma de investigar se há um trabalho nos meios
de comunicação grupal ou midiático com alcance comunitário, ampliando as demandas
sociais da comunidade quilombola em Bom Despacho. Infelizmente não foi possível ouvir os
responsáveis da rádio. Mas o estudo não foi prejudicado, os depoimentos de Dona Tiana em
entrevistas foram suficientes para o desenvolvimento da investigação.
Não foi possível realizar entrevista com o padre Cristiano Caetano Leal da Paróquia
de Nossa Senhora do Rosário. Foram inúmeras tentativas, mas o Padre Cristiano sempre
estava sem horário em sua agenda, ora estava em Belo Horizonte, ora em Bom Despacho em
reunião. A versão dos fatos que envolve o Padre Cristiano e a comunidade dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga foi descrita no presente estudo mediante informações geradas nas
entrevistas com Dona Tiana e a Secretária de Cultura de Bom Despacho Sra. Tânia Maria
Teixeira Nakamura. Talvez a pesquisa ficasse mais completa se tivesse o depoimento do
padre Cristiano, entretanto a sua falta não prejudicou a conclusão do estudo. Ressalto que o
padre poderia detalhar bastante a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Foram utilizados os
21
depoimentos das entrevistas realizadas com Dona Tiana e Sra. Tania, juntamente com o
material documental disponível online para complementar as informações sobre a Festa.
A paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho me atendeu prontamente por meio
da sua secretária, forneceu material sobre a Festa de São Benedito e até ofereceu um horário
com o Padre José Raimundo da Costa, responsável pela realização da festa, mas não houve
necessidade de realizar a entrevista, pois o material fornecido e as informações da secretária
foram suficientes para o estudo. A única observação da paróquia de Nossa Senhora do Bom
Despacho foi dizer que não daria depoimento sobre a questão da festa de Nossa Senhora do
Rosário, pois esta era de responsabilidade e administração do Padre Cristiano Caetano Leal.
A pesquisa documental complementou os dados coletados nas entrevistas
semiestruturadas. Segundo Triviños (1990, p. 51):
A pesquisa documental assemelha-se muito à pesquisa bibliográfica. A diferença essencial entre ambas está na natureza das fontes. Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições dos diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos de pesquisa.
A pesquisa documental foi realizada com materiais coletados em documentações
válidas, conforme a definição de Chizzotti (2001, p. 11): “Documentação é toda informação
sistemática, comunicada de forma oral, escrita, visual ou gestual, fixada em um suporte
material, como fonte durável de comunicação”. Foram coletados materiais disponíveis em
fontes como: sites oficiais governamentais, documentários e transcrições orais realizadas em
Institutos de pesquisa.
Os principais sites oficiais governamentais utilizados na pesquisa documental foram
do Governo Federal e Municipal de Bom Despacho: Fundação Cultural Palmares, Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Ministério do Desenvolvimento
Social e Agrário, Secretária Nacional de Assistência Social, Secretária de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e Câmara Municipal de Bom Despacho. E uma fonte
importante para a pesquisa documental foi a utilização do documentário “A Filha de São
Sebastião” realizado pela produtora Caturra Digital Filmes (2013), disponível em versão
online no You Tube. O roteiro traz a trajetória da comunidade com depoimentos significativos
de Dona Tiana e membros da comunidade, bem como apresenta a festa de São Benedito com
detalhe, o documentário foi importante para o estudo. Foram utilizadas outras fontes para a
pesquisa documental para atender os demais objetivos de pesquisa, necessárias à medida do
22
surgimento de fatos novos.
Encontram-se citadas nas notas de rodapé e referências bibliográficas dessa
dissertação.
O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo - (CEP-
Metodista) avaliou o projeto de pesquisa e seus riscos, por envolver seres humanos, e aprovou
a metodologia proposta no trabalho, autorizando a realização da presente pesquisa.
A escolha do tema e da pesquisa se justifica, pois não há nenhuma dissertação ou
tese sobre a comunicação comunitária dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, conforme
pesquisa prévia realizada em maio de 2014, portanto o tema é inédito.
O estudo da comunicação comunitária talvez deixe um ganho social para a
comunidade, uma vez entendida a importância da sua prática e gestão, poderão explicitar suas
demandas sociais por meio dos meios de comunicação e possivelmente avançar nas suas
reivindicações.
Existem mais de 3.000 comunidades quilombolas no Brasil, dado oficial segundo o
INCRA, conforme já foi citado anteriormente, com demandas sociais semelhantes aos dos
Carrapatos da Tabatinga, que poderão utilizar a presente pesquisa para desenvolver a
comunicação comunitária em suas comunidades, e possivelmente, avançar nas suas demandas
sociais, ampliando o exercício da cidadania, principalmente o da isegoria que é o direito de
falar e ser ouvido.
O campo da Comunicação Social tem como um dos objetivos “[...] realizar pesquisas
que possam contribuir com a sociedade, especialmente para solucionar graves problemas
provenientes das contradições de classe para promover a mudança social” (PERUZZO, 2005,
p. 131).
E assim me coloquei para a execução desta pesquisa.
No primeiro capítulo “Conceitos, teorias e reflexões: sobre comunicação e
comunidades” há uma reflexão sobre a compreensão da Comunicação, e propõe um olhar
além do modelo sociológico e linguístico que a define como processo transmissor de
informação, em favor do entendimento ético-político da comunicação, como conexão ou
organização originária do comum, o laço coesivo da comunidade. A communicatio como
referência ao diálogo estrutural base para o “agir em comum” nas comunidades e como
amplificador da participação cidadã. Propõe a reflexão do resgate filosófico, ético e político
da potência reflexiva do campo comunicacional, do qual se produz grandes ideias capazes de
reorientar o pensamento social.
23
São abordadas as teorias clássicas sobre comunidades e seu entendimento na
contemporaneidade, pois foram revistas em decorrência do avanço tecnológico e das
alterações no modo de vida. Veremos que apesar das alterações, muitos dos princípios
desenvolvidos pelos clássicos preservam grande validade até os dias atuais.
O capítulo faz reflexão sobre fortalecimento de identidade dos membros das
comunidades e sua construção, que podem nascer da intenção em manter o status quo, ou de
resistir aos processos dominantes e às efemeridades do mundo globalizado, ou ainda de
buscar a transformação da estrutura social. É abordado o espírito de comunidade presente na
atualidade nas mobilizações populares, que muito embora tenham sofrido modificações
devido a influências das evoluções tecnológicas e do modo de vida moderno, ainda preservam
o sentimento de pertença que é um dos identificadores da existência das comunidades, os
objetos comuns que são as demandas sociais de um grupo, e o diálogo em prol das discussões
para o encaminhamento das decisões coletivas visando o bem comum da comunidade.
É apresentada uma breve explanação sobre a comunidade quilombola no Brasil, sua
formação e sua continuidade como um símbolo de resistência. Relata como os negros
remanescentes quilombolas se organizam atualmente em comunidades, e resistem por meio
dos laços comunitários, e lutam pelas suas demandas sociais tão urgentes quanto nos tempos
da escravidão e pós-escravidão. Para entender um pouco a formação utilizou-se uma
interpretação do início do século sobre a representação dos quilombos no Brasil.
Os quilombos no Brasil já foram objetos de dissertações e teses de vários estudos e
ainda percebe-se, segundo bibliografia visitada, que devido a um quadro histórico amplo,
apresenta várias possibilidades interpretativas do fenômeno. Como o objeto da pesquisa é a
comunicação comunitária, o texto trará uma breve explanação com o objetivo de entender
como se formaram e permanecem até os dias de hoje.
No segundo capítulo “O Empoderamento da comunicação: do Direito garantido à
estratégia de ampliação da cidadania por meio da participação popular” é apresentada a
comunicação como um direito garantido juridicamente, mas também se faz uma reflexão
sobre além do direito legítimo: o do empoderamento da comunicação como instrumento para
ampliação da cidadania. É relatada a importância da comunicação comunitária na mobilização
popular, que poderá proporcionar maior visibilidade sobre as demandas sociais, e traz também
o “fazer comunicação” como possibilidade de educar por meio da produção dos conteúdos
comunicacionais. É proposta uma reflexão sobre o “fazer comunicativo” como uma das
formas de exercício de cidadania, incentivando a construção de pensamentos críticos. É
24
apresentada a comunicação comunitária como possibilidade para a participação popular,
possibilitando os membros da comunidade atuarem como: produtores de conteúdo, ouvintes,
leitores ou expectadores da própria história comunicada.
O terceiro Capítulo “Os Quilombolas Carrapatos da Tabatinga: 300 anos de
resistência” apresenta a origem da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, suas
lutas pelas demandas sociais que vão desde as reivindicações, de Direito já constituídos, mas
de Fato não, das terras dos remanescentes quilombolas, perpassando pela desigualdade social
abarcada pelo preconceito racial. São relatados os processos comunicacionais estabelecidos
entre os membros da comunidade, e suas atividades em eventos culturais e participações em
esferas políticas.
Há uma descrição sobre as forças comunicantes da comunidade com a sociedade
local por meio da devoção a Nossa Senhora do Rosário e a participação na Festa de São
Benedito com seu Congado. É realizada uma análise dos meios de comunicação comunitária
existentes na cidade de Bom Despacho e como se dá a relação comunicante da comunidade
quilombola nas medias existentes.
25
CAPÍTULO I – CONCEITOS, TEORIAS E REFLEXÕES: SOBRE COMUNICAÇÃO
E COMUNIDADE
Nota Introdutória ao capítulo
O presente capítulo faz reflexão sobre a compreensão da Comunicação e propõe um
olhar além do modelo sociológico e linguístico que a define como processo transmissor de
informação, em favor do entendimento ético-político da comunicação, como conexão ou
organização originária do comum, o laço coesivo da comunidade. Abordaremos as teorias
clássicas sobre comunidades e seu entendimento na contemporaneidade. Há uma breve
explanação sobre os Quilombos no Brasil como um símbolo de resistência, e como os negros
remanescentes quilombolas se organizam nos dias de hoje em comunidades.
1 A Comunicação: o “agir em comum”
A reflexão sobre a palavra comunicação é necessário porque atualmente, ou melhor,
a partir do século XX, atribuiu-se vários significados a ela, desde o ato da fala como troca de
informação, até seu uso na venda de objetos e serviços por meio da comunicação publicitária,
e muito associada também às mensagens informacionais enviadas através dos dispositivos
tecnológicos.
O distanciamento do significado original da palavra comunicação pode gerar
consequências sociais e acadêmicas relevantes quando há o esvaziamento do sentido maior da
palavra. Pode trazer ao significado nominal um empobrecimento no seu valor, e que não seja
mais capaz de constituir um saber, um conhecimento ou de provocar transformações sociais
como ocorreu nos séculos anteriores.
Originariamente, comunicar – “agir em comum” ou “deixar agir o comum” –
significa vincular, relacionar, concatenar, organizar ou deixar-se organizar pela dimensão
constituinte, intensiva que é viver, se relacionar com o mundo. Os seres humanos enquanto
espécie são comunicantes, não porque falam, porque se relacionam ou se organizam em
mediações simbólicas, de modo consciente ou inconsciente, em função de um comum
partilhado no espaço em que vive seja com o outro ou com as forças naturais.
Ressalta-se que esta convivência a partir do século XX foi impregnada com a
crescente cultura do consumo e os próprios dicionários embarcados nessa onda, apoiados
pelos norte-americanos através da publicidade, começaram a fazer referência a palavra
comunicação como mera transmissão de uma “coisa comunicada”.
26
Como cita Muniz Sodré (2014, p.14):
Entende-se assim como o termo comunicação – oriundo do latim communicatio/communicare com o sentido principal de “partilha”, “participar de algo” ou “pôr-se em comum” – pode terminar criando, no século XX, uma realidade própria a partir de sua antiga expansão do sentido de “coisa comunicada” (reforçada no inglês communication) com o concurso das técnicas de transmissão de informação e da publicidade. O foco na interação, que é uma instância inerente à partilha comunicacional, terminou sobrevalendo o significado de transmissão de mensagens.
Este tipo de entendimento é reforçado quando nos deparamos com o avanço da
tecnologia da comunicação e da informação, nos EUA e na Europa, é uma tendência os
acadêmicos destes países tratarem de referenciar o significado da comunicação como
transmissão de signos.
O significado “transmissão” em comunicação nos leva para o entendimento de
“comunicar uma notícia”, mas o seu entendimento cristalizado na contemporaneidade é
provavelmente da potência, até mesmo econômica, da palavra informação, ou seja, o fluxo de
dados que trafega de um pólo ao outro.
Continuando o fluxo da análise, sim porque foram inúmeras as consequências do
distanciamento da origem da palavra comunicação no século XX. Hoje o termo mídia muitas
vezes resume a diversidade dos dispositivos tecnológicos de informação. Embora comunicar
não seja realmente o mesmo que informar, a pretensão ideológica do sistema midiático é
atingir, por meio da informação, o horizonte humano da troca dialógica supostamente contida
na comunicação.
De fato, embora a ideia original de communicatio nada diga realmente sobre
transmissão de informações ou de mensagens, como vimos na citação de Sodré (2014), este
significado, determinado até mesmo pelos dicionários de línguas ocidentais, acabou impondo-
se sobre o sentido original transformador da “ação comum”.
Vemos também o reflexo na sociologia moderna, os estudos das relações sociais são
feitos no vago quadro teórico do par “comunicação/informação”, que é apenas outro nome
para a comunicação moderna, dita também “midiatizada”. Assim a comunicação/Informação
terminou sustentando noções de cunho civilizatório como “sociedade da informação” ou “era
da informação”. No âmbito desses efeitos socialmente valorizados, uma abordagem realista
da questão poderia, entretanto, conduzir ao seguinte raciocínio: não importa realmente saber o
que é comunicação/informação e sim, conhecer seus usos, sociotécnicas que disso se fazem
na vida contemporânea. Neste ponto vem inevitavelmente a seguinte reflexão: se
comunicação é a ação comum, precisa haver ação de todos os atores envolvidos, se não
27
participo então só replico a comunicação/informação quando faço o uso sóciotécnico? Eis a
reflexão. Este é um entendimento aceitável pelo senso comum dos públicos imersos no que se
tem chamado de “cultura das mídias” ou no consumo dos dispositivos técnicos continuamente
despejados no mercado pela indústria eletrônica, dos quais se aposta de forma otimista.
Entretanto, se faz necessário uma redefinição, ou renovação dos mecanismos
democráticos do acesso a comunicação/informação, todos concordam sobre a falta de
neutralidade da rede, as questões éticas que devem ser observadas na produção e o uso destas
informações. Cito a questão da cidadania que vai “além” dos parâmetros econômicos,
jurídicos, políticos e sociais.
No sentido puro da palavra é escolher/decidir por uma comunicação/informação que
visa o comum, não a imposta por um mercado global da financeirização da
informação/comunicação. A participação na comunicação é fundamental para o exercício da
cidadania, e quando alguns conglomerados detêm grandes bancos de dados despejando e
coletando informações, no mínimo é prudente desconfiar das intenções, muitas vezes
financistas de circular esta comunicação/informação.
Nesse caso, a pergunta “o que é comunicação” não pode ser desprezada, pois é
necessário “o certo ponto” de partida para uma orientação existencial frente ao poder da dita
comunicação/informação.
Não é secundário, portanto, a pergunta sobre o que significa realmente comunicação,
ainda mais quando se acompanha Wittgenstein na suposição que toda interrogação de
natureza filosófica diz respeito ao significado das palavras: “[...] as palavras da linguagem
denominam objetos – frases são ligações de tais denominações” (WITTGENSTEIN, 1999, p.
27).
Pode-se citar como algo semelhante que tem registro na história do pensamento
Marxiano, quando este no processo de definição dialética do capital distingue o capital em
geral de categorias como valor, trabalho, dinheiro, preço, circulação etc. Distingue a
determinação, sendo necessário: “[...] fixar a forma determinada na qual o capital é posto num
certo ponto” (MARX, 2011, p.37).
Este “certo ponto” que devemos sobrevir agora no campo comunicacional, no qual
os signos, os discursos, os instrumentos e os dispositivos técnicos são os pressupostos do
processo de formação de uma forma nova de socializar, de um novo ecossistema existencial
em que a comunicação equivale a um modo geral de organização. Como um mundo de
sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a nova ordem sociotécnica fixa-se
no ponto histórico do aqui e agora, não como índice de um novo modo de produção
28
econômico, mas como a continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da
mercantilização iniciada pelo capitalismo no início da Modernidade ocidental.
No necessário rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação/informação revela-se
como principal forma organizativa.
Acentuarei o “revelar-se” porque comunicação significa de fato em sua radicalidade,
o fazer organizativo das mediações imprescindíveis ao comum humano, a resolução
aproximativa das diferenças pertinentes em formas simbólicas. As coisas, as diferenças
aproximam-se como entidades comunicantes porque se encadeiam no vínculo originário
estabelecido pelo símbolo.
Não entenda símbolo como figura de linguagem, mas como trabalho de relacionar,
concatenar ou pôr em formas comuns separadas, ao modo de um equivalente geral,
energeticamente investido de valor, ou seja, como originárias mediações simbólicas que se
desdobram em economia, parentesco, política e linguagem.
As forças vivas desse comum podem ser aprendidas como palavras, gestos, sinais ou
acolhidas como informação e suscetíveis de avaliações quantitativas (a informação técnica é
uma espécie de moeda corrente), mas a comunicação não se define por elas: a actiocommunis
é a dimensão simbólica, condição de possibilidade das trocas vitais, entre as quais
naturalmente, o sistema de diferenças e substituições dos signos linguísticos estão presentes e
são percebidos e sentidos.
Essa movimentação e essa reorganização, acionadas pela velocidade das ondas
eletromagnéticas, apontam para o cerne da questão comunicacional. Os fenômenos de trocas
discursivas ou de transformações na mídia, habitualmente tratados como marco regulatório do
campo comunicacional, apresentam-se como sintomas importantes, mas não como a
objetivação científica do problema da comunicação, porque são apenas resultantes
sociotécnicas da utilização e replicação de comunicação/informação através dos dispositivos
eletrônicos.
Sabe-se que os avanços tecnológicos são processos de um caminho sem volta, e
penso que seja um consenso seu desenvolvimento, inclusive para facilitar a vida cotidiana.
Ela tem um importante papel na questão da melhoria dos equipamentos na área da saúde, uma
pena que seja para poucos.
Imputar a estas tecnologias características da communicatio é querer substituir as
trocas simbólicas que vão além da linguagem, formadas por diferentes experiências de vida
somada a convivência com os outros no “pôr-se em comum”, seria abrir mão da capacidade
comunicante que somos compostos, para simplesmente reproduzir comunicação/informações.
29
Muitas vezes recheadas de intenções, no mínimo duvidosas, onde o caráter financista
se faz presente na sociedade capitalista que vivemos.
Talvez o exercício da cidadania seja prejudicado uma vez que os guardiões destas
informações são os grandes “big date” gestados na maioria das vezes por países ricos, que de
certa forma continuam ditando o que consumimos de comunicação/informação.
A questão tecnológica seria no caso um estudo secundário, o primário seria o estudo
do que fora partilhado em comum na comunicação, e o que potencializa reais mudanças
sociais, assim como acontecera no decorrer dos séculos passados.
Como última reflexão sobre a essência da palavra comunicação, citarei Herbert de
Souza, o sociólogo Betinho “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o
mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI,
2002).
1.1 A Communicatio: o diálogo como laço coesivo da comunidade
Com vistas a uma ciência da comunicação humana, um começo estratégico é
associar à questão moderna a velha noção de communicatio (do latim ciceroniano) para
designar a coesão social sob o ângulo de uma transcendência, que é a do “diálogo” entre os
deuses e os homens. Diálogo, não como mero intercâmbio de palavras, mas como ação de
fazer ponte entre as diferenças, que concretiza a abertura da existência em todas as suas
dimensões e constitui o homem no seu espaço de habitação – portanto, diálogo como
categoria ética.
A obra de Wilden (2001) relata que na antiguidade o diálogo ritualístico entre
mortais e imortais era imprescindível, era a cola do mundo para o elevado: o espiritual, que
supostamente uniria corpo e espírito, fundando a sociedade dos homens em termos não
imediatamente visíveis, porém essencialmente éticos.
Tanto Atenas quanto Roma reservava uma data para as oferendas sacrificiais às
divindades, que os romanos denominavam dies communicarius. No contexto medieval, a
communicatio era o sistema organizativo das relações entre todos os entes, com Deus – um
Deus “comunicativo” – como princípio unificador:
Deus é a fonte de toda comunicação: como no Velho Testamento, a natureza
é entendida como um “grande livro”, no qual estão impressos os sinais de
Deus, com informações escritas que esperam ser lidas, ou seja, traduzidas
em conhecimento. A ordem dos cosmos é percebida como é porque a
intercomunicação existente entre todos os seres significa que estes cooperam
30
em simbiose no todo. Deus não é colocado num céu distante (como teria
acontecido no século XVIII), mas está “todo e totalmente” em todas as
partes do sistema, é ele quem informa (WILDEN, 2001, p. 130-131).
Mas já no século V da Era Cristã, a expressão communicatio assumiu uma inflexão
teológica, a communicatio idiomatum (comunicação das propriedades), destinada a explicar a
interação da divindade com o homem na encarnação de Cristo: os predicados crísticos,
propriamente divinos, seriam extensivos ao mundo. No século XVIII, entretanto, o importante
teólogo alemão J. Hamann (2007), antirracionalista e antikantiano, vai mais longe ao sustentar
a tese de que a communicatio se aplica não apenas a Cristo, mas toda ação humana
(HAMANN, 2007).
Hoje a expressão communicatioin sacris, ou seja, comunicação ou participação nas
coisas sagradas tem uso conciliar como acolhimento de práticas litúrgicas de cristãos com
outros não plenamente cristãos, o que cria para a expressão uma possibilidade interpretativa
no sentido da abertura para a diferença. Mas também a possibilidade de associá-la ao conceito
atual e positivo (no sentido da “ciência”) de comunicação, mesmo levando-se em conta que a
communicatio diz respeito a uma forma social antiga à “sociedade integral” descrita por
Durkheim (1895), na qual religião é imprescindível ao processo integrador.
É também possível instalar reflexivamente a communicatio no campo problemático
da comunicação moderna. Mas o que aqui deve-se levar agora em conta, por outro lado, é que
a communicatio, assim como a comunicação, não é transmissão de informação nem diálogo
verbal, e sim uma forma modeladora (organização de trocas reais) e um processo (ação) de
pôr diferenças em comum, sem que processo e ação possam ser considerados como arbitrários
(de livre escolha) por parte dos indivíduos, pois implicam a força de uma transcendência que,
na Antiguidade, era o sagrado. Isso implica também afirmar que o conceito de comunicação
não se restringe ao de prática discursiva.
Em discussão, que bem poderia ficar restrita à “cristologia”, oferece-se à
contemporânea redescrição comunicacional quando se pensa em autores capazes de
problematizar a vinculação social a partir de uma humanidade que não excluía
transcendência, seja qual for a sua denominação. Por exemplo, a denominação de espírito,
assimilado ao Verbo primordial:
O espírito não está no Eu, está na relação do Eu com o Tu. Ele não é
comparável como sangue que circula em ti, mas ao ar que tu respiras. O
homem vive em espírito quando sabe responder ao seu Tu. Ele pode fazê-lo
quando entra com todo seu ser na relação. É só em virtude de sua capacidade
de relação que o homem pode viver em espírito (BUBER, 1969, p. 70).
31
Buber (1969) inscreve-se na linha filosófica do existencialismo cristão. Mas não se
restringe a relação do homem com Deus. O seu ativismo social (ele foi também educador,
historiador da religião, sociólogo e militante político), centrado na busca de novos tipos de
laço comunitário, leva-o ao que está implícito na ideia antiga e dialógica de communicatio,
embora este vocábulo latino não conste de sua terminologia conceitual.
Seu foco na relação inter-humana faz dele um pensador do comum, (benquisto por
filósofos, antropólogos e, mesmo, teóricos da comunicação, como Vilém Flusser), conceito
que equipara ao de diálogo, entendido como relação visceral de encontro entre um Eu e um
Tu, portanto, entre singularidades. Pode-se iniciar uma pequena síntese de sua reflexão com o
conceito de “palavras-princípios”, que são pares de palavras – portanto, relações –
constitutivas da base da linguagem. O par Eu-Tu, diferente de Eu-Isso (ou Eu-Coisa), é uma
dessas bases.
“As palavras que são a base da linguagem não exprimem uma coisa que existiria fora
delas, mas uma vez ditas fundam uma existência” (BUBER, 1969, p.50-51). Antes do
encontro, nada existe. Assim, o par Eu-Tu funda o mundo da relação, ao passo que Eu-Isso
pertence ao mundo enquanto experiência.
A proposta teórica de Buber (1969) não deve ser confundida com análise de discurso.
Trata-se propriamente de uma filosofia da pessoa, em que o encontro e o diálogo fazem a
síntese do acontecimento e da eternidade, como bem assinala Bachelard: “É no reino dos
vetores, e não no reino dos pontos e centros, que é preciso colocar-se para obter um esquema
justo do buberismo. O Eu e o Tu não são pólos separáveis” (BACHELARD, G. “Prefácio”.
In: BUBER, M., 1969, p. 9). Não se pode, portanto, colocar um Tu no passado, como se faz
com uma coisa que se utilizou, uma vez que a relação Eu-Tu acontece no imediato, na
duração, em plena reciprocidade, fazendo eclodir a presença como “um ser que nos espera e
permanece”.
Para a afirmação da communicatio, é importante sublinhar no buberismo a
anterioridade fenomênica da relação apresentada como uma categoria do ser, uma disposição
de acolhimento, um continente, um molde psíquico: "o Tu inato é o a priori da relação”
(BUBER, 1969, p.50-51). Essa categoria resulta no que o autor chama de comunidade, mais
precisamente de “verdadeira comunidade”, deixando claro, entretanto, que ela não se constitui
por nenhuma livre decisão de viver em comum, nem pela efusão de livres sentimentos.
32
A verdadeira comunidade não nasce do fato de que as pessoas tenham
sentimentos umas pelas outras (embora não possa nascer isso), ela nasce
destas duas coisas: de que elas estejam todas em relação viva e recíproca
com um centro vivo e de que estejam ligadas umas às outras pelos laços de
uma viva reciprocidade. [...] A comunidade se edifica sobre a relação viva e
recíproca, mas é o centro atuante e vivo que é o verdadeiro obreiro”
(BUBER, 1969, p.74).
Vale assim, trazer de volta a reflexão de Buber (1969), para que o centro atuante
constitutivo do comum ou da vida pública não é feito de sentimentos, nem também de
instituições. Estas são uma dimensão externa, um “fora”, onde há trabalho, organização e
acontecimentos, enquanto os sentimentos são o “dentro”, a dimensão interna, onde se relaxa
da complexidade institucional, e o homem se sente realmente “em casa”.
Para Buber (1969) a finalidade da relação dual (Eu-Tu) é seu ser próprio, isto é, o
contato do Tu. Assim, “aquele que está na relação participa de uma realidade, ou seja, de um
ser que não está unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda realidade é uma eficiência
da qual eu participo sem querer me apropriar dela. Onde falta participação, não existe
realidade” (BUBER, 1969, p.97-98). Essa participação coincide com o que a sociologia e a
sócio filosofia chamam de esfera pública, isto é, o espaço de comunicação em que cada
indivíduo passa do discurso dual à relação discursiva com a massa anônima, constituindo o
comum.
Em termos grupais os gregos chamam de philia, termo cujo sentido não se limita ao
de “amizade”, pois abrange o de laço comum, traçando o círculo do convívio e significado de
partilha como vizinhança. É, portanto, o comum que “cola” a cidade (o glutinummundi dos
alquimistas) e permite ao indivíduo transpor os limites da dualidade para a comunicação com
o anônimo social, dentro da forma representativa atinente a cada comunidade particular.
Por isso, a retomada contemporânea dos debates sobre a comunidade é importante
para discussão sobre os mecanismos da coesão ou do vínculo social em face das novas formas
de sociabilidade criadas pelo capitalismo transnacional e irradiadas por dispositivos de mídia.
Essa questão aparece, por exemplo, na reflexão de Cauquelin (1982) sobre as formações
urbanas. Para ela, quando alguém se indaga sobre o que poderia ser “primeiro” na formação
das cidades, aparece como ponto de partida o “viver juntos”, cujo móbile é precisamente a
philia – não entendida como mera convenção ou acordo de um contrato social regido por leis,
mas com a predisposição à sociabilidade (CAUQUELIN, 1982).
O comum é sentido antes de ser pensado ou expressado, portanto, é algo que ancora
diretamente na existência. O homem pensa porque existe, logo, é em comum. A contra
33
tradução, que abriga o sentido da fala, se torna possível pela sensibilidade comum num lugar
próprio, regido pela communicatio, que é o outro modo – o dialógico – de dizer o que se
pensa ou quer na societas (sociedade). Isto é referir-se ao companheiro (socius) que,
pluralizado, constitui o pronome “nós” de um agrupamento humano ou da rede complexa de
relações jurídicas e políticas em que se insere o cidadão de um Estado.
2 Comunidade nos Clássicos e seu entendimento na atualidade
A teorização clássica sobre comunidade foi elaborada tendo como parâmetro as
sociedades agrárias, a partir da tribo, aldeia, família, igreja, lugar etc. As transformações nas
sociedades exigiram a atualização nos conceitos de comunidade. As noções de
“territorialidade”, “autosuficiência” e “identidade” perfeita entre os membros, por exemplo,
foram revistas em decorrência do avanço tecnológico e das alterações no modo de vida.
Mas, o que não há como negar é que a palavra comunidade evoca sensações de
solidariedade, vida em comum, independentemente de época ou de região. Hoje em dia seria
o lugar ideal onde se almejaria viver, um esconderijo dos perigos da sociedade moderna.
Como nos mostra Bauman (2003, p. 7), “‘comunidade’ produz uma sensação boa por causa
dos significados que a palavra ‘comunidade’ carrega”: é a segurança em meio à hostilidade.
Parte-se de uma constatação de Palácios (2001, p. 1) de que a “ideia ou conceito de
Comunidade, tão central na Sociologia Clássica, é uma invenção da Modernidade”. Com
esta nova forma de organização social surgem teorizações que apresentam possíveis
contraposições entre comunidade e sociedade.
Para compreender os aspectos fundamentais e essenciais do conceito, resgatou-se
alguns detalhes das contribuições teóricas de pensadores clássicos, como Weber (apud
FERNANDES, 1973, p. 140-143) para quem a comunidade é um conceito amplo que
abrange situações heterogêneas, mas que, ao mesmo tempo apoia-se em fundamentos
afetivos, emotivos e tradicionais.
O autor Werber (apud FERNANDES, 1973, p. 140), chama de comunidade “uma
relação social quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo médio ou no
tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo (afetivo ou tradicional) dos partícipes da
constituição de um todo”. Para Weber (apud FERNANDES, 1973, p. 141), assim como para
Ferdinand Tönnies, a “maioria das relações sociais participa em parte da comunidade e em
parte da sociedade”.
Weber (apud FERNANDES, 1973, p. 142-143) fala também que na comunidade os
fins são racionalmente sustentados por grande parte de seus participantes, o sentido
contrapõe-se a ideia de “luta”, participação comum em determinadas qualidades, da situação
34
ou da conduta, situação homogênea, sentimento da situação comum e de suas consequências
e mesma linguagem. Entretanto, em si, isto não implica uma comunidade.
Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento
[da situação comum], a ação está reciprocamente referida – não bastando a
ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na
medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo.
Ferdinand Tönnies (1855-1936), sociólogo alemão, membro de uma comunidade
rural, em Schlswig-Holstein, foi um dos grandes nomes que partiram em defesa da
comunidade, talvez por isso, tenha sido esquecido pelos que só tinham olhos para o progresso,
devido ao período de industrialização na Europa, contudo, sendo agora muito requisitado nas
reflexões contemporâneas a respeito do tema da Comunidade.
Além de trabalhar com as contraposições entre comunidade e sociedade, Tonnies
(apud FERNANDES, 1973, p. 104), apoia-se nas relações entre mãe e filho, entre esposos e
entre irmãos e irmãs que se reconhecem filhos da mesma mãe para explicar um tipo de
comunidade. A existência de processos comunitários estaria ligada, em primeiro lugar, aos
laços de sangue, em segundo lugar à aproximação espacial e em terceiro lugar à aproximação
espiritual. O autor Tonnies (apud FERNANDES, 1973, p. 104) ainda relaciona comunidade a
uma vontade comum, à compreensão, ao direito natural, à língua e à concórdia: “aonde quer
que os seres humanos estejam ligados de forma orgânica pela vontade e se afirmem
reciprocamente, encontra-se alguma espécie de comunidade”, ou seja, a vida em comunidade
baseia-se em relações sociais.
A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da unidade completa
das vontades humanas, de um estado primitivo e natural que, apesar de uma separação
empírica e que se conserva através desta, caracteriza-se diversamente segundo a natureza das
relações necessárias e determinadas entre os diferentes indivíduos que dependem uns dos
outros (TÖNNIES apud FERNANDES, 1973, p. 98).
Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 99) relata que a comunidade de sangue
(unidade de existência) tende a se desenvolver como comunidade de lugar (fundamentada na
habitação comum) que, consequentemente, desdobra-se em comunidade de espírito (baseada
em atividade comum). A comunidade de pensamento, que se expressa pelo conjunto
coerente de vida mental, seria para o autor a mais elevada forma de comunidade. Em outras
palavras, a base da vida comunitária estaria na comunhão de pensamento e de ideais.
Em outros termos, Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 112) considera que as
características da comunidade podem estar relacionadas a três gêneros de comunidades: a)
35
parentesco; b) vizinhança; c) amizade. O parentesco relaciona-se aos laços de sangue e à
vida comum em uma mesma casa, mas podem não se limitar à proximidade física. Este
sentimento pode existir por si mesmo com o afastamento físico, entretanto, as pessoas
sempre estarão à procura da presença física e real da família e do parentesco. A vizinhança
caracteriza-se pela vida em comum entre pessoas próximas da qual nasce um sentimento
mútuo de confiança, de favores, etc. Dificilmente se mantém sem a proximidade física. A
amizade está ligada aos laços criados nas condições de trabalho ou no modo de pensar.
Nasce das preferências entre profissionais de uma mesma área ou daqueles que partilham da
mesma fé, trabalham pela mesma causa e reconhecem-se entre si.
Nesta perspectiva, o autor parece reconhecer a existência de comunidades na vida
urbana. Inclusive, para ele, a vida urbana pode ser representada pela comunidade de
vizinhança. Trata-se da tendência de Tönnies (apud FERNANDES, 1973, p. 113) de apanhar
a comunidade sempre em relação à vida em grupos coesos e unidos por interesses em
comum.
Tentando ir além da perspectiva de Ferdinand Tönnies, Martin Buber (1987, p.33)
expressa uma visão de comunidade ideal, em que “homens maduros, já possuídos por uma
serena plenitude, sintam que não podem crescer e viver de outro modo, exceto entrando
como membros” em fluxo de doação e entrega criativa em razão de uma liberdade maior. “A
nova comunidade tem por finalidade a Vida. Não esta vida ou aquela, vidas dominadas, em
última análise, por delimitações injustificáveis, mas a vida que liberta de limites e conceitos” (BUBER, 1987, p.33). Para ele, “comunidade e Vida são uma só coisa”.
Buber (1987, p. 34) acrescenta:
A comunidade que imaginamos é somente uma expressão de transbordante anseio pela Vida em sua totalidade. Toda Vida nasce de comunidades e aspira a comunidades. A comunidade é fim e fonte de Vida. Nossos sentimentos de vida, os que nos mostram o parentesco e a comunidade de toda a vida do mundo, não podem ser exercitados totalmente a não ser em comunidade. E, em uma comunidade pura nada podemos criar que não intensifique o poder, o sentido e o valor da Vida. Vida e comunidade são os dois lados de um mesmo ser. E temos o privilégio de tomar e oferecer a ambos de modo claro: vida por anseio à vida, comunidade por anseio à comunidade.
Importante registrar ainda que, para Buber (1987, p.39), a humanidade se originou
em uma comunidade primitiva, passou pela escravidão da sociedade e “chegará a uma nova
comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base laços de sangue, mas
laços de escolha”. Neste sentido, o autor já reconhecia e antecipava que as noções de
36
parentesco e de território não são condição essencial e obrigatória para se caracterizar uma
comunidade, mas sim a comunhão de escolhas, a vontade comum, a partilha de um mesmo
ideal, noções atualmente primordiais para se entender as comunidades virtuais.
Robert E. Park e Ernest W. Burgess (apud FERNANDES, 1973, p. 148) defendem
que uma comunidade deve ser considerada a partir da “distribuição geográfica dos
indivíduos e instituições de que são compostos”. Trabalhando na perspectiva de Tönnies,
para os autores “toda comunidade é uma sociedade, mas nem toda sociedade é uma
comunidade”.
Autores como R. M. MacIeaver e Charles Page (apud FERNANDES, 1973, p. 122-
123), já disseram que a noção do lócus territorial específico não é condição sine qua non
para a existência de vida comunitária, mas sim a participação na vida comum da
comunidade.
Ao discutir as formas de organização social na sociedade contemporânea, Marcos
Palácios (2001, p. 4) defende que alguns elementos fundamentais caracterizam uma
comunidade na atualidade: a) sentimento de pertencimento; b) sentimento de comunidade; c)
permanência (em contraposição à efemeridade); d) territorialidade (real ou simbólica); e)
forma própria de comunicação entre seus membros, através de veículos específicos. Para ele,
a questão da territorialidade assume novo sentido:
O sentimento de pertencimento, elemento fundamental para a definição de
uma Comunidade, desencaixa-se da localização: é possível pertencer a
distância. Evidentemente, isso não implica a pura e simples substituição de
um tipo de relação (face-a-face) por outro (à distância), mas possibilita a
coexistência de ambas as formas, com o sentimento de pertencimento
sendo comum às duas (PALÁCIOS, 2001, p. 7).
Neste sentido, a territorialidade pode assumir caráter físico ou simbólico. A
localidade geográfica passa a não ser considerada característica intrínseca de uma
comunidade, porque mesmo a distância pode se sentir parte.
Não é que o território não possui mais valor para a comunidade, porém, agora este
território pode ser físico-geográfico ou simbólico. Assim, adquire relevância o sentimento de
pertença, já que se pode pertencer à distância. O que está em jogo é à vontade e os interesses
dos membros.
Atualmente, vive-se outra conjuntura, marcada pela globalização e democracia, mas
as condições apontadas em parte, persistem como o acirramento de tendências
individualistas, por exemplo, embora outras sejam agregadas haja vista o aumento da
violência e, ao mesmo tempo, surgem sinais agregadores e de revitalização das identidades
37
locais e de laços comunitários os mais diferentes.
Segundo Manuel Castells (1999, p. 79) é justamente nas condições globalizantes do
mundo que “as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a
agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de
pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal”.
A hipótese do autor é de que, por meio de um processo de mobilização social, as
pessoas participem de movimentos urbanos defendendo interesses em comum. Trata-se de
uma dinâmica de fortalecimento de identidades, como mostrou Stuart Hall (2006, p. 85): “o
fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles
membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras
culturas”.
São movimentos de construção de identidades, como ressalta Castells (1999, p. 24):
a) identidade legitimadora: representada pelas instituições dominantes interessadas em
expandir sua dominação; b) identidade de resistência: representada pelas pessoas em
condições desvalorizadas e que resistem à dominação; c) identidade de projeto: quando as
pessoas se mobilizam, criando uma identidade capaz de buscar a transformação social.
Ainda de acordo com Castells (1999, p. 84), no mundo atual as comunidades são
construídas a partir dos interesses e anseios de seus membros, o que faz delas fontes
específicas de identidades. Essas identidades podem nascer da intenção em manter o status
quo, ou de resistir aos processos dominantes e às efemeridades do mundo globalizado, ou
ainda de buscar a transformação da estrutura social. Em todas elas existem processos de
identidade, objetivos e interesses em comum, a participação em prol deste objetivo, o
sentimento de pertença, oriundo da identidade em questão. Talvez, nestas ideias de Castells
(1999) e Hall (2006), estejam pistas para se entender os processos comunitários da
contemporaneidade, algumas presentes desde as abordagens originárias.
Em perspectiva correlata Cicília Peruzzo (2002, p. 288-292) diz que entre as várias
formas de agregação solidária, no contexto da mobilização popular no Brasil nas últimas
décadas, estão aquelas de caráter comunitário inovador, capitaneadas por redes de
movimentos sociais, associações comunitárias territoriais, associações de ajuda mútua,
cooperativas populares, grupos religiosos, grupos étnicos, entre milhares de outras
manifestações.
Para a autora Cicília Peruzzo (2002, p. 289) neste nível se desenvolvem práticas
coletivas e de organização comunitária, além de elementos de uma nova cultura política, na
qual passa a existir a busca pela justiça social e participação do cidadão. Esse tipo de
38
mobilização e articulação popular se diferencia das concepções tradicionais de comunidade
porque constrói características comunitaristas inovadoras, e sem o sentido de perfeição
atribuído àquelas, as quais podem ser percebidas na:
Passagem de ações individualistas para ações de interesse coletivo, desenvolvimento de processos de interação, a confluência em torno de ações tendo em vista alguns objetivos comuns, constituição de identidades culturais em torno do desenvolvimento de aptidões associativas em prol do interesse público, participação popular ativa e direta e, maior conscientização das pessoas sobre a realidade em que estão inseridas (PERUZZO, 2002, p. 290).
Como pôde ser observado nos autores citados, as teorizações clássicas sobre
comunidades foram revistas. Diante das mudanças do modo de vida na Modernidade e
também pelo avanço da tecnologia, alguns princípios são válidos nos dias de hoje como:
sentimento de pertencimento, sentimento de comunidade, permanência (em contraposição à
efemeridade), territorialidade (real ou simbólica), forma própria de comunicação entre seus
membros, através de veículos específicos.
No Brasil apesar do modo de vida da Modernidade e avanços tecnológicos, temos a
existência de comunidades tradicionais, próximas ao conceito dos clássicos como as
comunidades quilombolas.
De acordo com o Decreto 60403, os povos e comunidades tradicionais são definidos
como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuem formas
próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição
para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição".
Entre os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos,
matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de
fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros,
caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, açorianos, campeiros, varzanteiros,
pantaneiros, catingueiros, entre outros4.
Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
5,
3 Informações oficiais segundo o site da Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em:
http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais 4
Informações oficiais segundo o site da Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em:
http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais 5
Informações oficiais segundo o site do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento em
http://www.pnud.org.br/
39
as Comunidades Tradicionais constituem aproximadamente 5 milhões de brasileiros e
ocupam ¼ do território nacional.
Por seus processos históricos e condições específicas de pobreza e desigualdade,
acabaram vivendo em isolamento geográfico e/ou cultural, tendo pouco acesso às políticas
públicas de cunho universal, o que lhes colocou em situação de maior vulnerabilidade
socioeconômica, além de serem alvos de discriminação racial, étnica e religiosa. O objetivo
do Governo Federal é promover para estas comunidades tradicionais o acesso a políticas
públicas e fazer valer todos os direitos estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais (PNPCT) tem por objetivo reconhecer formalmente a existência e
as especificidades desses segmentos populacionais, garantindo os seus direitos territoriais,
socioeconômicos, ambientais e culturais, sempre respeitando e valorizando suas identidades
e instituições.6
A da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), por meio
da Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais (SECOMT), é responsável pela
execução da Política voltada a alguns grupos deste segmento: povos e comunidades
tradicionais de matriz africana, quilombolas e ciganos.7
As políticas públicas voltadas para os Povos e Comunidades Tradicionais são
recentes no âmbito do Estado brasileiro e tiveram como marco a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que foi ratificada em 1989 e trata dos direitos
dos povos indígenas e tribais no mundo.8
No Brasil, esse público passou a integrar a agenda do governo federal em 2007, por
meio do Decreto 6040, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), sob a coordenação da Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) da Presidência da República.9
6Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 7 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 8 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>. 9 Informações oficiais segundo o site da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/o-que-sao-comunidades-tradicionais>.
40
CAPÍTULO II – O EMPODERAMENTO DA COMUNICAÇÃO: DO DIREITO
GARANTIDO À ESTRATÉGIA DE AMPLIAÇÃO DA CIDADANIA POR MEIO DA
PARTICIPAÇÃO POPULAR
Nota Introdutória ao Capítulo
O capítulo traz a comunicação como um direito garantido juridicamente, mas faz
reflexão sobre além do direito legítimo: o do empoderamento da comunicação como
instrumento para ampliação da cidadania. Versa sobre a possibilidade de educar por meio da
produção de conteúdos e há uma reflexão sobre o fazer comunicativo que traz como
resultado: o exercício da cidadania e o incentivo da construção do pensamento crítico. Reflete
sobre a participação popular na comunicação comunitária que pode se dar como: produtores
de conteúdos, ouvintes, leitores ou expectadores.
1 Direito a comunicação: o poder de construir pensamentos, plurais e autônomos
Juridicamente a concepção de direito a comunicação versa sobre o direito ao acesso
a informação ou como direito à liberdade de informação e de expressão e estão em alguns
documentos como: A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no Artigo 19º,
declara que “todo o indivíduo tem direito a liberdade de opinião e de expressão, o que implica
o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem
consideração de fronteiras, informações e ideias por quaisquer meios de expressão”.10
A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, diz que:
Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Este
direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias
de qualquer natureza sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por
escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua
escolha.11
A Constituição Brasileira de 1988 (Cap. I, Artigo 5º, inciso IX), diz que “é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença”12
. Esta concepção vem se renovando, indo além de todas as garantias
10
Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/> 11
Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/> 12
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/>
41
jurídicas de liberdade de expressão, tem se discutido o direito à comunicação como forma de
poder de comunicar, do cidadão e de suas organizações coletivas (PERUZZO, 2005, p.19).
No IV Fórum Social Mundial Irene León se pronunciou dizendo que é importante:
Pensar a comunicação como direito que não se restringe ao acesso à produção de informação e seus mecanismos teóricos, mas ao poder, pois na sociedade da informação, nada é mais poderoso que construir pensamentos críticos, plurais e autônomos (LEÓN apud BURCH, 2004, p.2).
Embora a história nos permita uma leitura a favor desses princípios, percebe-se que
isso ocorre em maior ou menor grau dependendo de cada cultura, de cada povo. Segundo a
pesquisadora Cicília Peruzzo (2004, p. 275), “esse processo tem a ver com as decisões dos
governantes e a capacidade do povo para exigir o cumprimento de seu direito, com vistas à
realização de seu dever de contribuir ativamente, como sujeito, para a construção da
sociedade”.
Dentre os mais variados aspectos da vida, o direito a exercer a comunicação
ativamente é um deles. Referimo-nos a comunicação de fato e de direito e não apenas
pensando o sujeito como consumidor, mas como sujeito ativo da comunicação.
Para Cicília Peruzzo (2004, p. 275), a democratização da comunicação no Brasil e
em outros países latino-americanos tem sido obstaculizada pelo Estado e por setores
dominantes que, em virtude de sua posição hegemônica ou pela imposição, acabam por
ganhar a cumplicidade da sociedade, embora exista certa resistência, como veremos adiante.
Contudo, antes de tratados matizes que envolvem essa temática, acredita-se ser necessário
fazer uma incursão a respeito dos direitos humanos a partir de um breve apanhado conceitual
sobre cidadania e sobre a inserção da comunicação como uma das dimensões desse conceito.
Conceitos de autores como T. H. Marshall, Liszt Vieira, Norberto Bobbio, tornam-se
importantes ao mostrar as mudanças históricas que conduzem as alterações no conceito de
cidadania, a partir das gerações de direitos e do sentido que são dados a eles.
T. H. Marshall (1967), em Cidadania, Classe social e Status, publicado
originalmente em 1949, compreende a cidadania moderna a partir do estabelecimento
primeiramente dos direitos civis, seguido dos políticos e por último dos direitos sociais.
Com esta finalidade, dividi a cidadania em três elementos: civil, político e
social. Tentei demonstrar que os direitos civis surgiram em primeiro lugar e
se estabeleceram de modo um tanto semelhante à forma moderna que
assumiram antes da entrada em vigor da primeira Lei de Reforma, em 1832.
Os direitos políticos se seguiram aos civis, e a ampliação deles foi uma das
principais características do século XIX, embora o princípio da cidadania
42
política universal não tenha sido reconhecido senão em 1918. Os direitos
sociais, por outro lado, quase que desapareceram no século XVIII e princípio
do XIX. O ressurgimento destes começou com o desenvolvimento da
educação primária pública, mas não foi senão no século XX que eles
atingiram um plano de igualdade com os outros dois elementos da cidadania
(MARSHALL, 1967, p.75).
Para Marshall (1967) a cidadania é histórica e é conformada pelo status comum,
conquistado e compartilhado pelos membros de uma comunidade. A caracterização moderna
do conceito de cidadania representa a promoção de um status de igualdade social, que atribui
ao indivíduo à posse legítima de direitos e a obediência comum aos deveres. Porquanto, ser
cidadão independe de sexo, cor ou classe social, sendo todos iguais perante a lei. Segundo
Marshall (1967, p.76) “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais
de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos
e obrigações pertinentes ao status”.
Liszt Vieira (2001, p. 35) compreende que o conceito de cidadania, como o direito a
ter direitos (e reconhecer seus deveres), foi abordado de variadas perspectivas. Os autores
Vieira e Marshall propuseram a primeira teoria sociológica de cidadania ao incluir os direitos
e as obrigações inerentes a condição de ser cidadão. Contudo, não se pode perder de vista que
a teoria desenvolvida por Marshall, na época, partia da sua concepção inglesa sobre o conflito
entre capitalismo e liberdade.
Os avanços e retrocessos da cidadania ocorrem de maneira diferenciada nos
diferentes países, principalmente no Brasil, onde temos um histórico marcado por
desigualdades sociais.
Por sua vez, Norberto Bobbio (1999, p. 32-33), filósofo italiano, também
compreende que o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases, os direitos
civis, políticos e sociais:
[...] o desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num
primeiro momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos
aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o
indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em
relação ao Estado; num segundo momento, foram propugnados os direitos
políticos, os quais – concebendo liberdade não apenas negativamente, como
não impedimento, mas positivamente, como autonomia – tiveram como
consequência a participação cada vez mais ampla, generalizada e frequente
dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no
Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o
amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer, de novos
valores –, como os do bem-estar e da igualdade não apenas formal, e que
poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do Estado.
43
Segundo Norberto Bobbio (2004, p.32) “num primeiro momento, afirmaram-se os
direitos de liberdade”, os chamados direitos de primeira geração. Estes são os direitos
individuais, de natureza civil e política, e “foram reconhecidos para a tutela das liberdades
públicas, em razão de haver naquela época uma única preocupação, qual seja, proteger as
pessoas do poder opressivo do estado” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 617-618).
Eles surgiram juntamente com a Revolução Francesa, entre os séculos XVIII e XIX,
assegurando para a classe burguesa, então surgente, os direitos mínimos para o exercício da
sua atividade. Desta forma, tinham como fundamento a “limitação do poder do Estado e a
reserva para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação
ao Estado” (BOBBIO, 2004, p. 32). Ou seja, contemplam os direitos de inspiração
individualista, demonstrando claramente a demarcação entre Estado e não-Estado, o qual é
composto pela sociedade religiosa e pela sociedade civil.
A segunda geração direitos do homem, segundo Bobbio (2004) surgiu no século XX,
tem como marco o pronunciamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
como reivindicação dos excluídos a participarem do "bem-estar social" como, por exemplo,
os direitos ao trabalho, a saúde e a educação, sendo o titular de tais direitos o indivíduo e o
sujeito passivo o Estado, pois na interação entre governados e governantes este assume a
responsabilidade de atendê-los (BOBBIO, 2004, p.41).
Celso Lafer afirma que estes direitos:
[...] podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais:
procuram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num
sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em relação ao
indivíduo, que também resulta da escassez dos meios de vida e de trabalho
(LAFER, 1988, p. 127-128).
O uso amplo da liberdade individual acabou por desequilibrar a sociedade ocidental,
criando enormes injustiças sociais. Dessa maneira, tivemos o conflito entre o trabalho e o
capital diante de um Estado indiferente, e favorecedor da opressão dos trabalhadores pela
burguesia.
Nesse contexto, Adriana Galvão Moura in Constituição e Construção da Cidadania
salienta que: “As normas constitucionais consagradoras desses direitos exigem do Estado uma
atuação positiva, através de ações concretas desencadeadas para favorecer o indivíduo
[também são conhecidos como direitos positivos ou direitos de prestação]” (MOURA, 2005,
44
p. 23).
A terceira geração são os direitos decorrentes da solidariedade ou de titularidade
coletiva, ditos difusos, e nascem em decorrência da generalidade da humanidade e do
“amadurecimento de novas exigências – podemos mesmo dizer - de novos valores”
(BOBBIO, 2004, p. 36). Justamente “[…] caracterizam-se por destinarem-se à proteção, não
do homem em sua individualidade, mas do homem em coletividade social, sendo, portanto, de
titularidade coletiva ou difusa” (CUNHA JUNIOR, 2012, p. 626).
Além das três gerações clássicas, descritas por Norberto Bobbio, atualmente se
estuda a existência de outras, decorrentes dos avanços sociais, genéticos e tecnológicos.
Neste sentido, Samuel Antonio Merbach de Oliveira (2013, p.18) diz que a quarta
geração dos direitos do homem se refere à manipulação genética, à biotecnologia e à
bioengenharia, abordando reflexões acerca da vida e da morte, pressupondo sempre um
debate ético prévio. Através dessa geração se determinam os alicerces jurídicos dos avanços
tecnológicos e seus limites constitucionais.
Diante dos avanços da revolução tecnológica e da nova ordem mundial, a quarta
geração vem suscitando controvérsias em relação aos direitos e obrigações decorrentes da
manipulação genética ou do controle de dados informatizados que muitas vezes podem ser
acessados via Internet de qualquer lugar do mundo. Também denominados “Direitos
Difusos”, colocam em evidência os direitos concernentes à evolução biogenética e
tecnológica (OLIVEIRA, 2013).
Bobbio (1992, p. 6) entende que a quarta geração de direitos do homem refere-se
“aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do
patrimônio genético de cada indivíduo”.
No intuito de relacionar as dimensões da cidadania à comunicação, Peruzzo (2005),
reflete sobre o acesso e o empoderamento popular do cidadão e dos movimentos sociais que
os representam, no que diz respeito à comunicação como um direito humano.
Peruzzo (2005) traz em seu texto o percurso da comunicação nas diversas dimensões
da cidadania, o qual é visto tratando desde os direitos de primeira à terceira geração.
Entretanto, ressalva que na atualidade a comunicação, dado os avanços tecnológicos, esteja
em via de ocupar lugar de destaque na construção da cidadania.
Assim, isso seria um “processo indicativo de movimento correlato àquele que
identifica a passagem da cidadania de uma fase à outra de maior qualidade” (PERUZZO,
2005, p. 38). Dessa forma, aponta nas dimensões da cidadania a inclusão de uma quinta
geração de direitos, os direitos comunicacionais, que englobam também a cultura.
45
Cidadania é desenvolvimento social com igualdade. Assim sendo, a riqueza
socialmente produzida, as descobertas científicas e tecnológicas, as artes, a educação, o lazer
e todas as demais benesses geradas no processo histórico deveriam ser desfrutadas com
igualdade e liberdade para a realização plena da cidadania. No entanto, na prática, o que há é
extrema desigualdade dentro dos países e entre nações. Enfim, uns são mais cidadãos que
outros, sendo estes a maioria. A situação desigual e de injustiça social é consequência do
modelo de desenvolvimento adotado e das estratégias implementadas para concretizá-lo
(PERUZZO, 2007b, p. 46).
A base da comunicação para a cidadania está no empoderamento popular, ou seja, na
apropriação e consciência coletiva dos cidadãos em utilizar a comunicação para desenhar
melhores mundos possíveis, para redesenhar sua própria realidade, tendo em vista à
transformação social. Este empoderamento, no limiar, só é possível quando os sujeitos
coletivos se apropriam da comunicação e tornam-se protagonistas, quando a comunicação
passa a ser considerada como um processo. Neste aspecto, sujeitos coletivos, movimentos
sociais populares engajados na luta pelos direitos sociais, forjam suas realidades e tentam
reinventá-las se empoderando da Comunicação Comunitária, por exemplo, é uma das formas
de exercitar o direito à comunicação.
Ramos (2005, p. 250), embora caracterize a comunicação como um direito de
“quarta geração” e não de quinta, como seria desejável, faz uma contribuição importante
quando aborda que a primeira e fundamental consequência de se reconhecer o direito à
comunicação é entender que ela precisa ser vista como passível de discussão e ação como
política pública essencial, assim como as demais direcionadas à saúde, à alimentação, ao
saneamento, ao trabalho, à segurança, entre outros.
Para Bobbio (1999, p. 25), o problema que temos diante de nós em relação a
conformação dos direitos de cidadania – incluí-se nessa esteira o direito à comunicação – não
é filosófico, mas num sentido mais amplo, político. O autor afirma que não se trata de saber
quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, neste caso, bastaria
observar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tampouco, se são direitos naturais
ou históricos, mas sim pensar qual o modo mais seguro de garantir esses direitos, já
amplamente expressados nas declarações.
46
2 A participação popular na comunicação: o exercício da cidadania
Cicília Peruzzo (2005, p.34) diz que “os meios comunitários” são os que mais
potencializam a participação direta do cidadão na esfera pública comunicacional no Brasil”.
Seja pela facilidade da localização que permite fácil acesso, porque ficam no mesmo ambiente
em que vivem, seja pelo processo participativo em que se realiza a comunicação, ou pela
recepção da mensagem que o atinge.
Para a autora a participação popular pode se dar como ouvintes, leitores ou
expectadores. Como também pode fazer parte da gestão e do planejamento da comunicação, e
processos de produção.
A participação do processo de fazer comunicação é essencial nas organizações
populares, é o envolvimento direto do cidadão, representa um avanço significativo na
democracia comunicacional.
A participação popular pode ser a constituinte para ampliar o exercício da cidadania,
não só pelos conteúdos críticos, as denúncias e reivindicações das demandas sociais da
comunidade, mas também pelo processo do fazer comunicativo.
Contribui para a formação da construção da cidadania por meio do processo que é
educativo e também pelo conteúdo das mensagens transmitidas.
Os meios de comunicação produzidos por setores organizados das classes subalternas, ou a elas organicamente ligados, acabam por criar um campo propício para o desenvolvimento da educação para a cidadania. As relações entre educação e comunicação se explicitam, pois as pessoas envolvidas em tais processos desenvolvem o seu conhecimento e mudam o seu modo de ver e relacionar-se com a sociedade e com o próprio sistema dos meios de comunicação de massa. Apropriam-se das técnicas e de instrumentos tecnológicos de comunicação, adquirem uma visão mais crítica, tanto pelas informações que recebem quanto pelo que aprendem através da vivência, da própria prática (PERUZZO, 2005, p. 36).
A participação popular na comunicação comunitária coloca o ser humano como
protagonista das mudanças sociais. Amplia sua cidadania através do conhecimento adquirido
nos processos comunicativos, educando no seu fazer responsável e compartilhado, assim
como na transmissão das mensagens através de seus conteúdos (PERUZZO, 2005, p. 35).
O Brasil nos últimos dez anos avançou timidamente, e a passos lentos, em algumas
questões sociais. Sabe-se das urgências sociais sérias que ainda não são contempladas por
políticas públicas. O clamor das classes menos favorecidas está aí, a frente de nossos olhos e
47
cada vez mais gritantes. E qual a participação da comunicação, a communicatio, neste
processo?
Temos passado por grandes transformações científicas e tecnológicas, porém o
acesso a estas tecnologias é restrito a uma parcela da população brasileira. Serviços com altos
preços e a falta infraestrutura fora dos grandes centros colaboram para uma segregação: a
exclusão digital, aumentando mais a distância no societas (sociedade) e seus socius
(parceiros) de vida.
O individualismo presente e o espírito capitalista ocidental da competitividade
presente só estão nos afastando do comum. Toda questão amplamente pensada por Buber
(1969) da relação dual Eu-Tu simplesmente fora desprezada.
Tomados por um discurso tecnológico, que a princípio é vendido como a solução
para nossa evolução social, de uma vida melhor, somos embebidos por uma narrativa da era
da comunicação/informação de que: “Agora está tudo bem, conhecemos nossas questões
sociais porque temos informações”. Mas vemos que no paraíso capitalista tecnicista o inferno
é bem presente e visível, ter somente a informação não basta. Necessitamos da retomada da
communicatio, a comunicação que produz narrativas sociais do comum.
Expostas, pesquisadas, comunicadas pelos meios de comunicação para surtir
mudanças sociais significativas, as diferenças sociais: falta de moradia, desemprego, direito a
terra, o desrespeito aos direitos fundamentais do Homem é visto e vivenciado na sociedade
brasileira. Resultado decorrente das ações pensadas e realizadas sem o espírito do comum.
A falta desta comunicação do comum traz à tona uma sociedade cada vez mais
individualista e gananciosa. Peruzo (1998, p.26) traz um pensamento contemporâneo sobre o
panorama da sociedade:
São contingentes de pessoas que vão perdendo valores intrinsecamente humanos, como o respeito pelo semelhante, a solidariedade, e a gratuidade, enquanto ajudam a valorizar cada vez mais a ganância e o individualismo. E assim o homem vai se tornando objeto, mercadoria, coisa manipulável, em detrimento de sua essência e do caráter de sua espécie
A comunicação nos movimentos sociais é um fator de extrema relevância, é ela que
faz a communicatio ter existência e a prática da relação dual “Eu-Tu” ser um fato recorrente
na sociedade. A capacidade de compartilhar “o viver” com todos anseios e desejos que uma
sociedade apresenta diante de suas transformações. A essência da condição humana está
justamente em ter na communicatio seu papel de agente de sua própria história, ter um
acolhimento na comunidade uma ordem de todas as diferenças e trocas possíveis no comum:
48
O homem tem como essência a potencialidade de ser sujeito da história. Alienando-se ele
perverte os seus valores próprios, transformando-se em objeto. Nessas condições, ele se
deforma, se embrutece, se desumaniza (PERUZZO, 1998, p.26).
Neste processo de comunicação/informação muitas vezes os mass media não
expressam, sem interesses financistas e apartidários, o grito das comunidades, com seus
movimentos sociais reivindicando até mesmo o direito à livre expressão.
Por isso há necessidade da existência de meios de comunicação voltados a questão
participativa das mudanças sociais. Ter um espaço comunicacional voltado para as questões
da communicatio é importante para ter resultados políticos que resultem em mudanças sociais
significativas. Os movimentos populares demonstraram, no decorrer da história recente do
Brasil, a necessidade de espaços de comunicação “alternativos” em relação a dita “grande
imprensa” como cita autora Peruzo (1998, p.114-115):
Numa conjuntura em que vinha à tona a insatisfação decorrente das precárias condições de existência de uma grande maioria e das restrições à liberdade de expressão pelos meios massivos, criaram-se instrumentos ‘alternativos’ dos setores populares, não sujeitos ao controle governamental ou empresarial direto. Era uma comunicação vinculada à prática de movimentos coletivos, retratando momentos de um processo democrático inerente aos tipos, às formas e aos conteúdos dos veículos, diferentes daqueles de estrutura então dominante, da chamada ‘grande imprensa’. Nesse patamar, a ‘nova’ comunicação representou um grito, antes sufocado, de denúncia e reivindicação por transformação, exteriorizado, sobretudo em pequenos jornais, boletins, alto-falantes, teatro, folhetos, volantes, vídeos, audiovisuais, faixas, cartazes, pôsteres, cartilhas, etc.
Esta comunicação com conteúdos feitos pelas comunidades e movimentos sociais
traz a possibilidade da realização da communicatio, que é justamente “pôr-se em comum”,
amplificando as demandas sociais coletivas, onde todos participam por meio do diálogo que
resulta na produção de uma comunicação transmitida por meio dos veículos comunitários,
isentos de qualquer compromisso financista.
Os mass media quando se propõem, até conseguem, mesmo com espaços diminutos,
compartilhar o comum, colocando questões levantadas pelos movimentos sociais. Vale
lembrar sempre que no momento da interação com estes meios de comunicação poderá haver
uma iminente possibilidade de caráter financista, e/ou interesses governamentais atuantes
nestas mediações.
49
CAPÍTULO III – QUILOMBO CARRAPATOS DA TABATINGA: 300 ANOS DE
RESISTÊNCIA
Nota Introdutória ao Capítulo
O capítulo inicia com a origem dos quilombos no Brasil de forma breve, pois o tema
é amplo, o objetivo é entender como se constituíram como unidades de resistência e
permanecem até os dias de hoje. Posteriormente abordaremos a origem da comunidade
quilombola Carrapatos da Tabatinga, suas lutas que persistem há mais de 300 anos, as
demandas sociais que vão desde as reivindicações de Direitos constitucionais garantidos, mas
de Fato não, das terras dos remanescentes quilombolas, perpassando pela desigualdade social
abarcada pelo preconceito racial. Dissertamos sobre os processos comunicacionais
estabelecidos entre os membros da comunidade e suas atividades, e sobre as forças
comunicantes do Congado com a sociedade local, por meio da participação das Festas de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Realizamos uma análise se há meios de
comunicação comunitários e como é a relação da comunidade com estes meios.
1 Quilombo: a materialização da resistência negra e a importância da territorialização
A escravidão de africanos nas Américas consumiu cerca de 15 milhões ou mais de
homens e mulheres arrancados de suas terras. O tráfico de escravos através do Atlântico foi
um dos grandes empreendimentos comerciais e culturais que marcaram a formação do mundo
moderno e a criação de um sistema econômico mundial. A participação do Brasil nessa
trágica aventura foi enorme. Para o Brasil estima-se que vieram perto de 40% dos escravos
africanos. Aqui, não obstante o uso intensivo da mão-de–obra cativa indígena (MONTEIRO,
1994), foram os africanos e seus descentes que constituíram a força de trabalho principal
durante anos de escravidão.
Os negros penetraram em cada aspecto na vida brasileira. Além de movimentarem
engenhos, fazendas, minas, cidades, plantações, fábricas, cozinhas e salões, os escravos da
África e seus descendentes imprimiram marcas próprias sobre vários outros aspectos da
cultura material e espiritual deste país, sua agricultura, culinária, religião, língua, música,
artes e arquitetura... a lista é longa e já estamos cansados de ouvir (REIS; GOMES, 1996).
Mas segundo Ribeiro (2004, p.118) a empresa escravista atuou como uma máquina
desumanizadora e desculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão,
50
qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém
ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga.
A escravidão além de base econômica da colonização brasileira foi também o
fundamento de todas as esferas da vida social e política. O escravismo imprime a
desigualdade e a excludência como regras básicas do convívio social. A sociedade
escravocrata estabelece o império da violência, o trabalho compulsório prescinde da
hegemonia, pois se realiza diretamente pela força (MORAES, 2005, p. 97).
É certo também citar que onde houve escravidão houve resistência, e de vários tipos.
Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores
ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia
senhores e feitores, rebelava-se individual ou coletivamente. Aqui também a lista é longa e
conhecida (REIS; GOMES, 1996).
Houve, no entanto, um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como típica
da escravidão – e de outras formas de trabalho forçado. Trata-se da fuga e formação de
escravos fugidos, é importante lembrar que a fuga nem sempre levava a formação desses
grupos. Ela podia ser individual ou grupal, mas os escravos terminavam procurando se diluir
no anonimato da massa escrava e de negros livres. Nesses casos, o destino podia ser as
cidades, onde não se estranhava a circulação de homens e mulheres de vários matizes raciais,
que vieram a formar setores consideráveis, em muitas regiões até majoritárias, da população
livre (REIS; GOMES, 1996).
A fuga que levava à formação de grupos de escravos fugidos, aos quais
frequentemente se associavam a outros personagens sociais, aconteceu nas Américas onde
ocorreu a escravidão. Tinha nomes diferentes, na América espanhola: palanques, cumbes etc.;
na inglesa marrons; na francesa grand marronage (para diferenciar de petit marronage, a fuga
individual, em geral temporária). No Brasil esses grupos eram chamados geralmente de
quilombos e mocambos e seus membros quilombolas, calhambolas ou mocambeiros (REIS;
GOMES, 1996, p.10).
No Brasil, a origem do termo quilombo remete a um documento administrativo do
período colonial que costuma ser citado como uma das primeiras referências sobre o assunto.
Trata-se de um mandato de repressão do Regimento dos capitães-do-mato do século XVIII
que diz o seguinte: “Pelos negros que forem presos em quilombos formados distantes de
povoação onde estejam acima de quatro negros, com ranchos, pilões e de modo de aí se
conservarem, haverão para cada negro destes 20 oitavas de ouro” (GUIMARÃES, 1988, p.
131).
51
Pouco tempo depois, o Conselho Ultramarino português definiria o quilombo ou
mocambo como: “Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos e nem se achem pilões nele” (LEITE, 2000, p.
336).
Portanto, o quilombo foi uma inscrição colonial e jurídica que remitia à
criminalização e à fuga de escravos. Dentre os quilombos que se formaram no Brasil, um dos
que se tornaram mais célebres foi o de Palmares, que se tornou uma referência importante nos
debates das primeiras décadas do século XX sobre a resistência negra no Brasil,
principalmente a partir da obra Os Africanos no Brasil, de Rodriguez (1932). Nesta obra, o
autor acabava justificando as ações armadas que destruíram Palmares. Utilizando argumentos
do cientificismo racista do século XIX considerava que:
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cerco o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo (RODRIGUES, 1932, p. 17).
Contudo, seu posicionamento sobre o tema foi muito ambíguo, pois acreditava na
importância da construção de um patrimônio cultural sobre os africanos no Brasil e colaborou
muito para isso. Mas considerava que a construção desse patrimônio podia ser tentada apenas
nas áreas em que considerava que essa cultura ainda sobrevivia, nas “manifestações
espirituais”, já que as territorialidades negras eram para ele um tema do passado que não tinha
deixado vestígios. Considerava que os negros acabaram sendo incorporados ao “nosso meio
étnico”, mas no que diz respeito à religião teria havido de fato uma “ilusão de catequeses”, ou
seja, considerava que as populações negras haviam deixado de existir como comunidades de
lugar, porém ainda existiam como comunidades de espírito.
Na década de 1940, Arthur Ramos (1942) retoma o tema de Palmares em sua obra
“A aculturação negra no Brasil” utilizando praticamente as mesmas referências documentais
que Rodrigues (1932) e um registro similar sobre o quilombo como “um Estado com tradições
africanas dentro do Brasil”. Contudo, observa que Palmares não era o único padrão de
organização de quilombos, refere-se a uma série de quilombos de “negros fugidos” que
existiram em diversas regiões do país e que denomina de “aldeamentos” (RAMOS, 1942,
p.76).
52
De fato, os quilombos que constituíram uma forma de organização comunitária e
pesquisas históricas mais contemporâneas, têm relativizado o quilombo como somente local
de fuga, transitório e isolado (FUNARI, 1996; GOMES, 1995; MATTOS, 1998). Os
quilombos constituíam territórios comunitários estáveis e economias autônomas com alto grau
de autos suficiência e em constantes relações de troca, não somente com os nativos moradores
das vilas coloniais, como também com colonizadores, fazendeiros e outros grupos sociais.
Nestas releituras de quilombos históricos também foi ganhando relevância a visão
de que os quilombos eram “espaços multiétnicos” (FUNARI; CARVALHO, 2005), uma vez
que as trocas comerciais e sociais promoviam a “fusão de culturas” colônias, europeias e
africanas (ALLEN, 1998).
A partir da década de 1960, o termo quilombo se desloca da referência histórica e
passa a ser utilizado como símbolo de resistência pelo movimento negro (ARRUTI, 2006).
Recém será no contexto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
que o quilombo retorna à vida política de maneira inédita, não já como referência histórica,
nem como símbolo político, mas como um direito que abria a possibilidade de acesso à terra
para populações descendentes dessas comunidades quilombolas do período da escravidão
chamados de “remanescentes quilombolas”.13
A Constituição Brasileira de 1988, no Artigo 68 contempla que: “Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”
(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASI, 1988).
Embora a interpretação constitucional seja ainda motivo de disputas e debates
jurídicos, a política quilombola é inaugurada no primeiro mandato do presidente Luís Inácio
Lula da Silva, que começou a tornar visível um grande número de “comunidades negras”,
espalhadas em todo o país, estas comunidades quilombolas tinham diferentes origens.
O então presidente Lula em 2003, conforme o Decreto 4887/200314
define critérios
para o reconhecimento das comunidades quilombolas que diz:
“Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida”.
13
Informações do site oficial da Casa Civil do Governo Federal do Brasil, da Constituição da República
Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm 14
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm
53
Algumas tinham como antecedentes a compra de terras por ex-escravos após a
falência de uma fazenda, a compra por escravos libertos, doações de antigos senhores, terras
concedidas a escravos que haviam servido ao exército ou terras cedidas por ordens religiosas,
mas possuíam em comum a “negritude” e o fato da grande maioria dos moradores não possuir
escritura oficial ou documentos que corroborassem a propriedade da terra (O´DWYER,
2002).
Entretanto, a questão quilombola não se restringiu à dimensão fundiária. A partir do
primeiro governo do presidente Lula em 2003 foi lançado o programa “Brasil Quilombola” 15
envolvendo 17 ministérios e cinco secretarias especiais, que junto com a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, definiu uma orientação
de políticas públicas especificas, nas áreas de educação, habitação, saúde e infraestrutura, para
as comunidades quilombolas.16
Esta política pública17
assumiu dimensões inéditas, já que desde a proclamação da
República nenhum governo destinou tantos recursos econômicos e institucionais para esse
fim. Segundo dados da Secretária Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial
do Governo Federal (SEPPIR), existem até 2014 aproximadamente 3250 comunidades
quilombolas reconhecidas, com cerca de 2,5 milhões de pessoas, mais este universo foi se
ampliando.1818
Assim esta política reintroduziu o tema das comunidades étnicas e para ter acesso a
essas políticas públicas era necessário reconstruir marcadores étnicos e culturais, tais como
práticas religiosas, danças, memórias, tradições, dentre outros, que operassem como
reconhecimento desse pertencimento, mas diferentemente da visão que sugeria Nina
Rodrigues, estas comunidades étnicas tinham deixado poucos vestígios.
Entre os quilombos históricos e as “comunidades quilombolas” havia uma grande
descontinuidade, tanto em termos documentais quanto na memória coletiva dos descendentes.
Como dizia Lévi-Strauss (1952, p. 34), a continuidade do lugar geográfico nada muda o fato
de, sobre o mesmo solo, se terem sucedido diferentes populações, ignorantes ou alheias à obra
dos seus antecessores.
15
Informação do no site oficial do Ministério da Justiça e Cidadania do Governo Federal do Brasil. Ver em:
<http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-quilombola>. 16
Programa Brasil Quilombola informação do no site oficial do Ministério da Justiça e Cidadania do Governo
Federal do Brasil. Disponível em: < http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-
quilombola>. 17
Constituição Decreto nº 6.040 da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/decreto/d6040.htm >. 18
Disponível em: Comunidades Quilombolas informações do site oficial da Secretária Especial de Promoção de
Políticas para a Igualdade Racial do Governo Federal (SEPPIR). Disponível em: <
http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/programa- brasil-quilombola>.
54
As classes dominantes tiveram especial sucesso na destruição dos quilombos
históricos sem deixar praticamente vestígios materiais de sua existência (REIS; GOMES,
1996), as comunidades quilombolas brasileiras redescobertas, diferentemente das
comunidades negras de outros países da América, como Suriname, Jamaica e Colômbia,
tinham escassa consciência histórica e política do passado da escravidão, o que se refletia na
ausência de documentos escritos ou de testemunhas orais que as conectassem com os
quilombos históricos (PRICE, 2000).
Ao negro foi negada uma cidadania real mesmo após a abolição da escravatura.
Recusados e discriminados como mão de obra paga, muitos negros estabeleceram-se sob as
bases da agricultura de subsistência, comercializando, quando possível, seus excedentes. Na
maioria das vezes, posseiros ou pequenos proprietários os grupos rurais negros constroem
coletivamente a vida sob uma base material e social, formadora de uma territorialidade negra,
na qual se elaboram formas específicas de ser e existir como camponês e negro:
Um inventário parcial das informações existentes aponta para o fato de que os grupos negros vivem em bairros rurais, entendidos aqui na perspectiva desenvolvida por Cândido (1971) e por Queiroz (1976), ou então, em áreas esparsas reconhecidas como de negros. A especificidade do modo de vida demonstra existirem elementos que os diferenciam pela condição étnica e história particular de sua constituição (GUSMÃO, 1995, p.14).
Muitas das determinações coloniais permanecem vigentes mesmo após os processos
de emancipação política de tais países, uma vez que a nova ordem política é construída sobre
o arcabouço econômico e social gerado no período colonial (MORAES, 2005, p. 91).
Conforme o argumento de O´Dwyer (2002) essa “invisibilidade social e simbólica”
podia ser interpretada como uma estratégia utilizada pelos próprios quilombolas para se
distanciar de um passado traumático, mas de fato em muitas comunidades não se
reconheciam.
Persistiam como comunidades de lugar, mas o desvanecimento da comunidade de
espírito se revelava no abandono de expressões culturais locais como o jongo, o tambor,
terreiros de Umbanda, festividades e outras, configurando um processo abrangente de
desestruturação de uma identidade cultural comunitária que remontava ao período colonial.
Também constatou-se que há agentes - antropólogos, ONGs, pesquisadores de
universidades, agentes de turismo, agentes culturais, entre outros – que estavam participando
ativamente nas (re) construções dessas comunidades de espírito. Estes agentes estão
empenhados na “reconstrução” de danças, gastronomia, rituais de cura, festividades, música e
55
religião, utilizando “técnicas modernas”, como a cenografia, técnicas de dança, vídeos,
laudos, planejamento e produção cultural.
Assim a retomada das comunidades quilombolas que se reorganizam a partir do marco
da Constituição de 1988, principalmente após o Decreto de 2003, e a principal luta são pelas
devolutivas das terras quilombolas. Lutam hoje pelas terras que estão nas mãos de latifundiários
que muitas vezes são frutos de famílias oriundas do período colonial como diz Moraes (2005,
p.91): “Muitas das determinações coloniais permanecem vigentes mesmo após os processos
de emancipação política de tais países, uma vez que a nova ordem política é construída sobre
o arcabouço econômico e social gerado no período colonial”.
E essa é a lógica que persistirá em nossa história, pois dos colonizadores europeus
passamos às elites nacionais cujo projeto territorial e socioeconômico para o país eram
exatamente os mesmos, o de apropriação e consumo dos recursos naturais e das pessoas.
Assim, a independência é um ato formal que não altera a vida socioeconômica do Brasil. O
regime escravocrata, o latifúndio e a concentração de riquezas apenas fortaleceram-se.
A escravidão além de base econômica da colonização brasileira foi também o
fundamento de todas as esferas da vida social e política. O escravismo imprime a
desigualdade e a excludência como regras básicas do convívio social. A sociedade
escravocrata estabelece o império da violência, o trabalho compulsório prescinde da
hegemonia, pois se realiza diretamente pela força (MORAES, 2005, p. 97).
A questão fundiária em nosso país está extremamente vinculada à sorte da população
negra, pois ao instituir que as terras deveriam ser “compradas” naturalmente os negros foram
excluídos desse processo de apropriação destas, primeiro porque eram escravizados
(mercadorias), depois de 1888 por serem libertos, mas marginalizados na sociedade e,
portanto, sem a possibilidade de adquirir terras. Embora a questão da obrigatoriedade da
compra de terras afetasse também imigrantes e brasileiros brancos e pobres, pois também para
estes a terra tornou-se mais difícil, para os negros essa questão levou a uma maior
marginalização, visto que se o negro não tinha terras para sua subsistência, tampouco tinha
outras possibilidades de garantir seu sustento.
Neste trabalho adotou-se uma concepção de território integradora que transita da
definição política à cultural, pois se preocupa mais com o processo de territorialização como
domínio e apropriação do espaço por populações quilombolas do que propriamente com o
conceito de território.
56
De acordo com Haesbaert (2004, p.16):
Cada um de nós necessita, como um recurso ‟básico, territorializar-se. Não nos moldes de um espaço vital ‟darwinista-artesiano, que impõe o solo como um determinante da vida humana, mas num sentido muito mais múltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo.
O território foi visto como um espaço físico, mas também como um espaço de
referência para a construção da identidade quilombola.
Nesta pesquisa, na qual lidou-se por vezes com as subjetividades, com os desejos e
ânsias das comunidades quilombolas, o território foi considerado antes de tudo, um espaço de
referência para a construção da identidade quilombola, pois é físico-material, político,
econômico e também simbólico.
A invenção de identidades político-cultural é recorrente, ela acontece sempre que
determinado grupo põe-se em movimento para reivindicar o que lhe é essencial. No caso das
comunidades quilombolas, a terra. Terra aqui entendida num sentido amplo, englobando a
terra necessária para a reprodução material da vida, mas também a terra na qual o simbólico
paira, na qual a memória encontra lugar privilegiado, morada de mitos e lendas, fonte de
beleza, inspiração e do sentido sagrado da coletividade, tão essencial à vida quanto a terra de
trabalho. De acordo com Gonçalves (2003, p.379):
A construção de uma identidade coletiva é possível não só devido às condições sociais de vida semelhantes, mas também por serem percebidas como interessantes e, por isso, é uma construção e não uma inevitabilidade histórica ou natural. E, mais, na afirmação dessa identidade coletiva há uma luta intensa por afirmar os modos de percepção legítima da (di) visão social, da (di) visão do espaço, da (di)visão do tempo da divisão da natureza.
É necessário então entender a constituição da identidade quilombola face à
necessidade de luta pela manutenção ou reconquista de um território material e simbólico. Por
isso, talvez melhor do que discutir o conceito de território seja discutir o processo de
territorialização dessas comunidades. A territorialidade adquire um valor particular, pois
reflete a multidimensionalidade do vivido territorial pelos membros de uma coletividade.
Quando uma comunidade quilombola se organiza e reivindica seus direitos sobre um
território ancestral, quando ela luta para se territorializar, ela está negando o lugar marginal
que lhe havia sido designado pela sociedade abrangente, seja por grandes empresas privadas
que plantam eucalipto ou cana em seus territórios, seja pelo próprio poder público que lhes
impõe unidades de conservação ambientais estabelecendo uma nova territorialidade.
57
Para o surgimento da mobilização que busca a territorialização Gonçalves (2001)
enfatiza a importância dos movimentos sociais, inventando de baixo, por baixo e para os de
baixo, novos pactos, novas relações, novos direitos desse complexo processo de
reorganização social.
Todo movimento social se configura a partir daqueles que rompem a inércia e se movem, isto é, mudam de lugar, negam o lugar que historicamente estavam destinados em uma organização social, e buscam ampliar os espaços de expressão que, como já nos alertou Michel Foucault, têm fortes implicações de ordem política (GONÇALVES, 2001, p. 81).
As territorialidades são instituídas por sujeitos sociais em situações historicamente
determinadas. Se hoje existem territórios quilombolas é porque em um momento histórico um
grupo se posicionou aproveitando uma correlação de forças políticas favoráveis e instituiu um
direito que fez multiplicar os sujeitos sociais e as disputas territoriais.
Territorializar-se significa ter poder e autonomia para estabelecer determinado modo
de vida em um espaço, para estabelecer as condições de continuidade da reprodução material
e simbólica deste modo de vida. A sobreposição de territórios implica necessariamente em
uma disputa de poder.
As comunidades quilombolas ao se organizarem pelo direito aos territórios
ancestrais, não estão apenas lutando por demarcação de terras, as quais elas têm absoluto
direito, mas, sobretudo, estão fazendo valer seus direitos a um modo de vida. Antes e depois
da abolição da escravatura o território brasileiro esteve marcado pela presença de
comunidades negras que ainda hoje resistem às pressões de latifundiários, de especuladores
imobiliários e até mesmo do poder público pela manutenção ou reconquista de seus
territórios. Desta forma, o processo de territorialização quilombola constitui-se muitas vezes,
na luta para continuar a existir, na reinvenção de uma identidade política portadora de direitos
que é informada por uma memória ancestral.
A memória, neste sentido, tem grande importância, visto que em geral se tratam de
comunidades iletradas, de forte tradição oral e que encontram na reinvenção de suas
identidades sua força para atuarem como cidadãos.
Os quilombos são a materialização da resistência negra à escravização, foram uma
das primeiras formas de defesa dos negros, contra não só a escravização, mas também à
discriminação racial e ao preconceito.
58
2 Os quilombolas de Bom Despacho: a história marcada por luta desde a origem
A cidade de Bom Despacho está localizada na região centro-oeste do Estado de
Minas Gerais, a 147 km de Belo Horizonte, capital do Estado, tendo hoje 45.626 habitantes,
de acordo com dados do IBGE, censo 2010. Sua vida bucólica e tranquila desenvolve-se em
meio a campos, montanhas e cachoeiras ao longo dos seus 1212,7km2 de extensão. Os
quilombolas desta cidade habitam o bairro Ana Rosa (antiga Tabatinga) é uma comunidade
urbana composta por aproximadamente 500 pessoas, organizada desde 2006 pela Associação
Quilombola Carrapatos da Tabatinga.
E tem como uma de suas representantes Sandra Andrade, que também é presidente
da Federação Mineira Quilombola, considerada uma das principais articuladoras junto ao
poder público das políticas em prol das comunidades quilombolas mineiras e do Brasil.
A história dos quilombolas está intimamente ligada ao povoamento da cidade de
Bom Despacho. Embora tenha sido elevada à categoria de município e vila somente neste
século, em 30 de agosto de 1911, Bom Despacho possuí uma história que começa por volta da
metade do século XVIII e se liga intimamente a Pitangui, uma das primeiras vilas do ouro, a
qual pertenceu até o ano de 1880 (RODRIGUES, 1968, p.103).
A história revelada nos documentos de Antonio Rodrigues da Rocha (1968, p.36) é
de grande importância para o estudo, pois além de conter a primeira referência à presença de
negros da região de Bom Despacho, vem revelar que, na realidade, foram eles os primeiros
povoadores daquelas terras. Atrás desses “negros do mato” é que vai entrando mais gente.
Em diversos outros documentos, Laércio Rodrigues (1968) encontrou registros de que,
“no território compreendido pelos rios Lambari e São Francisco, eram numerosos os núcleos
tribais de escravos fugidos”. Considerados sérios obstáculos ao processo de povoamento
português da região, esses quilombos eram combatidos por expedições que, para esse fim, se
organizam em Pitangui. Os expedicionários, “exterminando os quilombos das áreas
enquistadas, ali lançam posses, alcançam sesmarias e estabelecem fazendas “ (RODRIGUES,
1968, p. 28).
A comunidade do Quilombolas Carrapatos da Tabatinga é formada por membros
com laços sanguíneos e ancestralidade negra, de origem africana e escrava, que resistem até
hoje, a opressão histórica sofrida. Pela sua formação, já foi autoatribuída e considerada
legalmente pelo governo federal brasileiro como comunidade remanescente quilombola de
acordo com o Decreto 4887/2003 que:
59
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins
deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas,
com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.19
No que diz respeito aos grupos africanos a que se ligam esses negros e mulatos da
comunidade dos Carrapatos da Tabatinga, os dados disponíveis referem-se aos de Pitangui, no
período de 1718 a 1723. Segundo artigo de Francisco Vidal Luna e Iraci de Nero da Costa
(1980, p.6-7), verifica-se ali pequena diferença entre bantos e sudaneses, a favor dos
primeiros. Os sudaneses não chegam a ser maioria em Pitangui, embora sua população
aumente durante o período da mineração. Porém até hoje há o uso dos vocábulos africanos da
Língua do Negro da Costa em Bom Despacho, os dados linguísticos parecem confirmar o
predomínio dos bantos na região.
Enfim, quer tenham predominado os bantos, quer os sudaneses, o negro
desempenhou um papel relevante no povoamento de Bom Despacho. Na condição de
quilombola, adentrando o sertão em busca da liberdade, ou na condição de cativo,
acompanhando seu senhor ao estabelecimento de fazendas de criação de gado e lavoura,
participou de modo ativo na formação cultural regional (RODRIGUES, 1968). A Língua do
Negro da Costa, como as festas do Congado, é documento vivo da presença marcante dos
africanos e de seus descendentes na região.
Segundo a obra de Sonia Queiroz (1998) o nome Tabatinga é uma referência ao
barro branco existente na principal rua do atual bairro. Este era amassado com os pés para ser
utilizado na construção de casebres. Mesmo com o processo de urbanização e os fortes
preconceitos de parte da população local, a Tabatinga resiste.
A identificação da comunidade se compõe também pela palavra Carrapatos que é
outro símbolo de resistência. O projeto piloto com comunidades quilombolas do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em parceria com a Universidade de São
Paulo (USP)20
, os pesquisadores realizaram uma entrevista com Dona Sebastiana, mais
conhecida pela comunidade como Dona Tiana, e perguntaram de onde vinha esse nome
Carrapatos e ela respondeu: “É..eh eh... Meu neto fez essa pergunta pra mim... eh...por que
Carrapato? Os policiais ia lá matava todo mundo...matava... e meus...meus antepassado
[furaram o buraco] deles no chão...fizeram o subterrâneo e entrou pra lá. E [plantou] até em
cima, né... então tinha um tampo que era só mato mas era tampo e eles ficou ali até passar a
época da... judiação, da matação, né... de medo... entendeu? Aí quando passou a época eles
19
Disponível em: < http://www.incra.gov.br/quilombola>. 20
Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/indl/transcricao_detalhe.php?id=55&idc=163>.
60
colocou pra fora aí...pois é...o apelido de quilombo dos Carrapatos é porque matou matou,
mas ainda ficou um carrapatinho ainda agarrado...que foi a minha família da minha vó”.
(TIANA, IPHAN-USP, 2002).
Bravamente resistem e as reivindicações vão desde o direito que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68,
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, até as lutas cotidianas: contra o
preconceito da sociedade local que as comunidades quilombolas estão presentes, a luta por
fomentos públicos para manter viva a cultura quilombola - língua, danças, eventos religiosos -
e as condições de infraestrutura das terras quilombolas como: escola, saúde e saneamento
básico.
2.1 O Direito Constitucional dos remanescentes quilombolas à territoriedade
Na Constituição Federal de 1988, foi assegurado às comunidades remanescentes de
quilombos o direito às terras por estas ocupadas, devendo o Estado atuar na titularização
dessas terras. Do direito conquistado pelo movimento negro surge a identidade política do
quilombola. Segundo Gusmão (1995) muitas comunidades, até então em geral ditas apenas
“comunidades negras” ou que habitavam as chamadas “terras de preto” passam a se assumir
quilombolas.
Diante deste fenômeno houve uma ressemantização do conceito de quilombo,
ampliando-o, propiciando que um número crescente de comunidades passasse a se
autodeterminar pertencente a uma comunidade com possibilidades políticas.
Para ter o direito constitucional garantido, foi criado pelo Governo Federal
mecanismos legais e foi definido por Decreto que é a própria comunidade que se auto-
reconhece “remanescente de quilombo”21
, porém existem algumas considerações para serem
verificadas22
, e por fim cabe à Fundação Cultural Palmares emitir uma certidão sobre essa
autodefinição.23
21
O amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações
foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto Nº 5.051/2004.
Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>. 22
Conforme o artigo 2º do Decreto 4887/2003, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos,
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida”. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>. 23
O processo para essa certificação obedece a norma específica desse órgão (Portaria da Fundação Cultural
Palmares nº 98, de 26/11/2007). Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>.
61
De posse da Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de
Comunidades de Quilombos (CRQs), cabe às comunidades interessadas encaminhar à
Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA)24
, no seu estado uma solicitação de abertura do processo administrativo para a
regularização de seus territórios.
A primeira parte dos trabalhos do INCRA consiste na elaboração de um estudo da
área, destinado à confecção e publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTID) do território. Uma segunda etapa é a de recepção, análise e julgamento de eventuais
contestações. Aprovado em definitivo esse relatório, o INCRA publica uma portaria de
reconhecimento que declara os limites do território quilombola.25
A fase seguinte do processo administrativo corresponde à regularização fundiária,
com a demarcação do território e a desintrusão de ocupantes não quilombolas. As áreas em
posse de particulares serão desapropriadas e aquelas em posse de entes públicos serão
tituladas pelas respectivas instituições.26
O processo culmina com a concessão do título de propriedade à comunidade, que é
coletivo, pró-indiviso e em nome a associação dos moradores da área, registrado no cartório.
Por isso a importância para os quilombolas se organizarem em associações comunitárias.
De acordo com a Fundação Cultural Palmares, responsável pela emissão dos
certificados das Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs), existem até o mês de
fevereiro de 2015, o total de 2.474 comunidades certificadas27
(FUNDAÇÂO CULTURAL
PALMARES, 2015). Estima-se que em todo o País existam mais de três mil comunidades
quilombolas, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA,
2015).28
Desta forma, muitas comunidades negras passaram a construir uma nova identidade,
baseada no resgate do conceito de “quilombo”, com o aparecimento de novos atores sociais,
ampliando e renovando os modos de ver e viver a identidade negra. Pensando coletivamente
em seus direitos civis, mas também nos direitos sociais com uma cidadania mais participativa
lutando para extinguir sua “invisibilidade social”.
24
Decreto nº 4.887, de 2003, o INCRA é o órgão responsável, na esfera federal, pela titulação dos territórios
quilombolas. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>. 25
Informações oficiais do site do INCRA, Disponível em:
http://www.incra.gov.br/passo_a_passo_quilombolas>. 26
Informações oficiais do site do INCRA. Disponível em: http://www.incra.gov.br/passo_a_passo_quilombolas. 27
Informação de acordo com o site oficial da Fundação Cultural Palmares, responsável pelo cadastramento das
comunidades remanescentes quilombolas, documento de pesquisa denominado “Lista das CRQs Certificadas até
23 de Fevereiro de 2015”. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?page_id=88>. 28
Informação de acordo com o site oficial do INCRA. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>.
62
2.2 A desigualdade social abarcada pelo preconceito racial
Em 2004, chegaram a mudar o nome do bairro para Ana Rosa, demonstrando profundo
desrespeito a comunidade quilombola, que se quer foi consultada para a realização da mudança, e
tem no nome Tabatinga sua identidade originária. As políticas locais os tratam como se fossem
invisíveis socialmente. Em décadas anteriores, um padre tentou impedir a comunidade de realizar
seus festejos na igreja de São Benedito. A disputa foi longa, mas os negros da Tabatinga
venceram e voltaram a participar das missas29 (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013). As festas
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são tradicionais na Tabatinga, quando saem os
ternos e guardas, que são grupos compostos por homens e mulheres paramentados com cores de
sua comunidade e, em cortejo, vão dançando e cantando ao ritmode tambores, gungas e
sanfonas. Levam à frente as bandeiras em homenagem aos santos de devoção, é a realização
do Congado.
Os quilombolas da Tabatinga sofrem com o preconceito por parte da comunidade
católica de Bom Despacho em relação à religião umbandista professada por eles. O Padre
Jayme Lopes Cançado da Paróquia Nossa Senhora do Bom Despacho chegou a citar que a
comunidade católica tem receio das “macumbas” que eles podem vir a praticar, e declararam
um absurdo as imagens dos santos Nossa Senhora do Rosário e São Benedito estarem no
templo umbandista, dizendo que o sincretismo não é aceitável. Declarando como se a
comunidade quilombola não tivesse o “direito” de adorarem e cultuarem estes santos
“católicos” em seu templo umbandista.30
Em entrevista31
com a liderança da comunidade houve a citação que há também
preconceito na contratação dos negros em Bom Despacho, a comunidade sente que as poucas
oportunidades da cidade, que tem por volta de 50.000 habitantes, com um pequeno comércio,
sem indústrias na região e com uma economia predominantemente rural mecanizada, tem
preferência pelos brancos na contratação.
A comunidade relatou32
que reivindicaram junto ao Prefeito em 2014 e 2015, um
projeto de lei de cotas para negros no concurso público municipal. O poder executivo foi
favorável, mas infelizmente na primeira submissão o projeto de Lei não foi aprovado pela
29
Referência retirada do documentário “D. Tiana Filha de São Sebastião” realizado por um coletivo de
profissionais da área de cinema, produção, e história, da cidade de Belo Horizonte - MG, Brasil – Produtora
Caturra, 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6nHORCY-EEE>. 30
Em entrevista a autora no dia 10 de outubro de 2015 na Igreja Matriz na cidade de Bom Despacho, Minas
Gerais. 31
Em entrevista a autora em 09 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais. 32
Em entrevista a autora em 09 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais.
63
Câmara de Vereadores. E na segunda vez, após alguns ajustes deu empate na votação, e
infelizmente o presidente atual da Câmara desempatou pela reprovação. Essa é a realidade da
comunidade quilombola em Bom Despacho, quando há iniciativa por parte do executivo
municipal, o legislativo barra qualquer avanço de proporcionar uma possibilidade econômica
melhor para a comunidade.
A Sandra Andrade33
, líder da comunidade, confessou que a falta de oportunidade de
emprego tem deixado a comunidade somente com os idosos e as crianças. Os membros
economicamente ativos têm deixado a comunidade para procurar oportunidades de empregos
em outras regiões do Estado de Minas. Assim ela teme que a unidade, os laços da comunidade
quilombola dos Carrapatos da Tabatinga um dia desapareça.
A questão do território é fundamental para que os adultos da comunidade, que sempre
desenvolveram atividades rurais, mesmo trabalhando como empregados em fazendas, voltem a ter
uma agricultura de subsistência e pequenos comércios, assim não precisando migrar para outros
lugares em busca de emprego. A líder comunitária Sandra Andrade34
relatou que as fazendas
das regiões que empregavam os quilombolas foram mecanizadas e assim o emprego na
lavoura praticamente acabou. O Programa Bolsa Família35
do Governo Federal tem sido
fundamental para melhoria de renda da comunidade, e por meio da Secretária Nacional de
Assistência Social36
recebem 1.500 kg de alimentos, em cestas básicas, para complementar o
sustento das famílias da comunidade Carrapatos da Tabatinga.
A comunidade citou37
por meio da sua liderança, que a sociedade local reconhece os
quilombolas como patrimônio cultural importante na cidade, porém quando o assunto é a
concessão das terras, que na verdade já fora deles, a opinião é bem ácida e radical “eles
querem tudo de graça! E a gente tem que trabalhar! Eles são é muito folgados!”. E estes
comentaram permeiam a sociedade local, incluindo das classes mais ricas da cidade até os
mais pobres não quilombolas. A percepção na fala é a soma do desconhecimento dos Direitos
dos remanescentes quilombolas somado ao processo de inserção periférica dos mulatos e
negros na sociedade de Bom Despacho.
É notório ao frequentar a Tabatinga, que foram “guetificados” na periferia de Bom
Despacho e que não tiveram nestes 300 anos oportunidades de inserção social igualitária e
quase nenhuma expressiva participação como cidadão. A desigualdade social dos quilombolas
33
Em entrevista a autora no dia 09 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho Minas Gerais. 34
Em entrevista a autora no 10 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais. 35
Disponível em: <http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia>. 36
Disponível em: <http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem/secretaria-nacional-de-
assistencia-social>. 37
Em entrevista a autora no dia 10 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais.
64
em Bom Despacho em parte está ligada a questão racial sim, e também a formação da
sociedade local que pós-escravidão, foi excludente com a população quilombola. É uma
desigualdade abarcada pelo preconceito racial. A luta da comunidade dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga organizada e liderada por Sandra Andrade, que relatou38
, por vezes,
um certo desânimo, devido ao não apoio da sociedade e do poder público local. Mas o que faz
Sandra Andrada como líder comunitária persistir é a figura de Dona Tiana, sua mãe guerreira,
que não a deixa esmorecer.
O quilombo é um símbolo de resistência e a comunidade dos Carrapatos da Tabatinga
luta não mais pelos Direitos, que foram instituídos pelo Governo Federal, mas para que de “Fato”
seja cumprida a lei, que um dia o preconceito racial na sociedade local seja inexistente que
eles possam efetivamente ocupar uma posição igualitária de cidadão, participes das decisões
locais, como já rege a Constituição Brasileira de 1988 e seu Artigo 5º.39
2.3 A gestão e os processos de comunicação da comunidade
Como citei em outras partes do texto, a comunidade dos Quilombolas Carrapatos da
Tabatinga é composta por aproximadamente 500 pessoas, localizada no bairro Ana Rosa
(antigo Bairro da Tabatinga) na zona urbana e periférica da cidade de Bom Despacho, no
Centro–Oeste do Estado de Minas Gerais.
O Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) é o órgão competente, na esfera
federal, pela titulação dos territórios quilombolas, e para terem seus direitos constitucionais
garantidos como “remanescentes quilombolas” é necessário que a comunidade se “auto
reconheça” quilombola e por meio de certificação emitida pela Fundação Cultural Palmares
obtenha a autodefinição como quilombolas.40.
A Fundação Cultural Palmares diz como a comunidade deve proceder para a emissão
da certidão de autodefinição como remanescente de quilombo41
:
1. A comunidade deve possuir uma associação legalmente constituída; e
apresentar uma ata de reunião convocada para a autodefinição aprovada pela
maioria dos moradores, acompanhada de lista de presença devidamente
assinada;
38
Em entrevista a autora no dia 10 de outubro de 2015 na cidade de Bom Despacho, Minas Gerais. 39
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccvivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> 40
Informação oficial do INCRA. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>. 41
Informação oficial da Fundação Cultural Palmares. Disponível em:<http://www.palmares.gov.br/?p=31882>.
65
2. Nos locais onde não existe associação, a comunidade deve convocar uma
assembleia para deliberar sobre o assunto autodefinição, aprovada pela
maioria de seus membros, acompanhada de lista de presença;
3. Enviar esta documentação a Fundação Cultural Palmares, juntamente
com fotos, documentos, estudos, reportagens, que atestem a história do
grupo e suas manifestações culturais;
4. Apresentação de relato sintético da história;
5. Solicitar ao Presidente da Fundação Cultural Palmares a emissão da
certidão de autodefinição.
A comunidade quilombola da Tabatinga hoje é certificada, pois realizou o processo de
autodefinição como remanescentes quilombolas, segundo os preceitos da Fundação Cultural
Palmares, e no ano de 2006 fundaram a Associação dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga.
A Associação tem uma sede localizada na Rua Tabatinga, 520, no bairro Ana Rosa,
na cidade de Bom Despacho, no Estado de Minas Gerais.
A presidente da Associação é a líder Tannia Aparecida da Silva Oliveira, e como
liderança citamos D. Sebastiana, a matriarca da comunidade mais conhecida como D. Tiana e
a Sandra Andrade que é membro da comunidade e também atual presidente da Federação
Quilombola do Estado de Minas Gerais – N´Golo42
.
A organização da comunidade em Associação foi importante pelo reconhecimento
por parte do Governo Federal. E hoje são comtemplados com a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de acordo com o
Decreto nº 6.04043
.
A Associação tem prédio próprio, no endereço da sede citado acima, com uma área
coberta, possuem um telecentro de comunicações com computadores e acesso à Internet,
equipamentos de serigrafia, onde eles produzem materiais como camisetas e bonés que são
utilizados nos eventos que a comunidade participa e um mini salão de beleza onde aprendem
e ensinam a comunidade o ofício de cabeleireiro, os equipamentos foram fornecidos pelo
Governo Federal. A intenção com a serigrafia era realizar materiais para a comunidade gerar
renda, mas por falta de capital para a matéria prima, há dificuldade para realizar o projeto. As
verbas do Governo Federal muitas vezes não são suficientes para gerar uma produção em
escala maior. A comunidade não tem apoio dos empresários da cidade para doações, e
demonstram pouco interesse em comercializar os produtos fabricados por eles - relato dos
42
Disponível em:< http://www.cedefes.org.br/index.php?p=ngolo>. 43
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>.
66
líderes da comunidade44
.
O prédio possui em seu terreno uma área descoberta, um pátio onde realizam os
ensaios das apresentações de dança e teatro. Espaço este que a comunidade tem o desejo de
cobrir para que a chuva ou o forte calor que faz em Bom Despacho, não dificulte os ensaios e
os eventos culturais por eles promovidos.
Infelizmente as verbas são escassas por parte do poder público, mas a comunidade
continua lutando para conquistar esse objetivo. Foi presenciado no período de visitas na
Associação45
uma comunidade ativa, engajada e participativa nas questões relacionadas a
preservação e manutenção das matrizes africanas, consciente da sua luta contra o preconceito
racial, e com objetivos claros em relação a luta pelo direito dos territórios quilombolas.
Percebeu-se a coesão da comunidade nos seus objetivos e a uma mobilização de
todos os integrantes para as conquistas de suas demandas sociais, através das participações em
eventos culturais e manifestações de protestos, como também por meio do diálogo, a questão
do direito aos territórios quilombolas.
Um dos elementos constituintes do conceito de comunidade que é válida até os dias
de hoje é “[...] existência de um modo de relacionamento baseado na coesão, convergência de
objetivos e de visão de mundo, interação, sentimento de pertença, participação ativa,
compartilhamento de identidades culturais, corresponsabilidade e caráter cooperativo [...]
”(PERUZZO, 2005, p.14).
Para a prática deste relacionamento em uma comunidade é necessário o exercício da
comunicação em sua gênese literal. Entende-se assim como o termo comunicação – oriundo
do latim communicatio/communicare com o sentido principal de “partilha”, “participar de
algo” ou “pôr-se em comum” (SODRE, 2014, p. 10).
Para o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas (1989), as sociedades atuais
complexas, estão estruturadas em condições precárias de integração social, arranjos que
potencializam os conflitos, dificultam a formação de unidades axiológicas e impedem a
emancipação do homem. Em meio a esse cenário, os indivíduos dirigem suas ações por
critérios de racionalidade meramente instrumentais, voltados à busca de interesses próprios,
espelhados através de cálculos de vantagens e decisões arbitrárias. Atua-se sobre o outro e
não com o outro, isto é, um “agir racional com direção a fins”, meramente estratégico. Para
Habermas (1989, p.79), as interações comunicativas são aquelas em que:
44
Entrevista realizada na sede da Associação em 09 de outubro de 2015. 45
Visitas realizadas no período de Outubro de 2015 a abril de 2016.
67
[...] as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. No caso de processos de entendimento mútuo linguísticos, os atores erguem com seus atos de fala, ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente, pretensões de verdade, pretensões de correção e pretensões de sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estados de coisas existentes), ou a algo no mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo próprio {enquanto totalidade das vivências a que têm acesso privilegiado.
Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação
desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro
para uma ação e adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário (a ação que uns exercem
sobre os outros; e a concepção do sujeito da enunciação enquanto agente da interação social
no ato da fala) - de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita.
A teoria da ação comunicativa e ética discursiva, de Habermas (1989), busca
entender a moralidade sob a visão filosófica, sociológica e psicológica, apresentando a ética
discursiva como sendo parte da ação comunicativa, que com ela se confunde. Sales (2004)
analisando esta teoria habermasiana, afirma que:
A Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas (Theorie dês Kommunikativen Handels), procura um conceito comunicativo de razão e um novo entendimento da sociedade, ou seja, sociedade na qual os indivíduos participam ativamente das decisões individuais e coletivas conscientemente, ensejando-lhes a responsabilidade por suas decisões (SALES, 2004, p.171).
A perspectiva sociológica da teoria da ação comunicativa diz respeito a dois tipos de
ação, que Habermas (1989) identifica como: ação instrumental e ação comunicativa. As
sociedades que possuem locais onde há a prevalência da ação instrumental são identificadas
pelo filósofo Habermas (1989), como mundo sistêmico e aquelas nas quais a prevalência é da
ação comunicativa, a identificação é de mundo vivido ou mundo da vida.
Cittadino (2004) contextualizando Habermas (1989), afirma que “a ação
comunicativa, por facilitar o diálogo acaba por trazer uma melhor decisão para os indivíduos
e diferentemente do mundo sistêmico, o mundo da ação comunicativa é, o mundo vivido ou o
mundo da vida” (CITTADINO, 2004, p.108).
A ação comunicativa “[...] modifica a relação entre os indivíduos, transformando o
subjetivo em intersubjetivo, possibilitando maior compreensão do individual, e do coletivo e do
bem-estar social, permitindo a organização social, a elaboração e a validação de normas [...]”
68
(SALES, 2004, p. 175).
Neste sentido, os sujeitos têm capacidade de linguagem e ação e podem estabelecer
práticas argumentativas, por meio das quais há uma garantia intersubjetiva de
compartilhamento de um contexto comum, de um “mundo da vida”. Com isso, para Cittadino
(2004) há um despertar para o indivíduo quanto suas responsabilidades como membros da
sociedade, e como decorrência deste despertar, desta modificação, surge uma compreensão
não só das manifestações individuais, mas também daquelas ocorridas no mundo à volta, o
que acaba possibilitando o entendimento, cooperação e solidariedade permitindo, portanto,
uma compreensão maior dos fenômenos individuais, propiciando uma melhor percepção dos
sentimentos entre os envolvidos. Nesta perspectiva de interação, “[...] há desta forma, uma
inter-relação entre sujeito e sociedade, que se processa através de estruturas linguísticas,
formando aquilo que Habermas designa por intersubjetividade” (CITTADINO, 2004, p.91).
Temos, portanto, a construção de relações sociais apoiadas no princípio da
reciprocidade. Os processos se legitimam quando há o entendimento dos cidadãos acerca das
regras de sua convivência, o que somente é possível quando há comunhão de valores. Neste
caso, temos todos os interessados atuando ativamente, falando, agindo, intervindo, fazendo
afirmações, trazendo problemas, apresentando novas declarações e tudo sempre nas mesmas
condições de igualdade e com liberdade de comunicação, condições estas totalmente
favoráveis ao diálogo e que Habermas (1989) identificou como sendo uma ética discursiva.
As pessoas se valem da argumentação para buscar o entendimento e justamente, esta
argumentação racional, tem o condão de fazer com que as partes possam se convencer
mutuamente da veracidade das afirmações e declarações mútuas. O entendimento entre as
pessoas depende da argumentação entre elas (SALES, 2004, p. 176).
Como já afirmado, a formação discursiva da vontade que permite a interação
comunicativa com a utilização do melhor argumento, propiciaria aos sujeitos a possibilidade
de promoverem mudanças sobre algumas de suas convicções e com isso encontrariam razões
para seus atos. Assim, os próprios sujeitos orientariam suas ações alcançando a “situação
ideal de fala” proposta por Habermas (1989).
Habermas (1989) propõe uma teoria crítica da sociedade, que tem no agir
comunicativo o principal mecanismo de realização de entendimentos entre sujeitos, os quais
formam uma consciência moral dirigida por princípios de justiça, com igual respeito por cada
um dos integrantes do corpo social e consideração dos interesses de todos, orientados pela
ideia de reciprocidade. Assim, formam-se consensos com base nesses ideais de justiça e
solidariedade social.
69
Esta forma de restabelecer o consenso, com o uso de argumentos sobre o qual se
constrói uma razão comunicativa nos moldes propostos por Habermas (1989), tem como
fundamento a existência de uma sociedade fraterna, que tem como pilares a amizade e a
solidariedade, permitindo que as partes possam decidir suas próprias lides, promovendo o
diálogo e a cooperação entre si.
Quando se fala da teoria do Agir Comunicativo para uma sociedade de Estado de
Direito, institucionalizada, corre-se o risco da impossibilidade das partes decidirem suas
próprias lides, devido a institucionalização do acordo por meio das leis jurídicas e do interesse
individualista.
Mas quando se pensa em comunidades tradicionais, o agir comunicativo, em
pequenos núcleos como: vilas, associações e movimentos sociais, pode proporcionar avanços
surpreendentes. Tem possibilidade de desenvolver um cidadão crítico, com o olhar para o
outro, solidário, e com uma comunicação voltada para o partilhamento do comum. E assim os
indivíduos partiriam da comunidade local, capaz do diálogo e da cooperação para a vivência
na sociedade global com a possibilidade de uma melhor integração social.
Esta reflexão sobre a teoria do agir comunicativo serviu de referência na observação
participativa da comunidade pesquisada para este trabalho, para verificar as decisões das
práticas comunicativas e a gestão na comunidade dos Quilombola dos Carrapatos da
Tabatinga.
Observou-se no período da pesquisa de campo realizada entre outubro de 2015 a
abril de 2016, que as reuniões na Associação dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga são
realizadas de modo extraordinário de acordo com as necessidades. As reuniões são
convocadas de acordo com as demandas, principalmente para tratar dos eventos culturais e
manifestações de protestos, referentes às comunidades quilombolas realizados pelo Brasil,
onde há intensa participação dos jovens, além de outros assuntos locais. Há compartilhamento
de ideias sobre a atividade que será desenvolvida no evento. Existe a preocupação dos
membros da comunidade na expressão da identidade quilombola e resgate da memória nos
diálogos. Tem momentos que os jovens querem se distanciar um pouco do tradicional, e
inicia-se uma discussão crítica sobre o que pode ser modernizado na raiz cultural dos
quilombolas.
Foi nítido o processo de desenvolvimento dos indivíduos para um olhar mais crítico,
com diálogos e a discussões sobre a melhor forma de propagar a luta contra o preconceito
racial, os territórios quilombolas, bem como a exaltação aos matizes africanos. Chegam sim
70
ao consenso sobre quais atividades representarão a identidade quilombola.
As questões políticas ficam mais a cargo de Sandra Andrade, atual presidente da
Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´Golo46
e membro
da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga. Ativa nas comissões em Brasília que
discutem as causas quilombolas. As reuniões na Associação são para promover as discussões
de políticas públicas com a comunidade. Sandra Andrade é a porta voz da comunidade em
Brasília. Quando há avanços significativos para as demandas sociais da comunidade ela
comunica a todos.
Observou-se durante o período da pesquisa de campo-outubro de 2015 a abril de
2016, que as questões das políticas públicas são discutidas conforme a prática do agir
comunicativo proposto por Habermas (1989).
Não existiu neste período pautas para a realização de reuniões a fim de serem
discutidas ou voltadas para as questões das políticas públicas, colocando as demandas sociais
da comunidade. Talvez a prática do diálogo e da discussão crítica desenvolvesse um maior
engajamento dos mais jovens nas questões políticas, tão importantes para o alcance das
demandas sociais, já que os adultos, em geral, saem da comunidade em busca de trabalho em
outras cidades. A comunidade fica enfraquecida neste ponto, a liderança fica um pouco
sozinha nas decisões e sobrecarregada na função política.
Ressalta-se que a comunidade tem uma participação ativa dos jovens nos eventos
culturais, e por vezes, as universidades federais e estaduais de Minas Gerais realizam oficinas
culturais, para cultivo da identidade e memória quilombola. Os jovens são participativos e
comunicam sua identidade quilombola com ótima formação, e são conscientes das demandas
sociais da comunidade.
Dona Sebastiana, a Dandara47
mais idosa da comunidade, tem uma grande
participação na comunicação comunitária. Responsável por comunicar a importância da
participação de todos da comunidade nas questões dos negros, lembrando do sofrimento e de
todas as conquistas já alcançadas, e reverenciando os antepassados que não tinham essa
46
A Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo foi criada no ano de 2005
com o apoio de várias entidades, dentre elas, o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – CEDEFES. A
ideia de criar uma organização estadual das comunidades quilombolas adveio dos próprios quilombolas que
entenderam ser fundamental sua articulação. O movimento que culminou com a criação da Federação teve início
em 2003, quando vários eventos sobre os direitos quilombolas proporcionaram a mobilização das comunidades.
Disponível em: < http://www.cedefes.org.br/index.php?p=ngolo>. 47
Guerreira do período colonial do Brasil, Dandara foi esposa de Zumbi, líder daquele que foi o maior quilombo das Américas: o Quilombo dos Palmares. Com ele, Dandara teve três filhos: Motumbo, Harmódio e Aristogíton. Valente, ela foi uma das lideranças femininas negras que lutou contra o sistema escravocrata do século XVII e auxiliou Zumbi quanto às estratégias e planos de ataque e defesa do quilombo. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=33387.
71
oportunidade se quer da luta. Dona Tiana faz diversas palestras e discursos, nos eventos
culturais que a comunidade participa, nas Universidades Federais, como porta-voz da
comunidade, e também muito respeitada pelo poder público em todas as esferas municipais,
Estaduais e Federais.
Tem inúmeras placas com homenagens da participação nas questões dos negros
quilombolas em todas as instâncias do poder público. Com orgulho, não de uma mulher
envaidecida, e sim por ter comunicado em todos os cantos, como ela diz, a força e o
sofrimento do negro e hoje canta na Festa de São Benedito, onde sai com seu congado a
Guarda de Moçambique de São Sebastião pelas ruas de Bom Despacho, agradecendo o direito
de poder falar!
2.4 O Congado: a força comunicante das matrizes africanas
Segundo o historiador Jeremias Brasileiro (2012) o Congado vem do termo congo,
que significa congar, dançar. É uma memória que vem com os escravizados do antigo Reino
do Congo, na África Central, com a essência de festejar algum momento. Naquela época era
comum eles celebrarem através da dança o nascimento de um príncipe, uma boa colheita e
visitas de pessoas de outras províncias, por exemplo.
Os festejos do Reinado reatualizam uma sabedoria centrada na filosofia banta,
designando novas formas de expressão dessa etnia. Os cortejos denominados Congados ou
Reinados nasceram das cortes que acompanhavam os Reis do Congo – soberanos negros,
eleitos entre escravos e libertos das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e
Santa Efigênia – por ocasião das festas públicas e rituais religiosos. Dessa forma,
compartilha-se com a ideia de que os descendentes africanos reterritorializam, no Brasil,
experiências étnicas, que podem ser observadas nos dados visuais e musicais, na realização
dos rituais e nas relações de parentesco. O Congado está além do que é observado nas
apresentações públicas. Para a preparação dos eventos, a comunidade se reúne, oportunizando
a troca de conhecimentos, relações socioculturais e inserção de valores (NERY, 2012, p. 10).
Na África, os bantus (mais de 500 povos) formam um grupo linguístico, segundo
Nery (2012), o termo “bantu” não significa uma cultura. Muito tempo antes dos portugueses
chegarem à África, já havia os povos bantus. Atravessaram as densas florestas do centro da
África e isso demorou séculos. Nessa façanha, misturaram-se com outros povos e venceram
outros. Forjaram-se reinados e uma civilização hierarquizada, não uma única cultura, mas
sim, muitas. Explicamos a diversidade cultural dos bantus, pela importância dada aos
72
antepassados. Cada grupo étnico bantu tem seus antepassados como ponto de união. É deles
que apreenderam a sabedoria dos provérbios. Dos antigos, receberam as leis para fazer justiça
no caso de uma briga de terras ou entre famílias; é deles que aprenderam a religião, a cura das
doenças, os instrumentos musicais e todas as outras coisas da vida. Assim, cada grupo, cada
clã, cada povo de bantu tem sua cultura própria (NERY, 2012, p. 24).
Portanto, existe a civilização bantu na África, o grupo linguístico bantu e muitas
culturas bantu. Alfredo João Rabaçal, intelectual e folclorista disserta sobre o Congado dizendo:
Os congos, congados, congadas, são um tipo de folguedo popular que
segundo a maioria dos autores que com que eles se têm impressionado,
forma entre as expressões afro-brasileiras em que se destacam de maneira
predominante tradições históricas e costumes tribais de Angola e Congo,
com a predominância de traços culturais do grupo Bantu, aculturados a
elementos do catolicismo catequético e ao brinquedo de mouros e cristãos
(RABAÇAL, 1976, p. 08-09).
A obra de Rabaçal (1976) retrata a presença temporal e espacial dessas práticas em
diferentes épocas e em mais de uma dezena de estados da federação, compreendendo um
período que vai dos fins do século XIX (1880) a meados do século XX (1960), esboçando um
panorama dessa manifestação cultural e religiosa no Brasil, revelando a presença de um
universo cultural do Congado constituído de realidades bastante heterogêneas.
A identidade faz parte do tripé: história, identidade e cultura. As raízes do congado
estão na África, principalmente nos povos bantus. Toda identidade tem uma história. Até
mesmo a identidade de uma pessoa tem tudo a ver com a história dela, desde criança, tudo
que ela aprendeu dos pais, da escola, da vida. No congado, os antepassados, as almas dos
escravos, o fundador da irmandade, reis, rainhas, capitães falecidos são lembrados e
reverenciados. A cultura congadeira é fiel aos ancestrais (RABAÇAL, 1976, p. 23).
Segundo o Frei Francisco Van Der Poel OFM48
, um franciscano holandês, chegado
ao Brasil em 1967, que foi quase direto para o vale do Jequitinhonha, onde encontrou um
montão de coisas que não conhecia. Pôde vivenciar a composição de alimentos diferentes
como farinha de mandioca, alho e pimenta, além de outras maneiras de fazer comércio, de
curar a espinhela caída e o quebranto, coisas que nunca tinha ouvido falar. Diferente era,
48
Frei Francisco Van der Poel, OFM, é graduado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências
e Letras (1973), graduado em Teologia pela Philosophicum Franciscanum Venray (1967), com especialização
em Teologia pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (1981). Atualmente, é Conselheiro da
Prefeitura Municipal de Contagem, Professor do Instituto C. G. Jung - MG, Membro da Comissão Mineira de
Folclore, do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais e Professor do Instituto Santo Tomás de Aquino.
Disponível em: <http://www.ofm.org.br/default.asp?pag=p000046>.
73
também, o modo de rezar e de fazer amigos. Com tudo isso, o Frei decidiu querer conhecer
melhor essa realidade. Desde então, junto com a artesã Maria Lira Marques, de Araçuaí,
anotou, em 15 mil folhas, parte da cultura dos pobres, das tradições orais daquela região.
Nesse trabalho, foi frequente e intensivo o contato com a Irmandade Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, da qual escreveu a história do primeiro centenário (1879-1979),
publicada pela Imprensa Oficial, com o título Rosário dos Homens Pretos (POEL, 1981).
Hoje, é irmão do rosário, nessa irmandade.
O Frei Chico, como é conhecido, diz que Cristianismo Afro no Congo existe desde
que os portugueses chegaram ao Golfo da Guiné, o cristianismo entrou lá e se consagrou. Em
1533, foi criada a diocese de Cabo Verde e Guiné. Outra diocese fundada no reino do Congo
já celebrou os seus 400 anos de existência. Muitos escravos bantos, do Brasil, já eram cristãos
na África. No Golfo da Guiné, a recepção do cristianismo não foi passiva. No reino do Congo,
surgiram algumas manifestações afrocatólicas. A jovem Beatrice Kimpa Vita liderava um
movimento de Santo Antônio, que africanizava o cristianismo. Ela encarnava Santo Antônio e
afirmava que Jesus e muitos santos nasceram no Congo. Beatrice foi condenada pela
inquisição e morreu na fogueira, em 1706 (POEL, 1981, p. 62-65).
Como Nossa Senhora do Rosário entrou na devoção dos negros em Portugal, na
África e no Brasil? Uma lenda contada em todas as irmandades coloca a Senhora do Rosário
como sendo a origem do congado. A irmandade do rosário (dos brancos) fundada na
Alemanha, em1409, chegou a Lisboa em 1478.
A mais antiga menção a uma “Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos” foi encontrada m em 14 de julho de 1496, portanto, quatro anos antes da chegada dos
portugueses ao Brasil. Essa informação consta num alvará dado à dita confraria, citando no
mosteiro de São Domingos de Lisboa, “para poderem dar círios e recolher as esmolas nas
caravelas que vão à Mina e aos rios da Guiné” - Documento Confirmações Gerais, L. 2 fls.
107v, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. – 108 - (POEL, 1981, p. 66-68).
Em 1526, já havia, na ilha de São Tomé, a irmandade dos “Homens Pretos”. Outras
irmandades do Rosário existem no Congo, na Angola e em Moçambique, desde o séc. XVII.
Antes de 1552, já existia, no Brasil uma irmandade para os escravos da Guiné, segundo Frei
Odulfo VanDer Vat. O. F. M. e outros historiadores. Em 1610, o rei do Congo entrou na
irmandade do rosário, fundada por Frei Lourenço O.P., em Mbanza, capital do Reino do
Congo. Entendemos que as irmandades do rosário surgidas no Brasil, não vieram só da Europa,
mas também da África. Provavelmente, houve escravos africanos que já vieram, para cá, irmãos
do rosário (POEL. 1981, p. 69).
74
A criativa história do aparecimento de Nossa Senhora do Rosário, fundadora das
irmandades dos homens pretos, é antiga e pertence ao cristianismo banto. Muitos dizem que
Nossa Senhora apareceu no Brasil, poucos dizem que foi na África. Os congadeiros contam
que os brancos, donos de escravos, não conseguiram tirá-la do lugar. O candombe (ou o
Moçambique) pelejou e conseguiu. Ela ficou com os negros e aceitou-os como eram: pobres,
escravos sofridos, com seus reinados e tambores (POEL, 1981, p. 71).
Segundo Frei Chico ao falar da identidade das irmandades do rosário em Minas – e
que também existem em outros Estados – “não podemos nos esquecer de que a grande
maioria dos escravos que veio para o Brasil é de origem bantu” (POEL, 1981).
A questão bantu é complexa. Isso se observou, por exemplo, na luta pela valorização
da identidade negra no Brasil. Os nagôs dos candomblés do Brasil vieram de reinados
situados ao norte do Rio Congo. Os congadeiros do Brasil são bantu-descendentes do Congo,
da Angola e do Moçambique, regiões colonizadas por Portugal (POEL, 1981, p. 84).
Suas origens estão nos reinados localizados, principalmente, ao sul do Rio Congo.
Os numerosos povos bantus africanos formam um grupo linguístico. Percebe-se alguma
origem comum pelo uso de línguas parecidas. Os bantus, também têm em comum, vários
elementos importantes, como a fé em um só Deus próximo aos humanos (Nzâmbi,
Zambiapunga e outros nomes) e a amorosa dedicação devida aos antepassados, sempre
presentes (POEL, 1981, p. 85).
O sistema perverso da escravidão no Brasil colônia, visava desestruturar os grupos
étnicos de origem. Para evitar conspirações, os donos de escravos compravam africanos de
línguas e origens diversas. Com grande criatividade, os bantus do Brasil partiram para a
adaptação, sem poder reconstruir os grupos étnicos originais com os mesmos antepassados.
Desde a travessia do mar em navios negreiros, os bantus tornados escravos, que eram de
povos e línguas diferentes, criaram uma língua comum, o chamado “português crioulo”. Entre
si, esses escravos tornavam-se “malungos”, companheiros na luta pela sobrevivência, também
cultural (POEL, 1981, p. 93).
Foram às irmandades de Nossa Senhora do Rosário (ao menos, desde 1496), que
possibilitaram uma sofrida reorganização e a busca da identidade dos bantos, escravos,
cristãos, no Brasil. Surgiram grupos de “homens pretos” e de “pardos”. Criar é preciso.
Muitos dos congados atuais começaram a partir de uma família líder que polarizava a
participação de outras (POEL, 1981, p.95).
Na grande Belo Horizonte, temos os arturos de Contagem, o Moçambique “Treze de
Maio”, no Concórdia, o congado do Jatobá e muitos outros que cultivam seus antepassados
75
recentes. No congado, distinguimos vários grupos: o candombe é o mais antigo e o mais
banto; depois vem Moçambique, congada, marujos, caboclinhos, catopês, cavaleiros de São
Jorge. Em Araçuaí (MG) há os tamborzeiros; lá ninguém fala “congado” e sim “tamborzeiros
do rosário”(POEL, 1981, p. 99).
As irmandades do rosário comprovam que é possível viver no Brasil, com a
diversidade própria e tradicional dos bantos, mantendo viva a memória da África bantu. Há
reinados,“ngomas” (tambores), os antepassados e Deus, que é chamado de Zâmbi (POEL,
1981, p. 100).
O candombe é o que há de mais banto no congado. É um grupo “de raiz”. Uma
espécie de sociedade fechada, na qual se reúnem negros de Nossa Senhora do Rosário que
desejam ser cristãos sem deixar de ser bantos. Sabendo que, desse modo, correm o risco de
alguma perseguição, dão-se ao direito de utilizar uma linguagem enigmática e de não revelar
o candombe a forasteiros. No candombe são lembrados os antepassados, ali são tocados os
tambores antigos e sagrados (Santana, Santaninha e Chama) e Zâmbi (Deus Criador) está com
eles.
É assim que sobrevivem as manifestações culturais dos bantu-descendentes do
Brasil. Os candombeiros guardam bem seus mistérios e não há livros a respeito. Costumam
dizer: “língua que fala muito, merece faca de sapateiro.” Em muitas coisas, o candombe se
parece com o jongo e o caxambu” (POEL, 1981, p.112).
2.5 Chico Rei
Do famoso “Chico Rei”, a história oficial não conta muita coisa. Não existem
documentos a seu respeito. Há romances que são inventados, mas a história de “Chico Rei” é
verdadeira, na medida em que ela representa coisas acontecidas com muitos negros escravos.
Imaginem no tempo da escravidão, que uma vez por ano, um negro vai saindo da rua com
uma coroa bonita na cabeça, acompanhado por uma guarda de congo, dizendo: “Eu não sou
escravo nada! Eu sou é Rei!” (NERY, 2012, p.27).
Esse homem dá uma demonstração de coragem e dignidade. É isso que significa a
memória de Chico Rei. Ele representa essa resistência histórica do povo negro do Brasil, essa
consciência de dignidade humana, essa memória dos reinados da África. Por isso, Chico Rei
tornou-se um personagem tão importante. Um rei Congo é escolhido na sua comunidade, aos
poucos. As lideranças, os capitães, vão observando quem servirá melhor para representar essa
dignidade e essa memória da África, a identidade brasileira do congado tem tudo a ver com a
76
memória da África e da escravidão (NERY, 2012, p. 27).
2.6 Missa Conga
A missa Conga é uma manifestação recente. Sempre houve missas nas festas de
Nossa Senhora do Rosário, mas não existiram manifestações “afro” com tambores dentro das
igrejas. Pelo menos disso não temos notícia, nem mesmo nos séculos XVI, XVII e XVIII,
quando o padroado e a igreja do Brasil ainda não seguiam o direito canônico da igreja
tridentina que proibia o uso de qualquer tambor na liturgia. Sabe-se que as irmandades
cantavam suas missas festivas em latim e muito solenemente. A missa Conga é do tempo do
Concílio Vaticano II (década de 1960), quando, no Congo, surgiu uma famosa “Missa Luba”,
ainda em latim, mas de caráter fortemente africano. No canto do Credo, tambores de sinais
avisam a morte de Jesus. Essa missa foi cantada dentro da basílica de São Pedro, em Roma,
pelos Trovadores do Rei Balduino, e emocionou o mundo inteiro. Foi naquele tempo que a
Missa Conga surgiu, em Belo Horizonte. Não se trata de uma missa com enfeite de congado e
sim, de uma celebração da memória da paixão de Cristo, unida à memória da escravidão do
povo negro (NERY, 1981, p. 28).
Impressiona muito quando, no início da missa, o congado canta diante da porta
fechada da igreja e bate para o padre abrir dizendo: “Branco ia para a missa, negro é que
carregava. / Se dissesse alguma coisa, de chicote ele apanhava. / Branco reza na igreja, negro
reza na senzala. / E continua: “Senhor padre, abra a porta, que o negro quer entrar.” (NERY,
2012, p.28).
Existem alguns grupos de congados ligados à umbanda, por quê? A partir da segunda
metade do século XIX, a igreja católica romanizada interditou e, até derrubou, várias igrejas
do rosário para impedir a ação das irmandades dos “homens pretos” ou dos “pardos”.
Segundo o direito canônico da época, o vigário da paróquia era presidente nato de todas as
irmandades e associações religiosas. Isso trouxe choques violentos entre o clero e as
irmandades, até então dirigidas por leigos. Diante dessa luta pelo poder, o negro atingido
passou a pensar assim:“minha história não posso negar!”. E deu-se ao direito de celebrar a
memória da África e da escravidão onde fosse bem recebido. Foi assim que costumes dos
irmãos do rosário se misturaram com costumes dos cultos afrobrasileiros (NERY, 2012, p.
29).
Tanto as irmandades do rosário, como os terreiros do candomblé e da umbanda
foram uma força muito grande para os negros que tiveram suas famílias destruídas pelo
77
sistema da escravidão. No rosário, havia os irmãos e também a “Mamãe do Rosário”, além da
autoridade do rei e da rainha. Nos terreiros, havia pai de santo, mãe de santo, filhos de santo.
Na verdade, irmandades e terreiros eram substitutos da vida familiar, da união que precisavam
para viver e para se criarem. Um dos cantos entoados diz: “Esses pretos se soubessem, / a
força que o negro tem, / não toleravam cativeiro de ninguém” (NERY, 2012, p.30).
Para título de esclarecimento não pretendo aprofundar o texto presente no Congado,
pois não é objeto de estudo desta dissertação. Porém vou explanar brevemente para efeito de
conhecimento do rito, pois foi observado que suas significações e (re) significações são
importantes para a análise do processo de comunicação dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga com a sociedade local, este sim um dos objetivos de pesquisa.
O congado tem seu rito de início com a busca e levantamento das bandeiras. A
bandeira de aviso é levantada antes dos festejos na Igreja e/ou sede da Guarda. Normalmente,
esse ritual acontece a noite. Forma-se a guarda, uniformizada ou não, que parte da sede para
buscar as bandeiras que estão nas residências de alguns devotos. Ao retornar para a sede com
as bandeiras, estas são presas aos mastros que são levantados com orações, cânticos e
louvações. Cada mastro é tocado pelos bastões ou espadas e acendem-se velas ao seu redor
(NERY, 2012, p.42). Eles entoam cantos: “A bandeira vai pro céu com prazer e alegria A
bandeira vai pro céu No Santo Rosário de Maria” (NERY, 2012, p.54).
Após o levantamento da bandeiras é a busca do trono. Na manhã da festa, ainda bem
cedo, a Guarda, “dona da festa”, busca o reino (trono coroado) em suas residências e o leva
para o local da festa, numa espécie de cortejo. Ele é composto, na maioria das vezes, pelos
Reis Perpétuos: rei congo, rainha conga, de São Benedito, de Santa Efigênia e também os reis
do ano ou festeiros que patrocinam as festas (NERY, 2012, p.56). E entoam o seguinte canto:
“Foi pro mar, foi pro mar São Benedito Vem me ajudar, me ajudara levar coroa de
Nossa Senhora do Rosário” (NERY, 2012, p.70).
Tem a chegada das guardas na festa sempre entoando cânticos e dançando após a
busca do trono tem. Para os devotos, a música e a dança são uma forma de oração (NERY,
2012, p.72). Assim eles cantam: “Oh! Licença. Oh! Licença. Oh, licença venho pedir, a
Senhora do Rosário foi quem me trouxe aqui!” (NERY, 2012, p.101).
Com a chegada das guardas começam as saudações entre elas, com troca de
bandeiras e a reverência entre capitães, rainhas e reis (NERY, 2012, p.102). E cantam: “Olha
a bença, olha a bença Senhor Rei, Senhora Rainha Olha a bença” (NERY, 2012, p.111).
Logo após as saudações entre as guardas chegam às festas, elas louvam seus santos
de devoção, que estão nas bandeiras nos mastros. É um momento bastante solene (NERY,
78
2012, p.112). E entoam o canto: “Nesse palácio tem coroa, nesse palácio tem bandeira, Nesse
palácio tem amor. A Senhora do Rosário, Ela é nossa padroeira” (NERY, 2012, p. 121).
Dentro dos reinos, porque cada guarda tem seu reino, todos chegam, entram, rezam
e/ou cantam louvores e orações, chamadas por muitos devotos, de marchas. As músicas e as
danças, para os devotos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, constituem uma oração,
visto que eles não cantam simplesmente, eles oram cantando e dançando (NERY, 2012,
p.123), como este: “Vamos louvar nossa mãe querida A Senhora do Rosário e a Senhora
Aparecida” (NERY, 2012, p.141).
Logo em seguida tem a hora das refeições, é o momento de confraternização. São
servidos lanches, cafés e almoços, sempre com muita fartura. Antes e depois das refeições, há
uma benção dos alimentos e, ao término são entoados cânticos em agradecimento: “Oh! Jesus
Cristo fez um banquete Nossa Senhora que pôs a mesa e todos os anjos do céu cantaram para
agradecer a mesa” (NERY, 2012, p.155).
Após a refeição saem em procissão pela cidade para realizar as manifestações de
louvor. Este é o momento de demonstração de fé. Ao longo da festa, as Guardas exaltam e
louvam Nossa Senhora do Rosário e, também seus santos de devoção (NERY, 2012, p.
156).Um dos cantos é: “A Virgem Nossa Senhora, Ela é nossa Guia. Vamos viajar com Ela,
toda hora e todo dia!” (NERY, 2012, p.175).
A procissão se dirige à igreja onde a missa é celebrada durante a Festa do Reinado
de Nossa Senhora do Rosário, e é chamada pela maioria dos devotos, de Missa Conga, mas
alguns dos entrevistados a denominam de Missa Congo ou Missa do Congo. De acordo com
Manoel Fonseca dos Reis, da Ordem Templário da Cruz de Santo Antônio de Pádua,
denomina-se ‘Missa do Congo’ aquela Celebração Eucarística que tem a participação de
membros da Irmandade do Rosário (Guardas, Ternos, Cortes ou Bandas) de forma ativa na
Liturgia, seja executando suas ‘marchas’ (hinos de louvor ao som de antigos instrumentos de
percussão), seja realizando ritos expressivos, demonstrativos de sua fé inabalável,
obedecendo a uma tradição de quase três séculos de existência (NERY, 2012, p.176).
Como já foi explicado anteriormente por Frei Chico, as Irmandades do Rosário
esperam do lado de fora da Igreja e entoam o lamento negro, para que o padre abra a porta e
inicie a celebração da Missa Conga. Outro momento de fundamental importância é o
Ofertório, quando ocorre a ‘Entrega das Coroas’ e de outras peças ritualísticas, tais como o
bastão, a espada, a capa, o cetro, entre outros. E cantam na entrega: “Oh! Entregai senhor Rei
Oh!Entregai senhor Rei Oh! Entregai vossa coroa Oh! Entregai senhor rei Oh! Entregai sá
Rainha Oh! Entregai sá Rainha Oh! Entregai vossa coroa Oh! Entregai sá Rainha” (NERY,
2012, p.191). E entoam outros como: “Oh! Deus salve, Oh! Casa santa Onde Deus fez a
79
morada oiá meu Deus. Onde Deus fez a morada, oiá! Onde mora o cálice bento onde mora o
cálice bento, E a hóstia consagrada, oiá, meu Deus. E a hóstia consagrada, oiá! (NERY, 2012,
p.193).
Os cortejos e procissões acontecem quando as guardas se dirigirem para algum lugar,
seja para o refeitório ou para o palácio de uma rainha, todos seguem em cortejo. No entanto,
existe um momento da Procissão, quando são levados os andores, o que acontece em
momentos diferentes, dependendo da festa, podendo ser antes ou depois da Missa. Já a ordem
de organização das Guardas, para o cortejo ou procissão, foi narrada, diferentemente, por
diversos devotos. O cortejo mais comum é aquele em que o Moçambique vem por último
conduzindo o Trono Coroado, pois foi ele quem conseguiu tirar Nossa Senhora das águas
(NERY, 2012, p.194). E cantam: “Que Santa é essa Que vem no andor? Senhora do Rosário
Mãe do Criador”. E outras canções como: “Lá vem Nossa Senhora Com sua fita voando
Quem tiver a fé com ela vem atrás acompanhando.” (NERY, 2012, p.203).
Existem muitos tipos de coroação: dos reis festeiros, do trono coroado, no dia da
festa, no ano anterior. Porém, a mais emocionante e que guarda muito do mistério do Reinado
de Nossa Senhora do Rosário, é a coroação para a herança de coroa, quando uma rainha ou rei
congo falecem e os herdeiros recebem a coroa como herança de um legado, uma função, um
papel, uma missão a ser cumprida (NERY, 2012, p. 220).
E cantam: “Recebei Vossa Rainha Coroa de Nossa Senhora, Recebei Vossa Rainha
Coroa de Nossa Senhora está coroada, está coroada a nossa Rainha agora está coroada em
nome de Deus e Nossa Senhora” (NERY, 2012, p.229).
E por fim, o encerramento oficial da festa de cada Guarda é marcado pelo
descimento das bandeiras. E cantam: “Bandeira vai descer do céu vai / Vai descer do céu
bandeira santa” (NERY, 2012, p.218).
O Congado é uma das comunicações dialógicas de grande importância dos
quilombolas para provocar na sociedade brasileira, a discussão e o diálogo sobre a
importância do negro na construção do país. Criticar a posição do negro apresentada pela
literatura de nosso país como um povo sem voz e submisso ao sistema escravista sem
nenhuma força de reação.
O congado traz sim todo sofrimento e dor dos negros sofrido na senzala em suas
indumentárias, mas traz a força da resistência reafirmando sua identidade entoada em seus
cantos de luta. Relembram e prestam homenagens a seus ancestrais escravizados, guerreiros
que desde o primeiro dia em terras brasileiras nunca se submeteram ao julgo da escravidão,
80
sempre resistiram.
Hoje o congado traz na comunicação dialógica a reflexão sobre a desigualdade social
abarcada pelo preconceito presente em nossa sociedade em relação aos negros. A participação
dos negros na sociedade brasileira tem sido conquista desta resistência, a luta que perdura por
mais de 300 anos.
A comunicação exercida no congado é uma das ferramentas de luta do negro.
Oportunidade de comunicar a sociedade local sua história, memória e identidade de força e
resistência. Nas manifestações culturais da comunidade quilombola o que mais se ouve, e
repetidas vezes, é a frase: Somos capazes sim, precisamos de oportunidades!
2.7 A Festa de Nossa Senhora do Rosário em Bom Despacho e suas Cortes do Reinado
A Festa de Nossa Senhora do Rosário é realizada há mais de 150 anos em Bom
Despacho. A confraternização reúne cerca de 21 congos locais. Como é manifestação
religiosa e cultural, tem ritos católicos e cânticos folclóricos dos seus freqüentadores, por
meio das congadas. É chamado em Bom Despacho de “Cortes” (pronuncia-se “Córtes”, mas
faz referência as cortes da monarquia).49
E os participantes do Congado são chamados de
reinadeiros.
A festa tem início geralmente nos primeiros dias de agosto, por volta do dia 05. São
nove dias de preparação com confissões e missas, com a participação dos reinadeiros e
sociedade local. Após a novena segue os 4 dias da festa em devoção a Nossa Senhora do
Rosário, e o encerramento se dá por volta do dia 17 de agosto com o recolhimento das
bandeiras e descida dos mastros.50
É uma festa católica organizada pelo padre da paróquia de Nossa Senhora do
Rosário, onde as congadas são consideradas como parte do folclore regional, embora não
esteja prevista nos cânones da Igreja Católica Romana. Mas como vimos, os negros vindos da
África que pertenciam as irmandades do Rosário, trazem estas manifestações do reinado do
Congo para o Brasil, e em Minas Gerais na cidade de Bom Despacho tem representantes das
comunidades quilombolas que participam com suas cortes na festa de Nossa Senhora do
Rosário em Bom Despacho51
.
As outras cortes que desfilam na festa, são compostas por sertanejos, pequenos
agricultores e também trabalhadores do campo. Levam suas bandeiras com seus símbolos que
49
Informação fornecida pela Associação dos Reinadeiros de Bom Despacho em 16 de Junho de 2015. 50
Informação fornecida pela Associação dos Reinadeiros de Bom Despacho em 16 de Junho de 2015. 51
Informação fornecida pela Associação dos Reinadeiros de Bom Despacho em 16 de Junho de 2015.
81
os representam. Eles utilizam além dos tambores, instrumentos de cordas e sanfonas, e seus
cantos são de agradecimentos e devoção a Nossa Senhora do Rosário. Diferente das cortes
Moçambique que representam os quilombolas, geralmente utilizam instrumentos de
percussão, principalmente os tambores, e os cantos entoados reverenciam os antepassados
africanos, e sempre com referência ao sofrimento da escravidão e a desigualdade social que
até nos dias de hoje perduram52
.
Nestes dias da Festa de Nossa Senhora do Rosário que duram em média nove dias de
preparação e quatro dias de cortejos das cortes, é intensa a participação da população local.
Saem às ruas para prestigiarem as cortes, doam esmolas para as cortes em forma de dinheiro e
mantimentos quando eles passam, uma tradição forte da festa. Estas esmolas são entregues a
paróquia de Nossa Senhora do Rosário.
Por se tratar da maior festa religiosa da cidade, e com intenso fluxo turístico, a
Câmara de Vereadores de Bom Despacho aprovou em 2014, o Projeto de Lei 51/2014, de
autoria do Executivo que concede subvenção aos cortes de reinado e à Associação dos
Reinadeiros de Bom Despacho. O valor do repasse é de R$ 25 mil. A proposta, inicialmente,
não iria para votação.
Porém, durante a sessão legislativa os vereadores interromperam a reunião e
decidiram inserir o texto. A proposição foi aprovada, em caráter de urgência, por
unanimidade53
.
Para o presidente da Câmara, Maurício do Ima, a aprovação do texto significa a
redução dos custos para a Associação. “É importante esta aprovação porque irá baratear o
custo dos devotos de Nossa Senhora do Rosário com os gastos da festa”, afirmou. O valor
distribuído para a Associação será dividido da seguinte maneira: R$ 21 mil para os cortes (R$
1 mil para cada um deles) e R$ 4 mil para a Associação.54
Devido a importância da festa e a participação dos quilombolas da região com suas
Cortes, a autora da pesquisa observou a Festa de Nossa Senhora do Rosário que foi realizada
do dia 12 a 17 de agosto de 2015 em Bom Despacho, a partir do término da novena.
Após o término da novena houve a visita dos Cortes aos festeiros no dia 12 de
Agosto. Os Cortes visitam os moradores de Bom Despacho em suas casas, onde são recebidos
com comes e bebes, e também é neste dia que pedem as esmolas, que são em dinheiro, para
levarem à paróquia de Nossa Senhora do Rosário, os Cortes convidam os moradores para a
52
Depoimento dado por D. Tiana em 05 de maio de 2016. 53
Informação disponível no site oficial da Câmara de Vereadores de Bom Despacho.
<http://www.camarabd.mg.gov.br/site/uploads/legislacao/00000000856.pdf>. 54
Informação disponível em: <http://www.jornalfiquesabendo.com.br/2014_08_03_archive.html>.
82
festa. É grande a participação da sociedade local que abre suas portas, alguns já ficam de
portas abertas, para receberem a visita dos Cortes55
.
No dia seguinte da visita aos festeiros, dia 13 de agosto, às seis horas da manhã teve
a Alvorada na Capela Cruz do Monte, com a presença da imagem de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito. Entoam-se muitos cantos em louvor a Nossa Senhora do Rosário e a
São Benedito. Muito bonito o rito ao amanhecer56
. Após a Alvorada, no mesmo dia, houve a
missa de abertura à festa, às oito horas da manhã na Igreja Nossa Senhora do Rosário
realizada pelo atual padre da paróquia Cristiano Caetano Leal.
Logo após a missa de abertura teve o levantamento dos mastros das Cortes que
participaram da festa. Foi realizada uma manifestação cultural religiosa de cada Corte,
conforme sua religião. Observou-se que houveram Cortes, por exemplo, dos quilombolas que
cantaram em suas línguas nativas e dançaram em volto do Mastro com gestos que lembram os
movimentos das danças de matrizes africanas. Este ritual foi realizado na Praça do Rosário.57
No dia posterior, 14 de agosto houve a recitação do Rosário na Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário. Uma missa solene com a participação das Cortes e da sociedade
local. No dia 15 de agosto no sábado, saíram as Cortes pelas ruas de Bom Despacho. Os
cortejos saíram tocando seus instrumentos e entoando seus cânticos de louvor a Nossa
Senhora do Rosário. E foram em direção a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário. A
noite foi celebrada a Missa de Ações de Graças com a participação dos Reis e Rainhas de
Bandeiras e da Corte de Nossa Senhora.
No domingo dia 16 de agosto foi realizado pelo padre Cristiano Caetano Leal pela
manhã a Missa Conga, que tem como início de ritual a porta da Igreja fechada e os Cortes
batem na porta para o padre abrir, e entoam cantos de lamento pedindo ao padre que abra. Foi
um momento de muita emoção, e assim que as portas são abertas os Cortes entram com seus
tambores e cantos e entoam louvores a Nossa Senhora do Rosário. Assim que todos entram o
padre dá início a Missa Conga. No domingo a tarde houve o cortejo das Cortes pelas ruas de
Bom Despacho até a Praça do Rosário, para realizar as descidas dos Mastros. Mais uma vez
cada Corte fez seu ritual de danças e cantos em volta dos seus Mastros. Após o término do
ritual desceram os mastros, e assim foi encerrada a Festa de Nossa Senhora do Rosário em
55
Observação de campo realizada pela autora nos dias 12 de agosto de 2015 na Festa de Nossa Senhora do
Rosário na cidade de Bom Despacho. 56
Observação de campo realizada pela autora no dia 13 de agosto de 2015 na Festa de Nossa Senhora do Rosário
na cidade de Bom Despacho. 57
Observação de campo realizada pela autora no dia 13 de agosto de 2015 na Festa de Nossa Senhora do Rosário
na cidade de Bom Despacho.
83
201558
.
Foi uma das melhores manifestações populares presenciadas pela autora. Houve uma
intensa troca comunicante entre a sociedade local, moradores das regiões próximas com as
comunidades representadas pelos Cortes. Foram identificados elementos de significações e re
(significações) da pluralidade de culturas como as: sertanejas, africanas e indígenas. Todos
puderam comunicar suas raízes, bem como seus lamentos em forma de canto e dança, sempre
homenageando seus ancestrais.
Porém desde 2011 a corte dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga não participam
mais com sua Corte e a guarda capitaneada por Dona Tiana. O motivo foi uma divergência
sobre a organização da festa gerenciada pela Paróquia de Nossa Senhora do Rosário. Dona
Tiana teve uma discussão a respeito das esmolas arrecadadas durante a festa. Segunda ela59
, o
Padre Cristiano Caetano Leal da paróquia queria a doação em dinheiro e que fosse prestado
contas sobre a arrecadação. Dona Tiana queria realizar a doação em alimentos e o padre não
concordou, pois existe a Associação do Reinadeiros de Bom Despacho. Todas as cortes que
participam da Festa de Nossa Senhora do Rosário são inscritas na associação, e todas por
regra entregam esmolas em dinheiro na Paróquia.
O padre Cristiano Caetano Leal, responsável pela organização da festa de Nossa
Senhora do Rosário desde 2011, jamais proibiu a Guarda Moçambique de São Sebastião
capitaneada por Dona Tiana e seus membros, os quilombolas Carrapatos da Tabatinga, de
participarem da festa. Foi Dona Tiana que decidiu não participar mais, por não querer se filiar
a Associação dos Reinadeiros, e também entregar esmolas em dinheiro, pois queria entregar
em alimentos.
Dona Tiana hoje participa da festa de forma independente, faz o cortejo com idas a
Santa Casa, e a casa paroquial de Nossa Senhora do Bom Despacho, onde tem o padre
“Mundinho”60
como carinhosamente o chama. Dona Tiana tem imenso apreço por ele e diz
“ele é um Homem de Deus”, ela realiza seus cantos de agradecimento a Nossa Senhora do
Rosário e volta para sua comunidade61
.
A Secretária da Cultura em exercício62
reconhece que a falta da participação da
comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga na festa de Nossa Senhora do Rosário faz
58
Observação de campo realizada pela autora no dia 16 de agosto de 2015 na Festa de Nossa Senhora do Rosário
na cidade de Bom Despacho. 59
Entrevista realizada em 04 de maio de 2016 na residência de D. Tiana na cidade de Bom Despacho. 60
Padre José Raimundo da Costa da Paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho. 61
Depoimento dado a autora em 04 de maio de 2016. 62
Entrevista realizada em 04 de maio de 2016 na sede da Secretária da Cultura de Bom despacho com a Sra.
Tânia Maria Teixeira Nakamura e seu assistente Felipe.
84
muita falta. Por meio de seus funcionários, houveram algumas tentativas de aproximação
entre Dona Tiana e o padre Cristiano Caetano Leal da paróquia de Nossa Senhora do Rosário,
mas não alcançaram muito êxito. Este ano 2016, Dona Tiana prometeu ver se ela voltará a
participar, mas confidenciou que provavelmente não. Concordo com a secretária de cultura,
Sra. Tânia Maria Teixeira Nakamura, é uma pena não ter a participação da corte da Guarda
Moçambique de São Sebastião, capitaneada por Dona Tiana, a mais velha Dandara da
comunidade quilombolas Carrapatos da Tabatinga.
Poder observar a Festa realizada em agosto de 2015 foi uma oportunidade única, pois
a Festa de Nossa Senhora do Rosário proporciona as trocas comunicantes dos quilombolas
com a sociedade local. Eles por meio das guardas desfilam como uma comunidade negra
forte, presente no exercício da sua cidadania, entoam seus cantos com suas vestes e
indumentárias com significados de resistência, homenageiam seus ancestrais africanos e
agradecem a Nossa Senhora do Rosário sua libertadora. Infelizmente os quilombolas
Carrapatos da Tabatinga não participam desde 2011, mas participam da festa de São Benedito
realizada na cidade e como cita Dona Tiana “o Santo dos negros” é a festa também, segundo
ela.
2.8 A Festa de São Benedito: a expressão comunicante dos quilombolas da Tabatinga
A festa de São Benedito ocorre no mês de abril em Bom Despacho. É uma festa
católica, onde há participação das Guardas congadeira. Foi realizada uma observação na festa
que teve início no dia 27 de março de 2016 e término em 10 de abril. Constatou-se que o rito
da celebração é muito semelhante ao da Festa de nossa Senhora do Rosário. O que difere é a
organização que é realizada pela paróquia de Nossa Senhora de Bom Despacho, que no ano
de 2016 foi conduzida pelo padre Raimundo da Costa.
No dia 27 de abril a festa inicia com a saída das cortes com suas bandeiras e mastros
em procissão pela cidade de Bom Despacho em direção a Capela de São Benedito. Há o
levantamento dos mastros das cortes participantes da Festa. Observou-se a participação da
Guarda Moçambique de São Sebastião, da comunidade dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga, objeto deste estudo. A forma de celebração em torno do mastro teve todo um ritual
de matrizes africanas, com cantos e danças até seu completo levantamento, após o
levantamento dos mastros foi realizada a missa pelo padre José Raimundo da Costa, mais
conhecido como padre Mundinho, abençoando a festa e a todos os participantes. Ao término
da missa todos seguem em procissão com a imagem de São Benedito, acompanhada de todos
os cortes, pelas ruas de Bom Despacho. O santo percorre vários locais abençoando as pessoas,
85
e todos vão em direção a Igreja Matriz de Bom Despacho, onde o São Benedito permanecerá
até o último dia da festa e depois retorna para a Capela de São Benedito.
Ao longo da semana acontecem várias missas de devoção a São Benedito na igreja
matriz de Bom despacho, devido a presença do Santo no local. Vários devotos depositam
flores e pedidos para São Benedito.
No decorrer da semana há vários eventos e apresentações culturais na praça da
matriz de Bom Despacho. O grupo de dança da comunidade quilombolas Carrapatos da
Tabatinga se apresentou com danças de matrizes africanas. Tinha também na praça várias
barracas com comidas típicas da região. A sociedade de Bom Despacho e também de regiões
próximas participam com alegria.
No dia 10 de abril os cortes seguem em cortejo pelas ruas de Bom Despacho até a
igreja matriz para participação da Missa Conga. Houve um ritual da Guarda Moçambique de
São Sebastião em bater na porta da igreja pedindo por meio de cantos e tambores para que o
padre abrisse a porta para eles entrarem. Como na festa de Nossa Senhora do Rosário, foi um
momento emocionante ouvir as palavras de lamento e de força dos negros, e também o
momento que eles entram e dançam no ritmo das batucadas das matrizes africanas,
emocionam a todos que assistem. Após a apresentação eles sentam e assistem a missa
ministrada pelo padre. Ao término da missa teve a procissão onde as cortes acompanham a
imagem de São Benedito que deixa a igreja matriz de Bom Despacho, e retorna para a Capela
de São Benedito.
No final da tarde teve a descida dos mastros que também contou com o ritual com
cantos e danças e várias representações, que na verdade a comunidade disse que eram
agradecimentos e pedidos para São Benedito.
Na festa de São Bendito foi constatado que a Guarda Moçambique de São Sebastião
capitaneada por Dona Tiana desfilou por Bom Despacho comunicando sua identidade
quilombola e reafirmando a força do negro na história da cidade, com os sons de seus
tambores ecoando pelas ruas, entoando os cantos em louvor a São Benedito, relembrando o
sofrimento e as vitórias dos negros, bem como homenageando os ancestrais africanos. Uma
festa rica em seus significados e (re) significados. Uma história comunicada pela comunidade
quilombola, cantada e representada por eles, para a sociedade local.
Perguntei63
a Dona Tiana quem era São Benedito para ela. Com seu olhar penetrante,
que atinge até a alma da gente, bradou: “É o santo dos negros, tem todo o poder, um dos
63
Entrevista realizada em 03 de maio 2016 no quintal do terreiro de D.Tiana na cidade de Bom Despacho bairro
Ana Rosa (antiga tabatinga).
86
orixás das 7 linhas64
, o que tudo vê e tudo sabe, humilde era um frei cozinheiro que trabalhava
no convento e dava comida aos pobres e necessitados. Um dia pegaram ele fazendo isso e
mandaram para a prisão, ihhh sofreu igual a gente na senzala…e acabou morrendo e virou
nosso santo, o santo dos negros”65
.
Pesquisando sobre São Benedito entendi a devoção dos negros no Brasil por ele.
Segue um breve relato sobre o “Santo dos Negros”. Segundo o Padre Aloisio Teixeira de
Souza (2014), São Benedito nasceu na Sicília, Itália, em 1526, os pais eram descendentes de
escravos vindos da Etiópia, e mais tarde libertos por seus senhores. Sua família era pobre e o
Mouro, como era chamado, foi pastor de ovelhas e lavrador.
Aos 18 anos decidiu consagrar-se ao Senhor, mas somente aos 21 anos foi chamado
por um monge para viver entre os Irmãos Eremitas de São Francisco de Assis. Professou os
votos de pobreza, obediência e castidade. Andava descalço, dormia no chão sem cobertas e
fazia muitos outros sacrifícios. Muitas pessoas o procuravam pedindo conselhos, orações e
alcançavam muitas curas (SOUZA, 2014, p.08-13). O autor Padre Teixeira de Souza (2014, p.
32) relata que depois de 17 anos, foi obrigado a se mudar para o Convento dos Capuchinhos,
onde foi escalado como cozinheiro, permanecendo humilde. Era leigo, analfabeto, mas foi
eleito por sua santidade, prudente e sábio.
Sempre que podia, São Benedito apanhava alguns alimentos do convento, metia-os
nas dobras do burel e, disfarçadamente, os levava aos necessitados. Conta-se que numa dessas
ocasiões, o santo foi surpreendido pelo superior do convento, que perguntou: "Que levas aí,
na dobra do teu manto, irmão Benedito?". E o santo respondeu: "Rosas, meu senhor!". São
Benedito desdobrou o burel franciscano e, em lugar dos alimentos suspeitados, apresentou aos
olhos pasmos do superior uma braçada de rosas (SOUZA, 2014, p. 52).
Amado de Norte a Sul do Brasil, onde o chamam "O Santinho Preto", São Benedito
morreu em 4 de abril de 1589 em Palermo, na Itália (SOUZA, 2014, p. 156). O culto de São
Benedito, um dos mais populares no Brasil, é associado aos padecimentos do negro brasileiro.
No Brasil, o santo é tradicionalmente venerado pelos negros, que relacionam o período de
64
Na umbanda uma linha ou vibração, equivale a um grande exército de espíritos que rendem obediência a um
"Chefe". Este "Chefe" representa para um Orixá e cabe a ele uma grande missão no espaço. O orixá Iorimá, São
Benedito no sincretismo, é a linha dos pretos e pretas velhas, de todas as nações. Também chamada de Linha das
Almas é composta dos primeiros espíritos que foram ordenados a combater o mal em todas as suas
manifestações. São os Orixás Velhos, verdadeiros magos que velando suas formas cármicas, revestem-se das
roupagens de Pretos Velhos ensinando e praticando as verdadeiras "mirongas". Eles são a doutrina, a filosofia, o
mestrado da magia, em fundamentos e ensinamentos. Geralmente gostam de trabalhar e consultar sentados,
fumando cachimbo, sempre numa ação de fixação e eliminação através de sua fumaça. Disponível em:
<http://www.centroespiritaurubatan.com.br/estudos/sete-linhas-de-umbanda.html> 65
Entrevista realizada pela autora em 05 de maio de 2016.
87
escravidão e a origem africana do santo com o seu próprio passado de escravidão e suas raízes
africanas (SOUZA, 2014, p. 157).
A oração de São Benedito simbolicamente usa a palavra escravidão com dupla
interpretação colocando em questionamento raça e cor dos homens, e também a segregação:
São Benedito, filho de escravos, que encontrastes a verdadeira liberdade
servindo a Deus e aos irmãos, independente de raça e de cor, livrai-me de
toda a escravidão, venha ela dos homens ou dos vícios, e ajudai-me a
desalojar de meu coração toda a segregação e a reconhecer todos os homens
por meus irmãos. São Benedito, amigo de Deus e dos homens, concedei-me
a graça que vos peço do coração. Por Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém.
(SOUZA, 2014, p. 163).
Depois da oração fiz várias reflexões. Guardarei talvez para uma outra pesquisa,
porque o objetivo central da minha dissertação é a comunicação comunitária realizada pelos
quilombolas Carrapatos da Tabatinga.
Observando a força comunicante interpessoal da comunidade Carrapatos da
Tabatinga e também como se dava a comunicação com a sociedade local, verifiquei que a
dialógica é liderada pela forte figura de Dona Tiana, que sempre diz em suas falas: “todos
precisam saber da força do negro, o negro não ajudou fez este lugar, meus antepassados não
podiam falar, mas eu posso… nós podemos então tem que falar da luta do sofrimento e da
dor”.
Esta comunicação é compartilhada por todos da comunidade, e com a sociedade
local de Bom Despacho por meio da participação realizada na Festa de São Benedito,
capitaneada também por Dona Tiana à frente, chefe da Guarda Moçambique de São Sebastião
exercendo uma comunicação dialógica, pretende provocar discussão, debate, diálogo,
colocando toda a dor e sofrimento dos negros, exaltando seus ancestrais e as matizes
africanas, ressaltando a questão da importância do negro como construtor ativo da sociedade
brasileira. E foi assim que quis saber mais quem era essa Dandara66
, como é chamada.
66
Guerreira do período colonial do Brasil, Dandara foi esposa de Zumbi, líder daquele que foi o maior quilombo
das Américas: o Quilombo dos Palmares. Com ele, Dandara teve três filhos: Motumbo, Harmódio e Aristogíton.
Valente, ela foi uma das lideranças femininas negras que lutou contra o sistema escravocrata do século XVII e
auxiliou Zumbi quanto às estratégias e planos de ataque e defesa do quilombo. Não há registros do local onde
nasceu, tampouco da sua ascendência africana. Relatos e lendas levam a crer que nasceu no Brasil e se
estabeleceu no Quilombo dos Palmares enquanto criança. Ela foi uma das provas reais de que a mulher não é um
sexo frágil. Além dos serviços domésticos, plantava, trabalhava na produção da farinha de mandioca, caçava e
lutava capoeira, além de empunhar armas e liderar as falanges femininas do exército negro palmarino. Sempre
perseguindo o ideal de liberdade, Dandara não tinha limites quando o que estava em jogo era a segurança do
quilombo e a eliminação do inimigo. Ela defendia que a paz em troca de terras no Vale do Cacau, que era a
proposta do governo português, seria um passo para a destruição da República de Palmares e a volta à
escravidão. Suicidou-se depois de presa, em seis de fevereiro de 1694, para não voltar na condição de
escravizada. Disponível em: < http://www.palmares.gov.br/?p=33387>.
88
Dona Sebastiana ou Dona Tiana, é uma “Dandara Velha” (como ela se
autodenominou) de 82 anos, mas com uma disposição que nos enche de alegria e impressiona.
É filha de José Ribeiro e Maria Imaculada Ribeiro que era o grande mestre de um quilombo
que sobreviveu ao Massacre dos Macacos, em Bom Sucesso-MG, cidade onde ela nasceu.
A região de Bom Sucesso onde eles moravam ficava entre duas grandes fazendas de
poderosos latifundiários (uma história que por vezes se repete). Os fazendeiros decidiram
exterminar os negros que viviam ali e promoveram um grande massacre do qual Dona Tiana
sobreviveu porque seu tio-avô jogou (literalmente) a família dentro de um buraco na terra,
que lhe serviu de esconderijo. Quando os fazendeiros julgaram que seu extermínio estava
concluído, a família de Dona Tiana ainda estava escondida e sobreviveu de água tirada de
mandacarus, de batata (tabira) e de pequenos animais caçados na mata. Posteriormente, Dona
Tiana e seu irmão teriam seu acesso aos estudos negado pelo dono da fazenda em que eles e
seus pais trabalhavam, ainda sob um regime mais escravo do que livre.
A comunidade do Carrapato surgiu, desde o início, em um lugar marcado pela
resistência, o que também interferiu em seus rituais e em suas manifestações culturais. Essa
resistência se mostrou também na negação do papel “abolicionista” da Princesa Isabel e na
exaltação dos antepassados africanos, infelizmente mostrados apenas como “escravos” nos
livros didáticos, com nenhuma profundidade sobre a origem sociocultural daqueles sujeitos.
Se a luta pela terra é empreitada dos mais velhos, a parcela mais jovem da
comunidade é atraída pelos cantos, pelos movimentos de danças e rituais. Do samba à
capoeira e ao Moçambique, a comunidade é nutrida pelos sons de tambores e atabaques
tocados em festas que mesclam catolicismo, umbanda e espiritismo. Dona Tiana é uma
mistura de médium vidente, de devota, de Zeladora de Santo (São Sebastião ou Oxossi) e de
Capitã da Guarda de Moçambique na comunidade. Oxossi67
é o grande Orixá das florestas e
das relações entre os reinos animal e vegetal. Sebastião68
era um soldado do exército romano
67
Oxóssi é o orixá da caça e da fartura, das florestas e das relações entre o reino animal e vegetal. É representado
nas florestas caçando com seu arco e flecha. Fora”, a mata, trazer tanto a caça quanto as folhas medicinais. Além
disso, eram os caçador que localizavam os locais para onde a tribo poderia futuramente mudar-se, ou fazer uma
roça. Disponível em: http://www.raizesespirituais.com.br/orixas/oxossi/. 68
De acordo com Atos apócrifos, atribuídos a Santo Ambrósio de Milão, Sebastião era um soldado querido dos
imperadores Diocleciano e Maximiano, que o queriam sempre próximo, ignorando tratar-se de um cristão e, por
isso, o designaram capitão da sua guarda pessoal, a Guarda Pretoriana. Por volta de 286d.C, a sua conduta
branda para com os prisioneiros cristãos levou o imperador a julgá-lo sumariamente como traidor, tendo
ordenado a sua execução por meio de flechas (que se tornaram símbolo constante na sua iconografia). Foi dado
como morto e atirado no rio, porém, Sebastião não havia falecido. Encontrado e socorrido por Irene (Santa
Irene), apresentou-se novamente diante de Diocleciano, que ordenou então que ele fosse espancado até a morte.
Seu corpo foi jogado no esgoto público de Roma. Luciana (Santa Luciana, cujo dia é comemorado em 30 de
Junho) resgatou seu corpo, limpou-o, e sepultou-o nas catacumbas.
89
que viveu por volta de 283 d.C, ele lutava com uma única intenção de afirmar os corações dos
cristãos enfraquecidos diante das torturas (CAMPOS, 2001), e Oxossi é São Sebastião na
umbanda.
Mãe Tiana de Oxossi, como é chamada, acredita em destino, em missão, no amor
que faz render o trabalho de uma vida inteira, na “sabedoria que vem do coração”, na dança
que traz energia ao seu corpo disposto. Dona Tiana, encanta com seu canto e com seus
batuques ritmados… numa batida que alegrou a alma! Os batuques de Dona Tiana – meio
africanos, meio brasileiros, demasiadamente sincréticos.
Pioneira e desbravadora é uma das primeiras mulheres quilombolas a ser capitã da
Guarda de Moçambique, por tradição e porque não “um certo machismo”, o posto na congada
era ocupado por homens negros. Dona Tiana começa sua luta na própria comunidade pelo seu
espaço de Dandara, quando se coloca na posição de reivindicar acesso ao posto de capitã da
Guarda de Moçambique e sair à frente da sua comunidade.
No excelente documentário “A Filha de São Sebastião”69
, ela conta de forma
simples, mas marcante como sua personalidade, que ao assumir o posto de capitã da guarda
disseram que ela não podia, pois o capitão da guarda era somente para os homens. Mais uma
vez ultrapassando o preconceito de gênero na própria comunidade, ela se torna uma das
primeiras mulheres a ocupar o posto de Capitã da Guarda de Moçambique dos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga em Bom Despacho. Ela relata no documentário: “eles queriam me
banir porque mulher não pode comandar Moçambique não...é só de homem, comandado por
Ogum, então eu disse sou homem pode deixar!” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013).
Então consegue o posto de capitã da Guarda Moçambique de São Sebastião, forma
com os outros componentes a guarda para sair na Festa de Nossa Senhora do Rosário. Mas ela
não sabia que havia vencido só a primeira luta, a segunda foi com o padre da Igreja católica
de Bom Despacho.
Ela relata o episódio de resistência ao preconceito e o impedimento de participar da
festa que sofreu há alguns anos atrás. Segundo os líderes católicos, por ser uma festa de católicos
haveria sim um impedimento canônico da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga
que é espírita umbandista não participar da festa na época. D. Tiana trava a segunda luta.
No documentário já citado ela diz: “o Padre Ceni não queria deixar eu dançar por
causa de eu ser espírita, aí eu...fiz as farda, fiz as bandeiras, fui falar com Dom Serafim em
Belo Horizonte, falei com ele oh o que tá acontecendo é isso, isso e isso comigo, ele disse não
69
Ver Documentário “A Filha de São Sebastião”, produzido por Caturra filmes, 2013. Disponível em:
<https://caturrabrasil.com/2014/09/12/a-filha-de-sao-sebastiao-documentario>
90
isso não pode, não existe lei no mundo que proíbe a pessoa reza, você tem condição de dar
comida ao seu povo na sua casa? Eu disse tenho uai! Não então eu vou dar esse documento
aqui e você vai dançar para Nossa Senhora do Rosário vai sim. Você não vai comer a comida
deles, não vai dar nenhuma despesa a eles. Foi assim que enfrentei Bom Despacho...falei fui
no Padre Ceni e falei tô descendo com meu Moçambique viu! Senhor me para pro Senhor ver.
Falei pro Padre Ceni essa festa é minha. O dia que o Senhor faz a festa do santo branco do
Senhor aí eu não venho aqui não, mas a do Rosário ih é dos negro, o negro que foge dela é
covarde, eu não sou covarde não Senhor, eu vou descer com minha bandeira com meu povo,
amanhã tô descendo. Aí mexeu comigo não. Na hora dele morrer ele mandou me chamou
para pedir perdão, ah pode ir pro inferno, porque não sou ninguém pra perdoar, não sou Deus
pra perdoar...”. E foi assim que ela resistiu com a comunidade e sai até hoje como capitã da
Guarda de Moçambique de São Sebastião.
É uma líder de extrema importância na comunidade, como pude constatar muito
respeitada pelo poder público local e pela população mais pobre. Em seu terreiro de umbanda
denominado “Terreiro de São Sebastião” atende todos dando suas bênçãos por meio de seus
caboclos de cura e força por meio de seus orixás. A comunidade quilombola Carrapatos da
Tabatinga recebe cestas básicas, conseguidas por meio de muita luta com o Governo Federal,
que atende não só a comunidade quilombola, mas outras famílias pobres da Tabatinga. D.
Tiana faz questão de atender os moradores da Tabatinga, como ela diz, mesmo que não sejam
da comunidade quilombola, pois assim ela pratica a caridade. Por essas atitudes que ela é
respeitada por todos.
No documentário (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013) Dona Tiana deixa claro a
lenda do início da devoção dos negros quilombolas no Brasil por Nossa Senhora do Rosário,
então cultuada e devotada a mais de 150 anos na festa que leva seu nome. O início do movimento
do Moçambique, da devoção dos negros por Nossa Senhora do Rosário foi um início de
sofrimento como relata Dona Tiana. Ela diz: “o negro Juruna caçando uma vaca perdida do
Senhor, quando ele chegou na grota, ele viu dentro do rochedo de pedra uma imagem, ai ele
voltou correndo e voltou pro Senhor: [Oh meu Senhor tem uma santa do grotão] mas o senhor
pegou e falou com ele: [Volta lá e vê se ela está lá] aí e ele voltou e ela estava lá.
Aí que o Senhor fez? Arrumou uma banda de música fez uma capela muito chic muito
bonita e mandou ir lá e pegar essa imagem, e eles foram toda a corte do Rei ih lá busca essa
imagem, eles trouxeram a imagem colocaram dentro da capela, a capela toda pintada a
ouro...e quando amanheceu o dia ele foi abrir a capela cadê a Nossa Senhora lá. Aí mandou o
Juruna lá de volta e ela estava no mesmo lugar no rochedo de pedra, aí ele voltou: [Meu
91
Senhor ela está lá mesmo lugar] ele pegou e arrumou outra banda de música outra beleza da
guarda real e mandou buscar colocou ela dentro da capela e pôs os guarda vigiando em roda
da igreja achando que era os negros que tinham roubado, aí fechou tudo e fico os guarda.
Quando amanheceu o dia e eles abriram a capela cadê ela? Voltou ela tava no mesmo lugar.
Aí Juruna o nego véio, chegou perto do Senhor e ajueiô nos pés dele [Oh meu Senhor deixa
nois ih lá e buscar nossa mãe porque essa aí veio pra nus salvar] aí o Senhor disse pra ele
[Que isso! Mandei essa riqueza toda ih lá buscar, agora oceis negro de pé no chão, nessa
sujeira é que ela vai acompanhar oceis?] aí ele falou [ah Senho quem sabe...] aí foi Pai
Joaquim, Pai João do Congo, Pai João do Moçambique, Pai Carrero, Vovó Capina, a Vovó
Conga, e o nego Juruna subiu cantando no meio da mata. Nesse subi cantando no meio da
mata quando chegou de frente a ela eles joeraram e começou cantar pra ela, aí ela veio
frutuando, eles não pois a mão nela, aí quando eles veio cantando: [nóis veio busca a Senhora
porque a Senhora veio pra nus salva] ela veio frutuando atrás deles e ficou lá na capela. Não
foi preciso fechar a porta, não foi preciso fechar nada... e o que o Senhor fez? Aí ele já
converteu...viu que os negro tinha poder, que os negro tinha força. Aí já tirou aquela senzala,
aquela judiação toda, mandou destruir tudo o que era sofrimento de negro, entendeu? Aí ele
viveu um tempo feliz.Aí que o Juruna fez? Não tinha instrumento, não tinha nada, ele pegou
um pedacinho de madeira, e foi cortando nela e foi cortando e transformando numa coroa, aí
os outros pegaram as latinha véia e as coisa, eles colocaram dentro dessas gunga grão de café
que eles colocaram e fizeram aqueles instrumento tudo artesanal tudo a mão aí formou o
Moçambique de Nossa Senhora do Rosário” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013).
Dona Tiana, no documentário já citado, explica as vestes, os instrumentos e as
indumentárias e seus significados utilizados na Guarda para sair no Congado: “tem o turbante
que é sinal representação de humildade porque quando o escravo ia perto do Senhor tinha que
tá com a cabeça coberta com humildade pra chegar perto do Senhor, hoje nóis usa o turbante
em louvor a Nossa Senhora do Rosário para abençoar nossas cabeça. E o Rosário, os rosário
hoje tá no lugar das corrente né...as corrente maldita que era no nosso corpo, e hoje nóis usa
os rosário em agradecimento a Nossa Senhora do Rosário também, e as gungas é
agradecimento também, porque isso aqui era usado nos negro para não fugir, porque se o
negro corresse ia faze barunho né, o capataz saia e sabia pra onde ele tava indo
entendeu?...então tudo tem um significado de dor, sofrimento e perseguição...o que que é
gunga, patagongo, meia lua, reco-reco e gogó bom e caixeiro bom. Não pode ter sanfona, não
pode ter cavaquinho e não pode ter violão e nem pandeiro. E as vestes também, tem que ter o
saiote, seu turbantinho e a toalha, a toalha representa libertação, que eles enxugavam o sangue
92
no algodão né, agora a toalha nóis usa para enxugar nosso suor de tanto nóis dança pra Nossa
Senhora”.
E assim o Congado da Guarda de São Sebastião de Moçambique de Bom Despacho,
à frente com sua capitã Dona Tiana, composto pela comunidade quilombola Carrapatos da
Tabatinga canta: “Oh Mãe querida / Oh mãe amada / Oh Mãe querida / Oh Mãe amada /Quem
tem Mãe tem tudo / Quem não tem Mãe não tem nada” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO,
2013).
A aceitação por parte da Igreja Católica de Bom Despacho até hoje não é unânime
quanto à participação da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, representada pela
Guarda Moçambique de São Sebastião na festa, pelo fato de alguns padres da cidade acharem
que é uma festa católica e a comunidade é espírita umbandista.
Dona Tiana no documentário relata essa não aceitação, ela diz: “eles achavam difícil
eu ser espírita e frequentar a igreja e reza né, acha que gente espírita não reza, quanto mais
espírita, mais tem que rezar, tem que ter força para benzer curar, porque os preto véio cura,
tem curado, cura, os preto véio cura. Quando cheguei nesse Bom Despacho era uma miséria,
era sofrimento de tudo quanto é tipo, entendeu” (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO, 2013).
Ao entrevistar um dos padres da Paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho, não
citarei o nome, pois não foi autorizado, realmente constatei que não há muita aceitação da
comunidade quilombola, por parte da comunidade católica de Bom Despacho. Na breve
entrevista o padre chegou a relatar que a comunidade católica tem medo das “macumbas”
realizadas pela comunidade quilombola no terreiro de umbanda de Dona Tiana, e disse que a
festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário são festas católicas, e que não aceitam o
sincretismo.
Na observação participante realizada nas festas não posso afirmar que constatei
sincretismos nos rituais do Congado, o que notei foi uma convivência religiosa cultural, de
expressões de matrizes diferentes numa celebração, a uma entidade de devoção em comum,
ora Nossa Senhora do Rosário, ora São Benedito. Compartilho com a reflexão do autor
Jeremias Brasileiro (2012, p. 56) que em sua obra o tema de estudo é o Congado, ele diz:
O meu entendimento em relação ao Congado está centrado numa coexistência cultural religiosa em que podem existir situações toleráveis ou não, dependendo dos personagens que em determinado momento histórico estejam à frente das celebrações. Isto envolve comportamentos distintos em atuação num mesmo cenário de celebrações dos rituais do Congado [...] Assim, opto por utilizar no contexto do Congado a categoria de coexistência cultural religiosa quando trato de situações que envolvem o uso de símbolos ou comportamentos de religiosidades de matriz africana junto àquelas utilizadas pelo catolicismo popular.
93
Ficou claro nas manifestações do Congado que não há uma fusão de diferentes cultos
ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos, como é a definição de
sincretismo (FERREIRA, 1986, p.1589). Há uma convivência somente nos dias de festas de
duas matrizes religiosas e culturais de expressões diferentes cultuando os mesmos sujeitos:
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Assim que as festas acabam a coexistência cultural
religiosa termina também, sinal que não houve fusão e sim coexistência temporária. Vale
lembrar que a reflexão é sobre se há ou não sincretismos nas manifestações do Congado, e
não se a religião católica e a de matriz africana são sincréticas.
Retomando a questão do impedimento dos negros frequentarem a Igreja católica, a única
coisa que mudou foi o fator motivador, antes era porque eram escravos na época colonial, hoje
por serem espíritas. Comportamentos que persistem desde o tempo Brasil colônia.
E hoje como um símbolo de resistência, observou-seque no dia da celebração da
Missa Conga, a atitude da Guarda Moçambique de São Sebastião de bater na porta da Igreja e
cantar para que o padre abra para que eles possam entrar, é uma constatação de que a porta,
ainda nos dias de hoje, em pleno século XXI não está aberta para a comunidade quilombola
de Bom Despacho.
O padre abre a porta sim, mas somente depois do pedido de permissão para a Igreja
Nossa Senhora do Bom Despacho, e assim a Guarda de Moçambique de São Sebastião entra
com seus tambores, gungas e indumentárias e cantam seus lamentos e agradecimento para São
Benedito.
A manifestação da coroação do Rei e da Rainha do Congo é a mais esperada, eles
são escolhidos com muito critério pela comunidade quilombola, como dizem:
O Rei e a Rainha é coisa muito boa né, são os que comanda mesmo a Corte,
é coisa fina rei e rainha não pode ser qualquer pessoa, qualquer um não... o
rei e a rainha tem que ter muita responsabilidade e comanda essa Nação
como diz o ditado, são os comandantes (A FILHA DE SÃO SEBASTIÃO,
2013).
A autora se inseriu na festa de São Benedito em abril de 2016, e constatou o
Congado da Guarda Moçambique de São Sebastião, com sua capitã à frente - Dona Tiana -, e
os membros da comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, saindo pelas ruas da
cidade de Bom Despacho, aos olhos de toda sociedade local, com sua guarda para
homenagear e expressar toda devoção para o santo dos negros: São Sebastião. Observou-se os
seus tambores, cantos e gungas ecoarem para a sociedade local todo sofrimento dos
antepassados africanos escravizados, mas também a luta pelos territórios quilombolas, a
94
resistência da comunidade contra a desigualdade social abarcado pelo preconceito racial em
Bom Despacho.
Pode-se dizer que foi um dos poucos momentos que a sociedade local ouve a voz da
Tabatinga entoada por meio dos seus cantos com palavras de agradecimentos, mas com o tom
de luta e resistência contra o preconceito. Afirma-se que o congado para a comunidade
quilombola dos Carrapatos da Tabatinga é a força comunicante entre a sociedade local de
Bom Despacho. Eles cantam a liberdade e dançam festejando seu lugar na sociedade local,
não deixando que ninguém esqueça a força do negro na cidade, reafirmados pela sua
identidade e memória.
Compreendeu-se a manifestação do Congado sob dois aspectos. O primeiro vem das
primeiras manifestações realizadas pelos negros escravizados que aqui chegaram. Presentes
numa outra terra, escravizados, sob outros contextos, ritualizar e constituir uma representação
por meio da dança, do ritmo, do canto, a respeito de outro tempo que se encontra na memória,
um tempo de reinos e reis que se transformam em reinados, com seus súditos, toda a corte a
relembrar um estado, uma cultura, um povo, um sistema de valores sociais, políticos,
religiosos, reconfigurados por uma necessidade de permanência ancestral, foram importantes
para a recriação de novas identidades.
Essas identidades foram necessárias porque também os povos não eram homogêneos
quando reunidos sob o sistema de escravidão, o que os forçava a interagir a partir de novas
configurações e num ambiente estranho, fazendo com que tivessem de se adaptar a outras
realidades que, para Stuart Hall (1998, p. 324-325) são “as condições de lugar, apropriações,
reapropriações, rearticulações, novos contextos que impõem outras necessidades de
construções de repertórios negros”.
O outro aspecto observado foi no campo das significações retratadas nas canções e
em suas indumentárias, como a toalha branca que (re) significada representa o algodão que os
escravos passavam na testa muitas vezes para limpar o sangue das torturas, hoje como cita
Dona Tiana é para limpar o suor de tanto dançar em agradecimento pela liberdade e devoção à
Nossa Senhora do Rosário. Um símbolo que fora de dor e sofrimento na época da escravidão,
hoje é um símbolo de celebração.
No campo das significações Glaura Lucas (2002) considera que o Congado perpassa
por um conjunto de valores que, reelaborados durante muito tempo, terminaram por
manifestar-se em várias condutas simbólicas e religiosas caracterizadas ainda por uma
vivência junto ao catolicismo.
Para a autora (LUCAS, 2002) o universo cultural e musical do congadeiro ultrapassa
95
o senso comum de muitos críticos, que nesses repertórios diagnosticam canções folclóricas ou
somente cantos de religião em homenagem aos santos de devoção. Nesse aspecto, o estudo
etnomusicológico do Congado desenvolvido por Lucas (2002) traz a lume novas
possibilidades de olhar a produção musical dos congadeiros. De acordo com a autora, é
possível compreender a musicalidade como uma intercomunicação de tempos e que a “música
congadeira apresenta uma complexa teia de significados em sua estrutura e em seus processos
de produção”, concluindo que muitos versos são ricos em metáforas, que demonstram “um
recurso criativo que remonta aos tempos da escravidão, utilizado para proteger a essência dos
conteúdos religiosos e promover a comunicação interna” (LUCAS, 2006, p. 32).
Já Leda Martins (2000) busca uma reflexão sobre o Congado envolvendo tempo e
memória. No entendimento da autora (2000, p.70), o Congado testemunha a sua permanência
como prova de que o esquecimento é incompleto, a matriz africana permanece viva nos
afrodescendentes, pois sua genealogia performática é capaz de restituir ao sujeito, pelo uso do
corpo, declarar as muitas matrizes da cultura brasileira.
E assim vi no desfile da Guarda de São Sebastião produzida pelos quilombolas
Carrapatos da Tabatinga, o uso do corpo presente na dança traz os movimentos que presenciei
no Terreiro de Umbanda da comunidade, o Terreiro de São Sebastião com o comando da mãe
de Santo Dona Tiana. E Jeremias Brasileiro cita em sua obra que estuda com maior amplitude
o Congado:
No ritmo dos moçambiqueiros essa linguagem corporal que menciono fica
mais evidente quando recriam com os movimentos não só uma memória de
antepassados, mas imprimem certas gestualidades comuns que se realizam
em outros rituais afrodescendentes, como no caso de terreiros de Umbanda.
O rodopiar do corpo com a mão esquerda nos dorsos e do tronco à cintura
curvilineamente abaixado numa posição de horizontalidade é o ápice desta
corporalidade ritual ou de ritual corpóreo impregnado em personagens que
na maioria das vezes têm acesso ou fazem parte dos ritos de religiosidade de
matriz africana” (BRASILEIRO, 2012, p.52).
Outra expressiva rede de sentidos que se percebe no Congado é a partir dos adereços,
indumentárias e objetos etnicoculturais. Uns como os tambores, trazem mensagens inscritas
nas peles ou nos seus envoltórios, nos adereços se vê – como ocorre nas partes superiores dos
ojás (bonés) - figuras de orixás ou de caboclos, de santos, de igrejas, perfilados nas abas dos
chapéus, e no couro cabeludo desfilam desenhos das mais variadas formas, como a de uma
estrela simbolizando o nome de um grupo, ou cabelos pintados com as cores do grupo. Leda
Martins (2000, p.75) cita em sua obra:
96
Em África, um dos modos da escrita do corpo está na utilização de conchas,
sementes, opelês e outros objetos côncavos, em tamanhos e cores diferentes
e significantes, para a feitura de colares, pulseiras e outros adornos que
escrevem o sujeito [...] As contas, sementes e conchas funcionam como
morfemas formando palavras, palavras formando frases e frases compondo
textos, o que faz da superfície corporal, literalmente, texto, e do sujeito,
signo, intérprete e interpretante, simultaneamente.
E assim foi observado no desfile da Guarda de São Sebastião, na festa de São
Benedito, produzida pelos quilombolas Carrapatos da Tabatinga o uso do corpo com
indumentárias: colares de contas e pulseiras. A dança traz os movimentos do Terreiro
umbandista de São Sebastião comandado pela mãe de Santo Dona Tiana e os membros da
comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga.
Esta força identitária comunicante com a sociedade local é explicita na festa de São
Benedito, onde há grande participação da população. A passagem da Guarda Moçambique de
São Sebastião é festejada com acenos dos populares e recheada de aplausos.
Neste momento é notado um certo reconhecimento da existência da comunidade
quilombola como participe da sociedade local. E a importância é grande para a comunidade
quilombola, pois numa festa católica podem comunicar suas matizes das religiões africanas,
numa sociedade em sua maioria católica branca, onde há diferenças de religião, raça e credo,
afirmando a presença do negro da sociedade local, desfilando com seus símbolos de
resistência contra a escravidão um dia vivida, e hoje se resignifica na luta contra a
desigualdade social abarcada pelo preconceito racial, e é o momento que se colocam na
posição de participes da sociedade. Colocam suas diferenças raciais de matizes africanas em
evidência para que a identidade quilombola seja comunicada a todo sociedade local,
posicionando a comunidade como sujeito social. Como diz a autora Kathryn Woodward:
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (WOODWARD apud SILVA, 2000, p. 17).
Uma análise mais apurada sobre a participação dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga na festa de São Benedito é a comunicação da identidade que é construída simbólica
e socialmente. Simbolicamente pode ser percebida a partir dos valores expressos nas
indumentárias, danças e cantos enfim toda expressão cultural da Guarda Moçambique de São
Sebastião capitaneada por Dona Tiana – evocado numa narrativa ilustrativa do festejo.
97
Socialmente, seria de muita riqueza para o entendimento desse aspecto a revisão de
Halbwachs (2006) em “A memória coletiva” o grupo social é apresentado como referência
essencial à memória, história, tempo e espaço – que também são noções que remetem à
compreensão da identidade. Sinteticamente, pode-se dizer que a representação é o meio pelo
qual o grupo cria símbolos que significa e que dá sentido à experiência humana.
Assim a maior expressão comunicacional com a sociedade local não é realizada por
nenhum meio de comunicação – rádio, TV - e sim com as indumentárias, cantos e danças na
procissão da festa de São Benedito, o santo dos negros como diz Dona Tiana, em Bom
Despacho. É a palavra dita em forma de cantos e lamentos, mas um som com tom de luta e
resistência. Como diz Dona Tiana: “Sou descendente de escravo, mas não sou escrava de
ninguém não! Vai pro meio do inferno!”
Destaca-se a identificação de alguns pontos relevantes da comunicação dialogada
grupal da comunidade na Festa de São Benedito com a sociedade local:
a) Comunicam de forma emocionante a importância de seus ancestrais escravos
educando a sociedade local para a reflexão do sofrimento do negro, e o que traz a
falta de liberdade: dor e tristeza;
b) Participam de uma festa de origem católica, e exibem ritos pertencentes as
matrizes africanas com os gestuais, cantos, ritmos e danças que são praticados na
umbanda. Observou-se que este processo de comunicação possibilita educar a
sociedade local para a tolerância religiosa e o respeito a diferença cultural;
c) Comunicam com o próprio corpo e por meio de suas indumentárias os significados
e (re) significados das lutas vividas, e da condição de vida do povo quilombola. Na
festa cantam e dançam as vitórias conquistadas e as que poderão alcançar. E esta
comunicação se dá face a face com a sociedade local nas ruas de Bom Despacho.
2.9 Canjerê: 1º Festival da Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais
No decorrer da pesquisa no mês de outubro de 2015 fui comunicada pela Sandra
Andrade, membro da comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, a participação da
comunidade no evento Canjerê - 1º Festival de Cultura Quilombola do Estado de Minas Gerais de
06 a 08 de novembro de 2015, em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, na FUNARTE. A
98
Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N´Golo convocou
para o evento todas as comunidades quilombolas mineiras e também comunidades indígenas.
A autora da pesquisa decidiu realizar uma observação participante no evento, pois é
relevante para a investigação, uma oportunidade para ver os processos de comunicação da
comunidade com a sociedade da capital mineira, espectro maior em relação à sociedade local
de Bom Despacho. Também observar como seria a tratativa dos meios de comunicação em
relação ao evento: noticiários, informações e a relevância do evento para a sociedade.
Ao longo dos três dias, o público conferiu a feira de artesanato, produtos agrícolas e
da culinária quilombola, apresentações de grupos culturais, shows com artistas reconhecidos
da música afro-mineira, debates, oficinas e cortejo das Guardas dos Congados das
comunidades quilombolas de todo o Estado de Minas Gerais.
O festival foi belíssimo. Presenciou-se o povo quilombola e indígena desfilando em
cortejo comunicando toda sua cultura e homenageando seus ancestrais pelas ruas de Belo
Horizonte com a presença em massa da sociedade de Belo Horizonte aplaudindo e
reverenciando a cultura das comunidades.
Dona Tiana, discursou por alguns minutos no evento declarando a importância da
identidade quilombola, suas demandas sociais, inclusive ressaltando a diferença social
abarcada pelo preconceito que o negro sofre nos dias atuais. Convocou as comunidades à
resistir, que é o momento é para lutar pelos direitos do povo negro e indígena no Brasil.
Destaca-se os seguintes pontos relevantes do Festival Canjerê:
a) Durante o período da tarde houveram oficinas na Funarte MG, momento em que a
comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga pode participar por meio de
plenárias dialogadas com a sociedade (professores, doutores, universitários e
população) sobre a regularização dos territórios quilombolas e as políticas públicas
referente ao tema e tendo como representante a Sandra Andrade, membro da
comunidade. Foi discutido também a desigualdade social abarcada pelo preconceito
racial vivido pelas comunidades nas sociedades locais. Colocaram a dificuldade por
serem minoria com o poder público municipal em avançar nas conquistas das suas
demandas sociais como: infraestrutura básica para as comunidades, escolas, postos
de saúde e oportunidades de empregos, principalmente no comércio local onde é
claro para eles a preferência por brancos, e muitas vezes são as únicas
oportunidades pois, não há parques industriais nas cidades.
b)
99
b) A identidade quilombola comunicada pela interlocutora Dona Tiana, levando o
saber e educando os participantes na cultura quilombola por meio dos saberes
resultado das experiências vivenciadas de seus ancestrais;
c) Observou-se que este evento gerou notícias nos meios de comunicação, mas em
sua maioria com a atenção para a questão folclórica da cultura quilombola com
pequenas reportagens na grande imprensa, infelizmente.
Nas oficinas que ocorreram no período da tarde no dia 06/11/2015 na FUNART
foram realizadas plenárias dialogadas, onde a comunidade quilombola da Tabatinga pode
falar de sua identidade. Estavam presentes professores, doutores, estudantes universitários e
líderes de comunidades quilombolas e indígenas. Houve a discussão por meio do diálogo
sobre as questões da regularização de territórios quilombolas e os progressos das políticas
públicas sobre o tema.
Foram colocadas de formas claras as demandas sociais que ultrapassam a questão do
território. A questão da desigualdade social abarcada pelo preconceito racial foi também tema
de discussão.
As comunidades expressaram, na plenária dialogada das oficinas, que é nítido na
sociedade mineira (e nacional também) a forte rejeição sobre a questão da participação do
negro como cidadão nas regiões mais afastadas dos grandes centros do Estado de Minas
Gerais, em cidades pequenas como Bom Despacho, onde a representativa das comunidades é
pequena, e assim invisível para o poder público, principalmente na esfera municipal.
Relataram a dificuldade de conseguir progressos com políticas públicas a esfera municipal
para suas comunidades.
Declararam também o preconceito das sociedades locais, principalmente nas
oportunidades de emprego pela preferência pelas pessoas brancas, por exemplo, nos
comércios locais, que muitas vezes são as únicas oportunidades existentes nas cidades, pois
muitas não possuem parques industriais. Foram colocadas algumas propostas como marchas
locais para reivindicar as demandas sociais, e reafirmaram a necessidade do povo quilombolas
não desistir da luta e sim resistir ao modelo social imposto.
Percebeu-se também uma pista sobre o que encontraria na sociedade de Bom
Despacho em relação a participação cidadã da comunidade Quilombola Carrapatos da
Tabatinga na sociedade local, um dos objetivos da presente pesquisa.
100
3 A práxis da comunicação comunitária para além dos meios
A observação da pesquisa em campo trouxe a percepção de uma prática
comunicacional da comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga que está associada
a construção de um conhecimento sobre sua identidade, memória e história. Esse
conhecimento é partilhado, discutido de forma democrática nas reuniões da Associação
fazendo com todos se beneficiem de forma coletiva do conhecimento.
É perceptível o resultado do fortalecimento da identidade quilombola por meio desse
diálogo, há uma intensa organização do movimento social dos Carrapatos da Tabatinga sobre
o consenso e a consciência das demandas sociais pelas quais a comunidade luta. O
engajamento de seus membros vem por meio desta educação não formal, que é transmitida
principalmente pelas diretrizes de sua líder maior comunitária Dona Tiana. Traz em sua
comunicação dialógica a provocação de ressaltar que são descentes de escravos, mas não mais
escravos. A luta existe, mas traz à lembrança a força do negro nas conquistas já obtidas, uma
delas que hoje podem falar, enfim se comunicar, então o façam. É uma fala de uma
comunicação libertadora. Em uma de suas falas Dona Tiana diz: “Não ajudamos a construir o
Brasil, nós fizemos e somos parte do Brasil, tudo isso está aí é por causa do negro!”.
A educação informal comunicada por Dona Tiana traz à tona a discussão de ser
sujeito da própria história. Paulo Freire em sua obra diz: “A vocação do homem [leia-se: e da
mulher] é a de ser sujeito. [...] Para ser válida, a educação deve considerar a vocação
ontológica do homem – vocação de ser sujeito – e as condições em que ele vive: em tal lugar
exato, em tal momento, em tal contexto” (FREIRE, 1979, p.34). Propõe se colocar como
protagonista na construção do Brasil, e trazer ao conhecimento dos membros da comunidade a
luz da cidadania. A comunicação de Dona Tiana resgata o negro de uma posição de objeto,
coisificado no sistema escravista, para uma posição de cidadão. A comunidade hoje tem a
práxis de discutir e criticar o modelo do contexto que vive, rever seus direitos e deveres.
Pela observação constatou-se que a comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga
se mobiliza por meio de ações: culturais, palestras, participações em Universidades, a fim de
promover, comunicar suas demandas sociais.
São movidos por essa educação informal proporcionada pela comunicação dialógica
de sua liderança que em reuniões discutem sobre a não acomodação e submissão do negro,
mas sim a persistência nas atitudes de resistência e crítica ao modelo social vigente
preconceituoso e racista, e lutar pelos direitos de reaver os territórios quilombolas, entre
outras demandas sociais que são discutidas nas reuniões. O diálogo participativo e
101
horizontalizado é a base da comunidade dos Carrapatos da Tabatinga. Todas as ações que a
comunidade pretende e se propõe a realizar é discutido e dialogado com o grupo. Uma vez
inserida nas dinâmicas cotidianas e de mobilização, como diálogo e intercâmbio de saberes,
se misturam formas de comunicação como a “coordenação de ações”, segundo entendimento
de Jorge González (2012).
Peruzzo (2015) faz reflexão no seu artigo sobre estudo das manifestações da
comunicação popular e comunitária em práticas organizativas de movimentos populares no
Brasil, e diz que há uma comunicação comunitária, baseado no diálogo, além dos meios
tecnológicos de transmissão:
Todos os assuntos que envolvem as comunidades são discutidos, tudo é
dialogado e combinado no coletivo. Ao fazer parte desse processo, a
comunicação popular incorporou o princípio do diálogo, ao se valer da
comunicação interpessoal e grupal, ao instituir a horizontalidade, ao
transformar receptores em emissores-receptores e ultrapassar a ideia de que
existe comunicação apenas quando ela se dá por intermédio de artefatos
tecnológicos (PERUZZO, 2015, p.10).
A comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga em seus processos
comunicacionais com a sociedade local, apresentou a utilização da comunicação dialógica.
Constatou-se nas manifestações comunicacionais da comunidade com a sociedade local, o uso
da história oral, por vezes em forma de canto e dança, para deixar público suas demandas
sociais. Essa troca comunicacional se dá face a face perante toda a sociedade de Bom
Despacho.
Como foi relatado anteriormente, os conteúdos dos versos cantados são permeados
de memórias de dor e sofrimento, homenagens aos antepassados africanos, exaltação a
identidade de matrizes africanas, bem como a força da resistência do negro ao modelo social
excludente e preconceituoso. Provoca na sociedade local a reflexão sobre a condição e a
presença do negro quilombola em Bom Despacho. Mais uma vez não há utilização de meios
de comunicação tecnológicos, a troca comunicante é realizada pelo Sujeito da história contada
e cantada, pela própria comunidade.
Por meio da práxis do diálogo na comunicação nas reuniões promovidas pela
Associação dos Quilombolas Carrapatos, com participação ativa de seus membros,
organizados desde 2006, foi constatado o desenvolvimento de um pensamento crítico da
comunidade em relação à percepção da identidade do negro quilombola, seus direitos e
deveres como Sujeito da sociedade, e a importância do exercício da cidadania.
102
Há conhecimento por meio da educação informal, fruto da práxis da comunicação
dialogada, que resulta para os membros da comunidade Carrapatos da Tabatinga um grau de
compreensão do seu entorno, despertando o engajamento mobilizador para ações coletivas
com objetivos comuns: o de transformar sua realidade social.
Hoje é percebida e necessita ser melhorada, como as comunicadas por eles: a
desigualdade abarcada pelo preconceito racial, os direitos garantidos por Lei não serem de
fato usufruídos pela comunidade, por exemplo o direito a territoriedade, entre outras
demandas sociais a serem conquistadas.
A comunidade tem plena consciência da importância da comunicação com poder
público, para reivindicar muitas vezes que se faça cumprir leis já existentes para o
desenvolvimento da comunidade. Inclusive em entrevista70
com Sandra Andrade, membro da
comunidade que faz parte da liderança e é uma das interlocutoras junto aos poderes públicos,
chegou a citar que o engajamento trouxe para ela a necessidade de ter que se comunicar, que
no início ela pensou: “Nossa mais não sei falar direito, bonito, mas quer saber vou falar do
meu jeito, com minha própria voz as necessidades da comunidade, do meu povo”. E ela
comentou na entrevista, que assim foi no começo, não se sentia capaz, mas o exercício da
comunicação trouxe que é possível sim falar, e que esta comunicação gerou muitos progressos
nas conquistas para a comunidade. Observou-se que neste exemplo é nítido o empoderamento
da comunicação. Como diz Peruzzo (2015, p.15):
Ao se engajar no processo de comunicação, a pessoa se desenvolve e ajuda a
desenvolver a comunidade. Aprende a compreender o seu entorno. Do
relacionamento com o poder público municipal compreende o
funcionamento do poder. Aprende a falar em público. Desenvolve a
autoestima. Aprende a se relacionar em grupo. Apreende as possibilidades
de manipulação da mídia. Aprende sobre o poder da mídia e assim por
diante. Do ponto de vista coletivo, há melhoria nas condições de vida, no
desenvolvimento do conhecimento e do poder popular, aspectos que se
somam ao próprio desenvolvimento comunitário.
Esse processo se verifica também na comunidade dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga, pois esta desenvolveu a práxis da comunicação por meio do diálogo também com
o poder público.
70
Entrevista realizada pela autora em 09 de outubro de 2015.
103
Há participação da comunidade em sessões da Câmara Municipal para discussões de
projetos para a comunidade. Dona Tiana fora algumas vezes homenageada pela Câmara
Municipal de bom Despacho, e aproveitou este momento para dialogar com os políticos da
casa, sobre as questões da comunidade. A comunicação comunitária não ocorre somente por
intermédio de aparatos tecnológicos. Conforme Peruzzo (2015, p.10):
O que há nela é uma comunicação entre pessoas do próprio lugar, uma
comunicação humana dialógica segundo a concepção de Freire, mas vai
mais além [v] ao concretizar uma comunicação também entre estas pessoas e
suas organizações representativas e congêneres, com o poder público, e na
sociedade. Ela se realiza basicamente pela expressão oral, a comunicação
face a face.
A Sandra Andrade, membro da comunidade e também Presidente da Associação dos
Quilombolas do Estado de Minas Gerais também utiliza diálogo com o poder público na
esfera Estadual e Federal para colocar as demandas sociais junto ao Ministério da Educação e
INCRA. Discute e critica o poder público em relação à morosidade da viabilidade dos
territórios quilombolas, bem como as políticas públicas de ensino para as comunidades
quilombolas, principalmente as rurais. Sempre presente em Brasília participa das audiências
públicas relacionadas às comunidades quilombolas. Já obteve algumas vitórias, mas chegou a
confessar que se não fosse a força contagiante de sua mãe, Dona Tiana, ela já teria desistido.
A autora por meio de acompanhamento das redes sociais da comunidade traz para
exemplificar o grau de compreensão do entorno dos membros da comunidade a publicação de
post do Facebook em 02 de maio de 2016, dia da posse de um membro da comunidade
Quilombola Carrapatos da Tabatinga como Presidente Jovem da Câmara Municipal de Bom
Despacho, ela relatou na sua rede social a seguinte mensagem71
:
“Hoje 02/05/2016 é um dia muito importante pra juventude negra sabe pq o
#Brasil é muito racista principalmente em Bom Despacho onde o racismo
vale mais que a qualidade e o caráter das pessoas, mais pra mim a palavra
racismo nunca existiu pq o que eu quero eu consigo i não é atoa que eu tô
aqui onde eu estou hoje. Primeiramente agradeço a Deus e aos meus
familiares que estão sempre mim apoiando e principalmente a quem mim,
pois aqui a juventude escolar, espero fazer um bom mandato como
presidente jovem da câmara municipal de Bom Despacho: e também como a
1 mulher negra dessa casa como presidente, com a participativo onde
apresentaremos projetos de desenvolvimento com geração de renda, lazer e
cultura para a juventude bom-despachense independente de raça, religião ou
credo e sempre valorizando os saberes tradicional da nossa população... “.
71
Disponível em: <https://www.facebook.com/dardara.eliza.5>
104
Pode-se observar no discurso da jovem a educação informal dialogada originada na
comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, a qual está jovem pertence desde o
nascimento. A percepção do entorno onde vive, bem como a condição de gênero e sua
resistência e persistência em alcançar “tudo o que quer” apesar do racismo, estão presentes
nas suas palavras.
A transformação em sujeito crítico pela comunicação dialogada praticada na
comunidade, resulta em ação na busca da transformação de uma realidade social percebida em
seu entorno. O Sujeito crítico, membro da comunidade luta pelas conquistas coletivas. E a
comunidade se move, por meio do engajamento coletivo, em busca das conquistas de suas
demandas sociais.
3.1 A participação da comunidade nos meios de comunicação de Bom Despacho
A comunidade tem acesso e algumas participações na rádio Difusora Bom
Despachense AM 1540. Uma das emissoras mais antigas da região, tem uma programação
voltada para cultura, informação, esportes, prestação de serviços e entretenimento.
Embora a sua fundação remonte a 1948, só entrou no ar em 30 de abril de 1950
ainda em precárias condições, inicialmente na Rua Flávio Cançado Filho com Rua Capivari,
ao lado do antigo Hotel Xavier.72
Funcionou por cinco anos e depois foi desativada, só reabrindo no ano de 1965,
quando houve alteração de sociedade anônima para limitada, com atividades comerciais.
Nesta segunda fase, entrou no ar dia 18 de setembro de 1965, funcionando com apenas 100
watts. Algum tempo depois passou para 250 watts e em 1986 atingiu os 1000 watts. Nos dias
atuais, a potência é de 2500 watts.
Hoje a rádio é localizada na Rua Dr. José Gonçalves nº 17 no centro de Bom
Despacho, Minas Gerais. A rádio alcança cidades próximas como Araújos, Dores do Indaiá,
Leandro Ferreira, Luz, Martinho Campos, Moema, Nova Serrana, Perdigão, Pitangui, Santo
Antônio do Monte e demais povoados da região.73
A comunidade dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga, por meio de entrevista74
,
relataram que tem acesso a rádio para realizar anúncios dos eventos que irão realizar na
cidade e adjacências. Dona Tiana é convidada para falar sobre a festa de São Benedito e todas
as celebrações que envolvem a festa.
72
Informações disponíveis em:< http://www.difusorabd.com.br>. 73
Informações disponíveis em:< http://www.difusorabd.com.br>. 74
Entrevista concedida para a autora em 05 de maio de 2016.
105
Enfim a comunidade relatou que tem proximidade com os gestores da rádio, e tem
muito apreço e respeito por Dona Tiana. Por ser uma rádio comercial, e não ter nenhuma
obrigação em conceder espaços para a comunidade, eles se mostram generosos com os
quilombolas Carrapatos da Tabatinga.
Na cidade de Bom Despacho tem a rádio comercial Cidade 98,9 FM, Rádio Nova
Veredas 89,3 FM que é administrada pela paróquia de Nossa Senhora do Bom Despacho, que
informou que a rádio não é comunitária, e a rádio Máxima 9,1 FM é comercial.
A Ativa 87,9 FM informou que era uma rádio comunitária. Tentou-se agendar
entrevista com algum gestor da rádio, mas sempre respondiam que infelizmente estavam
todos em programação e não podiam atender. O website75
da rádio indica somente que a
formação societária é composta pelos sócios fundadores da ADESC, não foi possível
confirmar a informação, mas a sua programação é de uma rádio comercial de fato e a
comunidade quilombola pouco utilizou a rádio.
A pesquisa de campo mostrou que a comunicação dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga não tem os meios de comunicação da cidade de Bom Despacho como veículos
essenciais para a ampliação e divulgação das demandas sociais da comunidade. Utilizam mais
para a divulgação de eventos culturais que a comunidade participará.
Foi colocada a importância de uma rádio comunitária na Associação para a
ampliação e divulgação das demandas sociais, bem como o exercício de cidadania por meio
do empoderamento da comunicação pelos meios. Dona Tiana chegou a relatar que construiu
até um espaço para ter a rádio. Chegou a receber os equipamentos do Governo Federal, mas
desistiu de instalar, pois teve informações de radialistas conhecidos que era complicado,
porque poderia dar problemas com processos contra a comunidade, pelo fato de que os
conteúdos veiculados pela rádio pudessem ser interpretados como ofensa, calúnia e
difamação. Ela ficou receosa e devolveu todo o equipamento.
Criou-se a possibilidade de desenvolver junto com o grupo de pesquisa Comuns da
Universidade Metodista de São Paulo, liderado pela pesquisadora Profa. Dra. Cicília Peruzzo,
oficinas de práticas de comunicação comunitária, mas ela se mostrou reticente, talvez por
falta de conhecimento das práticas.
A investigação sobre a comunicação comunitária dos quilombolas Carrapatos da
Tabatinga revelou a luta da comunidade pela sua cidadania diariamente e bravamente.
Utilizam a comunicação por meio do diálogo como mecanismos de processos
75
Disponível em: < http://www.radioativabdmg.com.br/>.
106
comunicacionais na maioria das vezes face a face. Não necessariamente utilizam os meios de
comunicação tecnológicos disponíveis, mas desenvolveram a capacidade de discursar em
público e dar voz a comunidade em todas as esferas públicas, mesmo sofrendo preconceito,
pela sociedade local de Bom Despacho.
A comunicação dialogada da comunidade produz o conhecimento do mundo vivido
por eles, e uma consciência considerável de seu entorno, e qual é sua posição na sociedade,
que pouco aceita as diferenças. Suas indumentárias, seus cantos e danças e outras palavras
soam como a comunicação que informa e educa. São Sujeitos da própria história.
O diálogo presente nos processos comunicacionais da comunidade, visto neste breve
tempo de observação participante, traz como resultado o seguinte aprendizado: é necessário
resistir aos vigentes modelos sociais excludentes do Brasil, a persistência tem sua importância
na luta, ter uma liderança ativa e uma boa comunicação comunitária dialogada interpessoal e
grupal, é o que faz a comunidade quilombola caminhar “para o que se quer”, como já disse a
jovem quilombola ao tomar posse do cargo de Presidente Jovem da Câmara Municipal de
Bom Despacho em 02 de maio de 2016.
3.2 A comunidade conectada ao Facebook e YouTube
Observou-se a presença de conteúdos sobre a comunidade Quilombola da Tabatinga no
Facebook76
e YouTube. Eles possuem algumas Fanpages77 no Facebook, são administradas por
alguns membros da comunidade, na sua maioria pelos jovens. No YouTube encontramos ótimos
documentários postados por produtoras como a Caturra com o documentário “A Filha de São
Sebastião”78
a qual fiz importantes menções nesta pesquisa, assim como entrevistas
espontâneas realizadas pelas antropólogas Ana Carolina Fernandes e Amaralina Fernandes
(2015) “Dandara a Força da Mulher Quilombola”79
.
76
As páginas do Facebook utilizadas pela comunidade estão disponíveis em:
<https://www.facebook.com/Quilombo-Carrapatos-da-Tabatinga-1573957826209582/?fref=ts>
<https://www.facebook.com/quilombolas.tabatinga?fref=ts> 77
Fanpages ou Página de fãs é uma página específica dentro do Facebook direcionada para empresas, marcas ou
produtos, associações, sindicatos, autônomos, ou seja, qualquer organização com ou sem fins lucrativos que
desejem interagir com os seus clientes no Facebook. Disponível em: <http://www.aldabra.com.br/artigo/o-que-e-
uma-fanpage>. 78
Documentário realizado por um coletivo de profissionais da área de cinema, produção, e história, da cidade de
Belo Horizonte - MG, Brasil. Este filme foi produzido pela equipe totalmente sem fins lucrativos e oferecido à
família de Dona Tiana como um presente e desejo de que aquela comunidade possa ser conhecida e reconhecida
pelo Brasil e outros lugares do mundo realizada pela Caturra Digital. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=6nHORCY-EEE>. 79
É um vídeo que tem o objetivo de apresentar as trajetórias e o engajamento de mulheres quilombolas que
atuam como lideranças políticas de suas comunidades, e do movimento quilombola como um todo. Quais serão
os discursos destas mulheres sobre suas trajetórias? Busca-se a partir dos pontos de vista de algumas destas
lideranças conhecer os motivos que as levaram a ocupar estas posições e aqueles que as fazem permanecer na
107
Utilizam as Fanpages para divulgar os trabalhos realizados, anunciar futuras
mobilizações e participações em eventos culturais e políticos. Uma importante ferramenta de
divulgação das conquistas políticas do movimento social dos quilombolas também para todo o
Estado, uma vez que a Sandra Andrade é presidente da Federação do Quilombolas do Estado
de Minas Gerais - N´Golo, assim a informação está sempre atualizada e disponível nas
Fanpages dos quilombolas Carrapatos da Tabatinga.
Em pesquisa mais apurada das Fanpages encontrou-se conteúdo da cultura de matriz
africana, as participações nas festas religiosas da cidade. Mas também conteúdos políticos
relatados pelos membros da comunidade quilombola da Tabatinga, no processo de
comunicação, são produtores dos conteúdos, realizando assim uma comunicação autoral,
impetrando uma linguagem que tem a marca do quilombo.
Tem força a fala dos quilombolas nas narrativas. Discursam sobre a luta dos
territórios, e todas as dificuldades oriundas do preconceito, e a difícil conquista por um lugar
na sociedade como cidadão, pelos direitos de isonomia e isogoria e seu pleno exercício, como
rege nossa Constituição democrática brasileira de 1988.
A Fanpage é utilizada também como fator mobilizador com outras comunidades
quilombolas do Estado de Minas Geras. A característica da maior abrangência espacial é a
agilidade que a Internet possuí, facilita a comunicação com outras comunidades mais
distantes do Estado, e do Brasil.
O custo para a utilização dos meios digitais, como as redes sociais, é baixo para a
comunidade, pois possuem na sede da Associação um telecentro, com bom aparato de
dispositivos tecnológicos e conexão à internet, fornecidos pelo governo federal na gestão do
presidente Luís Inácio Lula da Silva. Este telecentro foi mais uma conquista da comunidade
Quilombola Carrapatos da Tabatinga, só assim eles puderam desenvolver uma comunicação
utilizando os meios digitais. Os jovens da comunidade são responsáveis pela publicação e
posts no Facebook. Publicam fotos da comunidade, geralmente sobre os eventos e
manifestações. E orientados pela liderança colocam as informações sobre a luta pelos direitos.
luta. Realizado e Publicado em 4 de nov. 2015. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=RSW3uEfk4QU>.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa se propôs investigar se a comunidade quilombola Carrapatos da
Tabatinga tem uma comunicação comunitária que contribui para amplificar suas demandas
sociais e atuarem como cidadãos na sociedade Bom Despacho.
A pesquisa trouxe algumas respostas para a hipótese proposta por meio do estudo
etnográfico, baseado na observação participante de algumas atividades e eventos da
comunidade, presenciados in loco, somado com a pesquisa bibliográfica, estudo documental e
entrevistas sobre a comunicação desenvolvida na comunidade quilombola.
Esse estudo revelou um melhor entendimento sobre os processos de comunicação
realizado entre os membros da comunidade, e como se dá a relação comunicante com a
sociedade local. Tivemos respostas claras, mas também ficamos com algumas pistas, quem
sabe para um próximo estudo a ser desenvolvido por meio de pesquisa, principalmente sobre
a atuação dos membros da comunidade como cidadãos na sociedade de Bom Despacho.
A primeira resposta obtida com a investigação foi constatar que a comunidade tem
sim uma comunicação comunitária desenvolvida realizada por meio do diálogo, que é
utilizado na comunicação interpessoal e grupal, e que necessariamente não se utilizam dos
meios tecnológicos de comunicação, para exercer a comunicação comunitária e amplificar
suas demandas sociais.
Os processos comunicacionais realizados entre os membros da comunidade
Quilombola Carrapatos da Tabatinga é uma comunicação interpessoal, principalmente
realizada a partir da interlocutora e líder Dona Tiana, que aos 83 anos, dialoga com a
comunidade por meio de sua oralidade baseada em seu repertório cultural, de vivências, de
emoções, e por meio de toda a "bagagem" de luta dela e de seus ancestrais, que traz consigo e
passa para seus descendentes membros da comunidade de forma dialogada. Ela é ativa e luta
pelos direitos dos quilombolas, e como ela diz “do meu povo!”.
Foram observados elementos importantes na fala de Dona Tiana com a comunidade
que chamaram a atenção:
a) A preservação da memória ancestral das matrizes africanas, no que diz respeito a
homenagem aos dias de lutas e resistência do povo negro no Brasil na época da
escravidão, lembra da dor e do sofrimento, onde havia uma total ausência de cidadania
por parte da sociedade da época. Mas hoje, ela deixa claro que não são mais escravos,
e não se deve agir como tal. Ela passa nas suas falas a resistência contra um modelo
109
preconceituoso existente no Brasil em relação ao negro, e ela diz que precisa se impor
ao preconceito e lutar pelo seu lugar;
b) A sua fala tem objetivos que reafirmam a identidade quilombola na comunidade como
cidadão quando ela diz que “o negro não ajudou a construir o Brasil, ele construiu”;
c) Ela utiliza seus cantos de sua autoria, feitos de forma criativa e original, para exaltar a
cultura africana, com sua religião umbandista traduz a caridade, força e a luta do seu
povo da sua comunidade quilombola.
Viu-se na comunidade a prática do agir comunicativo de Habermas (1989), pois
Dona Tiana com seus atos de fala motiva racionalmente os outros membros da comunidade
para uma ação e adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário (a ação que uns exercem
sobre os outros; e a concepção do sujeito da enunciação enquanto agente da interação social
no ato da fala) - de comprometimento que a oferta de um ato de fala dela suscita. Ela é
referência para a comunidade de força, luta e resistência.
Constatou-se que por meio do agir comunicativo estabelecido por Dona Tiana com
os membros da comunidade, foi suscitada uma consciência na comunidade, formada por
diálogos críticos, sobre a posição que ocupa na sociedade local. A comunidade tem ciência da
sua identidade e cultura, e sabem a importância de lutar por suas demandas sociais: contra o
preconceito racial, a regularização das terras quilombolas, de ter espaços de participação
como cidadão em falar e ser ouvido, e a importância do reconhecimento do negro quilombola,
por parte da sociedade local na formação da cidade de Bom Despacho e região. Esta
consciência faz com que a comunidade seja coesa e se mobilizem para participar dos eventos
culturais e manifestações de protesto, porque sabem que é um momento de comunicar suas
demandas sociais e resistir ao modelo social vigente preconceituoso e excludente.
Mas, a liderança, Sandra Andrade e Dona Tiana, externaram a preocupação da
migração de membros da comunidade para outras cidades, por motivos de falta de
oportunidades de emprego em Bom Despacho, é um fator de enfraquecimento, conta com um
número pequeno de adultos que poderiam participar das mobilizações em prol dos objetivos
da comunidade. Hoje quem está na comunidade são os mais idosos e os jovens. Os jovens
ficam na comunidade até chegarem à fase universitária, porque muitas vezes migram para
outras cidades, pois não há universidades públicas próximas a Bom Despacho. Há uma
faculdade particular na cidade com cursos em algumas áreas. A participação dos adultos nas
110
atividades da comunidade vem diminuindo, pois trabalham em cidades vizinhas distantes, e
muitas vezes mudam em busca de melhores condições salariais.
Por esse motivo a regularização das terras é uma possibilidade de ter uma agricultura
capaz de garantir o sustento da comunidade, evitando assim a migração de seus integrantes
para outras regiões em busca de oportunidade de emprego. Na verdade, externaram que se
entristecem em ter que deixar seu território simbólico e de vida, para buscar em outras cidades
um meio de sobrevivência.
Atualmente a comunidade vive do programa social Bolsa Família80
e com a cesta
básica81
que a liderança conseguiu por meio da Secretária Nacional da Ação Social junto ao
Governo Federal. Inclusive o bairro da Ana Rosa (Tabatinga) existem moradores que não
fazem parte da comunidade quilombola dos Carrapatos da Tabatinga, mas são ajudados
também com a doação de cesta básica que a comunidade recebe, por iniciativa de Dona Tiana.
O bairro Ana Rosa (antiga Tabatinga) já citado na pesquisa é pobre e com muitas
necessidades de infraestrutura básica.
Os processos comunicacionais com a sociedade local, para amplificar as demandas
sociais da comunidade, se dá por meio da força comunicante grupal da comunidade na
participação em eventos culturais, religiosos e manifestações de protestos. Eles atuam com
suas vozes e proclamam sua memória ancestral, a identidade quilombola e sua cultura de
matrizes africanas.
A comunidade demonstrou mais uma vez por meio do diálogo a práxis da
comunicação grupal para explicitar suas demandas sociais não somente para a sociedade
local, mas também na participação em eventos na capital Belo Horizonte com as demais
comunidades quilombolas do Estado, bem como com as comunidades indígenas.
Durante os eventos existem programações que contam com o apoio de universidades
federais e grupos de pesquisas da região, que promovem discussões em plenárias dialogadas
com os quilombolas, a sociedade local e estudantes universitários. Debatem a situação de
vulnerabilidade socioeconômica das comunidades tradicionais.
80
É um programa do Governo Federal do Brasil de transferência direta de renda, direcionado às famílias em
situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o País, de modo que consigam superar a situação de
vulnerabilidade e pobreza. O programa busca garantir a essas famílias o direito à alimentação e o acesso à
educação e à saúde. Em todo o Brasil, mais de 13,9 milhões de famílias são atendidas pelo Bolsa Família.
Disponível em: <http://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx>. 81
O Governo Federal por meio da Secretária Nacional da Ação Social destina 1.500 kg, em forma de cestas
básicas, para a Associação dos Quilombolas Carrapatos da Tabatinga, que cadastrou os membros da comunidade
e também estendeu o cadastramento do benefício para as famílias de baixa renda do bairro Ana Rosa (antiga
Tabatinga) iniciativa de Dona Tiana. Informação coletada na entrevista com Dona Tiana em 05 outubro de 2015.
111
Nestas reuniões acontecem plenárias de discussões sobre assuntos referentes a
cultura de matrizes africanas, as demandas sociais das comunidades tradicionais, indígenas e
quilombolas, assim como possíveis políticas públicas para as comunidades. Os interlocutores
da comunidade Carrapatos da Tabatinga, geralmente são Dona Tiana e Sandra Andrade, que
também é Presidente da Federação dos Quilombolas do Estado de Minas Gerais.
Presenciei na Festa de São Sebastião, suma das reflexões de Paulo Freire (1988),
inclusive epígrafe da presente dissertação, que vou me permitir a citar: “A educação é
comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro
de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1985, p. 69).
A comunidade é ativa e procura comunicar suas demandas sociais com a sociedade
local, têm meios de participação, e principalmente através dos eventos, um contato mais
próximo.
Observou-se que a aceitação da sociedade local em Bom Despacho se dá no
reconhecimento da importância folclórica da cultura quilombola para a cidade. Em relação às
demandas sociais da comunidade são pouco sensíveis e desconhecem o direito constitucional
dos territórios. A comunidade chegou a relatar que eles os acham “folgados” e que querem
terras de graça.
A questão da empregabilidade na cidade faz a comunidade sentir a presença do
comportamento preconceituoso da sociedade local. São ofertados para eles somente postos
para empregos domésticos, e as vagas no comércio são ofertadas preferencialmente para aos
brancos, segundo relato da comunidade.
A participação como cidadão se dá no exercício de poder falar de suas demandas
sociais, porém não são ouvidos, principalmente pelo poder público municipal que os deveriam
representar, assim como a Câmara de Vereadores de Bom Despacho. Por vezes as líderes
Sandra Andrade e Dona Tiana tentaram ir à Câmara de Vereadores da cidade e discutir, por
meio do diálogo, políticas públicas para a comunidade. Elas relataram que até hoje
conseguiram somente um empate na Câmara Municipal, sobre cotas para negros no serviço
público municipal, e na hora de desempate o presidente da câmara e votou contra. Foi o mais
longe que conseguiram chegar. Enfim, a participação como cidadão, na sua representatividade
na câmara de vereadores na cidade de Bom Despacho, ainda está longe do que a comunidade
almeja.
Sandra Andrade, membro da comunidade, relatou que as maiores conquistas foram
por meio da esfera do Governo Federal, pois na esfera Estadual, dependendo do partido do
Governo do Estado de Minas Gerais, ela tem ou não abertura para colocar as demandas
112
sociais das comunidades quilombolas, não só da Tabatinga, mas de todo o Estado, uma vez
que é presidente da federação das comunidades quilombolas do Estado de Minas. No
exercício da cidadania, mediante a pesquisa, a comunidade quilombola da Tabatinga tem seu
direito prejudicado na esfera Estadual e Municipal, entretanto resiste bravamente contra esta
condição.
Um dos objetivos específicos do presente estudo foi verificar se há um trabalho
desenvolvido nos meios de comunicação grupais ou midiáticos de alcance comunitário ou
local, amplificando as demandas sociais da comunidade. Infelizmente esta parte da pesquisa
ficou prejudicada pelo fato de não conseguir ser atendida na provável (porque as informações
são contraditórias se a rádio é ou não comunitária) rádio comunitária Nova FM, para uma
sequer breve entrevista (foram muitas tentativas). No entanto, vou me valer do relato da
comunidade sobre a participação nos meios comunicacionais da cidade de Bom Despacho.
D. Tiana relatou que a rádio FM de Bom Despacho abre espaços para ela falar e
divulgar assuntos da comunidade. Aprofundei esta participação e constatei que realmente há
espaços esporádicos para divulgação de eventos relacionados a comunidade.
Referente à discussão ocorrida com o padre Cristiano da paróquia de Nossa Senhora
do Rosário, D. Tiana teve acesso à rádio como canal para relatar sua versão dos fatos e se
pronunciar. A rádio é comercial, mas a comunidade tem bom relacionamento com a direção e
locutores, que disponibilizam este canal de comunicação para participações esporádicas.
Não foi notado em nenhum meio de comunicação da cidade, espaços de discussões
ou conteúdos produzidos pela comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga em Bom
Despacho. Também não foi constatado nenhum trabalho nos meios de comunicação
midiáticos de alcance comunitário ou local, amplificando as demandas sociais da comunidade
produzido pelos comunicadores da cidade de Bom Despacho.
O único meio de comunicação tecnológico que a comunidade utiliza atualmente são
os que a Internet proporciona, mais especificamente o Facebook. Produzem textos,
gerenciados pelos jovens da comunidade que divulgam as participações em eventos e as
atividades realizadas. Postam conteúdos contra o preconceito racial e as lutas do povo
quilombola.
O YouTube é outro canal que amplifica as demandas sociais da comunidade. As
divulgações são realizadas pelos pesquisadores e produtores que realizam algum tipo de
trabalho com a comunidade. Como o excelente documentário “A Filha de São Sebastião”82
produzido pela Caturra e disponibilizado no YouTube. Não tem conteúdos e nem canais no
82
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6nHORCY-EEE>.
113
YouTube produzidos pela própria comunidade. Seria um meio de comunicação comunitário
interessante para explicitar as demandas sociais. Com tecnologia de baixo custo e de
produção a comunidade poderia produzir um canal com as práticas de Educomunicação.
Indaguei, por meio de entrevista83
, à liderança porque eles não utilizam meios de
comunicação comunitários próprios como rádio e jornal com conteúdo produzido por eles, ou
até um canal no YouTube para amplificar as demandas sociais. Eles relataram, e chegaram a
mostrar que tiveram uma iniciativa de produzir o jornal impresso da Comunidade dos
Quilombolas Carrapatos da Tabatinga (1.000 exemplares), mas devido ao alto custo de
impressão desistiram.
No ano de 2003, chegaram a receber equipamentos doados pelo Governo Federal
para instalarem uma rádio comunitária, reformaram um espaço físico para a rádio, porém
devolveram tudo. Na época, foram alertados pelos amigos e comunicadores de rádio da
cidade sobre uma possível ação judicial em virtude de algum tipo de conteúdo indevido que
poderiam veicular por desconhecimento, o que poderia resultar em algum tipo de processo.
Por não querer correr este risco devolveram todo equipamento, segundo relato de Dona
Tiana84
.
Tiveram uma iniciativa de promover um jornal chamado “Tabatingão” gravado por
meio de vídeo, realizaram um pequeno teste, porém não deram prosseguimento.
Quero deixar algumas considerações que sejam relevantes. Existem grandes
oportunidades para projetos que desenvolvam meios de comunicação comunitário
possibilitando a comunidade amplificar ainda mais as demandas sociais, e educar por meio de
conteúdo, produzido por eles, à sociedade local.
A colaboração poderia ser através de oficinas de Educomunicação, aulas técnicas
sobre o uso dos equipamentos tecnológicos dos meios de comunicação, a melhor utilização
das redes sociais, ou como fazer com menor custo um jornal comunitário impresso, e até
mesmo base jurídica para uso dos meios de comunicação, seus direitos e deveres, com
responsabilidade. Assim a comunidade que já desenvolve uma comunicação dialogada como
práxis de comunicação interpessoal e grupal poderia utilizar também os meios de
comunicação comunitário para amplificar suas demandas sociais.
Minha trajetória nestes dois anos de pesquisa foi marcada pela reflexão e
conscientização do pouco conhecimento que temos sobre a formação social do Brasil, que
está intimamente ligada as bases de um modelo sócio econômico sob a égide do colonialismo.
83
Entrevista realizada pela autora em 08 de maio de 2016. 84
Entrevista realizada pela autora em 07 de maio de 2016.
114
Encontrei na pesquisa de campo elementos da época da sociedade colonial: poder nas
mãos de latifundiários, uma sociedade classista e excludente, com uma forte desigualdade
social abarcada pelo preconceito racial em pleno século XXI.
Temos a possibilidade no campo comunicacional revelar, por meio de pesquisa,
esses cantinhos do Brasil, e compreender as comunidades e suas demandas sociais e assim
propor discussões sobre a origem de muitas mazelas sociais, que perduram até os dias de hoje,
oriundas dos arcabouços da época colonial.
115
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