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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
THAIS TRAVASSOS
DA PARTILHA DO SENSVEL NO BRASIL: UMA LEITURA DE A HORA EA VEZ DE AUGUSTO MATRAGA E BURITI
So Paulo2014
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THAIS TRAVASSOS
DA PARTILHA DO SENSVEL NO BRASIL: UMA LEITURA DE A HORA EA VEZ DE AUGUSTO MATRAGA E BURITI
So Paulo2014
Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em EstudosComparados de Literaturas de LnguaPortuguesa, do Departamento deLetras Clssicas e Vernculas daFaculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas, para a obtenodo ttulo de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa Dra. FabianaBuitor Carelli.
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Dedicatria
Para meu pai, Alfredo Jeov Travassos, o meu primeiro e mais importante Contador deHistrias. Para minha me, Darci de Oliveira Travassos, que me mostra por que vivetodos os diaso valor do Amor e do Trabalho. Para meus irmos, Alfredo Travassos e
Andr Lus Travassos, que so meus exemplos de Coragem e de Alegria. Mesmo longe,vocs esto sempre perto.
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Agradecimentos
Fabiana, minha orientadora, que toda feita de douras e compreenso.
Obrigada por confiar e acreditar, obrigada pelos telefonemas, pelos cafs, pelasleituras. Obrigada por ser sempre um exemplo de fora, determinao e calma.
Ao professor Luis Roncari, pela ateno, pela disponibilidade e pela ajuda sema qual esse mestrado nunca teria sido realizado.
Ao professor Marcos Natali, pela disciplina Do sofrimento: questes de
literatura e tica, fundamental para muitas das reflexes sobre a poltica da literaturafeitas aqui.
Ao professor Willi Bolle, pela generosidade e ateno, pela longa conversa que
tivemos sobre questes centrais deste trabalho.
professora Davina Marques, pelos apontamentos da qualificao, essenciaispara definir os rumos do texto.
Ao Daniel Borges que to gentilmente me convidou para participar do seumestrado, me permitindo conhecer seu Andr e sua famlia. Com eles aprendi para avida.
Ao Felipe, meu sempre companheiro, de alegria e de dores, obrigada por
compreender e por acreditar. Obrigada por me ajudar a mediar e equilibrar os meusconflitos. Obrigada por aceitar as minhas tantas falhas. Eu te amo.
Ao Luzimar, meu amigo e para sempre professor, meu irmo, que me mostrou oRosa e muitas veredas da vida, da literatura e da justia, que me deu a mo, querevisou meus textos, que me deu coragem: um Aristeu para a minha histria. Obrigada.
Ao Joaquim, obrigada por tudo.
Lou, minha me postia, obrigada.
Aos Arantes (Fef, Fbio e B), que incentivaram as minhas primeirasaventuras com o texto literrio e, mais que isso, com a vida.
Aos amigos que compreenderam as minhas faltas, que ouviram os lamentos, queme disseram o que eu precisava ouvir. Obrigada: Clau Boal, Digo Borsoi, Lincoln
Noyori, Leo Mariano.
Aos professores da Unitau, pelo apoio.
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RESUMO
Este trabalho prope uma leitura dos aspectos estruturais de narrao, construo depersonagens e enredo a partir de uma perspectiva que os considera como dadosessenciais para aquilo que Rancire (2004) chamou de poltica da literatura. Os textosescolhidos, A hora e a vez de Augusto Matraga, de Sagarana, e Buriti, de Corpo debaile, foram considerados dentro de uma tradio brasileira da fala sobre um outro
cultural, presente desde os Romnticos at os Modernos. Tentou-se compreender comoas inovaes estruturais principalmente a reformulao do discurso indireto livre pode ser lida como mais ou menos democrtica, a partir de uma reflexo sobre apartilha do sensvel (Rancire, 2005) e a letra muda (Rancire, 2004).
Palavras chave: Guimares Rosa, Poltica da Literatura, A hora e a vez de AugustoMatraga, Buriti, partilha do sensvel.
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ABSTRACT
This dissertation proposes a study of the structural aspects of narration, character andplot through a perspective that considers them as essential for what Rancire (2004)called politics of literature. The texts chosen, A hora e a vez de Augusto Matraga,from Sagarana and Buriti, from Corpo de baile, were read within a Brazilian literarytradition of speaking about a cultural other, present from Romantic to Modern writings.
The research tried to understand how structural innovationsspecially the rebuilding ofthe free indirect speech (discurso indireto livre) may be read as more or lessdemocratic considering the concepts of partition of the sensible (RANCIRE, 2005)and the mute letter(RANCIRE, 2004).
Key words: Guimares Rosa, Politics of literature, A hora e a vez de AugustoMatraga, Buriti, partition of the sensible.
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Sumrio
Apresentao 06
Introduo 08
Captulo 1: Literatura e poltica: (im)possibilidades brasileiras 11
1.1.Jacques Rancire e a poltica da literatura 11
1.2.Literatura: a instituio e a responsabilidade 13
1.3.As vozes literrias no Brasil e o paradoxo primordial 161.4.O falar do subalternizado: ontem e hoje 25
Captulo 2: A hora e a vez de Augusto Matraga: narrador e heri entredois mundos.
32
2.1. O narrador de duas cabeas: a oniscincia tradicional dos textosrealistas e a narrativa da tradio oral.
33
2.2. A dupla natureza 44
2.3. Augusto Matraga: o heri de duas faces 45Captulo 3: As vozes narrativas de Buriti 52
3.1. O menino e a outra. 56
3.2. A narrativa entrecortada. 64
Captulo 4: O tempo vivo da histria: As vozes narrativas em comparao. 73
4.1. A partilha do sensvel em A hora e a vez de Augusto Matraga eBuriti.
77
4.2. Representao e Responsabilidade 82
4.3. A reconstruo da narrativa regionalista brasileira: perspectivas. 86
4.4. A (im)possibilidade da letra muda. 88
Consideraes Finais 93
Referncias Bibliogrficas 96
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Apresentao
O mote inicial desta pesquisa, como, provavelmente, de todas, surgiu doencontro entre minha vontade de construo de identidade e meu objeto de estudo: as
narrativas de Guimares Rosa, capazes de preencher vazios profundos. As estrias dos
capiaus, meninos, burros, prostitutas, entre outras criaturas de papel que falam dentro
dos textos do autor remetiam quelas histrias contadas por meu pai: da infncia rural, e
da depois difcil adaptao moderna capital, So Paulo, que repelia e escondia, na sua
vontade cega de desenvolvimento, as crenas e ritos das classes subalternizadas, suas
mes-pretas. Elas tambm traziam para mim a histria pessoal de minha me, que, ainda
menina, mudou-se para So Paulo, de dentro do agreste pernambucano para as
tecelagens da capital. Desde a, o estudo se forou pelo caminho da tentativa de
compreender o porqu dessa relao: onde, nas narrativas, moraria o centro dessa
identificao?
Duas coisas me pareciam ser a resposta para essa questo to pessoal e to
distante de reais possibilidades acadmicas: a mescla das vozes rurais em um texto
considerado cnone pela academia e tido como entre os melhores escritos da lngua
portuguesa; e a rica representao humana desses homens e mulheres que se pareciam
tanto com a minha famlia: nas histrias, as personagens no eram nem reduzidas falta
nem reconstitudas como heris romnticos idealizados. No primeiro estudo que realizei
como concluso do meu curso de graduao na Universidade de Taubat, em 2009, no
foi difcil encontrar teorias que corroboravam meu olhar apaixonado: de quem encontra
razes na beleza das palavras. Lendo comparativamente Campo Geral e So
Marcos, repeti em estilo acadmico a minha paixo e identificao com o texto.
Parecia muito claro para mim que a mescla de vozes e representao das culturas rurais
democratizava as vozes na literatura brasileira, e que a cada livro Rosa ampliava e
reforava essa capacidade narrativa enriquecendo essa tcnica representativa.
O primeiro projeto desse mestrado foi, ento, o de descobrir como essa
democratizao narrativa parecia ser uma voz dissonante entre as falas sobre o Brasil,
sempre muito carregadas de fortes contradies, e como ela parecia propor uma resposta
para os problemas de representao das culturas subalternizadas do Brasil nos textos
literrios. Alm disso, essa maneira de escrever sobre os homens e mulheres
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marginalizados do centro dos discursos oficiais parecia para mim uma maneira de
alcanar possveis solues para os problemas reais do pas.
Entretanto, a academia , felizmente, um lugar de se questionar certezas. E,
como era de se esperar, o contato com pontos de vista diversos sobre as possibilidades e
impossibilidades da arte e do texto literrio comearam a impor entraves para a minha
utopia pessoal. As reflexes acerca da possibilidade ou no da fala dos subalternizados
no discurso ocidental me levou ao inevitvel questionamento sobre as limitaes da
literatura. Da, a reflexo se estendeu automaticamente para o texto de Rosa, que, em
certa medida, parecia tambm muito distante dos grupos subalternizados do Brasil.
Passei, dessa forma, a tentar lidar com essa problemtica de forma a buscar
compreender em que medida a minha certeza inicial poderia se manter, ou se haveria
outras possibilidades de leitura para um texto to cheio de meandros tortuosos que
levam, por vezes, a compreenses contraditrias de uma mesma questo. Esse trabalho
, portanto, a tentativa de reconstruo de uma perspectiva a partir da compreenso de
que, embora seja impossvel propor uma resposta definitiva para as questes dessa
representao no Brasil, possvel pensar sobre como a nossa tradio formada e que
caminhos ela nos permite percorrer para pensar o pas.
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Introduo
Toda narrativa carrega consigo uma perspectiva poltica que no reside na
simples intencionalidade de seu autor, mas na sua materialidade estrutural e no jogo queela estabelece com outras vozes sociais. A literatura de Guimares Rosa, neste contexto,
espao privilegiado de anlise porque participa de maneira original de uma tradio
regionalista de recriao da fala de outros culturais.
Partindo desse pressuposto, este trabalho procurou compreender as escolhas
estruturais do conto A hora e a vez de Augusto Matraga e da novela Buriti, dos
livros Sagarana e Corpo de Baile, e de que forma elas configuram uma partilha do
sensvel (RANCIRE, 2005) ao mesmo tempo inovadora e tradicional dentro do
contexto da literatura moderna brasileira. A leitura objetivou compreender o processo de
configurao de uma poltica da literatura (RANCIRE, 2004) pelo estudo da
perspectiva narrativa e da construo das personagens, visto como um trabalho
estrutural que ressignifica a representao regionalista das culturas rurais
subalternizadas do Brasil.
Considerou-se, tambm, que a consolidao da Literatura Brasileira como um
sistema (CANDIDO, 2000) foi um processo violento anlogo ao processo de formao
nacional. Desde os romnticos do sculo XIX at os modernos no sculo XX a nossa
tradio parte da perspectiva de um olhar sobre um outro. H diversos exemplos desse
processo: Alencar e a apropriao do indgena; os regionalistas romnticos e a recriao
da figura do homem rural; os deterministas de princpios do sculo XX, como Euclides
da Cunha e Monteiro Lobato; os primeiros modernos, que se apropriavam das culturas
populares na recriao da esttica literria brasileira; os regionalistas de 30, que falavam
a partir da realidade dos sertanejos do nordeste brasileiro.
Nesse sentido, foi necessrio estabelecer uma leitura que considerasse as
contradies dessa formao e se questionasse sobre a tica dessa representao, se
perguntando se os processos de apropriao cultural eram capazes de permitir que os
subalternizados falassem (SPIVAK, 2010). Para isso, o primeiro captulo, Literatura e
poltica: (im)possibilidades brasileiras, delineia a teoria sobre a poltica da literatura tal
como proposta por Rancire, principalmente em The politics of literature (2004) e A
partilha do sensvel (2005), e de que maneira ela pode ser compreendida dentro da
tradio literria brasileira. Por meio de uma reflexo sobre a leitura que Bosi (2010)
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faz de alguns aspectos violentos dessa tradio em Dialtica da colonizao, este
trabalho se coloca como um dilogo com a crtica rosiana que prope que Rosa
reconstri a perspectiva da tradio regionalista ao reconfigurar a estrutura narrativa,
principalmente com Antonio Candido (1999, 2000), ngel Rama (2008), e Paulo
Moreira (2012).
O segundo e terceiro captulos tentam compor uma leitura crtica dos aspectos
estruturais mais relevantes de cada uma das narrativas. Em A hora e a vez de Augusto
Matraga: narrador e heri entre dois mundos, observam-se como tanto o narrador
quanto o heri do conto so marcadamente duplos. O primeiro mostra-se dividido entre
uma perspectiva tradicional do texto realista (o narrador onisciente, o uso do discurso
indireto livre) e o contador de histrias da tradio oral (a mescla de preciso e
impreciso, a apropriao da perspectiva de linguagem e de ponto de vista cultural do
mundo das personagens).
As vozes narrativas de Buriti busca explicar a perspectiva narrativa da
novela, analisando o seu narrador proteiforme (RONCARI, 2013) a partir da diviso
central que se faz entre as duas personagens principais, Miguel e Lala, e do lugar em
que o narrador coloca outros pontos de vista, como os de Nh Gual, Chefe Zequiel e Do
Nh. Cada um desses olhares narrativos ir estabelecer quadros diversos do lugar, das
personagens e das temticas que se constroem ao longo do texto. Essa configurao
narrativa e, consequentemente, a construo de personagens e de temticas esto
intimamente ligadas a um aprofundamento no processo de releitura do discurso indireto
livre. Em Buriti, o narrador deixa-se influenciar no somente pelo ponto de vista das
personagens, mas tambm pela linguagem.
O ltimo captulo, intitulado O tempo vivo da histria, busca compreender
como os aspectos apresentados nos anteriores se relacionam, ou seja, de que maneira as
escolhas estruturais das narrativas analisadas servem como espaos de leitura dapartilha do sensvel (Rancire, 2004). Considera-se de que maneira as vozes de outros
culturais so usadas pelos textos e que dilogos elas estabelecem com a tradio literria
nacional, principalmente aquela intitulada regionalista, e que possibilidades e limitaes
propem esse dilogo. Ao final, indica-se um caminho para se pensar os desafios dessa
representao diante da realidade brasileira, no momento em que se publicaram as obras
e no presente.
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Dito completo?
Falta muito, falta quase tudo.
Guimares Rosa
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Captulo 1: Literatura e poltica: (im)possibilidades brasileiras.
A poltica da literatura no a poltica de seus escritores. Ela no
est relacionada ao seu engajamento pessoal, s questes polticase s lutas de seu tempo. Nem aos modos de representao deeventos polticos, da estrutura e das lutas sociais em seus livros. Osintagma poltica da literatura significa que a ela exerce uma
poltica enquanto literatura (...) 1Jacques Rancire
1.1. Jacques Rancire e a poltica da literatura
As duas histrias estudadas neste trabalho, A hora e a vez de Augusto Matraga eBuriti, trazem como personagens centraisNh Augusto, Lala e Miguelindivduos
que foram deslocados de seu lugar original e a quem se pede, de diferentes maneiras,
que encontrem sua destinao em novos espaos sociais. Essa redefinio de lugares e
destinaes feita dentro de um jogo complexo de vozes e por meio de uma linguagem
marcadamente nova na literatura brasileira. essa redefinio de espaos e novidade
narrativa que imprime s obras um carter poltico, uma vez que
retira as situaes sociais e as personagens de sua realidade material detodo dia e as coloca como elas realmente so, um tecido fantasmagricode signos poticos, que so tambm sintomas histricos2 (RANCIRE,2004, p. 19).
Jacques Rancire, na sua discusso sobre a relao entre a esttica e a poltica,
cunha duas expresses significativas para se compreender o que pode ser considerado
como uma poltica da literatura: a partilha do sensvel (RANCIRE, 2005) e a letra
muda (RANCIRE, 2004). Por partilha do sensvel compreende-se o entrelaamento
de vozes que compem a realidade e sob qual regime elas so compartilhadas
socialmente. Para o autor, a literatura pode exercer um regime democrtico de partilha
do sensvel, uma vez que ela questiona as hierarquias pr-definidas socialmente. Isso
1Todas as tradues de The politics of literature so livres, por isso deixo em nota os trechos originais:The politics of literature is not the politics of its writers. It does not deal with their personal commitmentto the social and political issues and struggles of their times. Nor does it deal with the modes ofrepresentation of political events or the social structure and the social struggles in their books.(RANCIRE, 2004, p.10)2It takes social situations and characters away from their everyday, earth-bound reality and display them
for what they truly are, a phantasmagoric fabric of poetic signs, which are historical symptoms as well.For their nature as poetic signs is the same as their nature as historical results and political symptoms.(RANCIRE, 2004, p. 19)
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est intimamente relacionado letra muda. A palavra literria, inicialmente, no tem
voz, mas possui uma potencialidade de alcance no encontrada em outros discursos: ela
pode alcanar qualquerpessoa de qualquer forma, permitindo uma identificao e um
reposicionamento dos lugares sociais pr-estabelecidos.
A poltica possvel do texto literrio
() uma partilha do sensvel, do visvel e do dizvel, que permite (ou nopermite) que um dado especfico aparea; que permite ou no quesujeitos especficos nomeiem ou falem sobre esses dados. umentrelaamento entre modos de ser, de fazer e de dizer. A poltica daliteratura significa, portanto, que a literatura como literatura estenvolvida nesta partilha do visvel e do dizvel, nesse entrelaamento deser, fazer e dizer que molda um mundo comum controverso3.
(RANCIRE, 2004, p.10)
O filsofo, em seu artigo The politics of literature, estuda como esse processo se
d na narrativa dos chamados realistas franceses, principalmente Flaubert. Neles, fica
claro um jogo de questionamento da instituio literria, uma vez que quebram com a
hierarquia aristotlica dos lugares de fala. Em Flaubert, todo e qualquer personagem
mostrado independentemente da autorizao social de seus discursos. Para Rancire,
essa partilha do sensvel por meio de uma letra muda fala mais do que qualquer tipo
de poltica deliberadamente escrita. Ele acredita que esses autores tm como princpio
mostrar as atividades do mundo chamadas prosaicas como um enorme poema um
tecido enorme de signos e traos, de signos obscuros que tinham de ser mostrados,
desdobrados e decifrados4 (RANCIRE, 2004, p. 18). Essa reconstituio do regime
de falas , tambm, anloga ao que o autor define como democracia. Para ele,
democracia no um regime poltico e nem um grupo de pessoas a ser governado, mas
a prpria falta de um regime poltico, na medida em que transforma o direito de posse
de um grupo em um espao de todos (RANCIRE, 2011). Quando tomamos esseconceito e o aplicamos no espao da arte, e, por extenso, da literatura, pode-se afirmar
que os textos literrios podem ser mais ou menos democrticos na medida em que
permitem ou no que certas vozes apaream na tessitura do discurso.
3It is a partition of the sensible, of the visible and the sayable, which allows (or does not allow) somespecific data to appear; which allows or does not allow some specific subjects to designate them andspeak about them. It is a specific intertwining of ways of being, ways of doing and ways of speaking. The
politics of literature thus means that literature as literature is involved in this partition of the visible and
the sayable, in this intertwining of being, doing and saying that frames a polemical common world.4the so-called world of prosaic activities as a huge poema huge fabric of signs and traces, of obscuresigns that had to be displayed, unfolded and deciphered.
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A partir dessas definies, parece possvel fazer algumas afirmaes sobre a poltica
da literatura nas obras de Guimares Rosa. Talvez o que fique mais evidente nas leituras
que se faz do autor seja exatamente a mescla de referncias populares e eruditas
cuja hierarquia rearranjada no discurso, tanto que uma construo vinda da erudio
lingustica do autor pode passar por uma criao do portugus regional e o uso de uma
expresso arcaica do portugus por um neologismo inventivo. Carelli (2003), ao estudar
a linguagem de Grande serto: veredas em comparao aos romances de Luandino
Vieira, afirma que a lngua do serto (CARELLI, 2003, p.232) construda por Rosa no
romance provm muito mais do seu vasto conhecimento do portugus e de outras
lnguas do que necessariamente da apropriao de uma linguagem sertaneja.
A partilha do sensvel aqui, como em Flaubert, de maneiras distintas, pode ser lidacomo democrtica. Abarcam-se, nessa perspectiva da poltica do texto literrio, dois
importantes pontos para a compreenso dos textos aqui estudados: a estrutura narrativa
e o tratamento esttico do homem rural brasileiro. Esse carter poltico da literatura
parece, portanto, ideal para a anlise da literatura de Guimares Rosa. Entretanto, essa
leitura implica uma contradio imposta exatamente por tratar de um contexto nacional
muito diverso daquele francs do sculo XIX: como equacionar a fora modificadora da
palavra democrtica da literatura com um espao social em que o texto literrio luxode poucos? Poderiam os homens subalternizados de nossa sociedade falar por meio de
textos como o de Rosa?
1.2.Literatura: a instituio e a responsabilidade
Em entrevista intitulada Esta estranha instituio chamada literatura5, Jacques
Derrida, ao falar sobre o que ele considera seu ingnuo interesse pelo texto literrio naadolescncia, faz a seguinte afirmao:
5Traduo livre feita por mim da verso inglesa That strange institution called literature, publicada emActs of literature.No original:() literature seemed to me, in a confused way, to be the institution which allows one to say everything,in every way. The space of literature is not only that of an instituted fiction but also a fictive institutionwhich in principle allows one to say everything. To say everything is no doubt to gather, by translating,all figures into one another, to totalize by formalizing, but to say everything is also to break out of
prohibitions. To affranchise oneselfin every field where law can lay down the law. The law of literaturetends, in principle, to defy or lift the law. It thereforeallows one to think the essence of the law in theexperience of this everything to say. It is an institution which tends to overflow the institution.
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a literatura parecia para mim, de forma um tanto confusa, ser a instituioque pode dizer tudo, de qualquer maneira. O espao da literatura no somente aquele de uma fico instituda, mas tambm de uma instituioficcional que se permite dizer tudo. Dizer tudo , sem dvida, unir, portraduo, todas as figuras umas nas outras, totalizar ao formalizar, mas
dizer tudo tambm fugir das proibies. Libertar-se de todos os camposonde a lei possa se impor. A lei da literatura tende, em princpio, adesafiar ou superar a lei. Ela permite, portanto que se possa pensar aessncia da lei na experincia deste tudo dizer. uma instituio quetende a ultrapassar a ideia de instituio. (DERRIDA, 1992, p. 36)
A afirmao acima sugere que a literatura , ao mesmo tempo, uma instituio
aquele espao de fala reconhecido socialmente pela ficcionalidade e pela poesiae uma
possibilidade de questionamento da instituio, j que a ela permitido qualquer
discurso, mesmo um contra a prpria instituio (ela uma instituio anti -
institucional6(DERRIDA, 1992, p.58). Ou seja, para Derrida, literatura na voz de
seus escritores e crticos cabem duas possibilidades distintas: a primeira, de afirmar
que isto s literatura, no realidade; a segunda, de dizer contra a norma, contra a
instituio dessas mesmas formas de poder. A primeira afirmao nega que o texto
literrio tenha qualquer influncia ou interferncia no real, ou seja, nega uma
responsabilidade atrelada ao discurso, voz. A segunda pressupe que o texto literrio
est sempre intimamente ligado a certas ideologias e pontos de vista socialmentepertinentes. Conceber a literatura a partir dessa segunda premissa compreend-la
como uma instituio que traz ao corpo da vida social vozes e interlocues livres, nas
quais podem aparecer diferentes tipos de locutores e as mais diversas possibilidades de
ao, e que ela, portanto, impe certa responsabilidade tica a autores e leitores, uma
vez que, sendo poltica, est invariavelmente atrelada a uma tica de grupo:
Poder-se- tambm dizer, por outras palavras, que, diferena entremoral e Poltica, ou entre tica da convicoe tica da responsabilidade,corresponde tambm a diferena entre tica individual e tica de grupo. Aproposio de que o que obrigatrio em moral no se pode dizer que oseja em Poltica, poder ser traduzida por esta outra frmula: o que obrigatrio para o indivduo no se pode dizer que o seja para o grupo deque o indivduo faz parte. (BOBBIO, 1998, p. 961)
6
H diversas tradues para a expresso institutionless institution, aqui escolhi a feita pelo professorMarcos P. Natali em seu artigo Questes de herana: Do amor literatura (e ao escravo) (Natali, 2012,p.10)
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Apesar de parecer simples questo de se separarem, ento, os textos em duas
supostas categorias, a daqueles que repetem a instituio e a daqueles que a
questionam, ou, trazendo novamente as reflexes de Rancire, aqueles que exercem
uma partilha do sensvel no hierarquizada e aqueles que a repetem, Derrida, na mesma
entrevista, nega esta possibilidade ao afirmar que textos inseridos em uma lgica de
repetio dos lugares de poder, podem, ao expor essas relaes normalmente latentes
(ele usa o exemplo de textos hiperbolicamente falocntricos), possuir um efeito muito
maior de questionamento deste pensamento do que textos abertamente questionadores
(DERRIDA, 1992, p.50). O paradoxo no seria resolvido, portanto, pela simples
dicotomia. Alm disso, a literatura de Guimares Rosa, como comprovam estudos
como os que Hansen (2000) e Carelli (2003) fazem de Grande serto: Veredas, no
pode ser vista a partir de perspectivas dualistas, j que a narrativa anula as dualidades na
construo paradoxal de seus discursos, narradores e personagens:
Os textos de Guimares Rosa e principalmente GS:V sorevolucionrios/reacionrios porque neles a enunciao se faz comodesignao alegorizante de um outro cultural, sem voz e sem imagem,fazendo recurso constante ao paradoxo e a seus efeitos pardicos dehumor e ironia, a uma dissoluo da forma e supervalorizao daimagem, ao mito como teatralizao de snteses do tempo e a uma intensaafirmao do futuro. (HANSEN, 2000, p. 31)
O livro, e, talvez, os contos aqui estudados, escap(am) dos dois lados da crtica,
a da esquerda, por falta de realismo, e a da direita, por excesso de virtuosismo e fuga
gramtica (CARELLI, 2003, p.13). A relao dos textos de Rosa com as dicotomias
campo x cidade, escolarizado x no escolarizado, revolucionrio x reacionrio se
mostra, portanto, muito complexa. interessante observar como esse tipo de tratamento
que preza pelo contraditrio, pela no resoluo dos temasaparece em um momento
histrico em que parecia ser preciso tomar lados: o da literatura moderna ou o da
repetio de modelos ultrapassados; a vontade de reao comunista ou o cego
progressismo modernizador; e talvez o mais interessante dos opostos o tratamento
do regional ou o tratamento do universal (termo que, em muitos casos, remete
experincia urbana da classe mdia leitora). Nesse sentido, Rosa escolheu o caminho
mais difcil: unir os aparentes opostos na sua construo literria, principalmente no que
diz respeito s diferentes culturas formadoras do Brasil. Muito do que impele
pesquisadores ao trabalho com os textos do autor tem relao direta com essa inovao
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que se reflete muito claramente no tratamento do mundo rural, esquecido pelas
instituies, mas definitivo na criao de diferentes aspectos das culturas brasileiras.
Para ns, leitores e pesquisadores, crentes na afirmao de que
(u)ma teoria da cultura brasileira, ou um espelho do sistema, umaduplicao das suas desigualdades e da sua irracionalidade de base, ou um discurso que entra em tenso com esse mesmo sistema depois de t-loatravessado estruturalmente com os olhos postos na sua transformao
(BOSI, 2010, p. 341),
os textos de Rosa parecem negar essa dicotomia de, ou contrapor, ou espelhar a
sociedade desigual e irracional, j que apontam para caminhos paradoxais, que tentam,
na verdade, retratar a condio do homem diante do embate social. Parecem propor,sempre e intensamente, a questo: como lidar com a minha prpria necessidade e desejo
diante de uma realidade desigual? essa, como aponta Bolle (2004), a questo central
de Riobaldo em Grande Serto: veredas, mas tambm ponto importante nas suas
narrativas anteriores, as quais j apontam para uma estrutura formal que impe esse
paradoxo central: ao mesmo tempo em que as vozes subalternizadas aparecem no
discurso narrativo da maior parte da literatura do autor, elas tambm por estarem
dentro de uma estrutura criativa e artstica criada e apreciada pelas culturas opressorasso subjugadas a uma narrativa qual no teriam acesso (SPIVAK, 2010).
1.3. As vozes literrias do Brasil e o paradoxo primordial
Antes de tentar propor uma discusso sobre a fala do subalternizado na literatura de
Guimares Rosa, faz-se necessrio um panorama histrico da tradio literriabrasileira, da nossa instituio anti-institucional (DERRIDA, 1992) para esclarecer
como a contradio apresentada anteriormente sempre esteve presente no contexto
nacional. Nascida daquilo que foi primeiramente trazido como artigo de luxo pelos
jesutas e colonos portugueses, a literatura brasileira se desenvolve, em sua maior parte,
nas camadas mais privilegiadas de nossa sociedade. O texto literrio no Brasil sempre
falou de um lugar e de uma experincia no mundo que pouco refletia as perspectivas
dos povos nativos do Brasil e mesmo a daqueles subalternizados portugueses vivendo
nas novas terras. Apesar disso, como sempre acontece nas formaes nacionais das
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colnias, a consolidao de uma elite mais ou menos letrada e o violento processo de
fuso dessa elite s culturas indgenas e africanas permitiu que algumas manifestaes
dessa arte acontecessem aqui e l e fossem, aos poucos, formando o imaginrio daquilo
que se chamaria literatura brasileira.
Antonio Candido (2000) prope que a crtica nacional observa nos textos literrios,
desde o princpio, um desejo de representar uma terra e um homem claramente distintos
dos portugueses. So inmeros os exemplos dessa vontade, desde os primeiros relatos
da terra, passando por Duro e Baslio da Gama que, sob diferentes perspectivas,
tentaram lidar com a complexidade do encontro violento entre os povos at a
consolidao da literatura brasileira como um sistema (CANDIDO, 2000) durante
meados do sculo XIX, com aqueles que costumamos chamar romnticos. Se for
verdade que esses primeiros escritores pretendiam diferenciar-se do portugus, do
colonizador, interessante observar o paradoxo que parece ser essa tentativa de
diferenciao. Tomemos, por exemplo, o indianismo de Alencar como lido por Alfredo
Bosi (2010) emDialtica da colonizao. Em seu texto, Bosi descortina o processo de
representao do indgena no romance O Guarani, mostrando como esse outro era,
por meio daquilo que ele chama mito sacrificial, ou a violenta aceitao do nome
ocidental que lhe do (ou impem?), retirado de sua integridade cultural e transformado
em uma mistura estranha da utopia do bom selvagem e do bom cristo portugus.
Ora, se aquilo que diferenciava o recente pas era a presena de uma cultura diversa
daquela ocidentalcomo pareciam querer acreditar os romnticos , por que construir
esse outro com tal violncia como Alencar, e outros antes e depois dele, o fazem?
Apesar de anacrnica, a pergunta parece pertinente para pensarmos qual seria, ento, a
diferena nacional apresentada por estes textos como um espelho bao da realidade.
Poderamos considerar que a nossa possibilidade de diferenciao fosse essa mesma
violncia da colonizao reconhecida pela leitura do texto de Alencar e explicitada porBosi? Candido (1989), em seu ensaio Literatura de dois gumes, parece propor
questionamento parecido quando afirma que,
[l]evando a questo s ltimas consequncias, v-se que no Brasil aliteratura foi de tal modo expresso da cultura do colonizador, edepois do colono europeizado, herdeiro dos seus valores ecandidato sua posio de domnio, que serviu s vezesviolentamente para impor tais valores, contra as solicitaes a
princpio poderosas das culturas primitivas que os cercavam detodos os lados. Uma literatura, pois, que do ngulo poltico pode
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ser encarada como pea eficiente do processocolonizador. (CANDIDO, 1989, p.165)
O romantismo e seus escritores no so, contudo, os nicos representantes dessa
particular tradio. O fim do sculo XIX v aflorar no Brasil uma literatura muito ricaque tenta, de diferentes maneiras, lidar com os desiguais encontros sociais e culturais:
desde Machado de Assis, com sua voraz crtica perspectiva da burguesia carioca, at
Lima Barreto, que, de dentro da margem, tece uma obra cheia de culpa e crtica ao lugar
que era reservado para aqueles de sua cor e sua classe. Esses escritores, contudo, ainda
estavam tematicamente limitados a uma parcela muito pequena das diversas culturas do
Brasil, j que tratavam essencialmente do homem urbano, das novas e crescentes
cidades.E junto a um crescimento das cidades que cresce o tratamento do regional
que, no Brasil, significou, principalmente, um tratamento do homem rural. Em
Literatura, espelho da Amrica?, Candido (1999) faz um panorama interessante do
regionalismo do Brasil desde os romnticos at os modernos, e afirma que (n)a
literatura brasileira, regionalismo designa sobretudo a narrativa cujo tema a vida nas
zonas afastadas, com usos e modos de falar prprios, em grande parte de cunho arcaico
(CANDIDO, 1999, p. 110). Ligia Chiappini (1995) prope que exista uma relao
direta entre o crescimento do urbano na realidade e do tratamento do rural pela
literatura:
Na verdade, a histria do regionalismo mostra que ele sempresurgiu e se desenvolveu em conflito com a modernizao, aindustrializao e a urbanizao. Ele , portanto, um fenmenomoderno e, paradoxalmente, urbano. No Brasil no foi diferente.(CHIAPPINI, 1995, p. 115)
Surgem, assim, nesse princpio de sculo XX, muitas vozes que tentaro tratar das
culturas rurais. O principal intelectual desse perodo, e que abre caminho para se pensar
as regies perifricas do Brasil, Euclides da Cunha, com o romance-relato Os sertes.
O livro no a primeira obra a retratar o sertanejo, mas ele que vai, utilizando-se de
uma mesma tradio literria de razes realistas, abarcar um grupo at ento, de certa
forma, desconhecido7para os homens urbanos j que, como relato, intencionava
7
Embora o tema regionalismo tenha estado presente desde o sculo XIX como um desdobramento douso da figura do indgena na criao do brasileiro, preciso notar que, at Euclides da Cunha, e, depois,Guimares Rosa, a literatura regional ou romantizava o homem rural ou o limitava misria e falta
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esboar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores,os traos atuais mais expressivos das sub-raas sertanejas do Brasil.E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores
mltiplos e diversamente combinados, aliada s vicissitudeshistricas e deplorvel situao mental em que jazem, as tornamtalvez efmeras, destinadas a prximo desaparecimento ante asexigncias crescentes da civilizao e a concorrncia materialintensiva das correntes migratrias que comeam a invadir
profundamente a nossa terra. (CUNHA, 1984)
A essa inteno veio unir-se um grande flego narrativo e uma situao real a
guerra de Canudos , que foi talvez dos palcos mais ricos para se conhecer mais
profundamente (tanto metafrica quanto literalmente) o Brasil: muitos homens emulheres pobres seguindo um chefe poltico de uma religiosidade antiga e profunda,
subjugados at a morte pela fora e o poder da ordem governamental institucionalizada.
Esse quadroque, em certa medida, at hoje se repete, com novos protagonistas era
um reflexo vivo de uma sociedade desigual. A viso que Euclides tem do serto e,
consequentemente, do homem desse espao cultural, contudo, uma viso, como sugere
Bolle (2004), de cima: ele parte da estao de trem de Queimadas at os lugares
evitados pelos homens (BOLLE, 2004, p.56). O autor e seu narrador ainda esto presos cartografia oficial (BOLLE, 2004, p.56) e no conseguem sair do seus lugares de
homem urbano escolarizado, do litoral, mantendo a dicotomia entre o litorneo
urbanizado (figura reconfigurada do colonizador portugus que tanto aparecia nos
primeiros romnticos) e o sertanejo atrasado. Euclides, apesar de questionar os
processos que levavam desigualdade, no conseguia ver o homem na sua plenitude
cultural, j que o limitou a ser ou o jaguno decrpito, ou o sertanejo forte.
A vontade de criao de uma arte verdadeiramente nacional, to presente nos
nossos primeiros romancistas, refloresce8com os escritores que produzem literatura a
partir do segundo decnio do sculo XX. Define-se, neste perodo, que preciso se
afastar do tradicionalismo literrio, e abraar as origens diversas da cultura brasileira,
reconhecendo e tentando expor a violncia da colonizao. Como exemplo, poderamos
(Bosi, 2006). O mais interessante de Os sertes que esse indivduo aparecer, na construoideologicamente dbia do autor, tanto como o homem forte, quanto como um pobre jaguno.8H, hoje, uma perspectiva nascente que questiona a Formao da Literatura Brasileira como um sistema
no sculo XIX, com os primeiros Romnticos. Para os autores de Formao da literatura e constituiodo Estado Nacional (SEGATTO e LEONEL, 2010), a literatura, assim como o Estado Nacional, no sedefinem, mas continuam seu processo de consolidao pelo sculo XX.
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usar o efusivo manifesto antropofgico, em que Oswald diz: s me interesso pelo
que no meu (ANDRADE, 1970, p.13). O outro, supostamente constituinte da
nossa diferena, novamente aparece aqui como aquele que pode nos oferecer (teramos
aqui novamente a ideia do sacrifcio?) a possibilidade de construirmos a to almejada
literatura nacional. Sem dvida h uma interessante mudana de perspectivas quando
comparamos esse olhar ao romntico: influenciados pelas ideias libertrias das
vanguardas europeias, os modernos inauguram um momento em que as histrias passam
a poder ser protagonizadas por aqueles locutores no autorizados (RANCIRE, 2005,
p. 25) que at ento apareciam como mera possibilidade de salvao da cultura de seus
opressores.
A partir da publicao do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre em 1926, a
construo do outro como protagonista fica mais evidente, j que ao realismo
cientfico e impessoal do sculo XIX preferiram os nossos romancistas de 30 uma
viso crtica das relaes sociais (BOSI, 2006, p.389). Essa viso crtica das relaes
sociais poderia ser aqui exemplificada por Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Por
meio do uso do discurso indireto livre, o narrador da histria oferece a perspectiva
para os protagonistas pobres do serto9.
nesse contexto que surge a literatura de Guimares Rosa, que desde suas primeiras
publicaes, mereceu a ateno da crtica por uma linguagem e uma estrutura narrativa
muito diferentes daquilo que se fazia como literatura regional no Brasil de meados do
sculo XX. Moreira (2012) chama o estilo de Rosa, ao compar-lo com Rulfo e
Faulkner, de modernismo localista, j que consegue abarcar em si propostas que
pareciam opostas para a maioria dos escritores da poca: o moderno e o regional. Prova
disso so os seus trs primeiros livros. Em Sagarana, narram-se as sagas de heris do
meio rural a partir de elementos estticos muito diversos, que o autor parece colocar no
mesmo patamar de referncias: a fala popular como parte constitutiva da narrativa(como a histria contada por Manquitola em So Marcos); e a mitologia grega (a
figura de Saturnino Pingapinga, em So Marcos, pode ser relacionada ao Chronos; e
Mangol Melagro) (RONCARI, 2004). Em Corpo de Baile, por sua vez, parece
haver uma reconstruo do uso do discurso indireto livre em diversas das suas histrias
(Campo Geral, Do-la-la-lo, O recado do morro e Buriti como exemplos).
Nelas, alm de trazer para a narrativa o pensamento de suas personagens (como fazia,
9 importante salientar que, entretanto, as diferenas sociais no eram nica fonte temtica da produoliterria no Brasil nesse perodo.
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por exemplo, Graciliano, em Vidas Secas), o narradora voz autorizada do discurso
parece emprestar de suas personagens maneiras de dizer que so mescladas ao discurso
escolarizado. Em Grande Serto: veredas, alm da conhecida inovao na construo
do narrador, existe uma infinita mescla de vozes populares e eruditas constantemente
estudadas pela academia.
Como j afirmado anteriormente, a literatura de Rosa se destacou por trazer para o
corpo literrio uma democracia literria sem precedentes: capiaus, prostitutas, velhos,
vaqueiros, jagunos, crianas - todos pareciam possuir um lugar de voz dentro dos
contos e novelas, e mais tarde, do romance central do autor por meio de uma mediao
esttica nova. O autor, ao reconstruir o homem rural na sua narrativa, os recria no
como seres limitados imagem fcil que os intelectuais tm do excludo , mas
como verdadeiros sbios, que no precisam que outros falem por eles, pelos
oprimidos (SPERBER, 2008). Essa novidade esttica e temtica vinha, entretanto,
carregada de aparentes contradies, como j delineadas no incio do captulo, dentre
elas, as mais evidentes: o homem culto, diplomata, versado em vrias lnguas, fala do
espao rural brasileiro; a estetizao da linguagem de representao do rural, embebida
em referncias da tradio literria ocidental; da boca dos homens analfabetos do serto
nasce uma linguagem emprestada do alemo e de outras lnguas aparentemente distantes
demais de Minas Gerais. Mesmo a crtica que procura considerar, em geral
comparativamente, a literatura do autor quanto ao seu carter regional, ou, melhor
explicando, aquela que, em alguma medida, tenta colocar a literatura de Guimares
Rosa num patamar ao mesmo tempo regional e universal, tambm est cheia de
paradoxos, talvez inevitveis quando se trata de discutir o papel de reconstruo do
mundo rural num pas com tantas desigualdades. Antonio Candido est entre os
primeiros a estabelecer essa crtica na sua conhecida resenha sobre Grande serto:
veredas, intitulada Transcendncia do Regional. Ele afirma:
Refinamento tcnico e fora criadora fundem-se ento numa unidadeonde percebemos, emocionados, desses raros momentos em que a nossarealidade peculiar brasileira se transforma em substncia universal,perdendo a sua expresso aquilo que, por exemplo, tinha devoluntariamente ingnuo na rapsdia dionisaca de Macunama, paraadquirir uma soberana maturidade das obras que fazem sentir o homemperene. (CANDIDO, 1999, p. 36)
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Essa afirmao resume, em um s pargrafo, aquele paradoxo inicial - que tambm
base para considerarmos a poltica das obras aqui estudadas. Candido, em Literatura e
a formao do homem, ao falar sobre uma tendncia da poca (1972) de se negar a
literatura regionalista, conclui que ela seja boa se a tomarmos como um basta!
tirania do pitoresco. Para ele, o carter regional
(..) existiu, existe e existir enquanto houver condies como as dosubdesenvolvimento, que foram o escritor a focalizar como tema asculturas rsticas mais ou menos margem da cultura urbana. O queacontece que ele se vai modificando e adaptando, superando as formasmais grosseiras at dar a impresso de que se dissolveu na generalidadedos temas universais, como normal em toda obra bem feita. E podemesmo chegar etapa onde os temas rurais so tratados com um requinte
que em geral s dispensado aos temas urbanos, como o caso deGuimares Rosa, a cujo propsito seria cabvel falar num super-regionalismo. (CANDIDO, 1999, p.86)
A importncia dessa primeira crtica de Candido obra de Rosa inegvel, pois
abre caminho para que se possa considerar o trabalho de linguagem do escritor no
apenas como uma inventividade lingustica de um autor versado e culto, mas como uma
nova leitura da realidade brasileira que era, at ento, ou renegada, ou to pitoresca que
se metamorfoseava em outra, um outro extico que podamos observar distncia,
que no era parte do ns. O conceito de super-regionalismo, presente na afirmao
acima, abre caminho para outros estudos como o de ngel Rama, que, embora mais
abrangente, afirmava algo muito parecido sobre a literatura de Rosa e de outros
escritores latino-americanos que se utilizavam de dados do mundo rural de seus pases
na composio de uma linguagem literria renovadora.
Em seu conhecido livro Transculturacion narativa en America Latina, Rama
(2008) cunhar o conceito de transculturao cultural, algo muito parecido com o queCandido inicialmente chama de super-regionalismo. Rama utiliza o termo para
classificar a adaptao da modernidade europeia realidade latino americana e uma
possibilidade de criao literria original deste continente. O romance latino-americano
deveria unir a literatura europeia trazida com a colonizao s vozes das culturas
subalternizadas. Alguns autores seriam, para Rama, o exemplo desse novo romance:
Arguedas, Garcia Marques, Juan Rulfo, e tambm Guimares Rosa. Segundo o autor,
alm de ser uma ferramenta de construo do romance latino-americano, esse mesmo
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jogo dialtico poderia ser utilizado como chave para um projeto libertador para o
continente latino-americano (AGUIAR e VASCONCELOS, 2004, p.95).
Esse processo se daria, portanto, em trs aspectos. Primeiramente, no da lngua: em
Guimares Rosa visvel a construo de uma linguagem que incorpora tanto as
referncias das culturas rurais do serto mineiro quanto as da literatura clssica, das
lnguas e culturas conhecidas pelo autor. A segunda das ferramentas de transculturao
seria a estruturao narrativa: para Rama (2008), o modo tradicional de narrar dos
colonizadores era, na obra desses escritores, modificado por maneiras de contar prprias
das culturas subalternizadas. Em Grande Serto: veredas, entre outros elementos
estruturais importantes como o tempo e o espao, o narrador Riobaldo o exemplo mais
evidente dessa modificao, j que uma mescla de narradores populares do serto e donarrador protagonista tradicional do romance. O terceiro aspecto o da cosmoviso: os
livros de Rosa introduzem, viso tradicional do pensamento ocidental, novas maneiras
de se olhar a realidade vindas das culturas subalternizadas do Brasil.
Fica claro que essas perspectivas, tanto a de Candido quanto a de Rama, permitiram
que se olhasse com mais cuidado para os homens de papel (CANDIDO, 2007) das
obras do autor e que a crtica literria, historicamente elitizada, pudesse aproximar-se
deles. Entretanto, essa possibilidade de leitura no foge da contradio sempre presente
na histria da nossa literatura e crtica. A afirmao de que, para se sentir o homem
perene seria preciso transformar a nossa realidade peculiar brasileira (...) em
substncia universal parece querer garantir uma distncia, parece afirmar que toda boa
literatura precisa, necessariamente, ser universal, o homem perene s se alcana por
meio do homem universal. Parece razovel considerar que a universalidade j , por si,
excludente de outras maneiras de percepo do mundo que no se enquadrem neste
conceito, estabelecido, alis, pela filosofia europeia10. Peguemos como exemplo a
10O universalismo na literatura a ideia de que o texto literrio seria fonte de representao capacitada aalcanar todos os homens porque trariam em si a capacidade de unir as diferentes culturas a partir daquiloque seria comum ao humano. Esse ponto de vista tem sido bastante questionado uma vez que podetambm ser compreendido como um brao da colonizao, j que o supostamente universal poderiafacilmente abarcar valores das culturais ocidentais dominantes. Uma reflexo interessante sobre o assunto a que o professor Charles Larson faz em seu artigo publicado em 1973 intitulado HeroicEthnocentrism: The Idea of Universality in Literature. Nele, o autor ir discutir conceitos deuniversalidade propostos pela literatura a partir da sua experincia como professor em escolas secundrias
na Nigria. A ideia do amor romntico, do heri individual so questionadas por ele, uma vez queentravam em choque direto com aquilo que seus alunos viviam e que aparecia como central na literaturacontempornea da frica no perodo.
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narrativa de Meu tio, o Iauaret: nesse conto, o protagonista, um ex-caador de onas,
parte ndio, parte branco (CAMPOS, 1991), ao contar sobre si para um forasteiro que
calhou de passar pela sua casinha no meio da mata, transforma-se em ona. O homem-
ona a nica voz de fala durante todo o conto e utiliza-se de um uma linguagem
transformada, um portugus modificado, como se aquele no fosse o nosso
(MARQUES, 2014), carregado de expresses tupis, e, eventualmente, de dados de
lnguas africanas (CAMPOS, 1991), alm, claro, das onomatopeias e interjeies que
sugerem os sons da ona. Fica evidente, nesta narrativa, que a fora de voz no mora na
universalizao da fala, mas na pessoalizao do discurso, na transformao da lngua
portuguesa em uma se seguirmos a lgica do menor como sendo o menos visvel
diminuio da lngua, ou, talvez criando um neologismo atrevido, uma intencional
menorizao do portugus.
O estudo estrutural tambm no escapa a essa dicotomia. Rama (2008) evidencia a
fora da estrutura da narrativa, da mescla das vozes de personagens reconstrudas a
partir da vida rural brasileira. Uma das ferramentas dessa mescla o discurso indireto
livre. O uso desta tcnica narrativa parece garantir a voz ao outro, mas, ao mesmo
tempo, parece trazer a tona uma intrnseca antinomia, to bem percebida por
Graciliano11
: como poderamos analisar a figura sempre presente do narradorescolarizado a mediar a compreenso do leitor desses protagonistas? Ou, mesmo nos
textos narrados pela voz no autorizada, como equacionar a figura do autor, voz
sempre (ou quase sempre nesse perodo) socialmente autorizada na realidade? Ainda
levando ao extremo o questionamento: como lidar com o fato de que a prpria literatura
meio trazido por aqueles primeiros opressores (como explicitado pelas leituras de
Dialtica da colonizao (BOSI, 2010)), e que os outros faziam parte da grande
maioria analfabeta da populao, que, portanto, no seria pblico-leitor dessas histriasque tentavam coloc-los como protagonistas?
Outro estudo que discute o assunto a partir de uma perspectiva diferente o livro Crtica daimagem eurocntrica , de Shohat e Stam (2006). Por meio da anlise de diversas obras que incluemfilmes, programas de TV e comerciais, os autores tentam compreender de que misturas se compem asnarrativas desses textos por meio de um questionamento da viso eurocntrica da anlise da imagem,negando uma viso universal. Para eles, o universalismo foi uma arma do colonialismo europeu paraimpor-se, numa tentativa de submeter o mundo um regime nico e universal de verdade e poder.(SHOHAT & STAM, 2006, p.41)11 interessante observar como Graciliano trata essa questo nos seus romances. Em So Bernardo e
Angstia escolhe narrar a partir da perspectiva de primeira pessoa, mas em Vidas secas, talvez paraenfatizar a distncia entre ele e os homens de quem tratava, utiliza uma terceira pessoa partida, que aospoucos cede sua perspectiva aos pensamentos das personagens por meio do discurso indireto livre.
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Segundo dados da Organizao dos Estados Ibero-Americanos, em 1940 eram
analfabetos 56,2% dos brasileiros. A literatura, neste quadro, aparece como uma
promessa distante no que diz respeito a criar-se como uma possibilidade de libertao
da Amrica Latina por incluir na sua criao esttica a voz do outro. Como a literatura
poderia, dessa forma, retomar a sua fora democrtica (RANCIRE, 2004), j que no
chegaria queles que aparentemente faziam parte do coro de vozes que a compunham?
Talvez fique claro, aqui, o paradoxo j explicitado por Rama (2008) no princpio de sua
obra central:
Nacidas de uma violenta y drstica imposicin colonizadora queciega dosoy las voces humanistas de quienes reconocan lavaliosa otredad que descubran em Amrica; nacidas de la rica,varianda, culta y popular, enrgica y sabrosa civilizacin hispnicaem El pice de su expansin universal, nacidas de ls esplndidaslenguas y suntuosas literaturas de Espaa y Portugal, ls letraslationamericanas nunca se resignaron a sus Orgenes y nunca sereconliaron com su pasado ibrico. (RAMA, 2008, p.15)
1.4. O falar do subalternizado12: ontem e hoje
A tradio da fala de um outro na literatura brasileira talvez possa ser percebida a
partir das reflexes feitas por Gayatri Spivak (2010) em seu conhecido ensaio Pode o
Subalterno Falar?, em que ela delinear questionamentos sobre a possibilidade da fala
do subalternizado no discurso intelectual do ocidente. A autora faz a sua anlise a partir
de uma discusso sobre a proibio da imolao das vivas na pira de seus falecidos
maridos na ndia pelos colonizadores ingleses e levanta uma questo controversa sobre
qual seria o maior sacrifcio: o da viva ou o de sua possibilidade de ser representada
12Prefiro traduzir o termo subaltern por subalternizado, em vez de subalterno. Inicialmente o fiz no de
maneira intencional, mas tivera acesso somente ao texto em ingls e traduzira a palavra por esseneologismo. Quando questionada pelo professor Willi Bolle sobre a escolha em um trabalho de conclusode curso, dei-me conta de que a utilizava no texto sempre que no me referia ao ttulo do artigo. Hojeutilizo-a deliberadamente, por acreditar que ela pressuponha um verbo anterior, o subalternizar. Porisso, parece-me mais exata, uma vez que nenhuma cultura nasce sem voz: cria-se um espao de silncio,na medida em que essas culturas no se inserem no meio de produo e no produzem riquezas que,dentro de uma lgica capitalista de poderes, tambm tem subtrada sua voz e seu lugar de fala. No
podem dizer e, mesmo quando dizem, pouco so ouvidas. Para Spivak (2010, p. 12), o termo faz
referncia ()s camadas mais baixas da sociedade constitudas pelos modos especficos de excluso dosmercados, da representao poltica e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos do estratosocial dominante (SPIVAK, 2010, p.12)
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como mulher indiana, sem a mediao limitadora da lei. Ela deixa claro, em todos os
momentos, que no defendia a volta da prtica dosati. Entretanto, aponta o problema de
que, ao proibirem-no, tambm coibiram a formao das mulheres indianas como
indivduos que reconhecem sua fora de fala dentro de um grupo e limitaram-na a um
discurso ocidental, esvaziando a palavrasatido seu sentido original.
Para chegar a essa problematizao da representao do povo, ela far uma releitura
dos discursos de Foucault e Deleuze sobre o papel do intelectual e o poder. Ela afirmar
que a fala desses filsofos, por no considerar a fora predominante da ideologia e por
generalizar a experincia da luta e, para ela, necessariamente deixar de fora uma
poro muito grande dos subalternizadosno garante para eles um espao de voz. Ela
tentar desconstruir esse discurso por meio de uma releitura de Marx, de uma
redefinio da compreenso de representao em sua obra para explicar porque um
discurso que tenta privilegiar sempre um Outro (ou Outro do Ocidente, como ela o
nomeia (Spivak, 2010, p. 54)) fora de si mesmo como o faz, para ela, o discurso de
Foucaultpode, por vezes, reforar em alguma medida um sistema de excluso. Ela
chega, finalmente, ao exemplo indiano das mulheres e do sati para perguntar se o
discurso histrico e filosfico do Ocidente poderia representar (darstellung) a fala dos
subalternizados.
Por fora (mas no exatamente por completo) do circuito da divisointernacional do trabalho, h pessoas cuja conscincia no podemoscompreender se nos isolarmos em nossa benevolncia ao construirum Outro homogneo se referindo apenas ao nosso prprio lugarno espao do Mesmo ou do Eu (Self). Aqui se encontramfazendeiros de subsistncia, os trabalhadores camponeses noorganizados, os tribais e as comunidades de desempregados nasruas ou no campo. Confront-los no represent-los (vertreten),mas aprender a representar (darstellen) a ns mesmos. (SPIVAK,
2010, p. 70)
A discusso sobre a tradio da fala do outro na literatura brasileira e a crtica que
enxerga na mescla de vozes uma soluo para os problemas de representao do
subalternizado da Amrica Latina tambm pode ser criticada nos termos utilizados por
Spivak. Pode parecer uma inferncia um tanto distante, uma vez que o artigo no trata,
em nenhum momento, do texto literrio. Essa possibilidade se confirma, entretanto, se
considerarmos que a literatura e, por extenso, tambm a crtica literria so
maneiras da representao (darstellen) de que fala a autora. Inegvel , tambm, que no
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Brasil essa tradio de representao do Outro das culturas subalternizadas teve grande
fora e foi ponto de partida da literatura de Guimares Rosa.
interessante notar como esta questo aparece sempre nos dilogos de Rosa, tanto
em entrevistas, quanto em carta aos seus tradutores. Em entrevista a Gnter Lorenz
(1991), ao ser perguntado sobre a acusao que sua obra sofriapor no ser engajada,
como queriam muitos dos intelectuais da poca, Rosa negava ser responsabilizado por
uma funo crtica dos seus textos. Apesar disso, seus contos, principalmente os de
Corpo de baile, parecem discutir muito claramente o dilema central enfrentado pelos
escritores brasileiros, desde os romnticos, de conciliar a tradio ocidental da literatura
e as culturas nacionais. Seria possvel negar no texto a violncia da nossa formao?
Arrigucci Jr (1994), em seu estudo sobre Grande serto: veredas, aponta um
aspecto que se mostra como dos mais pertinentes para o tratamento desta questo: a
variada e mutante perspectiva narrativa do romance:
Mas no todo muito entranadocomo se diz o prprio discurso doNarrador, no so apenas essas grandes formas narrativas que setornam perceptveis. Quando se pensa na obra como um todo,acabada a primeira leitura, verifica-se que na fala ininterrupta do
Narrador se recortam diversos outros tipos de narrativa.(ARRIGUCCI, 1994, p.12)
H para o autor, em Grande serto: veredas um entrelaamento de vozes narrativas,
j que, ao mesmo tempo em que se percebe uma construo estrutural tal como a das
narrativas simples (JOLLES, 1976), tambm se pode perceber claramente uma voz
pica, da tradio narrativa ocidental. Essa mescla criaria um novo tipo de narrao
regionalista, uma vez que d vazo voz pica do serto, garantindo-lhe, em princpio,
a autenticidade do registro (ARRIGUCCI, 1994, p.13). Esse entrelaamento, que
essencial para a compreenso do romance, tambm parece central para os livrosanteriores. Se em Grande serto: veredas a relao do narrador com seu interlocutor,
construda a partir do reconhecimento de uma voz pica que parte das culturas rurais,
o que permite a ligao do mundo citadino com o mundo do serto, em Sagarana e
Corpo de baileessa ligao acontece de forma similar: no primeiro, os narradores em
terceira ou primeira pessoas (como observadores ou oniscientes) da tradio romanesca
so mesclados constantemente com uma estrutura de gnero e de vozes se parecem com
os das formas simples de Jolles (1976); no segundo, a mescla das vozes de personagensque ocupam papis sociais subalternizados, por meio de um discurso indireto livre
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reconstrudo, parece atingir efeito similar ao apontado por Arrigucci no estudo de
Grande serto: veredas.
Nos decnios de 40 e 50 do sculo XX, quem eram os subalternizados brasileiros,
seno, entre outros, aqueles homens que aparecem to bem nas histrias de Rosa, e
tambm em Buriti e em A hora e a vez de Augusto Matraga? Um homem
empobrecido que precisa fugir do seu destino; um casal de pretos vivendo
completamente margem da vila e de qualquer poder poltico e legal; mulheres que
procuram compreender seus desejos fsicos e seu espao social; um homem que escuta
os sons da noite. Esses e outros personagens povoam o corpo danante da literatura do
autor de maneira proeminente. Alm das personagens, h sempre presente a questo da
lngua, muitas vezes emprestada desses homens e mulheres separados do centro poltico
e econmico do pas. H uma relao evidente entre as histrias aqui estudadas e as
culturas subalternizadas do pas. Como equacionar, portanto, essa questo? Seria
possvel que a literatura de Guimares Rosa servisse como um espao de fala dessas
culturas subalternizadas?
Em entrevista a Gnter Lorenz (1991), ao ser questionado sobre a acusao que sua
obra sofria por no ser engajada, como queriam muitos dos intelectuais da poca,
Rosa negava ser responsabilizado por no tratar daquilo que ele nomeou como poltica
do dia-a-dianos seus textos. Apesar disso, seus contos, principalmente os de Corpo de
baile, parecem discutir muito claramente o dilema central enfrentado pelos escritores
brasileiros, desde os romnticos, de conciliar a tradio ocidental da literatura e as
culturas nacionais. Seria possvel negar no texto a violncia da nossa formao?
Diante deste quadro, possvel retomar a referncia de Derrida (1992): a
literatura o espao em que se pode dizer tudo de qualquer forma; pode-se, inclusive,
dizer contra a prpria literatura, contra certas instituies tradicionais de fala. Derrida
ainda afirma que talvez seja uma das responsabilidades do escritor exigir certairresponsabilidade no seu escrever.
Parece, como aponta Spivak, que a literatura, como instituio formada a partir
de modelos repressores e violentos, nunca pode representar de maneira justa o outro, o
subalterno. Apesar disso, parece ser tambm verdade que existe uma violncia talvez
maior na excluso, ou no apagamento, da voz desse outro na literatura brasileira, mesmo
que esta aparea como voz filtrada, em Rosa e em seus contemporneos modernos, se
considerarmos que tambm desse Outro que pretende se formar a nossa tradio
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literria. Parece ficar evidente aqui a fala de Walter Benjamin (1987) sobre a leitura que
os materialistas histricos fazem dos bens culturais:
Todos os que at hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os
dominadores de hoje espezinham os corpos dos que esto prostrados nocho. Os despojos so carregados no cortejo, como de praxe. Essesdespojos so o que chamamos bens culturais. O materialista histrico oscontempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vtm uma origem sobre a qual ele no pode refletir sem horror. Devem suaexistncia no somente ao esforo dos grandes gnios que os criaram,como corvia annima dos seus contemporneos. Nunca houve ummonumento da cultura que no fosse tambm um monumento dabarbrie. (BENJAMIN, 1987, p. 22)
A pergunta que emerge rapidamente dessa reflexo a do que fazer com a
constatao da violncia da tomada de voz do outro pelo discurso Ocidental. Tanto a
especulao de Spivak sobre a impossibilidade da fala do subalternizado quanto a
constatao de Benjamin sobre os bens culturais como monumentos da barbrie
podem ser desanimadoras para a leitura dos textos de Rosa como estruturas
democrticas. Entretanto, pode-se tentar, como o anjo de Benjamin diante do passado,
ser impelido ao futuro, e tentar apropriar-se de uma reminiscncia tal como ela
relampeja em um momento de perigo (BENJAMIN, 1987, p. 123).
O momento de perigo do agora um ponto importante para o conhecimento
institucionalizado do Ocidente, como apontado pela prpria Gayatri Spivak em uma fala
na Universidade da Califrnia, em 2011. Nesta, ela afirma que existe hoje um
reconhecimento maior das contribuies das culturas subalternizadas para o
desenvolvimento das cincias e das humanidades; entretanto, ela aponta um problema
(ainda uma impossibilidade de fala e de interlocuo) nessa troca. A academia, para
Spivak, tenta adaptar para conceitos da lgica ocidental aquilo que contribuio dossubalternizados; repete-se, nesse quadro, o silenciamento. possvel, contudo, observar
esse dilogo como uma possibilidade. A prpria autora prope sadas para isso: a
primeira delas seria a considerao, por parte da produo acadmica de conhecimento,
da existncia de uma lgica exigncia das cincias na produo do conhecimento
das culturas subalternizadas. Pode-se tambm pensar que um dilogo verdadeiro, em
que se altere a relao hierrquica como faz Rosa em sua literatura possa tambm
contribuir para que exista, nos meios autorizados de produo, um espao de fala paratodos.
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O campo das cincias no o nico em que parece haver um movimento de fala no
institucionalizada, ou, como diria Rancire (2004), no autorizada socialmente. H
diversas manifestaes que partem dos diferentes grupos subalternizados de agora que
se utilizam dos novos modos de comunicao e de produo de conhecimento para se
expressar. Dentre esses movimentos, o Projeto Miguilins um exemplo. Esse projeto
envolve meninos e meninas em idade escolar da cidade natal de Guimares Rosa,
Cordisburgo, na leitura e encenao de sua obra. Parece uma possibilidade de que,
finalmente, os homens de papel to bem inspirados nos homens rurais do serto de
Minas Gerais tenham acesso letra muda de seu texto e, assim, completem a
possibilidade democrtica de sua fala.
H, tambm, uma crtica nova que, depois de pensar o paradoxo aqui discutido,
acredita na possibilidade de fala no necessariamente dentro da tradio de apropriao
da fala do Outro da literatura brasileira. Para Marques (2013), a literatura de Guimares
Rosa seria aquela que poltica porque capaz de criar possibilidades de futuro nas
figuras de suas personagens e no conjunto delas. A literatura de Rosa seria uma criao
de um povo por vir, de um povo futuro:
tanto Rosa quanto Kogut inventam a si e a seu povo, remetendo-nostambm a um povo por vir, um povo que falta. Isso fica bastante claro
tanto em Campo Geral quanto em Mutum, que nos chocam com aexposio da coexistncia de etapas sociais to diferentes, mostrando ahistria privada de Miguilim-Thiago em um pas marcado porimpossibilidades, pelo intolervel das diferenas: Se o povo o quefalta, porque ele existe em estado de minorias. E nas minorias, oprivado torna-se poltico (Machado, 2010, p.290). A inveno de umpovo por vir tem a ver, portanto, com a expresso de foras potenciais,com a capacidade de transformar essa fora em positividade, e demultiplic-la (MARQUES, 2013, p. 43).
O presente parece oferecer, portanto, novas possibilidade de leitura da obra de
Rosa. Uma que tente no ignorar as contradies presentes nela e na crtica que se faz
dela, mas que procure compreender o texto do autor a partir dessa contradio. Afinal, o
paradoxo e as ambiguidades so encontrados fartamente em sua literatura. Para citar um
exemplo, em So Marcos, o protagonista Joo, embora possua grande preocupao
estticaa descrio pormenorizada da vida na mata, a poesiatambm a histria de
um homem acometido por um feitio no serto do Brasil. O mesmo paradoxo aparece
na disputa potica que Joo estabelece no bambuzal com o poeta annimo que se
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corresponde com ele por meio de versos escritos nos bambus. Joo est preso a uma
preocupao de transcendncia da palavra pelo som e pela beleza da erudio, por isso
escreve o rol de reis leoninos,a resposta do rival potico o divertido Lngua de
turco rabatacho dos infernos (ROSA, 2006, p. 275)
Alm disso, vale lembrar que paradoxos se constroem do ilogismo, que
elogiado pelo autor:
A lgica a prudncia convertida em cincia; por isso no servepara nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer sequeira quer no, o homem no composto apenas por crebro. (...)A lgica (...) a fora com a qual o homem algum dia haver de sematar. Apenas superando a lgica que se pode pensar com justia.Pense nisto: o amor sempre ilgico, mas cada crime cometidosegundo as leis da lgica (ROSA, 1991, p. 93)
Referia-se Rosa aqui quela mesma lgica da cincia criticada por Spivak?
As leituras feitas nos prximos dois captulos so uma apreciao estrutural das
vozes narrativas de que se compem os A hora e a vez de Augusto Matraga e Buriti
e de como essas vozes constroem as personagens e o seu destino. Esses aspectos
parecem ser os mais pertinentes a serem pesquisados, porque, assim como os estudos da
linguagem de Guimares Rosa, considera escolhas estticas que permitem ou no que
apaream no discurso vozes diversas das culturas representadas ali. como afirma
Arrigucci (apud CARELLI et al, 2014, p.86):
a escolha do narrador um dos fatos decisivos da ficao [tambm dasnarrativas nao ficcionais] e da sua interpretao, da articulao orgnicaque h entre tcnica e temtica na obra
Pretende-se, a partir desta leitura, propor uma discusso sobre como as escolhas feitas
pelo autor para a constituio de suas histrias podem ser consideradas a partir das
reflexes propostas aqui sobre a letra muda capaz de exercer uma democracia
literria, ao permitir uma partilha do sensvel mais igualitria, dentro de um contexto
ambguo de produo.
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Captulo 2: A hora e a vez de Augusto Matraga: narrador e heri entre dois
mundos
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de arteso - no
campo, no mar e na cidade -, ela prpria, num certo sentido, umaforma artesanal de comunicao. Ela no est interessada em transmitiro "puro em si" da coisa narrada como uma informao ou um relatrio.
Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retir-ladele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a modo oleiro na argila do vaso.
Walter Benjamin
O conto A hora e a vez de Augusto Matraga, de Sagarana, uma narrativa de
superao, transformao e redeno. O protagonista, Nh Augusto Estves dasPindabas e do Saco-da-Embira, precisar redimir, por meio da superao fsica da dor,
o mal dos seus pecados iniciais para se transformar em Augusto Matraga. Matraga o
homem que existe plenamente poder, ento, livrar-se das suas culpas ao libertar da
fora do homem do norte, Seu Joozinho Bem-Bem, o velho e seus filhos inocentes.
A superao apresentada no enredo parece tambm se repetir na estrutura do
conto. A recriao de linguagem proposta por Rosa e a construo da narrativa , da
mesma maneira, uma transformao/superao estrutural no modo de se contaremhistrias de cunho regional. Joo Adolfo Hansen, no artigo Forma Literria e crtica da
lgica racionalista em Guimares Rosa, vai propor que a literatura do autor estabelece
um tipo de relao crtica com aquela tradio realista e regionalista brasileira
semelhante que Machado de Assis estabelece com o romantismo, querodizer, uma relao crtica de integrao, dissoluo e superao. Assim,uma questo crtica que me parece pertinente hoje, depois de muitainterpretao de contedos a do sentido esttico e poltico dainterveno da forma literria de Rosa no cnone. (HANSEN, 2012,p.121)
possvel afirmar, desta forma, que a construo poltica se estabelece nessa
releitura das representaes literrias de um perodo, principalmente levando-se em
conta que Sagarana foi publicado num tempo imediatamente posterior ao de uma
literatura regional marcadamente poltica, a do chamado Romance de 1930, que, de um
modo geral, escolheu tratar das culturas rurais brasileiras por meio de histrias
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estruturalmente construdas a partir de uma esttica que costumamos nomear como
(neor)realista.
A leitura proposta aqui, a de que Guimares Rosa estabelece uma nova partilha
do sensvel (RANCIRE, 2005) nas letras mudas do Brasil, passa, portanto, por uma
leitura dessa estrutura. Como props Candido (2006) emLiteratura e sociedade, para se
tratar da temtica ou da mescla das vozes sociais no corpo narrativo , necessrio
passar pela estrutura do texto, uma vez que por meio dela que a linguagem ganha mais
ou menos fora de representao.
Em A hora e a vez de Augusto Matraga , essa estrutura vai estabelecer um
dilogo as opes estticas do neorrealismo regional que antecedeu Sagarana por meio
de dois aspectos principais: o narrador e a construo da personagem. A leitura que se
far aqui tentar compreender de que modo esses dados estruturais apontam, assim
como o enredo, para uma duplicidade que se completa para a necessria transformao.
2.1. O narrador de duas cabeas: a oniscincia tradicional dos textos realistas e a
narrativa da tradio oral
O grande narrador tem sempre suas razes no povo, principalmente nascamadas artesanais.Walter Benjamin
Um primeiro dado de duplicidade narrativa aparece j nas epgrafes do conto A
hora e a vez de Augusto Matraga. A primeira, uma Cantiga Antiga composta por
dois dsticos em redondilhas maiores, so uma traduo de uma cano popular francesa
das moas pobres e ricas que cantam juntas Je suis pauvre, pauvre, pauvre, je m'arrte
ici, para as primeiras, e Je suis riche, riche, riche, j marrte ici. Embora essa
cantiga, na sua verso brasileira, seja popularmente cantada Eu sou pobre, pobre,
pobre, de marr deci, como uma tentativa de imitar o som do francs, Rosa escolhe
traduzi-las literalmente, transformando-a em:
Eu sou pobre, pobre, pobre
vou-me embora, vou-me embora
.....................................................
Eu sou rica, rica, ricavou-me embora daqui. (ROSA, 2001, p.363)
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Na cantiga, as aparentes oposies servem para compor um mesmo destino.
Tanto a menina pobre quanto a menina rica vo-se embora. Alm disso, a epgrafe
parece sugerir que essa histria vai utilizar de representaes do popular, no por meio
de uma apropriao direta, mas como um estudo de suas origens e estruturas, para uma
recriao inovadora, j que ir transformar as referncias tradicionais de mescla de
vozescomo o discurso indireto livree a representao do homem rural brasileiro por
meio dessas referncias culturais. O mesmo se dar com a estrutura da narrativa: ao
mesmo tempo em que duas tradies se encontrama realista, por meio de um narrador
onisciente, ora neutro, ora seletivo; e a popular, por meio de uma voz semelhante quela
dos contadores de histria, elas vo se completar para a composio final do enredo e
de seu sentido.
Essa duplicidade marcada no conto e na pele de Augusto Matraga. Quando
espancado pelos capangas de Major Consilva (capangas que estavam ao seu lado
pginas antes), Matraga recebe a marca que soia ser um tringulo inscrito numa
circunferncia (GALVO, 1978, p.60) de um destino duplo. Galvo (1978), em seu
conhecido estudo do conto, aponta que
(a)s duas figuras geomtricas, circunferncia e tringulo, tm ao mesmotempo um estatuto igual e oposto. Igual, porque ambas so, a mesmottulo, figuras primrias da Geometria Plana. Oposto porque acircunferncia, constituda por um nmero infinito de pontos, enquantocrculo tem tendencialmente um nmero infinito de lados, e o tringulo onmero mnimo possvel de lados para constituir uma figura geomtrica.(GALVO, 1978, p.60)
Assim como as figuras geomtricas marcadas no corpo do protagonista tm
estatuto igual e oposto, a voz narrativa tem duas lgicas distintas13: uma da narrao
onisciente, comum s narrativas realistas regionalistas brasileiras; e outra, de um
narrador mais prximo do contador de histrias da tradio oral. Essa duplicidade,
entretanto, como as formas, no so tratadas por Rosa somente como oposies, mas
13 A ideia de um narrador bipartido original do artigo Hydra de duas cabeas: reconfiguraoricoueriana e narrador impuro no dilogo mdico-paciente (CARELLI et al, 2014). Nele, as autoras
propem que, nos dilogos mdicos, a narrao seja clivadaentre duas culturas: a cientfica, do mdico; ea da experincia, do paciente. Esse conceito, embora aplicado aqui a um tipo de narrao distinta, serve
para pensarmos sobre a relao que se estabelece entre os referenciais culturais utilizados aqui. De umlado, h a experincia das culturas populares dos contadores de histria, e de outro, a sistematizaoterica de um narrador da tradio literria ocidental.
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como elementos complementares necessrios ao todo do enredo e completude do
protagonista ao encontrar o seu destino final.
Para a compreenso de como esse processo se d, parece importante definir um
mtodo de observao da estrutura narrativa. A partir do estudo da teoria de Norman
Friedman, Chiappini (2007) prope que quatro questes sejam feitas quando da leitura e
estudo do narrador:
1) quem conta a HISTRIA?(...); 2) de que POSIO ou NGULO emrelao HISTRIA o NARRADOR conta? (...); 3) que canais deinformao o NARRADOR usa para comunicar a HISTRIA ao leitor(...); 4) a que DISTNCIA ele coloca o leitor da histria? (CHIAPPINI,2007, p.26)
As possveis respostas a essas questes na anlise de A hora e a vez de Augusto
Matraga demonstram a hiptese de duplicidade narrativa. Quem narra uma voz
externa aos acontecimentos, portanto, um narrador em terceira pessoa que no participa
ativamente da histria. Esse narrador se utiliza de um discurso indireto entrecortado por
dilogos diretos e momentos de mescla, em que se observa o uso do discurso indireto
livre. A primeira ocorrncia desse discurso se d a partir da perspectiva de Dionra,
observa-se a transcrio do pensamento da personagem, a omisso do sujeito e o uso do
verbo sentir no pretrito imperfeito:
Dionra amara-o trs anos, dois anos dera-os s dvidas, e o suportara osdemais. Agora, porm, tinha aparecido outro.No, s de por aquilo naideia, j sentia medo... Por si e pela filha... Um medo imenso. (ROSA,2001, p.369)
Depois, da de Matraga, o mesmo processo:
Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder
alcanar o reino-do-cu. Mas o mais terrvel era que o desmazelo de almaem que se achava no lhe deixava esperana nenhuma do jeito que o cupodia ser. (ROSA, 2001, p.385)
Essa primeira observao permite que se classifique o narrador do conto como
sendo uma mescla de onisciente neutro e onisciente seletivo. Tal possibilidade,
entretanto, traz desafios para uma anlise da sua estrutura, uma vez que os canais de
informao por meio dos quais se conta a histria so muito mais variados do que os
que normalmente se observam nessas narrativas. Chiappini afirma que, em uma
narrao de oniscincia neutra, predominam as palavras, pensamentos e percepes
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(CHIAPPINI, 2007, p. 27) do prprio narrador, que pode aparecer menos ou mais ao
longo da narrativa. A oniscincia seletiva, por sua vez, seria a mescla dessa perspectiva
com a das personagens, por meio do discurso indireto livre.
Em A hora e a vez de Augusto Matraga no isso que se observa, ou melhor,
tambm isso que se observa. Entretanto, percebe-se claramente que o narrador da
histria partilha de certos dados culturais com suas personagens, no apenas nos
momentos em que sua voz se mescla delas, mas sempre, como se houvesse a criao
de um mundo em que opinies sobre a histria e as personagens fossem comuns a
todos, inclusive aos leitores. O narrador onisciente, mas sua perspectiva superior, de
quase divindade, quebrada, uma vez que sua voz compartilhada por personagens
por meio de um discurso indireto livre tradicional e por uma reconstruo da linguagem
e, em ltima instncia, com o leitor, que passa a ser tambm uma entidade desse
espao cultural e lingustico constitudo pela narrativa.
Alm de tal quebra dos canais narrativos tradicionais da oniscincia, h tambm
sempre muito claramente, no conto, o uso de duas tcnicas que parecem estar
relacionadas mais a uma tradio de contos populares orais do que s tradies realistas
da literatura ocidental. A primeira a mescla de referncias do real e do irreal, da
verdade e da mentira, do acaso e do destino. Durante vrios momentos, o narrador
escolhe deixar claro como aquela histria fico, embora a enriquea de detalhes que
parecem querer nos convencer da sua verdade, detalhes esses que so tambm comuns a
muitos textos realistas. Em nenhum momento da narrativa se perde a noo de que,
embora verossmil a uma cultura, tudo que se conta nela inveno, estria
inventada:
Porque assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinhodeste jeito, sem tirar nem pr, sem mentira nenhuma porque esta aqui uma estria inventada e no um caso acontecido, no senhor. (ROSA,2001, p.383)
Tal brincadeira de paradoxo entre o real e a inveno, ao contar uma histria que
se passa assim, direitinho, deste jeito por ser inventada, repetida mais a frente no
trecho E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, j que assim foi (ROSA, 2001,
p.386). A ideia tambm reforada pela construo de continuidade dos acontecimentos
da trama - todos, em parte, mgicas da natureza (como a maleita e a bexiga, que foram
o bando de Joozinho Bem-Bem para a estrada da casa de Augusto, ou a caminhada do
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burrinho, que o leva ao reencontro do bando); em parte, mero acaso. Esses elementos
esto relacionados muito mais a um narrador que no est preocupado com a exatido
realista dos textos, assim como os contadores de histrias das culturas orais brasileiras,
do que ao tradicional narrador do romance de 30, principal referncia do tratamento
regional do perodo.
O segundo dado, que no faz parte da tradio da literatura regionalista,
apresenta-se de forma oposta s previses feitas por Benjamin (1987) em seu ensaio
sobre a obra de Leskov, na qual o filsofo afirma que a arte narrativa do sculo XX
tinha perdido a sua capacidade de compartilhar experincias exemplares e significativas
para a existncia do indivduo. O conto de Rosa aqui analisado atua tambm como uma
forma de ensinamento, s vezes lido a partir da sua perspectiva mstico-religiosa e
cultural (DAMATTA, 1997; GALVO, 1978), outras a partir da sua representao na
histria brasileira (BENEDETTI, 2010). A narrativa parece tambm no se opor
tradio oral de que fala Benjamin (1987), mas mesclar-se a ela, mesmo que, sendo
literatura, dependa diretamente da palavra escrita.
A mescla desses dados pode ser notada ao longo de todo o texto. Logo no
comeo da narrativa podem-se reconhecer exemplos dessa hiptese. Transcrevo aqui os
primeiros pargrafos, para facilitar a observao dos dados:
Matraga no Matraga, no nada. Matraga Esteves. AugustoEstves, filho do Coronel Afonso Estves, das Pindabas e do Saco-da-Embira. Ou Nh Augusto o homem nessa noitinha de novena numleilo de atrs da igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Doresdo Crrego do Murici.
Procisso entrou, reza acabou. E o leilo andou depressa e se extinguiu,sem graa, porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de umavez.
Mas o leiloreiro ficara na barraca, comendo amndoas de cartucho epigarreando rouco, bloqueado por uma multido encachaada de fim defesta.
E, na primeira fila, apertadas contra o balcozinho, bem iluminadaspelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres--toa estavam achandoem tudo um esprito enorme, porque eram sduas e pois muitodisputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar. (ROSA, 2006, p.363-364)
A primeira descrio do protagonista j uma amostra daquela mescla de
certeza e de incerteza, real e irreal. Matraga no ainda Matrag
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