texto e fotos Marcio Scavone, de Cassis
...05 Os olhos
Glamouroso e andarilho, seu olhar retratou de figuras do jet set à destruição implacável da savana africana. Artista plástico de renome, Peter Beard abriu seu mediterrâneo
à MIT Revista para um balanço afetivo e profissional de seus quase 70 anos
do nômade
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omo traçar o perfil de um artista que parece ter
passado a maior parte da vida tentando apagar to-
dos os frágeis contornos que em vão muitos tenta-
ram esboçar? A resposta está na sua arte atemporal calcada
na fotografia e na colagem. Difícil é também evitar o lugar-
comum e não me comparar, nesta missão, a Stanley, o jor-
nalista americano que no século 19 partia em busca do não
menos elusivo dr. Livingstone, missionário britânico desa-
parecido no coração de uma África ainda romântica.
Comecei minha busca por Peter Beard imaginando um
encontro em Londres, Paris ou em sua base em Nova York.
Mas minhas investigações acabaram por me levar direto ao
covil do leão. Nosso encontro seria em Cassis, pequeno por-
to de pescadores a leste de Marselha que abrigava não o
velho caçador que eu imaginava, mas um artista contempo-
râneo, incrivelmente conectado com o mundo. Um inquieto
caçador de imagens e notícias para povoar suas colagens.
No primeiro encontro disparei: “My name is Marcio Sca-
vone and I shoot photographers, but this time I came looking
for a lion to shoot”! Esperei sua reação me divertindo com a
ambigüidade da língua inglesa no que se refere aos termos
“atirar” e “fotografar”, ambos definidos pelo verbo to shoot.
Olhei no fundo dos olhos de Peter, senti o sorriso e que ali
começava uma grande amizade.
Foi para a África com o bisneto de DarwinDiante de mim um personagem fascinante e charmoso, her-
deiro cultural e possível sósia de um certo Denys Finch-Hat-
ton, o caçador de big game e amante da escritora dinamar-
quesa Karen Blixen, que escrevia sob o pseudônimo de Isak
Dinesen e que o imortalizou em A Fazenda Africana (Out
of Africa), interpretado por Robert Redford na versão cine-
matográfica por aqui conhecida como Entre Dois Amores.
Finch-Hatton, aventureiro e piloto que desapareceria mais
tarde a bordo do seu biplano Gypsy Moth e que teria levado
ninguém menos que Eduardo, o príncipe de Gales, famoso
por abdicar do trono da Inglaterra, em um safári para matar
o seu leão. Enfim, um americano universal, um globetrotter
das páginas de um Hemingway. Era essa a imagem que eu
tinha de Peter antes de conhecê-lo.
Peter Beard escapou, como ele gosta de dizer, para o les-
te da África em 1955 em companhia do bisneto de Charles
Darwin, quando os mau-maus incendiavam árvores e par-
tiam para a destruição do que então integrava o maior san-
tuário de vida selvagem na Terra. Difícil definir o homem
que vim encontrar. Personagem da noite e do mítico Studio
54 de Nova York, onde em companhia de Truman Capote ou
Andy Warhol desfilava ao lado da belíssima modelo Cheryl
Tiegs, sua companheira entre 1978 e 1986, ou Dorothea
McGowan – sua segunda mulher, que foi fotografada para
17 capas da revista Vogue. Sempre habitando dois mundos,
podia também ser encontrado nas manhãs brilhantes das
savanas, sob o sol equatorial das montanhas Ingong ou
atravessando o rio Athi para fotografar elefantes semimortos
de inanição sendo devorados por crocodilos. Encontro Peter
Beard costurado nas próprias imagens da sua grande colcha
de retalhos africana à luz da dura realidade. Ou ainda no seu
célebre auto-retrato sendo devorado pelas mandíbulas de um
crocodilo morto, mas que num espasmo trava os dentes e o
fere enquanto escreve seus diários em mais uma magnífica
metáfora da fuga do tempo, este que tudo devora.
Minha busca, no entanto, não me levara ao coração da
África negra de suas fotografias, como um novo Marlow,
aquele personagem de Joseph Conrad em Coração das Tre-
vas, um dos seus livros de cabeceira, que ao se aprofundar
na selva rio acima em busca do enigmático Kurtz mais pa-
rece navegar uma veia turva em direção aos limites da ex-
periência humana e ao mais tenebroso aspecto do domínio
do homem pelo homem forjado nos fornos do imperialis-
mo europeu. Minha busca havia me levado à Provença de
Cézanne, onde encontrei os olhos e as histórias de Peter.
Histórias de como ele se aproximou de Francis Bacon,
um dos maiores pintores do século 20 na galeria Marlbo-
rough de Londres nos anos 60 e se apresentou timidamen-
te. Bacon, que tinha visto seu recém-publicado livro The
End of the Game, estava impressionado com as carcaças
desidratadas dos elefantes mortos fotografados no livro – e
queria transformá-las em esculturas. Sobre elas mais tarde
escreveu: “Suas fotografias mais contundentes são aquelas
de elefantes em decomposição, nas quais após algum tem-
po as carcaças se desintegram e dão lugar a uma magnífica
escultura de ossos. Não esculturas abstratas, mas vestígios
de vida, desespero e futilidade.”
Peter acredita nos golpes de sorte e do destino. Sua ex-
pressão africana favorita é sharia mungu: não se pode fa-
zer nada, é a vontade de Deus. E foi assim a vida inteira.
Foi assim quando Bacon fez não um retrato seu, mas três,
um tríptico. O trato seria um para Peter e os outros dois
para pagar uma dívida de jogo do pintor, à época meros
250 mil dólares para alguém cujas pinturas são vendidas
hoje por 24 milhões de dólares...
Foi assim ao ser pisoteado por um elefante ferido – em
certos lugares da África ainda é permitida a caça punitiva dos
paquidermes que atacam as lavouras. “Aconteceu durante
um piquenique e não tínhamos nem arma nem câmera”,
conta. “Meu guia e eu fizemos um trato fifty-fifty: ele correu
para a esquerda, eu para a direita”, prossegue ele com um
sorriso nos lábios. Peter conta que sua visão escureceu
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Peter Beard acredita nos golpes de sorte e do destino. Sua expressão africana favorita é sharia mangu, “é a vontade de Deus”
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e voltou gradativamente como se fossem pixels acendendo
novamente. O saldo, uma temporada de muletas, duas pla-
cas de platina e 24 parafusos. Novamente o sharia mungu
explicava o ataque e seu quase encontro com a morte.
Outra pista para se explicar Peter Beard está na literatu-
ra. Uma pequena epígrafe abre seu monumental livro re-
cém-publicado pela Taschen na Alemanha, e cujas 616 pá-
ginas pesam 20 quilos. O livro, fac-símile ampliado de seus
diários, teve uma outra tentativa de publicação pelas mãos
de Jacqueline Kennedy Onassis, sua amiga e conselheira
editorial. Ainda segundo Peter, o diretor de arte da Viking
Press folheou e riu de seu material durante as três horas do
encontro – antes de dizer que não acreditava na publicação.
Trinta anos depois a editora alemã faz o sonhado livro que
se esgota em poucos meses a 10.000 dólares cada um e vem
acompanhado de um aparador de madeira com cara desses
banquinhos de caminhada, como se fosse parte integrante
de um pacote ou kit que incluísse um ingresso e o direito de
freqüentar a tenda principal de um requintado safári na sa-
vana africana. A epígrafe em questão é um verso do poema
Paraíso Perdido, de John Milton, outro pilar sobre o qual a
cabeça de Peter se encosta para admirar o mundo: “But past who can recall, or done undo?” “Mas do passado quem se
lembra, ou depois de feito quem o desfaz?” Quem escreve
diários escreve cartas para si mesmo num futuro distante.
Mesmo que, como no caso de Peter, não as leia jamais. Man-
ter um diário seria uma maneira de pregar uma peça no
tempo. Congelar os verões americanos felizes e ensolarados
da juventude em Montauk, aquela pontinha de Long Island
hoje também comprometida pela especulação imobiliária e
pela superpopulação. Um litoral mágico que atraiu de Andy
Warhol a Richard Avedon, de Mick Jagger a Paul Simon,
numa longa festa de fim de século.
Nas ruas de Nairóbi, ele descobre ImanQuando um fotógrafo faz um diário de imagens está acorren-
tando o tempo, está levando pela mão a furtiva lembrança
com o cuidado dos que não querem ser mal-interpretados
amanhã. Peter, um apaixonado defensor de elefantes, talvez
inconscientemente estivesse tentando roubar o seu traço
mais marcante e por isso mesmo o mais intrigante para um
animal irracional: a memória. Memória para não esquecer
seu primeiro encontro com Karen Blixen, amiga de seu pri-
mo mais velho, o notável Jerome Hill, pintor, fotógrafo e fi-
lantropo, figura marcante em sua vida. Jerome, que privou
da amizade de figuras como Brigitte Bardot ou a escritora
dinamarquesa, é o homem por trás da sofisticada Camargo
Foundation em Cassis, entidade que recebe artistas e inte-
lectuais do mundo inteiro, estudiosos da cultura francesa.
Mas a carta de apresentação do primo não foi o sufi-
ciente, pois a consagrada escritora, cuja vida e obra Peter
conhecia de cor desde a adolescência, não queria ver nin-
guém da África. Mesmo assim o jovem fotógrafo foi para
Copenhague e, no trem, acabou sentando-se ao lado do
sobrinho favorito de Karen – mais um golpe de sorte, mais
um sharia mungu. Sentado na ante-sala antes de ser rece-
bido pela escritora, ele estranhou a demora e descobriu
um buraquinho na parede, pelo qual percebeu os olhos
azuis da velha senhora analisando o aventureiro antes de
abrir a porta e a vida. Em tempo, a nova amiga acabou por
escrever legendas para suas fotos africanas.
Memórias Peter tem muitas. Os diários certamente teriam
sua finalidade documental, sem nunca perder o valor estéti-
co como prova o livro da Taschen. Contou-me ainda da ex-
periência de epifania que sentiu ao avistar uma deusa negra
caminhando pela Standard Street em Nairóbi, Quênia. Tra-
tava-se de sua mais famosa descoberta, a top model Iman,
uma das primeiras negras a serem fotografadas pela Vogue e
futura mulher de David Bowie. Memórias de uma vida trans-
formada em obra de arte. Sua amizade com Karen Blixen o
levou a comprar terras ao lado da fazenda da escritora no
Quênia. Mais tarde o Hog Ranch, cenário de tantas imagens
inesquecíveis, abrigaria um departamento de arte cujas ilus-
trações primitivas de seus artistas da velha África aparecem
em seus pôsteres e colagens. Eram os anos 60 e os grandes
caçadores lideravam safáris com todas as características
coloniais que Peter tinha lido em Out of Africa. Mas aquele
mundo desaparecia, e Peter era sua testemunha silenciosa
que febrilmente registrava com a câmera, os olhos e a pena.
A explosão demográfica do Quênia trouxe no bojo a
fome e a luta selvagem pela sobrevivência. Homem e bes-
ta dividiam agora o mesmo destino amargo. Como Peter
mesmo define, “o elefante seria a metáfora imediata e
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Nos anos 60, ele foi a testemunha silenciosa que registrou febrilmente com câmera, olhos e pena uma África que desaparecia
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01. Zara, filha de Peter e Nejma, no Hog Ranch, Quênia; 02. Nejma Beard; 03. O “muro de BB” em Cassis hoje; 04. E na época em que Brigitte Bardot foi fotografada, ao lado de Jerome Hill, nos anos 60; 05. Peter fazendo suas colagens no apartamento; 06. O artista e o pôster da exposição Nomad, realizada no ano 200 em Paris; 07. O retrato de Peter pintado por Francis Bacon (08); 09. Peter com a casinha de Napoleão em Cassis ao fundo
10. O artista em ação no chão de seu apartamento; 11. Retrato de Andy Warhol, escrito com a logomarca de Marlboro; 12. Mick Jagger fotografado em 1972; 13. O porto de Cassis; 14. O auto-retrato que celebrizou Peter Beard, “engolido” por um crocodilo; 15. Restos de lixo usados nas colagens; 16. Cap Canaille na visão pontilhista de Paul Savignac e na de Scavone (17); 18. Rua em Cassis; 19. Peter enfrentando um prato de espaguete; 20. O artista e Marcio Scavone
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óbvia” de um desastre anunciado. Logo o pesadelo de 30
milhões de quenianos próximos da inanição orquestraria o
apocalipse de um equilíbrio ecológico de milhões de anos.
Nessa atmosfera sombria e terrível surge seu primeiro li-
vro, The End of the Game, de 1965, tocha acesa na caverna
imunda e malcheirosa em que o sonho egoísta e colonial
europeu havia transformado a África.
Fotografou os elefantes famintos da reserva de Tsavo
morrendo às dezenas de milhares na paisagem desolada
de árvores devoradas. Sua honestidade como artista o fez
caminhar na contramão da visão romântica sobre o que
realmente acontecia na África e registrar a realidade sem
sentimentalismo piegas. Suas fotografias aéreas de cadá-
veres de elefantes exibindo presas intactas são com cer-
teza suas imagens mais constrangedoras, pois informam
uma verdade terrível. Nelas, os elefantes aparecem como
que arrumados de lado, deitados na terra, achatados como
borboletas em uma vitrine de um museu natural gigante.
Com uma certa graça parecem sorrir e, ao contrário do que
os ambientalistas pensam, não foram vitimas da caça ilegal
– visto que exibem o tão cobiçado marfim intacto, acoplado
às suas carcaças secas. Eles simplesmente sucumbiram à
terra exausta, incapaz de lhes fornecer alimento. Demons-
tram em seu sacrifício final a impossibilidade de sobrevi-
ver confinados a espaços cada vez menores. E mais uma
vez apontam a agulha para os quadrantes apocalípticos
dessa nova África.
Nosso encontro em Cassis foi orquestrado pela bela
Nejma, sua mulher, agente e porto seguro em Nova York,
mãe de Zara, sua única filha e a quem dedicou um de seus
mais sensíveis livros: Zara’s Tales. Convivi com Peter e Lane
Diko, seu assistente, durante quatro dias de um outono na
Provença. Cassis está ligada à África pela ponte-aérea Mar-
selha-Nairóbi, perfeita para quem vive os dois mundos, o
glamour e a realidade crua. Uma simbiose digna das espé-
cies que ele fotografou. Tem-se a impressão de que Peter
vive uma metáfora dentro de uma metáfora. A sandália afri-
cana e a toalha enrolada na cintura contrastam com a edi-
ção do Daily Telegraph que Lane vai buscar religiosamente
toda manhã no vilarejo encostado ao porto. As referências
se sucedem: a embalagem do Ancienne Tarot de Marselha;
um maço de cigarros Rooster encontrado no lixo; um rótu-
lo de bordeaux; um cartão-postal antigo de umas férias em
Biarritz no começo do século 20 comprado na calçada ao
lado logo encontram o caminho para suas colagens.
A velha Cassis mudou pouco desde que um jovem ofi-
cial da artilharia chamado Napoleão apontou seus canhões
em direção à mesma vista eternizada pelo pontilhista Paul
Signac, a mesma falésia de Cape Canaille exposta à luz
mortiça e laranja do outono das aulas de pintura de Chur-
chill, que também se hospedou na La Batterie, como ficou
conhecida a propriedade adquirida por seu primo Jerome
em fins dos anos 1930.
Qualidade de herói renascentistaTudo isso Peter apontava e incluía durante nossas cami-
nhadas e pequenas saídas para um mergulho na praia de
Bestuan (Best One), a única realmente, forrada de pedregu-
lhos listrados que, molhados, pareciam ter saído de algum
ateliê de vidros de Murano. Pedras banais transformadas
em confeitos, doces e esculturas. Tudo tinha um significa-
do e um nome. Aquela é a casa onde filmaram Operação
França. “Naquele promontório fica o vinhedo de Georgina”,
apontava ele – o Clos St. Magdeleine, que foi ocupado pelos
nazistas na Segunda Guerra e que está na família da amiga
Georgina desde os anos 1920. Ele continua: “Veja, ali está
o ninho de metralhadoras viradas para o mar”. Na entrada
do porto os nazistas afundaram um navio para impedir seu
acesso a embarcações de grande calado. Mais adiante, o Ro-
che Blanche é um hotel célebre. O nome se refere ao “már-
more de Cassis”, a rocha branca e dura que foi arrancada
para fazer portos Mediterrâneo afora, de Tânger a Marse-
lha, e – o maior orgulho – a base da Estátua da Liberdade do
outro lado do Atlântico.
O que encontrei em Peter foi a energia vital, a pulsa-
ção das válvulas de criatividade de um dos maiores artistas
plásticos americanos vivos. Ele demonstra aquela qualida-
de que o crítico Owen Edwards brilhantemente aponta no
texto de apresentação do livrão da Taschen. Diz que Peter
tem aquela qualidade do herói renascentista. Exibe gene-
rosamente a virtude da sprezzatura, a habilidade de fazer
o que é difícil parecer fácil. De fato, ao olhar as velhas fo-
tografias do jovem e apolíneo Peter Beard fica fácil enten-
der a facilidade de trânsito e o sucesso entre as inúmeras
celebridades que o acompanharam. Fisicamente o típico
herói americano, o privilegiado que estudou na classe de
um Michael Rockefeller e que portanto freqüentou o apar-
tamento de seu pai Nelson, ex-governador de Nova York,
ex-vice-presidente dos Estados Unidos e, o mais importan-
te para Peter, colecionador de Picassos.
Uma mistura do jovem Charles Lindbergh sem o avião,
mas com a confiança nos olhos de quem faria a travessia,
com um golden boy saído das páginas de Fitzgerald. Talvez
a escola em Essex e os anos de Inglaterra tenham deixado a
marca profunda daquela que deve ser a maior qualidade do
inglês: rir de si próprio, a fina ironia do understatement. Pois
quando o assunto era fotografia, Peter mostrava um profun-
do ceticismo em relação à nossa arte, “fotografia é uma
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Sua honestidade como artista o fez caminhar na contramão da visão romântica sobre o que realmente acontecia com os elefantes
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profissão para idiotas”, ao mesmo tempo que ajoelhado so-
bre um print seu avançava na colagem e nos arabescos com
bico-de-pena que tentavam transformar “fotografias banais
em algo mais interessante.” Fina ironia deste que já decla-
rou: “Se Michelangelo tivesse uma Nikon ou uma filmadora,
duvido que ficasse tirando lascas do mármore”.
Certa vez, quando uma de suas fotografias foi parar na
capa da Life, ele comentou segurando a revista: “A foto não
é boa, mas o elefante é magnífico”. Coerente, explicava
mais uma vez o seu credo: “Sou parasita do assunto que
fotografo”. Sabem disso os grandes fotógrafos. No começo é
sobre fotografia, depois, quando fazemos imagens que re-
almente ficam, é sobre as coisas que amamos. Um artista
que insiste em afirmar que seus diários são inúteis, “visto
que somos todos formigas em um formigueiro, a vagar sem
rumo entre o nascimento e a morte”. Mas são exatamente
esses diários, que acabam por dilacerar seu olhar e dis-
param mecanismos no canto mais obscuro de seu cérebro
para alimentar sua criatividade. Peter trabalha para uma
posteridade que só os visionários vislumbram.
Difícil explicar esse leão.
Francis Bacon lançou mão de ninguém menos que
Joseph Conrad e seu Heart of Darkness para ajudá-lo na
explicação. Lane surge orgulhoso com o livro nas mãos,
abre no começo do terceiro capítulo e lê:
“O glamour empurrava-o para a frente, o glamour conser-
vava-o incólume. Certamente não queria nada da selva além
de espaço para respirar e seguir adiante. Tinha necessidade
apenas de existir e continuar avançando, com o maior risco
possível e o máximo de privações. Se alguma vez um espírito
de aventura absolutamente puro, desinteressado e destituído
de qualquer finalidade prática chegou a dominar um ser hu-
mano, tal era o caso desse jovem coberto de retalhos.”
Peter seria o jovem personagem perdido nos confins da
África e que testemunhava agora o encontro entre Marlow e
Kurtz, o encontro entre a velha e a nova África. Deixei Cassis
com alguns pedregulhos da praia no bolso. Eles faziam um
barulho de contas quando eu andava, e sorrindo para den-
tro eu me despedia daquelas falésias. Na pequena estação de
trem uma placa e um verso provençal de Frédéric Mistral,
que se transformou no moto da cidade, teimavam em mais
uma vez me ajudar a explicar Peter Beard: “Se você viu Paris,
mas não viu Cassis, nada viu”. O enigma ganhava contornos,
finalmente. A sombra e a luz, o glamour e a simplicidade, a fa-
lésia silenciosa e o som e a fúria dos olhos de Peter Beard.
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Especialmente para a MIT Revista, Peter faz uma intervenção a nanquim sobre sua foto de juventude, publicada no enorme livro da Taschen
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