TENSÕES E PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA EM ECOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DE
MATO GROSSO DO SUL: AS CONTRBUIÇÕES DOS ESTUDOS CULTURAIS
EEEugenia Portela de Siqueira Marques – UFGD1
Valéria Aparecida M. O. Calderoni -
SED2
Introdução
Este artigo é resultado de discussões e de aprofundamentos epistêmicos acerca
do tema Educação para as Relações Étnico-raciais, desenvolvido no projeto "Educação para
as relações étnico-raciais e a descolonização curricular: o ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Indígena no Estado de Mato Grosso do Sul de 2012 a 2016”, no âmbito da
Universidade Federal da Grande Dourados, no período de novembro/ 2015 a 2016/
FUNDECT/CAPES n° 11/2015 – Educa/MS – Ciência e educação básica.
O referido projeto tem como objetivo ampliar os estudos e pesquisas sobre a
implementação da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar das
escolas públicas estaduais de Mato Grosso do Sul, por meio da implementação da Lei
nº10.639/2003 e nº 11.645/2008.
Os objetivos específicos consistem em descrever as políticas de formação
docente voltadas para a educação das relações étnico-raciais no MS; discutir os impactos,
tensões e desafios da implantação da nº10.639/2003 e nº11.645/2008 no currículo escolar;
identificar os materiais pedagógicos produzidos pelos municípios que subsidiem a formação
inicial e continuada de professores e o trabalho dos docente; mapear os projetos pedagógicos
que objetivam a valorização e o respeito à diferença étnico-racial; analisar as legislações
estaduais no sentido de identificar propostas de diferenciação curricular ou pedagógica para
atendimento às diferenças; identificar e analisar, nos documentos curriculares locais (Projeto
Político Pedagógico, entre outros), mecanismos propostos a perspectiva de educar para a
diferença
1 Docente do Ppgedu da Faculdade de Educação da Universidade Federal a Grande Dourados. Líder do
GEPRAFE. Chefe do Núcleo de estudos Afro-brasileiros -NEAB-UFGD. 2 Doutora em Educação pelo Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da UCDB, linha 3 – Diversidade
Cultural e Educação Indígena
A perspectiva metodológica deste caminho investigativo assenta-se numa
abordagem de pesquisa de natureza qualitativa, como procedimento recorreu-se a um
questionário aplicado aos docentes, coordenadores pedagógicos e gestores participantes da
pesquisa. Neste artigo analisaremos algumas respostas do questionário, no que se refere aos
conhecimentos das legislações e os desafios para a implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais.
As ferramentas teóricas epistemológicas e as contribuições dos estudos culturais
Os Estudos Culturais desde a sua origem com Hall (1972), estão conectados a
um modo de produção de análise cultural, pois, a “cultura” é uma categoria-chave para análise
de nossas relações sociais. O foco analítico de suas produções é gerado em torno de três
conceitos epistêmicos: cultura, poder e identidade. As análises culturais reservam-se a pensar
sobre os artefatos e práticas culturais, procurando (re) ver o quanto essas têm contribuído para
constituição de identidades e a representação de diferentes grupos culturais, analisando como
se constroem os significados num processo cultural. Segundo Hall (1997, 2003) devemos dar
centralidade a cultura. O autor afirma que:
[...] que não é que ‘tudo é cultura’, mas que toda prática social depende e
tem relação com o significado: conseqüentemente, que a cultura é uma das
condições constitutivas de existência dessa prática, que toda prática social
tem dimensão cultural (HALL, 1997, p.33).
Consequentemente, segundo o autor, a cultura é uma das condições
constitutivas de existência desta prática e “[...] que toda prática social, tem dimensão
cultural”. Ele ainda corrobora ao argumentar que, “[...] não que não haja nada além do
discurso, mas que toda prática social tem seu caráter discursivo" (HALL, 1997, P. 33).
Respaldados pela questão cultural que pauta nesse campo de saber, na
compreensão das sociedades e as nossas relações sociais com os povos colonizados a partir
das analises culturais, entendemos que há necessidade de revisar, ressignificar e construir
nosso entendimento do que seja cultura na contemporaneidade. Rompendo, assim, com a
visão elitista da cultura, torna-se possível perceber as relações de poder, ser e saber, pois a
“[...] cultura ocidental eurocêntrica que se autodeclara instituidora de padrões em todas as
dimensões da vida humana, governa os desejos e os sonhos e ainda invoca para si as
credenciais de magnanimidade” (COSTA, 1999, p. 65). E como nos faz pensar Bhabha (2003,
p. 65), “nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na
relação do Eu com o Outro”.
Discussões pertinentes sobre as Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008
Segundo dados do CENSO do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE/2010, o Brasil é considerado o segundo maior país negro do mundo, com 96.795.294
habitantes que se declaram negros.
A população indígena, computada pelo quesito cor ou raça corresponde a
aproximadamente 818 mil pessoas, excluso deste cômpito 78,9 mil pessoas que se declararam
de outra cor ou raça, mas se consideravam indígenas de acordo com tradições, costumes,
cultura e antepassados, entre outros aspectos, esta população totalizaria em torno de 896,9 mil
pessoas.
Tendo como referência a população brasileira, em 2010, que era de pouco mais
de 190 milhões de pessoas, pode-se dizer que quase metade desta população é preta ou parda,
acrescido ao número significativo de indígenas, teríamos mais da metade da população
brasileira se autodeclarando não branca. Esses dados possibilitam problematizar o tratamento
dado aos saberes destes povos, tratos de "minorias" com seus saberes subalternizados.
Os dados são pertinentes quando levamos em conta que há um número
considerável de alunos indígenas, pretos/pardos significativamente grande, o que nos permite
refletir sobre as questões epistêmicas que envolve os conhecimentos da história e cultura dos
povos africanos, afrodescendentes e indígenas.
Se considerarmos os dados do CENSO/IBGE/2010, há uma questão a se
pensar: Porque os movimentos negro e indígenas tiveram que lutar para que nos espaços
escolares os processos culturais da história e cultura dos povos indígenas e afrodescendentes
fossem garantidos? Tal provocação é para que percebêssemos que ainda vivemos em um
contexto social e cultural marcado pela colonização e subalternização dos povos colonizados
na perspectiva eurocêntrica dominante.
Nosso olhar sobre os povos africanos e indígenas estão construídos com as
marcas culturais e sociais em decorrência de como foram ordenados no mundo, com ele
posicionamo-los como os “outros”, como “os diferentes”, e este posicionamento decorre
através do poder que é “outorgado” pela cultura ocidental, pelos colonizadores (BHABHA,
2003).
Salientamos que muitas imagens e discursos produzidos pelos ocidentais sobre
os povos indígenas e africanos foram utilizados para assegurar e garantir a construção de um
processo colonial no Brasil, esses discursos foram usados para justificar a subalternização a
que estes povos foram e são submetidos.
Ressalta-se que as construções discursivas passaram a ser utilizadas como uma
maneira de assegurar a dominação e afirmar uma "realidade"3 de mundo. Costa (1999),
argumenta que a “[...] cultura ocidental eurocêntrica que se autodeclara instituidora de
padrões em todas as dimensões da vida humana, governa os desejos e os sonhos e ainda
invoca para si as credenciais de magnanimidade” (p.65). Como afirma Dayrell (1996, p. 141):
Nessa perspectiva, nenhum indivíduo nasce homem, mas constitui-se e se
produz como tal, dentro do projeto de humanidade do seu grupo social, num
processo contínuo de passagem da natureza para a cultura, ou seja, cada
indivíduo, ao nascer, vai sendo construído e vai-se construindo enquanto ser
humano...
O contexto e os processos de colonização, as relações de identidade e
diferença, precisa ser revisto, não mais a partir de um único referencial, não mais
considerando ou partindo de uma classificação hierarquizada, construída pelo único modelo
cultural, o hegemônico, o ocidental. Segundo Bhabha (2003, p.21- 22):
As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de
uma tradição já autenticada; elas são os signos da emergência da
comunidade concebida como projeto - ao mesmo tempo uma visão e uma
construção - que leva alguém para “além” de si para poder retornar, com um
espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente.
3 Apresentar os discursos de uma realidade una, são [...] marcas do eurocentrismo que pode ser entendido como
“um universalismo, pois propõe a todos a imitação do modelo ocidental como a única saída aos desafios do
nosso tempo” (Mata 2014, apud Amin, 1988, p. 8).
Na busca por uma educação intercultural contra hegemônica, pela
desconstrução das amarras discursivas colonialistas e pelo fortalecimento identitário,
construiu-se um movimento social com pressupostos e objetivos não eurocêntricos. Esse
movimento contestava a estrutura social e cultural marcada epistemologicamente por uma
base eurocentrada, como ele viu-se a possibilidade de educar nas escolas para as relações
étnicos raciais.
O processo de dominação europeia impôs e legitimou epistemologias centradas
numa única lógica, contudo a resistência da cultura indígena e africana presentes nas relações
sociais permaneceram, apesar de silenciadas no currículo ou subalternizadas. As
reivindicações do Movimento Negro e Indígena sempre tensionaram os debates sobre
educação e currículo escolar, entendendo-o como uma política educacional voltada para a
afirmação das diferenças e afirmação das identidades.
Por que precisamos dessas leis?
Contextualizando historicamente, somente em 2003, foi promulgada a Lei
10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e prevê o ensino da história e
da cultura afro-brasileira no currículo da educação básica. E em 2008, essa Lei é alterada para
a Lei 11.645/2008, que mantém o ensino da história e da cultura afro-brasileira e acrescenta o
ensino da história e da cultura dos povos indígenas, garantindo pela força de uma lei que a
diversidade cultural e a identidade do povos brasileiro fosse trabalhada no currículo escolar,
pois até então prevalecia apenas os conteúdos geopolíticos.
Revisitando o contexto em que se deu a promulgação das leis nº 10.639/2003 e
11.645/2008, observamos que em dezembro de 1996, foi sancionada a Lei 9394/1996, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação – LDBEN/1996. A LDBEN/1996 instituiu as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Reporta em seu texto modificado as Emendas Constitucionais
nº 14/96, nº 53/2006 e EC nº 59/2009.
A Lei nº 10.639/2003 é fruto do Projeto de Lei n º 259/99, proposto na Câmara
dos Deputados pelo então Deputado Federal pelo (PT/MS), Eurídio Benhur Ferreira, ativista
do Movimento Negro de Campo Grande (Grupo TEZ Trabalho - Estudos Zumbi) e, pela
Deputada Federal Ester Grossi (PT/RS). Foi aprovada em 1999 e somente promulgada em 9
de janeiro de 2003, sofrendo dois vetos sob a alegação de ser as propostas inconstitucionais.
Foram retirados do texto original os trechos que faziam menção ao percentual de "[...] dez por
cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática africana e afro-brasileira e
a proposta quanto aos cursos de capacitação para professores ligadas ao movimento afro-
brasileiro e às universidades” (PEREIRA; SILVA, 2016, p.8)
O artigo 26 LDBEN/1996 passa a ser redigido:
Art. 1º A Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts.
26-A, 79-A e 79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras.
§ 3º (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’."
Com a tensão dos movimentos indígenas e indigenistas em 2008, a Lei 11.645
traz a alteração para a LDBEN que a partir de sua aprovação passa a ter a redação:
Art. 1º O art. 26-A da Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:
Art. 26- A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.(Grifos nossos).
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
As legislações supracitadas possibilitam perturbar a naturalidade da forma
como as relações sociais e culturais estão postas e arrumadas em nossa sociedade
ocidentalizada, afinal sem esse arcabouço jurídico, a história e a cultura dos povos que estão
presentes em nossa história e formação identitária, ainda estariam sendo ignoradas e
silenciadas. Assim, ocorreu um deslocamento epistêtmico que rompeu com a lógica
monocultural.
Segundo Bhabha (2003, p. 65) “[...] nenhuma cultura é jamais unitária
em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro”. Os processos
coloniais vividos fizeram com que a hegemonia européia imperasse no Brasil. Bhabha (2003)
chama a atenção para o fato da diversidade cultural em nosso país ser um legado de tradições
colonialistas.
Com as referidas leis, busca-se uma alternativa de educação numa
perspectiva intercultural e decolonial, para que se possa combater às desigualdades sociais, os
preconceitos, o racismo e a hierarquização de saberes, provocados pela colonialidade ainda
vigente em nossa sociedade.
Tensões e Perspectivas nos dizeres dos docentes
Neste artigo, problematizamos as tensões e perspectivas de ações pedagógicas
voltadas para as leis nº 10.639/2003 e nº11.645/2008, promulgadas com o intuito de valorizar
a cultura afro-brasileira e indígena. Pois, precisamos conhecer os processos coloniais vividos,
colocar para abolir as tensões e conflitos da colonização e colonialidade ainda vigentes para
poder valorizar a ancestralidade desses povos e suas culturas.
Com as análises de nossas ações pedagógicas, podemos afirmar que as Leis nº
10.639/2003 e nº 11.645/2008, trazem para a escola uma série de questões que antes eram
silenciadas, provocam a discussão da diversidade e diferença cultural para comunidade
escolar. Entretanto, precisamos provocar o entendimento sobre as diferenças culturais
existentes em nossa sociedade e a dificuldades de se respeitar a alteridade das culturas
diferentes.
Esteban (2009, p. 1), ao discutir a escola pública, contribui afirmando que
A Escola Pública torna-se um lugar significativo na experiência dos sujeitos
subalternos que se hibridizam em seu movimento de adaptação e resistência
às expectativas do outro, em seu esforço para identificar-se com o discurso
hegemônico e nele adquirir sentido. Porém, a hibridização, a ambivalência,
presentes no discurso subalterno, atuam no sentido de que a conformação
aos discursos do outro seja matizada pelo desacordo quieto, estranho, velado,
produzindo alguma deformação, nem sempre compreensível, mas
freqüentemente sentida: uma rasura, uma inconformidade.
Percebemos que passados mais de uma década após a promulgação da Lei
10.639/2003, que é orientada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações étnico-raciais, a estrutura curricular na formação inicial de professores e os
programas de formação continuada não rompeu com a colonialidade e nem possibilitou a
desconstrução epistemológica das imposições da lógica hegemônica eurocêntrica, conforme
identificamos nos dizeres quando analisamos as falas dos professores participantes da
pesquisa, em resposta ao questionamento: O que você sabe sobre a lei nº 10639/2003?
De acordo com a professora P- 474, "A Lei 10.639/03, alterada pela Lei
11.645/08, torna obrigatório em todas as escolas, publicas e particulares, do ensino
fundamental ao ensino médio o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana e
indígena".
Até o momento de construção desse artigo a pergunta foi respondida por 153
profissionais que atuam na educação, entre professores, gestores e coordenadores
pedagógicos, dos quais 88% responderam que conhecem a legislação em tela, contudo
algumas respostas merecem ser problematizadas, como por exemplo: "Trata-se da
obrigatoriedade de desenvolver projetos que relatem e retrate a história de tal povo", argumenta o
professor - P. 96 (2017). Já o professor -P 153 (2017) nos diz: "Que os professores deveriam trabalhar
com a cultura africana e afro-brasileira no desenvolvimento das atividades". Ou ainda, nos
deparamos com afirmações como: “Absolutamente nada" afirma o P-51 (2017).
Trata-se de professores que se encontram em sala de aula e lidam em seu fazer
pedagógico com os sujeitos culturais diferentes. Ou seja, não tendo conhecimento sobre a
4 Como forma de disciplinar o entendimento e manter o anonimato dos participantes, as escolas e os entrevistados serão identificados como: P- referindo-nos a Professor, e o número a seguir refere-se a sua posição
na ordem do questionário, esta é alienatória . Esse padrão é extensivos aos demais.
história e cultura do povo africano, afro-brasileiro e indígena seguem marcando as identidades
dos alunos com as representações e estereótipos (re)produzidas pela colonialidade,
prevalecendo no currículo escolar a hegemonia curricular europeia.
A questão da colonialidade se sobressai, especialmente, quando os
questionamos: Quais as dificuldades para implementação da Lei 10.639/03 nas escolas de
um modo em geral?
Os desafios que enfrentados para que possa, de fato, implementar a Lei estão
relacionados: 1. a falta de um projeto/plano de trabalho para as escolas que
servisse para melhor esclarecer os professores sobre a Lei; 2. políticas
públicas voltadas para a formação de professor; a desigualdade social que
gera um preconceito mais forte; 3. resistência por parte de alguns
professores, 4. falta de livros. ( P – 147, 2017).
A descontinuidade de políticas de governo são fatores que afetam as políticas
de diversidade de um modo em geral, apesar das legislações alterarem a LDBEN/1996, ou
seja, trata-se da Lei que rege a educação no país, nota-se na fala da entrevistada que não há no
estado de Mato Grosso do Sul, capacitação ou programa de formação continuada voltada para
a Educação das Relações étnico-raciais, nos últimos 10 anos, apesar de identificarmos que no
Plano Estadual de Educação, a meta 7.37 dispõe que:
Contribuir para a implementação das respectivas diretrizes curriculares
nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a
diversidade étnico-racial, conselhos escolares, movimento social negro,
lideranças educacionais indígenas e com a sociedade civil, na vigência deste
PEE-MS. (PEE-MS,2017. Disponível em <http://www.sed.ms.gov.br/wp-
ontent/uploads/sites/67/2015/05/pee-ms-2014.pdf. Acesso em 07 de Mai. de
2017).
Na fala da professora P-106 (2017), percebemos que o preconceito também se
efetiva, possivelmente pela ausência de conhecimentos. Segundo a professora,
Acredito que as maiores dificuldades são o preconceito com a cultura
africana, ranços dos longos anos de escravidão no Brasil. A demonização das
religiões e tradicionais africanas [...] contribuem para a disseminação do
preconceito e dificultam a abordagem do tema em sala de aula e na escola
(P-106).
É necessário salientar que a ausência na formação inicial da docente poderá ser
sanada por meio de formação continuada, para tanto é imprescindível que as Secretarias de
Educação promovam cursos, seminários, workshops, oficinas que possam potencializar o
trabalho pedagógico. É possível também buscar a realização de parcerias com a Universidade
e os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e indígenas, que possuem essa finalidade.
Outra afirmação que se trata das dificuldades para implementação da Lei
10.639/03, que merece nossa atenção, pois segundo a P-140 (2017), os temas culturais "[...]
só é tratado em novembro em sua data" - P. 140. Outro entendimento errôneo é reduzir os
conhecimentos dos povos africanos e indígenas na condição de folclórico, somente como algo
exótico. Este entendimento aparece na fala da P-135, ela nos diz: "No tempo para desenvolver
o trabalho, uma vez que apresentações artísticas demandam preparação e ensaios" - P.135
(2017). Os saberes dos povos africanos e indígenas devem ser colocados no cotidiano da
escola, como saberes curriculares necessários a nossa formação, mesmo porque estão nos
dizeres e fazeres de nossos alunos, entretanto não são legitimados.
As falas dos docentes revelam que a escola trabalha apenas no dia 20 de
novembro, em comemoração ao Dia da Consciência Negra, em homenagem à morte de Zumbi
dos Palmares, o famigerado “DIA DE...” ou o Currículo turístico, conforme alerta Santomé
(1995, p. 174-175). E no caso dos indígenas a comemoração ainda de forma estereotipada se
repete anualmente nas escolas no dia 19 de Abril, “Dia do índio”.
Entendemos que a discussão sobre os conhecimentos dos povos africanos e
indígenas não devam se restringir a um só dia, não esteja restrita à sala de aula, à escola, ao
professor e a uma dada faixa etária, mas sim que ela permeie todos os dias e diversos lugares,
para que isso se efetive, cabe à gestão da escola garantir sessões de estudos e reconstrução do
Projeto Político Pedagógico e Proposta Pedagógica da escola, a fim de que possam
coletivamente ressignificar a prática pedagógica.
Santomé (1995) nos alerta para o tratamento dado à diversidade cultural no
sentido de não cairmos em uma proposta de trabalho do tipo Currículos turísticos. Segundo
autor “[...] as culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários – ou marginalizados que não
dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não
estereotipadas e deformadas para anular suas possibilidades de reação” (1995, p. 161). Dentre
alguns tratamentos dados a currículo escolar, o tratamento souvenir seria quando entre o total
de unidades didáticas só se trabalha uma pequena parcela da temática, ou seja, “[...] só uma
pequena parte serve de souvenir dessas culturas diferentes” (p.173), partes naturalmente
escolhidas e definidas a partir de nossos parâmetros e interesses. Outra abordagem
apresentada pelo autor e que bem se apresenta na fala do docente é o de desconectar a
abordagem da diversidade, que se manifesta através da dedicação de determinadas datas - “O
Dia DE ...” - sendo a diversidade trabalhada em um determinado dia e ou uma determinada
disciplina, sendo que “no restante dos dias do ano letivo, essas realidades são silenciadas...”
(p.173).
Ao pensar sobre os desafios postos à formação das relações étnicos raciais na
escola, estes levam-nos a pensar sobre o caráter monocultural da escola, sobre as visões de
cultura, educação, que não dão conta dos desafios encontrados em uma sala de aula “tomada”
por diferentes grupos sociais e culturais inegavelmente presentes. Entretanto, concordamos
com Costa (2007), quando esta argumenta:
Mas o que me move e me apaixona, hoje, é a convicção de que estamos
começando a trilhar novos e diferentes caminhos, e que estes podem nos
levar a descobrir espaços cotidianos de luta na produção de significados
distintos daqueles que vêm nos aprisionando, há séculos, uma naturalizada
concepção unitária de mundo e da vida (COSTA, 2007, p.14).
Neste trabalho nos propusemos a pontuar as tensões e conflitos para se
trabalhar com a diversidade e diferenças na escola, mas também acreditar que começamos a
trilhar novos e diferentes caminhos (COSTA, 2007), nos preocupamos em solicitar dos sujeitos
que vivenciam tais conflitos como poderiam ser criadas políticas públicas para amenizar a
questão, segundo os entrevistados torna-se necessário:
As escolas, os professores precisam de material didático e cursos de
formação nessa área para que possam trabalhar este tema. Muitas vezes os
professores são criticados por trabalhar a temática de forma errada, estão
reproduzindo preconceitos, mas a verdade é que estamos pouco preparados
para o assunto. Precisamos de subsídios, materiais, cursos, orientação enfim,
senão nunca vamos conseguir mudar a realidade (P -62. 2017).
O grupo indígena do Mato grosso do Sul, o segundo maior da federação em
contingente populacional e nunca citados nos livros didáticos, somente no
período colonial vimos vagamente e de forma generalizada algo sobre essa
temática ...Não existem nas escolas materiais adequados para que possamos
realizar um trabalho de qualidade. Deveriam disponibilizar documentários,
livros paradidáticos e talvez houvesse a necessidade desses assuntos tornar-
se disciplinas específicas a fim que seja realmente cumpridas. (P-6, 2017).
Os deslocamentos epistêmicos trazidos pelas legislações são fundamentais para
que a educação intercultural se efetive na escola, por meio de uma pedagogia crítica e
decolonial, entretanto, precisamos pensar nas questões epistêmicas que envolvem a formação
docente.
Considerações finais
A inserção da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar
resulta das reivindicações dos Movimentos Sociais e Intelectuais que apontaram para a
necessidade imperiosa de ressignificar o currículo, dar visibilidade e reconhecimento da
presença das diferenças negra e indígena no espaço escolar.
As orientações para que as universidades ofereçam disciplinas voltadas para
essas temáticas, nos cursos de licenciaturas, representaram, sem dúvida, um avanço
significativo. Contudo, verificamos pelas falas dos docentes, que estes não participam de
capacitação ou formação continuada, isso demonstra que o sistema de ensino estadual de
Mato Grosso do Sul não está cumprindo as determinações legais, tampouco o Plano Estadual
de Educação.
As reflexões advindas dos Estudos Culturais possibilitam problematizar os
processos colonialistas e ir além da contemplação da diversidade, pois elas nos tencionam a
rever o entendimento sobre as diferenças culturais que permeiam as práticas pedagógicas nas
instituições escolares.
A análise das falas dos professores investigados indica que estes vivenciam
uma tensão constante, que os desafiam a atuar numa perspectiva intercultural, contudo
verificamos que apesar da maioria reconhecer a necessidade de trabalharem para promoção da
educação das relações étnico-raciais, estes precisam de uma formação para o trabalho com os
saberes africanos e indígenas na escola, sem abandonar o entendimento de que também
podem buscar alternativas individuais para garantir que a História e Cultura Afro-brasileira e
Indígena sejam ensinadas.
REFERÊNCIAS:
AMIN, Samir. L´eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos-Economica,
1988.
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010.
Contagem da população: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 1991. Disponível
em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censodem/>. Acesso em: 02 dez.
2016.
________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais
e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf.Acesso em 07 de Mai. De 2017.
_________. Lei Federal nº 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. Altera a Lei n.º 9.394, de 20
de dezembro de 1996 (estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-
brasileira, e dá outras providências). Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 07 de Mai. de
2017.
_________. Lei Federal 11.645/2008, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20
de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 07 de Mai. de
2017.
COSTA, Marisa. V. Currículo e política cultural In: COSTA, Marisa. V. (org.) O currículo
nos limiares do contemporâneo, Rio de Janeiro: DP7A, 1999. P. 37-68.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, J (org.). Múltiplos
olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. (136-161).
ESTEBAN, Maria Teresa. Destruição e diálogo no cotidiano escolar. In: Afinal onde esta a
escola? 2009, n 187, p. 62-63.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.22, n. 2, p.15-46, jul./dez.1997.
PEREIRA, Márcia Moreira, SILVA. Maurício. Percurso da Lei nº 10639/03: antecedentes e
desdobramentos. Revista linguagem & cidadania v.18, n.1: Jan-Dez 2016. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/LeC/article/view/23810> Acesso em 11 dez. 2016.
Top Related