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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DEAN
BRUNO CAMPOS CARDOSO
TEMPO, ESPAO E MOVIMENTO NA NARRATIVA
DE O FALADOR DE MARIO VARGAS LLOSA
CURITIBA2012
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BRUNO CAMPOS CARDOSO
TEMPO, ESPAO E MOVIMENTO NA NARRATIVA
DE O FALADOR DE MARIO VARGAS LLOSA
Monografia apresentada como requisito
parcial para obteno do grau de
Bacharelado do Curso de Cincias Sociais,
Setor de Cincias Humanas e Artes da
Universidade Federal do Paran.
Orientao: Selma Baptista.
CURITIBA
2012
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FOLHA DE APROVAO
BRUNO CAMPOS CARDOSO
Monografia aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Bacharelado
no Curso de Cincias Sociais, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal do Paran, pela seguinte Banca Examinadora:
Orientadora: Profa. Dra. Selma Baptista
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran (DEAN).
Profa. Dra. Laura Prez Gil
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran (DEAN).
Profa. Dra. Maria de Lourdes Patrini-Charlon
Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Curitiba, 18 de maro de 2013.
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minha me e minha irm,por tudo.
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AGRADECIMENTOS
minha famlia, com amor.
Aos meus amigos faladores, escutadores, andarilhos, seripigaris.
minha orientadora, Selma Baptista, paciente destravadora de sinapses.
erva-mate chimarro e demais ervas & substncias estimulantes
(pois sem elas nada disso teria sido possvel.)
Ao Caos
e aoprincpio prprio e escondido das coisas, talvez.
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A memria uma verdadeira armadilha:corrige, sutilmente acomoda o passado
em funo do presente.
(Mario Vargas Llosa)
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RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de explicitar uma sugerida fronteira entre a Antropologia e a
Literatura, tratando de uma novela especfica em que a etnologia desempenha papel importante,
em busca dos seus campos narrativos, interpretativos e alegricos. Trata-se de interpretar como
a fico e a inveno etnogrfica, continuamente constroem e iluminam o real. Pergunta-se
como tais relaes, ao mesmo tempo em que inventam o Outro e sua cultura, denunciam,
sugerem e revelam as caractersticas do prprio contexto cultural de onde se originam. Tal
perspectiva de uma Antropologia como crtica cultural tem como objeto etnogrfico o romance
O Falador (1987), de Mario Vargas Llosa, buscando em suas mltiplas liminaridades e
estranhamentos nesses lugares impossveis da narrativa os devires e utopias queacompanham a literatura latino-americana desde os seus os primeiros cronistas at as mais
recentes literaturas, indigenistas ou no, nas relaes com o Outro, com a diversidade e a
diferena.
Palavras-chave: narrativas, literatura, estranhamento, liminaridade, alegoria.
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SUMRIO
1. INTRODUO........................................................................................................................9
2. O CONTEXTO DO INDIGENISMO PERUANO..............................................................143. O UNIVERSO DA NARRATIVA.........................................................................................25
3.1. TEMPOS..........................................................................................................................26
3.1.1. Estruturas..................................................................................................................26
3.1.2. Tempo & memria....................................................................................................27
3.2. ESPAOS.........................................................................................................................29
3.2.1. Lima, Peru (1953-58; 1981).....................................................................................30
3.2.2. A selva amaznica (1958 e anos 1980).....................................................................31
3.2.3. Florena, Itlia (1985)..............................................................................................32
3.2.4. Lugares da utopia.....................................................................................................33
3.3. MOVIMENTOS...............................................................................................................36
3.3.1. O homem anda: necessidade de nomadismo (movimentos no espao)................37
3.3.2. O Narrador viaja: acasos e destinos..........................................................................40
3.3.3. Movimentos de estranhamento.................................................................................43
4. INVENO & ESTRANHAMENTO.................................................................................45
4.1. O tornar-se Outro..........................................................................................................45
4.2. O lugar da inveno..........................................................................................................48
4.3. Antropologia & Literatura: o estranhamento como crtica cultural.................................58
5. CONSIDERAES FINAIS................................................................................................65
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................................................69
APNDICES..............................................................................................................................72
APNDICE A Fragmentos Narrativos.................................................................................72
APNDICE B Referncias etnogrficas citadas no livro....................................................74
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1. INTRODUO
Se a gente falasse menostalvez compreendesse mais(Luiz Melodia)
Como costuma acontecer maioria das coisas interessantes, seja ao revel-las
inesperadamente ou ao torn-las um objeto da curiosidade, tenho quase certeza foi obra do
Grande Acaso meu primeiro contato com o Falador. E, tambm, como costuma ocorrer ao
interesse, este nem sempre sbito: pode at ser, mas s vezes precisamos ver ou ouvir esta
coisa, de passagem ou de um ngulo e outro, at que a Ateno, como que pela primeira vez oupor cansao, resolva ajustar seu foco para produzir uma imagem mais ou menos ntida o que
vale tanto para objetos quanto para novas ideias ou percepes.
A apreenso, no entanto, nunca imediata e acredito que nunca chegue a ser
completa. preciso ouvir, refletir, pesquisar algo a respeito, ir ao sebo prximo praa Osrio,
comprar o tal livro. E, claro, preciso ler. Chega a ser irnico que, na minha opinio, um dos
melhores conselhos venha de um livro que se diz mudo, sem palavras, composto de quinze
gravuras alqumicas. E est l na penltima, a nica coisa escrita: ORA LEGE LEGE LEGERELEGE LABORA ET INVENIES 1. Pois no assim mesmo que as coisas costumam
funcionar?
Inicialmente, para mim, Mario Vargas Llosa bem poderia ser mais um desses grandes
escritores argentinos, como Borges (acaso conheo outro?). Eu no sabia nada. Mas fui
sabendo: nobel de literatura, peruano, candidato presidncia de seu pas (e, certa vez, ao ver
meu livro, um sujeito me disse que ele tinha sido eleito presidente, e eu ri, achando tanto um
absurdo que um escritor fosse se candidatar presidncia, quanto improvvel que ganhasse: e,
claro, eu estava parcialmente errado ou, talvez, parcialmente certo).
Custei um pouco a ler. Devagar, lentamente, s vezes pouco atento, confuso e at
entediado com o captulo trs. Depois, ele me pegou. Primeiro o Narrador, no captulo quarto;
ento Llosa, pela habilidade com as palavras; e por fim esse estranho Falador. Da pro fim a
leitura foi bem mais rpida. O final do captulo stimo, em especial, me fez fechar o livro e
praguejar contra o autor: o desgraado me tirou o flego. Ruminei a narrativa por um tempo.
Fiz uns esquemas, escrevi umas coisas. O problema comeou, talvez, quando eu estava
1 Reza, l, l, l, rel, trabalha e encontrars (14 lmina doMutus Liber, annimo, sculo XVII).
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escrevendo uma coisa ou outra, quem sabe um e-mail ou uma anotao, e l estava, no fim de
uma frase, aps uma vrgula, a palavra talvez. Coisa do falador.
Comecei a notar como essas expresses, encontrando caminhos ocultos, feito guafluido por um tecido aparentemente impermevel (como gostamos de acreditar que so nossas
mochilas ou jaquetas), iam penetrando no meu vocabulrio, no meu estilo de escrever, se
alocando ou umedecendo at mesmo alguns dos meus padres de pensamento. Tal como o
Narrador se enfurece num episdio do captulo dois e, no dia seguinte, recebe de Mascarita um
bilhete e um presente, um ossinho branco, em forma de losango, gravado com figuras
geomtricas cor de tijolo puxando para ocre, eu tambm, por vrios dias e vrios outros
motivos alheios a tudo isso, senti raiva, muita raiva, mas me lembrei que aquele que se deixa
vencer pela raiva entorta essas linhas e elas, tortas, no podem mais sustentar a terra. No vai
querer que por sua culpa a vida se desintegre e voltemos ao caos original do qual nos tiraram,
aos sopros, Tasurinchi, o deus do bem, e Kientibakori, o deus do mal, no , compadre? 2.
Tenho quase certeza, ento, que meu contato se deu por acaso e que minha
aproximao definitiva decorreu dessa inesperada infiltrao que demorei a notar. Isto , ainda
que me agrade a suspeita de estar sujeito a um devir-falador, creio que tenho experimentado,
guardadas as devidas propores, algo similar ao que o Narrador identificou em seu antigo
amigo: visto com a perspectiva do tempo, sabendo o que aconteceu depois pensei muito
nisso , posso dizer que Saul experimentou uma converso. Em um sentido cultural e talvez
tambm religioso 3.
Por tudo isso, e, claro, pela prpria obrigao que me trouxe ao livro, tratei de
esmiuar seus captulos numa segunda leitura. No toa, tanto os temas que j haviam surgido
se tornaram mais expressivos, quanto toda narrativa pareceu se desdobrar umas duas ou trs
vezes, revelando outros tantos temas e conexes pelas mesmas 214 pginas. Livros, ao menos
os bons, por vezes me causam a impresso de que tm vida prpria nas entrelinhas. E essa
apreenso do Outro, na literatura, na antropologia ou na vida, tal como o Narrador procura
apreender o Falador nos captulos mpares, me parece sempre uma funo dessa relao que se
cria: contato, aproximao, deslocamentos, movimentos, interaes, interpretaes, invenes,
construes e transformaes e uma vez que cedi maldita tentao de escrever sobre ele
devo inventar 4.
Mas isso , pelo menos, o que eu soube.
2 VARGAS LLOSA, p. 16-17.3 IBID, p. 21.4 IBID, p. 34.
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Pensei muito sobre tudo isso, ao ponto de sonhar dentro e fora da narrativa, como se
estivesse s voltas do falador, buscando-o em etnografias como realmente o fiz e, tambm
como o Narrador, com nenhum sucesso ou sendo eu mesmo essa espcie de contador dehistrias que, ao desatar a primeira, encadeia uma aps outra, entremeadas por causos, mentiras,
piadas, fices, relatos, enfim; mas principalmente virando noites e mais noites em
entorpecentes rituais de confraternizao semi-nmades, com as mais diversas companhias de
amigos e parentes transeuntes e guardanapos e com a mesma, e por vezes at mais intensa,
vontade de prosa. Sendo este trabalho mesmo uma coisa dessas, talvez.
Ao esmiuar o livro sobre uma improvisada mesa de dissecao num procedimento,
digamos, bem menos sensual que os do Conde de Lautramont , a linearidade, que
frequentemente me angustia, enfim se espacializou. Foi premeditado. Mas isso era antes.
O livro d conta, nos captulos pares, da histria de um certo Tasurinchi-Narrador, um
Narrador sem nome, alter-ego de Vargas Llosa, que l de Florena, num presente narrativo que
se passa em 1985, rememora, a partir de uma fotografia presente numa exposio sobre a tribo
peruana machiguenga, sua juventude na Universidade de San Marcos e sua amizade com Saul
Zuratas, apelidado Mascarita. Tal mergulho no abismo da memria, impulsionado pela
fotografia de um falador machiguenga diante de seu auditrio de atentos ouvintes, o faz
trilhar diversos caminhos ao longo do tempo, do espao e da fico: percorre os corredores da
universidade, os bares e botecos adjacentes; repassa sua grande amizade com o estudante de
etnologia, estigmatizado por uma grande mancha avinagrada que lhe cobre parte do rosto; o
fascnio do amigo pelos machiguenga e sua progressiva converso; suas prprias viagens
selva peruana e Europa, assim como sua busca e especulao acerca do paradeiro de
Mascarita, com quem perdera o contato. E sendo ele mesmo um contador de histrias,
Tasurinchi-Narrador enfeitiado pela figura dos faladores machiguenga, pela ideia de que
esses contadores ambulantes de histrias seriam, ento, o trao mais delicado e precioso
daquele pequeno povo5.
Paralelamente, nos captulos mpares, um certo Tasurinchi-Falador, tambm
annimo6, quem narra suas memrias, percursos, causos e mitos de seu prprio povo, estando
ao mesmo tempo em lugar nenhum e em todos os lugares, perambulando pela selva peruana
num tempo fora do tempo, num constante encadeamento de narrativas de toda sorte. Andando,
ento. Levando e trazendo todo o tipo de histrias, exercendo a funo da seiva circulante que
5 IBID., p. 139.6 Como todos os machiguengas o so, sempre referenciados pelo nome Tasurinchi e, eventualmente, por suas
ocupaes como, por exemplo, Tasurinchi, o ervateiro.
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fazia dos machiguengas uma sociedade 7. E embora o Narrador muito queria encontrar ou
mesmo tornar-se um Falador machiguenga, isso jamais ocorre. Em verdade, apesar das
simetrias, suas narrativas esto bem separadas em seus captulos.O esquema que apresento abaixo (Figura 1) uma tentativa de ilustrar parte desta
estrutura, que uma importante caracterstica do livro. O mergulho no tempo, na memria, de
1985 at 1958 e ento de volta ao presente, muito significativo e ser abordado em detalhe
mais adiante. Por ora, cabe dizer que a narrativa do Narrador bastante linear e cronolgica
(junto s datas, entre parnteses, esto indicados os captulos correspondentes).
Simultaneamente, a narrativa do Falador, por se passar num tempo indefinido e intravel,
parece cruzar a outra de um modo mais fluido e passageiro, tal como, imagino, seria o andar e o
contar do Falador por isso optei por uma linha tracejada e curvilnea. Este mapa-mergulho,
preciso dizer, no se pretende mais que um mero suporte necessariamente impreciso para o
presente texto.
FIGURA 1: MAPAS-MERGULHO DAS TRAVESSIAS NARRATIVAS
Ao lado, no sei se por acaso ou destino, temos um mapa-mergulho similar. Em
verdade, apenas uma alternativa potica ao sumrio padro desta monografia. Pois o estilo mais
livre desta Introduo (captulo 1) seguir por um caminho intangvel e talvez impreciso at
as Consideraes Finais (captulo 5); uma vez que o percurso dos captulos intermedirios
segue uma argumentao mais lgica e necessariamente linear, como esperado.
No captulo 2 iremos esboar um contexto geral da literatura peruana, em especial a
7 IBID., p. 84.
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indigenista, desde os primeiros cronistas da Conquista (sculo XVI) at Jos Maria Arguedas e
Mario Vargas Llosa (sculo XX), procurando situar o autor d'O Falador (1987) junto a uma
linhagem/tradio deste tipo de narrativa, tanto literria quanto antropolgica.Em seguida, no captulo 3, abordaremos o livro de Vargas Llosa a partir das ideias de
tempo, espao e movimento no como categorias ou conceitos bem definidos, mas sim em
seus sentidos mais amplos buscando revelar a estrutura do livro e suas articulaes narrativas.
Por fim, no captulo 4, atravessaremos as diversas camadas de estranhamentos e
liminaridades, a fim de analisar de que maneiras os campos narrativos da antropologia e
literatura se relacionam neste romance, produzindo efeitos interpretativos e de crtica cultural.
FIGURA 2: TRIANGULAES
Estranhamento e inveno, assim como as ideias de liminaridade e percursos, eu e
outro, so centrais neste trabalho. E tendo isso em mos e em mente que abriremos
caminho pelas entrelinhas e sub-textos, visando explorar essa fronteira, to frtil quanto sutil,entre Antropologia e Literatura.
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2. O CONTEXTO DO INDIGENISMO PERUANO
Em seu artigo Mito, utopia e sobre-significao da pluralidade cultural no Perucontemporneo (2003), Selma Baptista mostra como a relao mito/utopia se desenvolve nos
termos de uma funcionalidade poltica e como esta se relaciona contemporaneamente com as
noes de pluralidade e diversidade tnica no Peru, dentro do que se poderia chamar de uma
matriz do pensamento andino.
Esta chamada matriz do pensamento andino veio se desenvolvendo dentro de uma
ampla tradio intelectual peruana, sujeita a disputas como todas as tradies, mas que, de
certo ponto de vista, pode ser compreendida como tendo se formado desde os cronistas do
perodo da Conquista, at ento preservada apenas pelos registros orais, e at o incio sculo
XX, pelo menos, tendo passado pela independncia do pas (1821) e a constante e crescente
necessidade de articular e abarcar as diversas etnias e identidades num mesmo projeto de nao.
Aps esse perodo inicial, dois destes cronistas, os mais importantes, deixaram escritos que se
tornaram as fontes transculturadas desse perodo: Inca Garcilaso de la Vega, com seus
Comentarios Reales de los Incas, e Guamn Poma de Ayala, com seus dois trabalhos Nueva
Crnica e Buen Gobierno, todos mais ou menos da mesma poca, ou seja, dos sculos XVI e
XVII.
Destas fontes derivou, portanto, um processo transculturador: uma possvel
literatura incaica, mantida oralmente e atravs dos quipus8, que foi submetida a um processo de
traduo e adaptao durante todo o perodo que sucedeu conquista e os primrdios da
colonizao. Como nos relata Selma Baptista, estes possveis originais
nunca aparecieron porque nunca existieron. Sabemos que el establecimiento
de estos posibles textos se haca por mdio de la repeticin de una estructura
bsica de ideas, imgenes, metforas, secuencias narrativas, ritmos y sonidos,que seguia um ritual establecido para las celebraciones oficiales, lasfestividades religiosas y el trabajo agrcola (BAPTISTA, 2006, p. 60) 9.
Este processo teve, numa primeira verso indigenista, a colonial, sua expresso mais
frtil, tanto cultural quanto politicamente. Esse movimento, que neste perodo poderia ser
8 Quipus eram cordes de vrias cores e com ns em distintas sequncias que, amarrados numa vara de madeira,pendiam como um macram e marcavam os fatos importantes no tempo e no espao. Este quipus eram lidospelos quipucamayoc, seus mestres decifradores.
9 nunca apareceram porque nunca existiram. Sabemos que o estabelecimento desses possveis textos se faziapor meio da repetio de uma estrutura bsica de ideias, imagens, metforas, sequencias narrativas, ritmos esons, que seguia um ritual estabelecido para as celebraes oficiais, as festividades religiosas e o trabalhoagrcola (BAPTISTA, 2006, p. 60).
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caracterizado como a construo de uma utopia possvel, posteriormente se revelou enquanto
construo da utopia andina: recontam o passado, retomam-no como possibilidade de futuro,
construindo, ao mesmo tempo, a base e o incentivo para algumas das mais importantesrebelies indgenas10.
Dessa maneira, podemos entender que
el indigenismo cuestiona la visin excluyente de la oligarqua, que dejaba
fuera de la 'comunidad imaginada' nacional a las mayoras indgenas o lasincorporaba en todo caso como sustrato servil, cuando no degenerado. () el
indigenismo como reivindicacin del 'indio actual' y de su incorporacin como
base fundamental de la 'comunidad imaginada' peruana se abri campo, con
altibajos, en la conciencia, la cultura y la poltica peruana (DEGREGORI,
2000, p. 30) 11.
Dito de outra forma, procurando localizar a tradio indigenista, em suas vrias
verses, dentro desta tradio intelectual, poderamos dizer que
a prpria percepo desta pluriculturalidade como base de projetos desociedade antagnicos refora a ideia de uma profunda relao entre a
formulao da existncia de uma matriz andina e sua subsequente percepo
enquanto utopia andina, e a recolocao do seu significado histrico ao
longo do tempo, sob a forma de uma tragicidade inerente prpria concepo
peruana enquanto locus de uma contradio irresoluta (BAPTISTA, 2003, p.290).
Tal matriz de pensamento tambm esteve, nos anos de 1920, congruente com o
pensamento marxista da poca, o que levou Jos Carlos Maritegui a buscar uma fuso entre
indigenismo e socialismo, ao reclamar populao indgena uma posio ativa e essencial na
construo do que Degregori veio chamar de comunidade imaginada, ou o que se poderia
chamar de socialismo andino, visando a construo de uma nao peruana mais integrada e
menos oligrquica.
El socialismo ordena y define las reivindicaciones de las masas, de la clase
trabajadora. Y en el Per las masas la clase trabajadora son en sus cuatro
quintas partes Indgenas. Nuestro socialismo no sera, pues, peruano, ni sera
siquiera socialismo si no se solidarizase primeramente con lasreivindicaciones indgenas (MARITEGUI apud BAPTISTA, 2002, p. 61)12.
10 BAPTISTA, 1997, p. 250, grifos da autora.11 o indigenismo questiona a viso excludente da oligarquia, que deixava fora da comunidade imaginada
nacional as maiorias indgenas ou as incorporava, em todo caso, como substrato servil, quando nodegenerado. (...) [com] o indigenismo como reivindicao do ndio atual e de sua incorporao como base
fundamental da comunidade imaginada peruana, se abriu o campo, com altos e baixos, na conscincia, nacultura, e na poltica peruana (DEGREGORI, 2000, p. 30).12 O socialismo ordena e define as reivindicaes das massas, da classe trabalhadora. E, no Peru, as massas a
classe trabalhadora so quatro quintos indgena. Nosso socialismo no seria, pois, peruano no seria sequer
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Como afirma Selma Baptista neste outro artigo (2002), tambm no ser por acaso
que as questes antropolgicas jamais puderam deixar de ser, ao mesmo tempo,polticas, e, em
momentos especiais, receberam um tratamento literrio de grande repercusso13
. Em sua tesede doutorado (1997), posteriormente publicada em livro Una Concepcin Trgica de la
cultura (2006) , discorrendo sobre a concepo trgica da cultura peruana, Baptista coloca
que se poderia visualizar o campo da Antropologia da seguinte maneira: por indigenismo
podemos entender a reflexo sobre todo o processo de contato entre as culturas, sob a forma das
polticas destinadas populao indgena e, portanto, com variaes ao longo do tempo e de
acordo com os interesses das oligarquias 14. E, assim sendo,
o indigenismo moderno, por sua vez, influenciado pelo ensasmo crtico deManuel Gonzlez-Prada, Maritegui, Valcrcel, Uriel Garca, Escalante, entre
outros, bem como pela literatura, pode ser tomado como a origem daAntropologia enquanto disciplina, da mesma forma marcada pela discussodas questes ligadas identidade nacional e ao projeto de nao, mas que vai,
na sequncia histrica, desenvolver seus estudos mais sistemticos, de
conformidade com seu processo de institucionalizao (BAPTISTA, 1997, p.
240, grifos da autora).
Com Luis E. Valcrcel, tendo chegado Lima na dcada de 1930, o indigenismo se
aproximou da academia: primeiro por sua grande influncia literria, como o romanceTempestadad em los Andes (1927) eRuta Cultural del Per (1945), relacionando uma noo de
cultura andina com a ideia de uma raa indgena, incaica, que vem resistindo a todo tipo de
exploraes e intempries ao longos dos sculos, sem nunca desaparecer por completo.
Tambm Valcrcel evidenciava a importncia da completa imerso na vida indgena para
melhor compreend-la 15, perspectiva essa que o acompanhou nos cursos ministrados na
Universidad de San Marcos e na direo dos Museo de la Cultura Peruana, sendo fortes
influncias neste meio: o socialismo e a etnologia como formas de compreenso e
transformao da realidade 16.
Assim, seguindo o prprio percurso de Valcrcel, percebemos como o
indigenismo foi se tornando uma escola de pensamento: em primeiro lugar,
pelo seu carter cientfico devido s novas disciplinas que foram sendo
introduzidas nos cursos de Etnologia, e em segundo lugar, pelo seu carterprtico, j que a avaliao etnolgica passou a ser condio prvia para
socialismo se no se solidarizasse primeiramente com as reivindicaes indgenas (MARITEGUI apudBAPTISTA, 2002, p. 61).
13 IDEM, 2002, p. 61.14 IDEM, 1997, p. 240.15 IDEM, 2002, p. 62.16 IBID., p. 61
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qualquer formulao de projetos voltados s populaes indgenas. precisolembrar que esta perspectiva incorporou-se aos fins desenvolvimentistas a
partir de 1946, com a criao do Instituto Indigenista Peruano, rgo
vinculado ao Ministrio da Justia e do Trabalho do qual Valcrcel foi oprimeiro diretor (BAPTISTA, 2002, p. 63).
Ou, como procura resumir o crtico e ensasta peruano Antonio Cornejo Polar, num
ensaio acerca das caractersticas e influncias histricas do romance indigenista peruano:
Em termos muito esquemticos: a urgncia de uma transformao social
colidia com a necessidade de preservar a raiz autctone da nacionalidade.Talvez as colocaes iniciais de Lus E. Valcrcel (1891) sejam as mais
representativas deste conflito precisamente por seu carter paradoxal:
preconizava ele uma transformao, sim, mas uma transformao que
restaurasse o passado (POLAR, p. 179).
Outro personagem importante nesta trajetria Jos Maria Arguedas, que alm de ter
sido aluno de Valcrcel em 1931, foi responsvel por importantes e vastas contribuies
literrias acerca das questes indgenas peruanas. Em 1956 produz seu primeiro trabalho de
peso em Etnologia, conseguindo seu ttulo de bacharel no ano seguinte. Em 1959 chega sua
tese doutoral na Espanha e, de volta ao Peru, passou a lecionar na Universidade de San
Marcos17.
Seu ltimo trabalho [El zorro de arriba y el zorro de abajo], uma novela
inacabada, pode ser pensada como um paradigma da relao intelectual eemocional, consubstanciado numa escritura em que tanto a literatura quando a
antropologia so invocadas de forma profunda e inexoravelmente estranhas
(BAPTISTA, 2002, p. 64).
Mario Vargas Llosa foi um grande crtico da obra literria de Arguedas 18,
especialmente de seu ltimo trabalho, o que expe, entre outras coisas, una disputa por la
hegemona interpretativa de la natureza del pas. En esta confrontacin entre escritores en
verdad se enfrentan dos proyectos de nacin 19.
Nascido em Arequipa (1936), Vargas Llosa cursou Letras e Direito na Universidad de
San Marcos (entre 1955 e 1957), e apesar de seu reconhecimento global como escritor, suas
posies polticas tornaram-se motivo de controvrsia: de apoiador da Revoluo Cubana na
juventude candidato da direita peruana (Frente Democrtica FREDEMO) na disputa
presidencial do pas em 1990. Vargas Llosa (1996) v na obra de Arguedas a existncia de uma
17 IBID., p. 63.18 cf. BAPTISTA, 2006; e MONTOYA, 1998.19 IDEM, 2006, p. 189: uma disputa pela hegemonia interpretativa da natureza do pas. Nesse confronto entre
escritores, na verdade se enfrentam dois projetos de nao.
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utopia arcaica, que poderamos resumir aqui por el colectivismo; el rechazo de la sociedad
industrial, de la sociedad urbana, del mercado; la inexistencia de individuos; una mezcla de
utopa cristiana y paraso perdido; el carcter brbaro de la cultura india; y el pasadismopermanente 20. Noutras palavras, essa utopia a culpada da rejeio da sociedade industrial,
da cultura urbana, da civilizao baseada no dinheiro e no mercado. Em suma, da rejeio da
modernidade 21.
En su libro La utopa arcaica [1996] vuelve sobre los Andes para tratar de
demostrar que el sueo indigenista carece de sentido, y que los indgenas nada
tienen que decir ni hacer en el futuro del pas. La obra literaria de Arguedas es
el pretexto para afirmar su nueva fe sin limites: el capitalismo (MONTOYA,
1998)22.
Como tambm afirma a antroploga peruana Urpi Montoya Uriarte, atualmente,
Mario Vargas Llosa continua pensando que impossvel e indesejvel se manter ou estimular o
elemento indgena na sociedade moderna e nas palavras do prprio escritor:
tal vez no haya otra manera realista de integrar nuestras sociedades quepidiendo a los indios pagar ese alto precio [renunciar a su cultura a su
lengua, a sus creencias, a sus tradiciones y usos y adoptar la de sus viejosamos]; tal vez, el ideal, es decir, la preservacin de las culturas primitivas de
Amrica, es una utopa incompatible con otra meta ms urgente: el
establecimiento de sociedades modernas (VARGAS LLOSA [1992] apud
URIARTE, 1998) 23.
Es trgico destruir lo que todava vive, una posibilidad cultural, a pesar de ser
arcaica; pero me temo que tendremos que elegir entre ambas cosas. No s deningn caso en el que haya sido posible elegir ambas cosas, excepto en
aquellos pases en que dos culturas diferentes han evolucionado ms o menossimultneamente. Pero cuando existen brechas econmicas y sociales tan
grandes, la modernizacin slo es posible mediante el sacrificio de las culturas
indgenas (VARGAS LLOSA [1990] apud URIARTE, 1998) 24.
20 MONTOYA, 1998: pelo coletivismo; pelo rechao da sociedade industrial, da sociedade urbana, do mercado;a inexistncia de indivduos; uma mescla de utopia crist e paraso perdido; o carter brbaro da culturaindgena; e o saudosismo permanente.
21 URIARTE, 1998.22 Em seu livroLa utopa arcaica [1996] se volta para os Andes para tentar demonstrar que o sonho indigenista
carece de sentido, e que os indgenas nada tm a dizer ou fazer em relao ao futuro do pas. A obra literria deArguedas um pretexto para afirmar sua nova f sem limites: o capitalismo (MONTOYA, 1998).
23 talvez no haja outra maneira realista de integrar nossas sociedades que pedindo aos ndios para pagar essealto preo [renunciar sua cultura sua lngua, s suas crenas, s suas tradies e usos e adotar de seusvelhos senhores]; talvez o ideal dizer que a preservao das culturas primitivas da Amrica uma utopiaincompatvel com outra meta mais urgente: o estabelecimento das sociedades modernas (VARGAS LLOSA
[1992] apud URIARTE, 1998).24 trgico destruir o que ainda vive, uma possibilidade cultural, apesar de ser arcaica; mas temo que temos deescolher entre ambas as coisas. No sei de nenhum caso em que foi possvel escolher ambas as coisas, excetonaqueles pases em que duas culturas diferentes tenham evoludo mais ou menos simultaneamente. Entretanto,
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Uriarte nos resume a posio de Vargas Llosa de modo bastante interessante (e
contundente) ao salientar que o escritor continua vendo o Peru como um pas onde duas
culturas (uma ocidental e moderna e outra aborgene e primitiva) e dois grupos (um civilizado eoutro brbaro) veem-se 'condenados a vivir juntos sin amarse ni saber los unos de los otros' 25.
Tal posio ou, diramos melhor, tal ideia de nao sintetiza e coincide, j num primeiro
momento, com a prpria estrutura da obra que aqui nos propusemos a analisar nos captulos
seguintes o romance O Falador(1988), de Mario Vargas Llosa.
Toda esta trajetria, aqui bastante sinttica 26, da literatura indigenista peruana e
sua influncia na academia, em especial sobre a Antropologia, nos interessa aqui por dois
motivos em especial.
O primeiro a proposta de reflexo acerca dos importantes papis da(s) literatura(s) na
construo e formao de uma ideia de nao plural e necessariamente heterognea, tanto
atravs das vozes e letras dos primeiros cronistas quanto pelos mais recentes movimentos
literrios, que podemos chamar indigenistas, mas, sobretudo, porque todos eles, de uma
forma ou de outra, buscam no passado uma inspirao para lidar com as contradies presentes,
mirando sempre um futuro quer seja mtico, mas especialmente utpico onde tais
contradies, sempre irresolutas, possam finalmente vir a serem solucionadas ou seja,
parece haver uma utopia da diversidade subjacente a estes movimentos. Tal segmentao
entre um antes (um passado por vezes nostlgico ou romantizado) e um depois (tanto um
presente fraturado quanto um devir, uma utopia, uma comunidade imaginada), o que Polar
assinala como uma das principais caractersticas desta(s) literatura(s):
Esta insero do indigenismo no tempo longo, e sua consequente
associao com as crnicas, permite explicar com melhores argumentos algunsfatos decisivos: desde sua norma estilstica sempre explicativa (s vezes em
excesso) e tambm sempre comparativa (o outro ininteligvel se no forreferido ao prprio), at, em outro nvel, ndole da histria narrada, que
repetidamente a histria de uma interferncia. Efetivamente, para mencionar
com alguma preciso apenas o ltimo fato, no h crnica que no suponha,
em sua prpria instncia de enunciao, um ato de ruptura (descobrir,
quando h brechas econmicas e sociais to grandes, a modernizao s possvel mediante ao sacrifcio dasculturas indgenas (VARGAS LLOSA [1990] apud URIARTE, 1998).
25 IBID.: condenados a viver juntos sem se amar nem saber uns dos outros.26 Uma extensa e mais detalhada perspectiva da trajetria, consolidao e caractersticas do indigenismo peruano
pode ser encontrada nos trabalhos citados de Selma Baptista (1997 e 2002) e Antonio Cornejo Polar (2000). E
faz-se necessrio, tambm, ressaltar a seguinte considerao de Polar, que nos ser cara por todo este trabalho: bvio que para muitos estudiosos ainda no est suficientemente assimilada a lio de Maritegui:indigenismo no o mesmo que indgena, e por conseguinte, no se pode esperar daquilo que por definiotranscultural uma auto-expresso cujo espao , certamente, outro: a literatura indgena (POLAR, p. 198).
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conquistar, colonizar), do mesmo modo que no h romance indigenista cujanarrao no implique uma intromisso (de imediato, a do prprio narrador) e
seu tempo referencial, um hiato muito ntido entre um antes e um depois
(POLAR, 2000, p. 196, grifos do autor).
E, ainda segundo Polar, o indigenismo s inteligvel a partir de uma prvia
conceituao do mundo andino como realidade dividida e desintegrada. uma literatura
heterognea inscrita num universo tambm heterogneo 27. Essa noo de diviso e
desintegrao depende de outra, implcita de modo quase sempre sutil ou mesmo despercebida,
a de interferncia:
Pode-se dizer, usando critrios de evidncia, que o romance indigenista tpicorelata algumas das formas de opresso que os exploradores () exercem sobre
o sofrido povo indgena. Por trs dessa evidncia, reside uma das condies deexistncia do gnero: o universo indgena parece romancevel, efetivamente,
s na medida em que interferido quase sempre agredido de fora. Em sua
coerncia ou em seus conflitos interiores, esse universo torna-se alheio ao
indigenismo (IBID., p. 181)
Isto, ento, nos leva ao segundo motivo desta reflexo: uma vez que o indigenismo,
caracterizado como tal, necessariamente dependente de (ou ainda, pressuposto por) um ato
ruptura 28, uma interferncia externa anterior coerncia autctone, a consequente
heterogeneidade e diversidade esto tambm implcitas neste cenrio, ainda que comumente
articulados, como vimos, a partir de uma perspectiva contrastante e no necessariamente por
suas particularidades ou caractersticas prprias. Retomando novamente as consideraes de
Polar,
indispensvel destacar, num primeiro momento, a fratura entre o universo
indgena e sua representao indigenista. Nos termos at aqui empregados,
esta ciso indica a existncia de um novo caso de literatura heterognea, em
que as instncias de produo, realizao textual e consumo pertencem a um
universo sociocultural, e o referente, a outro diverso. Esta heterogeneidadeganha relevo no indigenismo, na medida em que ambos os universos noaparecem justapostos, mas em contenda, e enquanto o segundo, o universo
indgena, costuma mostrar-se, precisamente, em funo de suas peculiaridades
distintivas (IBID., p. 169).
E, com isso, quero tambm sugerir um outro contraste, entre essa literatura (em
especial, mas no em particular) e a Antropologia, que, como sabemos, ocupa-se mais de
indgenas que (de) indigenistas. Porm, o que nos interessa aqui no assinalar, de modo
27 POLAR, 2000, p. 169-170.28 E, como assinala Baptista sobre a nao peruana, uma ruptura essencialmente trgica (1997).
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binrio, a dicotomia entre Antropologia e Literatura, mas sim seus pontos de inflexo.
A conscincia de que nossa literatura produto de vrios e antagnicos
sujeitos sociais, com linguagens, racionalidades e imaginrios discordantes,bem poderia terminar numa afirmao prazerosa da harmonia entre os
contrrios, algo assim como uma mestiagem que admite tudo, ou quase,sempre e quando o resultado no for demasiado negro ou acobreado. (IBID.,
p.51)
E do mesmo modo que a Literatura e sempre foi capaz de comunicar e inventar
novas e distintas comunidades imaginadas, de ser um veculo de denncia e crtica cultural,
assim tambm a Antropologia se aproxima nem sempre de modo explcito, pois por outros
caminhos e mtodos deste campo de investigao cultural, uma vez que
a proposta de uma crtica culturalde cunho antropolgico aparentemente est
se constituindo como uma ponte que se distancia do simples interesse peladescrio de outros culturais, indo em direo considerao das
experincias etnogrficas como experimentos que, quando tomadascoletivamente, sugerem a possibilidade de relacionar inmeras crticas
dispersas num certo contexto com outras, em contextos diferentes, de forma
comparativa, diluindo de certa maneira a oposio centro/periferia
(BAPTISTA, 2002, p. 61)
Tecer um plano verossmil onde todos esses outros (sujeitos, crticas, contextos)
possam ser articulados e postos em relao um dos grandes desafios da Antropologia como
crtica cultural, especialmente quando de fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de
direito, uns sempre so mais nativos que outros 29.
A distinctively anthropological cultural critique must find ways to explore
equally the possibilities for alternatives in both situations the domestic andthe cross-cultural using the juxtaposition of cases (derived from etnography's
built-in Janus-faced perspective) to generate critical questions from one
society to probe the other. This scholarly process is really only a sharpening
and enhancement of a common condition globally, in which members ofdifferent societes themselves are constantly engaged in this same comparative
checking of reality against alternative possibilities. Yet, we realize that,contrary to the idea of looking to exotic cultures simplistically for models,
many of the alternatives they pose are not importable like some form of
technology. The Japonese, Tongans, or Nigerians do not provide clear contrasts
with ourselves; any juxtaposing of them with us generates complex inquiryabout our respective situations in a contemporary world order in which
relationships between societies must be presupposed (MARCUS; FISCHER,1986, p. 117) 30.
29 VIVEIROS DE CASTRO, 2002.30 Uma distinta crtica cultural antropolgica deve encontrar meios de explorar de maneira equilibrada as
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Nesse sentido, a ideia de transculturao aqui nos parece til para pensar estes
processos e suas utopias e contendas que os movimentam, tanto em seus desdobramentos
seguintes (cf. BAPTISTA e MONTOYA) quanto na sua formulao inicial por Fernando Ortiz,como um processo inevitvel:
Entendemos que o vocbulo transculturao expressa melhor as diferentes
fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este no consisteapenas em adquirir uma cultura, que o que a rigor indica o vocbulo anglo-
americano aculturao, mas implica tambm necessariamente a perda ou o
desligamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma
parcial desaculturao, e, alm disso, significa a consequente criao denovos fenmenos culturais que poderiam ser denominados neoculturao
(ORTIZ apud OTN, p. 2)Angel Rama 31, por exemplo, tomando o conceito de Ortiz, classifica Arguedas como
um transculturador, que busca na fronteira Antropologia/Literatura um local para a
resoluo das contradies sociais e culturais de seu pas. J Vargas Llosa, do meu ponto de
vista, apesar de discordar da posio de Arguedas, parece procurar atravs d' O Falador,
tambm nesta fronteira, esse mesmo local, essa ideia sem forma que Montoya vai chamar de
utopia da diversidade 32.
Para isso, Vargas Llosa cria dois personagens, dois mundos, dois movimentos parailustrar essas diferenas que, apesar de estarem sob uma mesma nao (territorial) no esto
sob uma mesma ideia ou projeto de nao isto , no esto integrados ou sequer em dilogo.
Por integrao, no caso, no se entende uma fuso, mas sim uma ideia de
diversidades e multiplicidades que devem (precisam) ser articuladas por outras duas grandes
utopias: democracia e igualdade (de direitos 33). Integrao, nesse sentido, aproximaria-se mais
contemplao e o respeito s diferenas e talvez por isso carregue consigo nuanas desta
utopia da diversidade.
alternativas possveis em ambas situaes o domstico e o transcultural [cross-cultural] usando ajustaposio de casos (derivados de uma inerente perspectiva Janus-faced da etnografia), gerando assimquestes crticas de uma sociedade sobre a outra. Esse processo acadmico na verdade apenas um ajuste eum aprimoramento de uma condio comum e global, na qual membros de diferentes sociedades soengajados constantemente nessa mesma verificao comparativa da realidade contra as diferentes
possibilidades. Todavia, ns percebemos que, de maneira contrria a ideia de buscar modelos simplicistas emsociedades exticas, muitas dessas alternativas no so importveis como se fossem uma forma de tecnologia.Os japoneses, tonganeses, ou nigerianos no oferecem contrastes claros com ns mesmos; qualquer
justaposio deles conosco gera inquritos complexos sobre nossas respectivas situaes em uma ordemmundial contempornea na qual as relaes entre as sociedades devem ser pressupostas (MARCUS;
FISCHER, 1986, p. 117).31 apud BAPTISTA, 2003,passim.32 BAPTISTA, 2002.33 cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2002.
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Vargas Llosa, ento, ao invs de procurar fundir culturas e lnguas, como me parece
ser a abordagem de Arguedas, opta pela criao de um personagem converso e controverso, um
transculturador de si mesmo: um Falador (figura individual de um status social dos ndiosmachiguenga), um nmade, um mediador. Um ex-etnlogo que passa de porta-voz alto-
falante, que mergulha to profundamente no Outro, que assim se transforma, e que no pode
mais voltar.
Pero esta inmersin transcultural o 'traduccin intercultural' entraa peligros.
En efecto: 'el conocimiento puede llevar al aprendiz tan adentro de la cultura
del outro que sta puede tragrselo del todo, el placer de la experiencia del
descubrimiento y la simpatia por el 'objeto' que es necesaria para
comprenderlo pueden borrar la distancia entre sujeto y objeto de
conocimiento' (LOMNTIZ apud DEGREGORI, 2000, p. 26) 34.
Mas tal transformao nunca completa e isso faz com que ele no possa firmar razes
em lugar nenhum (exemplo: M18 35, quando o Falador tenta formar uma famlia e tudo d
errado), pois no existe um lugar para ele. Seu lugar ser um contador de histrias, um falador,
a prpria oralidade que se move, o mediador que s existe durante a mediao (pois seno
apenas um andarilho em busca de seu destino falar).
Por esses motivos, Vargas Llosa parece sugerir uma resoluo dessa questo da
diversidade cultural por meio de um personagem, que tanto um tipo ideal machiguenga
(nmade e falador) quanto um tipo ideal de etnolgo (embora seja, por isso mesmo, mais um
nativo que um pesquisador: isto , ambas posies so utpicas e mutuamente exclusivas).
E aqui entram os estranhamentos necessrios para 1) a construo da personagem; 2)
sua movimentao; e 3) para nossa apreenso aprofundaremos estas situaes ao longo do
captulo 4.
Alguns desses processos se revelam na prpria estrutura do livro; outros esto ocultos
ou implcitos ou inconscientes. Outros ainda devem ser preenchidos na subjetividade inerente interpretao dos textos (e das culturas): e por isso, talvez, que a memria seja um aspecto
central de todo livro e de toda narrativa. Sua verossimilhana uma tentativa de calcar esta
fico em algum lugar plausvel, em uma ideia de nao que, por no dar conta de tudo isso, s
pode ser almejada como um porvir distante, que nunca se realiza (tal como a nao Inca de
34 Porm essa imerso transcultural ou traduo intercultural implica perigos. De fato: 'o conhecimento podelevar o aprendiz to adentro da cultura do outro que esta pode trag-lo todo, o prazer da experincia do
descobrimento e a simpatia pelo objeto que necessria para compreend-lo podem borrar a distncia entreo sujeito e o objeto de conhecimento (LOMNTIZ apud DEGREGORI, p. 26).35 Daqui em diante, as diversas notaes N e M, numeradas, referem-se minha diviso do livro em unidades
narrativas. Para isso, vide APNDICE A Fragmentos narrativos.
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Valcrcel, ou o socialismo andino de Maritegui, ou o socialismo mgico de Arguedas).
Talvez o Falador, como mediador, seja este personagem que precise dar os primeiros
passos e est condenado a estes passos a todo momento, sempre andando e contando eouvindo. No fim, esta ideia de diversidade, tomando o falador como um exemplo, sugere que s
estar prxima de se concretizar quando todos ns nos tornamos um pouco faladores, um pouco
andarilhos, um pouco escutadores, um pouco outros: isto , exige uma disposio para
conhecer o mundo e as pessoas, ouvir e escutar e andar e contar e inventar e lembrar e esquecer
e transformar.
A utopia da diversidade, aqui, estaria em entender a diferena no como algo a ser
solucionado ou superado, mas como sendo a prpria soluo, no sentido de que preciso
ser antes um escutador para se tornar um falador (como ocorre ao personagem, em M23);
ou ainda, preciso ser transcultural (partindo, sempre, do estranhamento) para pensar a
diversidade e suas possibilidades de mediao.
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3. O UNIVERSO DA NARRATIVA
O romance O Falador, de Mario Vargas Llosa, portanto, ser nosso objetoetnogrfico. No apenas porque seu contexto narrativo (etnlogos, ndios e tudo mais) se
aproxima do mtierantropolgico, mas principalmente pelo modo como estes elementos esto
estruturados e tecidos, em que no apenas uma voz, mas duas, so articuladas durante a
narrativa e etc. J apresentamos um resumo do enredo e algumas das principais questes do
livro nos dois captulos precedentes. Como foi dito inicialmente, no seguiremos por um
percurso linear, mas espacial e temporal. Os movimentos, de todas as naturezas, nos sero
caros.
A recente teoria literria sugere que a eficcia de um texto em fazer sentido
de uma forma coerente depende menos das intenes pretendidas do autor do
que da atividade criativa de um leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto
a trama de citaes retiradas de inumerveis centros de cultura, ento aunidade de um texto repousa no em sua origem mas em seu destino. () h
sempre uma variedade de leituras possveis (alm das apropriaes meramente
individuais), leituras alm do controle de qualquer autoridade nica
(CLIFFORD, 1998, p. 57).
A edio do livro na qual me baseei para a realizao deste trabalho foi a da editoraFrancisco Alves, com traduo de Remy Gorga, filho, 3 edio (1988) cuja capa, alis, traz o
fragmento de uma pintura de Henri Rousseau: Paisagem tropical. ndio lutando com um
macaco (1910). J a contra-capa que tanto apreciamos nos diz o seguinte:
O falador
Duas narrativas alternam-se, em O Falador, para nos contar o verso e o
reverso de uma histria singular. De um lado, o narrador principal (da mesma
forma que em Tia Julia e o escrevinhador ou Histria de Mayta parece
identificar-se com o autor) evoca as recordaes de um companheiro dejuventude em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por uma pequena culturaprimitiva; de outro, um annimo contador ambulante de histrias um
falador , testemunha da memria coletiva dos ndios machiguengas da
Amaznia peruana, conta-nos, em uma linguagem incomum de poesia e de
magia, a prpria existncia, a histria e os mitos de seu povo. A conflunciafinal das duas histrias, ao revelar sua secreta unidade, mostra as misteriosas
relaes da fico com as sociedades e os indivduos, sua razo de ser, seusmecanismos e suas consequncias na vida. Por seu domnio expressivo e a
problemtica abordada, O Falador uma das mais significativas e originais
contribuies da obra de Mario Vargas Llosa. (EQUIPE EDITORIAL DAFRANCISCO ALVES apud VARGAS LLOSA, 1988, contra-capa do livro).
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O leitor tpico desses que no se encontra em lugar algum , ento, abriria o livro e
iniciaria sua leitura; ou, quem sabe, o abandonaria nas estantes empoeiradas de um sebo
qualquer. Mas claro que no faremos nem isso, nem aquilo. Pois tendo uma vez tornado esseromance nosso objeto etnogrfico, resta agora, e nada menos do que isso, tornar-mo-nos
etngrafos e, como acrescentaria James Clifford,
tentador comparar o etngrafo com o intrprete literrio (e esta comparao
cada vez mais um lugar-comum) mas mais especificamente com o crticotradicional, que encara como sua a tarefa de organizar os significados no
controlados em um texto numa nica inteno coerente (CLIFFORD, 1998, p.
41).
Esta, portanto, uma organizao possvel.
3.1. TEMPOS
O Falador transcorre em trs tempos e em trs localidades principais: Lima, a selva
amaznica e Florena. Cada um desses espaos, distintos cultural e geograficamente, existem
em trs tempos bem marcados: a capital peruana na transio das dcadas de 1950/60 e em
1981, a selva amaznica nos mesmos perodos, e o presente narrativo de Florena, em 1985.
A princpio pode parecer um tanto contraproducente a separao do binmio espao-
tempo em duas unidades distintas, uma vez que h pouco mais de um sculo Einstein nos
alertou para sua indissociabilidade. Mas os separo aqui por dois motivos: 1) para introduzir
alguns aspectos da prpria estrutura do livro e da narrativa do Narrador; e 2) para levantar
algumas questes sobre memria e narrativa. Os detalhes de cada poca, isto , seus contextos,
localidades e deslocamentos, sero tratados nas partes seguintes, sobre os espaos e
movimentos.
3.1.1. Estruturas
O primeiro dado importante acerca da estrutura do livro sua diviso em captulos: o
primeiro e os captulos pares (1, 2, 4, 6 e 8) so narrados em primeira pessoa pelo Narrador; os
captulos mpares (3, 5 e 7) so narrados em primeira pessoa pelo Falador.
Os captulos 1 e 8 se passam em Florena, em 1985. Os captulos 2 e 6, em grande
parte, so memrias de Lima (1953-58), ainda que o Narrador passeie pelo tempo e por
memrias de outros perodos (principalmente o incio da dcada de 1980) e localidades. O
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captulo 4 narra a visita do Narrador selva peruana em 1958. J os captulos narrados pelo
Falador se passam num tempo indefinido, em algum ou em vrios momentos deste intervalo de
vinte e sete anos, entre 1958 e 1985.
3.1.2. Tempo & memria
No por acaso que a narrativa do Falador transcorra em uma poca ou data no
especificada. O primeiro motivo, imediato, que o Falador no , digamos assim, um sujeito
concreto como parece ser o Narrador, alter-ego de Vargas Llosa. Ainda que este seja tambm
uma criao, aquele inventado por ele criao da criao.
Quando do seu primeiro contato com a figura machiguenga dos faladores (em 1958;
captulo 4, N11), numa conversa com o casal Schneil, linguistas-missionrios do Instituto
Lingustico de Vero 36, o Narrador conclui que a funo do falador parecia ser sobretudo
aquela inscrita em seu nome: falar37. Mais adiante, Edwin Schneil, no tendo ainda encontrado
nenhum falador machiguenga, expe suas hipteses: Tenho a impresso de que o falador no
traz s notcias atuais. Tambm do passado. provvel que seja, ao mesmo tempo, a memria
da comunidade. Que realize uma funo parecida dos trovadores e jograis medievais 38. Na
segunda visita do Narrador selva (1981; captulo 6, N20), no reencontro com o casal Schneil,
Edwin lhe conta que por duas vezes ouviu um falador machiguenga: falava sem parar, com
muita energia. Enfim, era seu ofcio e sem dvida ele o fazia bem. E, reproduzindo o dilogo,
o Narrador lhe pergunta:
De que falava? Bem, impossvel lembrar. Que confuso! De tudo um pouco,
das coisas que lhe vinham cabea. Do que tinha feito na vspera e dos quatromundos do cosmos machiguenga, de suas viagens, de ervas mgicas, das
pessoas que tinha conhecido e dos deuses, deusinhos e seres fabulosos dopanteo da tribo. Dos animais que tinha visto e da geografia celeste, um
labirinto de rios cujos nomes no h quem recorde (IBID., p. 156).
Tais caractersticas no esto presentes apenas nestas descries, mas so marcantes
nos trs captulos narrados pelo Falador, que conta diversos mitos e histrias, uma aps a outra,
sempre falando e falando sobre muitos temas. Dado que suas histrias vo dos deuses dos
vrios mundos at suas experincias particulares e andanas pela selva, estes captulos,
36 Summer Institute of Linguistics (SIL): no livro, tanto na traduo quanto no original em espanhol, o nome em
ingls do Instituto foi traduzido literalmente. Sabe-se, no entanto, que em portugus, a fim de manter a sigla, arazo social do SIL Sociedade Internacional de Lingustica.37 IBID., p. 82.38 IBID., p. 83.
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portanto, transcorrem num tempo atemporal, no eterno presente do mito.
Isto ainda mais marcante quando, ainda no captulo 4, na primeira conversa com os
linguistas, a senhora Schneil tenta explicar a dificuldade de estabelecer sobre o qu fala umfalador:
O sistema verbal machiguenga era intrincado e desorientador, entre outras
razes porque confundia facilmente o passado e o presente. Assim como apalavra muitos tobaiti servia para expressar todas as quantidades
superiores a quatro, o agora abrangia, frequentemente, o hoje e o ontem e o
verbo no tempo presente era usado com frequncia para referir-se a aes do
passado prximo. Era como se s o futuro fosse para eles algo nitidamentedelimitado (IBID., p. 83-84).
Esta particularidade do idioma machiguenga, aliada s caractersticas j citadas das
narrativas do personagem do falador, evidenciam esse presente constante da narrativa mtica e
da prpria oralidade. E, mesmo escrito em espanhol, Vargas Llosa constri uma narrativa que
emula essas risonhas e inquietantes implicaes de uma maneira de falar na qual o antes e o
agora pouco se diferenciavam 39, apesar da dificuldade que significava inventar, em espanhol
e dentro de esquemas intelectuais lgicos, uma forma literria que verossimilmente sugerisse a
maneira de contar de um homem primitivo, de mentalidade mgico-religiosa 40 pois, numa
espcie de meta-narrativa, tambm o Narrador procura, sem sucesso, escrever um conto sobreos faladores machiguengas.
Tudo isso, tambm, parece ter reflexo no prprio modo de narrar do Narrador: tanto
por estar escrevendo sobre memrias espalhadas por trs dcadas, quanto, por isso mesmo,
realizar saltos temporais entre uma histria e outra, ou mesmo dentro da mesma histria, como
neste trecho em que coloca Mascarita em dilogo direto com seus pensamentos acerca do
fascnio que a figura do falador passou a exercer sobre ele:
A ideia desse ser, desses seres, nas florestas insalubres do Oriente cusquenhoe de Madre de Dios, que faziam extensssimas travessias de dias e semanas
levando e trazendo histrias de uns machiguengas a outros, recordando a cada
membro da tribo que os demais viviam, que, apesar das grandes distncias que
os separavam, formavam uma comunidade e compartilhavam uma tradio,umas crenas, uns ancestrais, uns infortnios e algumas alegrias, a silhueta
furtiva, talvez lendria, desses faladores que com o simples e antiqussimoexpediente trabalho, necessidade, capricho humano de contar histrias,
eram a seiva circulante que fazia dos machiguengas uma sociedade, um povo
de seres solitrios e comunicados, comoveu-me extraordinariamente. Comove-
39 IBID., p. 84.40 IBID., p. 139.
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me ainda, quando penso neles, e, agora mesmo, aqui, enquanto escrevo estaslinhas, no Caff Strozzi da velha Florena, sob o calor trrido de julho, fico
todo arrepiado.
Mas por que fica todo arrepiado? disse Mascarita. Que que chama tanto
a sua ateno? Que tm de particular os faladores?
De fato, por que no podia tir-los da cabea, desde aquela noite?
So uma prova palpvel de que contar histrias pode ser algo mais que umamera diverso ocorreu-me dizer-lhe. Algo primordial, algo de que depende
a prpria existncia de um povo. Talvez tenha sido isso o que me impressionoutanto. A gente nem sempre sabe por que as coisas nos comovem, Mascarita.
Tocam em uma fibra secreta, e pronto. (IBID. p. 84-85).
Em certa medida, a memria parece operar do mesmo modo que o mito, num tempo
fora do tempo, ou melhor, no presente constante da enunciao ou evocao. Parece-me
inevitvel concluir esta parte com mais uma citao, referente ao trecho acima, que ilustra e
aglutina algumas das questes aqui levantadas:
A memria uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o
passado em funo do presente. Tenho tentado tantas vezes reconstruir aquelaconversa de agosto de 1958 com meu amigo Saul Zuratas, naquele botequinho
de cadeiras furadas e mesas bambas da Avenida Espanha, que agora j no
estou certo de nada, salvo, talvez, de sua grande mancha cor de vinho-vinagre,que imantava os olhares dos outros fregueses, de sua alvoroada mecha de
cabelos vermelhos, de sua camisinha de flanela, quadriculada em vermelho e
azul, e de seus sapates de grande caminhador (IBID., p. 85).
3.2. ESPAOS
Os trs principais lugares do livro j foram listados: Lima, a selva amaznica e
Florena. Mas, alm destes, parece haver um quarto espao, os lugares da utopia, sobre os quais
falarei adiante. Ainda que os tenha listado aqui em uma ordem quase cronolgica, no assim
que ocorrem na narrativa: o livro comea e termina com os captulos de Florena e, entre eles,
como num abismo da memria, passeia por outros lugares e tempos, submergindo e emergindo
de volta ao presente abafado da cidade italiana. E esses lugares, mesmo sendo momentos
distintos no tempo e no espao, guardam entre si algumas relaes simblicas interessantes:
Florena, em especial no ltimo captulo, sob o calor trrido de julho 41 e repleta de
pernilongos, parece se aproximar da selva peruana tanto pelo clima quanto pelo xodo (embora
41 IBID., p. 84.
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voluntrio) de seus nativos:
Os florentinos tm fama, na Itlia, de serem arrogantes e odiarem os turistas
que os inundam, cada vero, como um rio amaznico. Neste momento difcilcomprovar se isso verdade porque quase no restam nativos em Florena.
Eles tm viajado, pouco a pouco, medida que aumentava o calor, cessava abrisa das tardes, secavam as guas do Arno e os pernilongos tomavam conta da
cidade. Estes so verdadeiras mirades volantes que resistem vitoriosamente a
repelentes e inseticidas e se encarniam contra suas vtimas dia e noite,
sobretudo nos museus. So as zanzare de Florena os animais totmicos, anjosprotetores de Leonardos, Cellinis, Botticellis, Filippos Lippis, Fray Anglicos?
Pareceria. Porque ao p destas esttuas, afrescos e quadros onde recebi amaior parte das picadas que tm me avariado braos e pernas tanto quanto
cada vez que viajo selva amaznica. (IBID., p. 205).Este apenas um exemplo, entre outros, de similaridades simblicas entre os locais por
onde viaja o Narrador, operadas justamente pela memria, da qual falamos anteriormente.
Outras poderiam ser os cafs de Lima e Florena, espaos para conversas e escrituras (vide a
citao do salto temporal na pgina anterior, onde o narrador parte de um monlogo no Caff
Strozzi da velha Florena, em 1985, diretamente para um dilogo com Mascarita num
botequim de Lima, em 1958). Essas relaes so sutis e diversas, e sero mais bem exploradas
no quarto item desta parte, sobre os lugares da utopia.
3.2.1. Lima, Peru (1953-58; 1981)
O Narrador nos conta, no captulo dois, que conheceu Saul Zuratas, o Mascarita,
quando do ingresso deles na Universidade de San Marcos. Cursaram juntos os dois primeiros
anos do curso de Letras. Saul inicialmente fazia Direito, seguindo a vontade do pai, Dom
Salomn, mas ento passou a cursar, concomitantemente, o curso de Etnologia. Em 1956, aps
abandonar o Direito, obteve o ttulo de bacharel em Etnologia, a partir de suas experincias
entre os machiguengas de Quillabamba e Madre Dios, sob a orientao de Jos Matos Mar42. J
o Narrador deu prosseguimento ao curso de Letras e trabalhava com o historiador Porras
Barrenechea 43, amigo de Matos Mar. A amizade dos dois protagonistas, ento, havia comeado
em 1953 e seguiu muito forte e significativa at 1956. Depois disso, experimentando os
42 Jos Matos Mar, antroplogo, amigo de Vargas Llosa, e diz t-lo ajudado a criar suas novelas, conforme esta
breve entrevista: http://peru.com/2012/03/20/actualidad/nacionales/jose-matos-mar-le-ayude-mario-vargas-llosa-crear-sus-novelas-noticia-4745343 O livro anteriormente citado de Vargas Llosa, La utopia arcaica (1996), decicado a la memria de Ral
Porras Barrenechea, em cuya biblioteca de la calle Colina aprend l historia del Per.
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primeiros estgios do que o Narrador chamou de converso, passaram a se distanciar
gradualmente voc se tornou um homem de ideias fixas, Mascarita. No se pode falar de
outra coisa com voc44
. Ainda sobre San Marcos, notvel a seguinte passagem, em que oNarrador, analogamente ao seu processo de criao (estudo de referncias etnogrficas para a
produo literria, como veremos mais adiante), menciona: eu o encontrava, muito raramente,
nas poucas vezes em que aparecia pelo Departamento de Literatura, contguo ento ao de
Etnologia 45. Em suma, este o espao base da novela, a partir de onde todo o restante se
desenrola, isto , da Universidade de San Marcos para fora, primeiro aos bares, cafs, depois
selva e da por vrias direes.
Como mencionado na introduo, so os cafs e botequins o espao da conversa, do
dilogo, da troca de ideias. Diversos locais so citados, como o Jirn Azngaro e o botequim da
Avenida Espanha, ainda que nem todos possuam nomes ou descries suficientes, mas os
ressalto aqui pela importncia do espao no desenvolvimento da amizade de ambos. Outro
local, anlogo, a casa de Mascarita, em Brea, onde tambm se encontravam para conversar.
Ademais, poderamos falar de Lima no incio dos anos 1980, quando o Narrador
passou a ser responsvel por um programa de documentrios na TV local, La Torre de Babel.
No entanto, trataremos disso na parte reservada aos movimentos.
3.2.2. A selva amaznica (1958 e anos 1980)
A primeira coisa que se nota acerca dos espaos na leitura dos captulos do Falador
que todos eles so referenciados por nomes de rios. E so muitos. H portanto, um importante
mapeamento fluvial, que orienta as histrias e os deslocamentos na selva peruana.
Para alm dos rios, existem tambm outras regies importantes, como o Gran Pongo de
Mainique (local tambm da cosmognese machiguenga), o Cerro do Sal, o Quillabamba.
Somado a estes lugares, e dada a presena ostensiva do Instituto Lingustico de Vero em parte
da regio, so mencionadas diversas aldeias recm-criadas (por onde o Falador no transita),
como as do Alto Urubamba, Madre de Dios, Yarinacocha, Nuevo Mundo, Nueva Luz, etc.
difcil, todavia, delimitar precisamente cada um desses locais, pois a maioria deles carece de
uma descrio mais detalhada. Por isso, vou optar por apenas list-los aqui para referncia
posterior.
44 VARGAS LLOSA, 1987, p. 21.45 IBID., p. 33; grifos meus.
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3.2.3. Florena, Itlia (1985)
Assim como em Lima, os cafs de Florena so locais muito frequentados peloNarrador. E conforme a narrativa vai se encaminhando para um fechamento, temos um dado
interessante: nesses dois meses, tudo foi se fechando: as lojas, as lavanderias, a incmoda
Biblioteca Nacional perto do rio, os cinemas que eram meu refgio das noites, e, finalmente os
cafs onde ia ler Dante e Maquiavel e pensar em Mascarita e os machiguengas das cabeceiras
do Alto Urubamba e Madre de Dios 46. Tambm fecha a minscula galeria de arte, estopim da
narrativa, sobre a qual dedicada todo o primeiro captulo: Fechou tambm, naturalmente, a
pequena galeria da Rua Santa Margherita onde, entre uma tica e um armazm, face a face com
a chamada igreja de Dante, estiveram expostas as fotografias machiguengas de Gabriele
Malfatti 47.
Ressaltei inicialmente algumas aproximaes simblicas entre Florena e a selva
peruana, mas tambm h, evidentemente, um forte antagonismo entre as localidades, expresso
j nas primeiras frases do livro: vim para Florena para esquecer-me por um tempo do Peru e
dos peruanos e eis que o malfadado pas me veio ao encontro esta manh da maneira mais
inesperada48 atravs das fotografias expostas na galeria:
com uma estranha excitao e o pressentimento de estar fazendo uma burrice,
arriscando-me por uma curiosidade banal a frustrar, de algum modo, o projeto
to bem planejado e executado at agora ler Dante e Maquiavel e ver pintura
renascentista durante dois ou trs meses, em irredutvel solido , a provocaruma dessas discretas hecatombes que, de quando em quando, pem minha vida
de cabea para baixo. Mas, naturalmente, entrei (IBID., p. 7).
clara, nesses trechos, a oposio de uma Florena clssica, renascentista (poca das
navegaes e descobrimentos) e racional imagem tambm clssica e tambm renascentista
de uma selva primitiva, intocada, repleta de riquezas a extrair 49. Tal oposioocidental/indgena, naturalizada por sculos e ainda hoje bastante comum, no reflete, no
entanto, o pensamento do Narrador em 1985, mas talvez nos anos 1950, quando suas conversas
com Mascarita, em vrias passagens do captulo dois (N4, N6) e quatro (N12), indicam sua
viso inicial (e tambm ingnua) do atraso dos ndios em relao ao desenvolvimento do pas
46 IBID., p. 206.47 IBID., p. 206-207.
48 IBID., p. 7.49 H uma passagem sutil e interessante em que o Narrador, trabalhando com o historiador Porras Barrenechea,afirma estar catalogando os mitos sobre El Dorado e as Sete Cidades de Cibola nos cronistas dodescobrimento e conquista (IBID., p. 31).
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seu amigo, obviamente, defende o oposto, a autonomia e o respeito pela cultura desses povos, o
que o leva a abandonar o doutorado em Etnologia em 1958.
Enfatizo novamente, portanto, mais a oposio simblica entre as duas localidades e asideias que costumam representar, que a prpria posio dos protogonistas, pois ao longo do
livro o Narrador passa a compreender melhor a posio do amigo e at, no captulo quatro
(N11) e no captulo seis (N18, N19, N20) a expressa como oposio ao discurso dos linguistas
Schneil. Do mesmo modo, tambm simblico, seno muito curioso, que seja precisamente em
Florena, contra todas as probabilidades, que o Narrador venha a encontrar numa foto uma
figura to familiar quanto a de Mascarita.
3.2.4. Lugares da utopia
Alm destes lugares fsicos e bem definidos na narrativa, h tambm os lugares da
utopia. A comear pelos locais do mito: o Gran Pongo de Mainique, onde Tasurinchi e
Kientibakori sopraram tudo que bom e o que mau, todos os saankarites e os kamagarinis
(M1, M24); o Cerro do Sal, onde Pareni e sua filha jazem como rochas (M2, M17); os quatro
mundos de cima e de baixo (N13): o Inkite, onde vive Tasurinchi e corre o rio Meshiareni, que
a nossa Via-Lctea; o Menkoripatsa, a regio das nvens e do rio transparente
Manaironchaari; Kipacha, a terra, por onde andam os machiguengas e flui o Kamabira, o rio
dos mortos; e a regio mais profunda, onde vive Kientibakori e corre o Gamaironi, o rio de
guas negras50.
O Grand Pongo e o Cerro do Sal so, tambm, lugares fsicos (tal como Kipacha, em
certo sentido), e com isso no quero dizer que so mais reais que os outros, mas sim que
podem ser um destino possvel de uma caminhada de muitas luas. E, destes, o Cerro do Sal me
parece o mais emblemtico.
Antes, preciso uma digresso: ao comparar Florena com a selva peruana, a categoria
do ocidental com a do indgena, ressaltei algumas similaridades e oposies. Ambas,
idealizadas e enviesadas, costumam ser antagnicas e, tambm, costumam no dar conta de
todos os problemas que as cercam (alis, costumam cri-los ou justific-los). O que quero dizer
com isso , em poucas palavras, que Vargas Llosa, apesar de aparentemente operar com elas,
procura, na verdade, um outro lugar, um outro espao que lhes sejam exterior, onde talvez
possamos encontrar outras coisas alm das ideias progressistas de dominao e modernizao
50 IBID., p. 95.
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ou de um romantismo indigenista.
O Narrador, antes de ir para Florena, e talvez mesmo antes de sab-lo, um defensor
do progresso e da racionalidade materialista (como j assinalei, vide os dilogos do captulodois); Mascarita, ao contrrio, um partidrio indgena, quase um porta-voz de um povo
ameaado como tal. O Narrador, ento, ao longo dos captulos, observa a dissoluo de suas
prprias certezas marxistas 51, ainda que a duas ou trs dcadas de distncia. Mascarita, agora
convertido, tambm foge sua posio de bradar contra Etnologia e os abusos do Estado
peruano: de porta-voz indgena, torna-se um falador machiguenga, e passa a falar somente a
eles. Ambos, portanto, escapam s suas categorias iniciais e, tambm ambos, experimentam
transformaes distintas, por linhas de fuga distintas.
Mas a questo, quase romntica, da coexistncia e respeito mtuo da diversidade
cultural persiste, e ainda sem soluo: o Narrador vai busc-la, de algum modo, no prprio
exerccio da escrita e rememorao, na redeno da memria, inspirado por uma fotografia que
lembra o amigo e o remete a essas questes que o perseguem h trs dcadas; o Falador, em
algum canto da selva peruana, parece fazer o mesmo quando, juntamente com os mitos
machiguengas e suas experincias, narra, com a mesma estrutura e estilo, o mito cristo da
criao (M25) e A Metamorfose de Kafka (M22), talvez nessa mesma tentativa de encontrar
esse lugar da diversidade, de trazer para dentro do imaginrio machiguenga essa ideia (o
oposto, por exemplo, do trabalho dos linguistas e missionrios, ao traduzir a Bblia e o Hino
Nacional peruano para o idioma machiguenga). O erro, talvez, se que podemos dizer assim,
que ambos cometem inicialmente crer que um dos lados deve ceder em nome dessa mesma
utopia da diversidade; o que ambos percebem depois, e assim me parece, que os dois lados, o
ocidental e o indgena, tm de mudar e se transformar, mas esta conscincia parece surgir
apenas depois, aps cada um passar por suas transformaes individuais. No quero dizer, com
isso, que ambos esto mais prximos de encontrar uma soluo para este impasse pois talvez
nunca a encontrem, ou quem sabe at se distanciem cada vez mais dela.
Quando aproximei Florena e a selva pelo calor, pelos pernilongos, pelo xodo (ou
dispora, ou mesmo, por que no, pelo extermnio) dos seus nativos quis me aproximar
tambm desta questo: ambos os locais, em certa medida, no encontram sada para o mesmo
problema da diversidade. Florena, inundada de turistas, derrete:
Escureceu mas h tambm estrelas, ainda que no to lcidas como as da
selva, na noite de Florena. Pressinto que a qualquer momento acabar a tinta
51 IBID., p. 70.
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(as lojas da cidade onde poderia encontrar nova carga para minha caneta estotambm em chiusura estivale, naturalmente). O calor intolervel e o quarto
da Penso Alejandra fervilha de mosquitos que zumbem e esvoaam volta de
minha cabea. Poderia tomar uma ducha e sair para dar uma volta, em buscade distrao. possvel que no Lungarno haja um pouco de brisa, e, se opercorro, o espetculo dos molhes, pontes e palcios iluminados, sempre belo,
desemboca em outro espetculo, mais truculento, o do Cascine, de diabeatfico passeio de senhoras e crianas, e, a estas horas, antro de putas,
pederastas e vendedores de drogas. Poderia ir misturar-me com os jovens
brios de msica e maconha da Piazza del Santo Spirito ou Piazza della
Signoria que, a estas horas, uma multicolorida Corte dos Milagres, onde seimprovisam simultaneamente quatro, cinco e s vezes dez espetculos:
conjuntos de maraqueiros e tumbadores caribenhos, equilibristas turcos,
engolidores de fogo marroquinos, uma tuna espanhola, mmicos franceses,jazzmen norte-americanos, adivinhadoras ciganas, guitarristas alemes,
flautistas hngaros. s vezes agradvel perder um instante nessa multido
variada e juvenil. (IBID., p. 213-214).
Acaso em Florena essa questo da diversidade est resolvida? Tenta-se. E na selva e
no Estado peruano, com seus viracochas, mestios, machiguengas, ashaninkas, amueshas, piros,
yaminahuas, mashcos, etc, etc, etc? Tenta-se. Os modos e os meios so diferentes, mas o
modelo tende a ser o mesmo: das grandes metrpoles, a iluso da diversidade exportada, ou
melhor dizendo, imposta, para as menores e destas para suas periferias. Obviamente, no to
simples quanto parece, mas o ponto comum que tanto do lado de l quanto do de c, as coisas,
nesse sentido, no vo bem.
E, enfim, percorremos toda essa digresso para chegarmos ao Cerro do Sal, um espao
fsico e mtico, que contado (M2) como um lugar onde, apesar de todas diferenas, as tribos se
respeitavam e coexistiam. No existia conflito: havia sal e respeito para todos 52.
Todos conheciam o Cerro. Ns chegvamos e os inimigos estavam a. No
brigvamos. No havia guerras nem caadas, mas respeito, dizem. Isso , pelomenos, o que eu soube. Ser verdade, talvez. Igual que nas collpas, igual que
nos bebedouros. Por acaso nesses lugares escondidos da selva, onde a terra salgada e a vo lamber, os animais lutam? Quem j viu em uma collpa o sajino
investir contra o majaz ou a capivara morder o shimbillo? Nada se fazem. A
se encontram e a ficam, cada um em seu lugar, lambendo tranquilamente do
solo seu sal ou sua gua, at que se fartam. Por acaso no to bom descobrir
uma collpa ou um bebedouro? Como fcil caar os animais, ento. Ali esto,
descuidados, confiantes, lambendo. No sentem a pedra, no fogem quandosilva a flecha. Caem fcil. O Cerro era a collpa dos homens, era seu grande
bebedouro. Tinha sua magia, quem sabe. (IBID., p. 42).
52 IBID., p. 42.
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Mas isso era antes.
Depois j no se podia mais subir ao Cerro. Depois, eles ficaram sem sal.
Depois, o que subia era caado. Amarrado, era levado aos acampamentos. Issoera a sangria de rvores. Fora, porra! Depois, a terra se encheu de viracochas
procurando e caando homens. E os levavam e eles sangravam a rvore ecarregavam o caucho. Fora, porra! Nos acampamentos foi pior que na
escurido e nas chuvas, parece, pior que quando o dano e os mashcos. Tivemos
muitssima sorte. No estamos andando? Eram espertos os viracochas, dizem.
Sabiam que as pessoas subiriam com seus cestos e redes para recolher o sal doCerro. Esperavam-nos com armadilhas e escopetas. Levavam o que casse.
Ashaninka, piro, amahuaca, yaminahua, mashco. No tinham preferncias. Oque casse, se no faltariam mos para sangrar a rvore, dedos para abrir-lhe
feridas, colocar sua lata e recolher seu leite, ombros para carregar e pernaspara correr com as bolas de caucho ao acampamento. Alguns escapavam,
quem sabe. Muito poucos, dizem. No era fcil. (IBID., p. 42-43).
Esses dois trechos nos contam coisas interessantes: inicialmente, antes da chegada dos
brancos e do ciclo da borracha, o Cerro do Sal abrigava, mesmo que temporariamente, diversas
etnias, inclusive as inimigas, e ainda assim no havia conflito, mas respeito. Mesmo que apenas
nesse intervalo da caa e da coleta, poderamos dizer, havia ento uma diversidade temporria,
quase utpica. Melhor ainda: o prprio local, independente de quem ali estivesse, era
reconhecido por todos como este espao da diversidade. Deixa de ser quando os ndios,
qualquer que seja sua etnia, passam a ser caados como os prprios animais do local. E a utopia
fica, ento, apenas no mito, no passado.
Creio que de algum modo tanto o Narrador quanto o Falador, em suas linhas de fuga,
almejem chegar a esse Cerro do Sal mtico. Ou, antes, que a prpria narrativa de Vargas Llosa
procure tambm este lugar, este refgio, este bebedouro onde no exista conflito: o lugar da
utopia.
3.3. MOVIMENTOS
Aqui reunimos novamente o binmio espao-tempo para podermos falar nos
movimentos do livro, que so vrios e de vrias ordens tentarei explorar alguns deles: o
nomadismo machiguenga, as viagens do Narrador e os movimentos de estranhamento. J
falamos de alguns movimentos temporais e da memria nas pginas anteriores, embora no
estejam dissociados dos movimentos que tratarei aqui alis, esto intimamente ligados.
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3.3.1. O homem anda: necessidade de nomadismo (movimentos no espao)
O princpio o deslocamento. Ou, como diria Chico Science, basta um passo frentepara que voc j no esteja mais no mesmo lugar: Tudo tinha comeado, ele me contou, certa
ocasio, com uma viagem a Quillabamba, no Dia da Ptria 53. E muito significativo que Saul
Zuratas, o Mascarita, tenha tido seu primeiro contato com os machiguengas e a selva em uma
viajem justamente no Dia da Ptria peruana.
Voltou a Quillabamba no Natal e ali passou o vero todo. Regressou nas
frias de julho e no dezembro seguinte. Cada vez que havia uma greve em San
Marcos, embora de poucos dias, voava para a selva de qualquer maneira: em
caminho, trem, lotaes, nibus. Voltava dessas viagens exaltado e loquaz, osolhos brilhantes de admirao pelos tesouros que tinha descoberto. Tudo o que
fosse de l o interessava e o excitava de maneira excessiva (IBID., p. 19-20)
Logo no primeiro mito contado pelo Falador, o mito da gnese no Grand Pongo, onde
Tasurinchi e Kientibakori sopram todas as coisas do mundo, e tambm quando a lua, Kashiri,
fez cair o Sol para pr em trevas os machiguengas, v-se uma caracterstica essencial deste
povo: o andar.
preciso fazer alguma coisa, diziam. E, olhando direita e esquerda, que
coisa? Que faremos? Diziam. Pr-se a andar, ordenou Tasurinchi. Estavamem plena treva, rodeados de dano. A mandioca comeara a faltar, a gua fedia.
Os que iam j no voltavam, afugentados pelas calamidades, perdidos entre o
mundo das nuvens e o nosso. Sob o solo que pisavam ouviam correr, espesso,
o Kamabira, rio dos mortos. Como que se aproximando, como que oschamando. Pr-se a andar? Sim, disse o seripigari, engasgando-se de tabaco
na mareada. Andar, andar. E, lembrem-se, o dia que deixarem de andar, iro
definitivamente. Trazendo abaixo o sol. Assim comeou. O movimento, a
marcha. Avanar com ou sem chuva, por terra ou por gua, subindo o morro ou
descendo a ladeira. Nas florestas, to espessas, era noite sendo dia, e as
plancies pareciam lagoas porque no tinham qualquer vegetao, como cabeade homem que o diabinho kamagarini deixou sem cabelo. O sol no caiu
ainda, animava-os Tasurinchi. Tropea e se levanta. Cuidado, est dormindo.
Vamos despert-lo, vamos ajud-lo. Temos sofrido danos e mortes, mas
continuamos andando. Bastariam todas as fascas do cu para contar as luas
que se passaram? No. Estamos vivos. Ns nos movemos (IBID., p. 37-38).
Noutro momento, num episdio contado pelo Falador (M11), o Tasurinchi do rio
Mishahua rouba uma garota yaminahua (ou, segundo ele, trocou-a por uma sachavaca, uma
saca de milho e outra de mandioca) e est ensinando-a a falar. Isto , a garota, de outra etnia e
53 IBID., p. 19.
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outra cultura, est sendo ensinada a viver entre os machiguengas e mal se compreendia o que
a yaminahua dizia, o que era motivo de zombaria entre as outras mulheres. E o que ela
aprendeu, as primeiras coisas, refletem a importncia do andar como trao distintivo dacultura machiguenga: verdade, est aprendendo a falar. Algumas coisas que dizia, entendi.
O homem anda, entendi54.
Saul, com seus sapates de grande caminhador 55, mergulha neste universo de
pequenos grupos familiares dispersos pela selva, sempre andando, sempre fugindo do dano,
qualquer que seja, para que no lhes atinja e para que o sol no caia. Seus movimentos entre a
selva e a Universidade de San Marcos cessam em 1958, talvez, a partir de quando o Narrador
no tem mais notcias do amigo. Apesar de no sab-lo na poca, mas anos depois, os
movimentos de Mascarita, agora Falador, tangenciam os emaranhados de rios e selva densa
para encontrar os machiguengas e contar suas histrias:
Tornei-me falador depois de ser isso que so vocs neste momento.
Escutadores. Isso era eu: escutador. Ocorreu sem o querer. Pouco a poucosucedeu. Sem sequer me dar conta fui descobrindo meu destino. Lento,
tranquilo. Apareceu aos pedacinhos. No com o suco de tabaco nem ocozimento de ayahuasca. Nem com a ajuda do seripigari. S eu o descobri
(IBID., p. 184).
Primeiramente como etnlogo, na busca por melhor conhecer os machiguengas e suas
histrias, ia de um lado a outro, procurando os homens que andam 56. Como afirma o
Narrador, lembrando o comeo do contato de Mascarita com os machiguengas, a experincia
teve consequncias que ningum poderia imaginar. Nem mesmo ele, estou certo disso 57.
Alguns me conheciam, outros foram me conhecendo. Faziam-me entrar,
davam-me de comer e beber. Uma esteira para dormir, me emprestavam.Muitas luas ficava com eles. Eu me sentia um da famlia. Para que voc veio
at aqui?, perguntavam-me. Para aprender como se prepara o tabaco antes de
aspir-lo pelos buracos do nariz, eu lhes respondia. Para saber como se pegacom breu as pernas da peruazinha kanari para poder aspirar o tabaco,
dizendo-lhes.
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