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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
SILENCIAMENTO E PRODUÇÃO DE NOVAS MEMÓRIAS SOBRE A MULHER
MUÇULMANA
Gabriella Silveira Hóllas1
Resumo: O presente trabalho procura questionar os processos de construção que constituem a imagem da mulher
muçulmana no ocidente. Com base no conceito de memória discursiva de Michel Pêcheux (1999), abordamos duas
questões principais: o silenciamento e a produção de novas memórias. Para nossa reflexão, foram selecionadas
publicações em blogs que resgatam o modo de vida das mulheres árabes em países como Egito, Irã e Afeganistão entre
os anos 50 e 70, em que, a partir de fotos, é possível ver mulheres com saias curtas e biquínis, por exemplo. Também
selecionamos postagens de grupos que lutam pelos direitos das mulheres, como o Free Women Writers, do Afeganistão,
que contestam a imagem da mulher muçulmana propagada no ocidente. Em relação ao primeiro tópico, apontamos um
apagamento em relação ao modo de vida das mulheres até a chegada ao poder de grupos como o Talibã, o que contribui
para a formação de uma imagem ocidental de retrocesso e de submissão em relação à mulher árabe, aparentemente
inerente à religião islâmica. Em nossa próxima análise, observamos um movimento de contestação desta imagem
comumente divulgada no ocidente a respeito da mulher muçulmana como submissa e sem condições de lutar por
igualdade. Assim, publicações como as analisadas agem no sentido de inscrever, no domínio das representações, novas
memórias e novos discursos a respeito da mulher árabe-muçulmana
Palavras-chave: islã, mulher, memória, silenciamento
A memória e a construção de imaginários
Para dar início à reflexão que pretendo realizar neste trabalho, proponho um rápido exercício
de interpretação. Apresento a reprodução da capa da edição 193, de 23 de abril de 2012, da revista
americana Foreign Policy2. Vejamos como se dão os processos que nos permitem interpretar a
imagem e os enunciados a seguir:
1 Universidade Estadual de Campinas – Campinas – SP - Brasil 2 http://foreignpolicy.com/2012/04/23/why-do-they-hate-us/
Figura 1 - capa da revista
Foreign Policy
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Temos o seguinte título da reportagem de capa. Por que eles nos odeiam? E o subtítulo A
guerra contra a mulher no oriente médio.3 O primeiro enunciado, destacado pelo tamanho da fonte
e centralizado, apresenta um pronome dêitico eles, que não possui um referente explícito nessa
imagem. Para estabelecer a referência, precisamos reconstruir os sentidos possíveis desta capa.
Primeiramente, reconhecemos que a pintura negra sobre o corpo da mulher, expondo apenas seus
olhos, é uma representação de um niqab. Este, por sua vez, é uma vestimenta encontrada em países
muçulmanos e que simboliza no ocidente a opressão feminina nestes países. Entendemos, assim,
que o segundo pronome dêitico nós refere-se à mulher muçulmana da imagem, representando
metonimicamente todas as mulheres muçulmanas. Associando estas duas informações, a mulher
muçulmana ocupando a posição de objeto do verbo odiar e a vestimenta como símbolo de uma
opressão exercida pelos homens às mulheres muçulmanas, chegamos à conclusão que homens
muçulmanos constitui o referente de eles. A revista apresenta, portanto, uma mulher muçulmana,
oprimida pelo uso do niqab, em posição acuada, de medo e de insegurança. Seu “algoz” é o homem
muçulmano, responsável pela guerra às mulheres de que trata o subtítulo da capa. Entendemos a
guerra e o ódio às mulheres como frutos da estrutura opressora das sociedades muçulmanas, em que
mulheres são violentadas, mutiladas e proibidas de estudar, trabalhar e frequentar espaços públicos
sem a presença de um familiar masculino.
Para fornecer essa interpretação para a capa, foi necessário que preenchêssemos as lacunas
dos implícitos desse enunciado. As condições que nos conduziram a uma compreensão da capa da
revista Foreign Policy dizem respeito aos discursos que previamente circulam sobre a religião e a
cultura islâmica, ou seja, ao que denominamos de pré-construído (PÊCHEUX, 2014, p. 89). É esse
já-dito implícito, portanto, que sustenta os sentidos desse novo enunciado, conforme descreve
Achard:
Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então sobre a base de um imaginário que
o representa como memorizado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a
sua (re)construção, sob a restrição “no vazio” de que eles respeitem as formas que
permitam sua inserção por paráfrase. (ACHARD, 1999, p. 13)
Como podemos ver nesse excerto, Achard menciona um “imaginário memorizado”. Assim,
à noção de pré-construído, podemos associar o conceito de memória:
Memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma
dialética de repetição e de regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um
texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implícitos (que dizer, mais
tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc)
de que sua leitura necessita” (PÊCHEUX,1999, p.52)
3 Em tradução livre
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Essa memória não diz respeito à memória cognitiva, individual, mas é entendida como
noções comuns aos membros de uma comunidade (DAVALLON, 1999, p. 25), constituído pelo já-
dito e que possibilita o sentido (ORLANDI, 1999, p.64)
O que nos permite, portanto, a leitura e a compreensão da capa analisada é a regularização
de uma memória perpetuada em nossa sociedade ocidental a respeito da religião islâmica, de seus
hábitos e, principalmente, das condições impostas à mulher.
A repetição de determinadas noções acerca da cultura e religião islâmicas conduz à
formação de um imaginário social:
A condição das mulheres no Islã constitui um dos assuntos mais controversos da atualidade.
No ocidente, esse tema é ligado à representação que se faz geralmente do Islã e dos
muçulmanos, percebendo-se apenas os aspectos mais negativos e mais espetaculares,
amplamente cobertos pela mídia e divulgados sem nenhum discernimento. É uma
representação que é constituída de estereótipos e de esquematizações reducionistas e
também por confusões conceituais. Ela é ainda mais exacerbada pela homogeneização dos
modelos referenciais produzidos pela globalização. (HAJJAMI, 2008, p.3)
Como nos mostra Hajjami, constrói-se no ocidente uma imagem do que seria a mulher
muçulmana e o seu modo de vida na sociedade árabe. Para nós, ela se constitui como um sujeito
passivo, oprimido, inferior, que desconhece a liberdade e que não tem condições para lutar por seus
direitos, conforme vemos também no relato de Hoodfar:
Whenever I meet a person of white/European descent, I regularly find that as soon as he/she
ascertains that I am Muslim/Middle Eastern/Iranian, the veil very quickly emerges as the
prominent topic of conversation. This scenario occurs everywhere, in trains, the grocery
store, the laundromat, on the university campus, or at a party. The range of knowledge of
these eager conversants varies: some honestly confess total ignorance of Islam and Islamic
culture or Middle Eastern societies; others base their claims and opinions on their
experiences in colonial armies in the Middle East, or on their travels through the Middle
East to India during the 1960s; still others cite films or novels as their reference. What I
have found remarkable is that despite their admitted ignorance on the subject, almost all
people I met were, with considerable confidence, adamant that women had a particularly
tough time in Muslim cultures. Occasionally western non - Muslim women would tell me
they are thankful that they were not born in a Muslim culture. Sometimes they went so far
as to say that they were happy that I am living in their society rather than my own, since
obviously my ways are more like theirs, and since now, having been exposed to western
ways, I could never return to the harem! (HOODFAR, 1992)
Vemos, portanto, a regularização de uma memória que veicula a imagem de opressão da
mulher islâmica associada à religião. Essa memória se perpetua na sociedade ocidental, sendo
reproduzida nas grandes mídias, estampando capas de revista e se materializando em enunciados
produzidos na esfera pública. Contudo, conforme Pêcheux, essa memória é suscetível a mudanças
promovidas por novos acontecimentos discursivos que a reescrevem:
Essa regularização discursiva é sempre suscetível de ruir sob o peso do acontecimento
discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memória tende a absorver o
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acontecimento [...] mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode
desmanchar essa “regularização” e produzir retrospectivamente uma outra série sob a
primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída como
tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e
desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (PÊCHEUX, 1999,
p. 52)
Dessa maneira, apresentarei, na próxima seção, algumas materialidades que se propõem a
descontruir e reconstruir novas memórias acerca da imagem da mulher muçulmana, de seu
protagonismo em sua sociedade e da relação, ou desvinculação, entre os preceitos corânicos e as
práticas do Estado.
Novas memórias
Como vimos, há uma imagem no ocidente que associa a religião islâmica à opressão à
mulher. Contudo, muçulmanas contestam essa relação, pois estas proibições não seriam imposições
corânicas, mas sim fruto de uma interpretação patriarcal do livro sagrado islâmico:
Se é verdade que a questão de igualdade entre os sexos confronta o referencial islâmico e
coloca o mundo muçulmano no tribunal das nações em função das leis de desigualdade que
regem as relações sociais entre os sexos, principalmente na esfera privada, não é menos
verdade que a condição de inferioridade e de precariedade nas quais estão confinadas a
maior parte das mulheres nas sociedades árabe-muçulmanas são oriundas principalmente da
hegemonia de uma mentalidade (de um sistema) patriarcal que instrumentaliza sua leitura
da religião para legitimar as situações de dominação, de violência e de exclusão em relação
às mulheres.(HAJJAMI, 2008, p.3)
Através de publicações em blogs e nas redes sociais, grupos visam desconstruir a imagem da
mulher muçulmana oprimida e passiva, propor uma nova leitura do alcorão que promova a
igualdade social e questionar a visão imperialista ocidental sobre sua cultura. Selecionei algumas
dessas publicações para propor uma reflexão sobre o imaginário da mulher muçulmana e a
formação de novas memórias.
Quando falamos em memória, falamos também em silenciamentos e esquecimentos
(ORLANDI, 1999, p.59). Uma questão que parece fugir à nossa memória ocidental é o modo de
vida das mulheres em países árabes até a década de 80. Imagens que exibem cenas cotidianas de
mulheres caminhando em Cabul ou se divertindo em uma praia no Egito confrontam-se com nosso
imaginário e desestabilizam as representações ocidentais.
O site The Uniplanet4 publicou uma
compilação com 25 fotos de mulheres em países
como Afeganistão, Egito, Irã e Iraque, entre as
4 http://www.theuniplanet.com/2016/02/sabia-que-as-mulheres-arabes-nao-usavam.html
Figura 2 –Praia no Egito, anos 50
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décadas de 50 a 70. Abaixo, algumas destas imagens:
O título desta publicação, Sabia que as mulheres muçulmanas não usavam burcas ou hijabs
antes dos anos 80?, já nos conduz a uma interpretação de que se trata de uma curiosidade, de uma
informação que não é partilhada em nossa sociedade, devido ao encadeamento da estrutura você
sabia que.
A sequência traz ainda fotos de mulheres como estudantes em universidades, dividindo
ambientes com homens, usando saias curtas e trabalhando como estilista, por exemplo.
Estas imagens contrastam com a memória que comumente circula em nossa sociedade, em
que mulheres aparecem cobertas por hijabs, niqabs ou burcas e são impedidas de participar
ativamente da sociedade e é justamente a partir deste contraste que produzimos sentido.
Ao nos depararmos com estas fotos, tentamos reconstruir em nossa mente a sociedade dos
anos 60/70 em que estas mulheres viveram e em que eram consideradas livres, não sofriam
Figura 3
Miss Universo, Iraque, 1972
Figura 4 – Cabul, 1972
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restrições quanto ao vestuário, estudavam e trabalhavam. Esta visão descontrói a imagem a que
comumente temos acesso, em que acreditamos que a vida das mulheres em sociedades islâmicas foi
“desde sempre” do modo como a conhecemos hoje, com todas suas opressões e limitações.
É importante ressaltar que o sentido não está contido nas imagens em si, mas se constrói a
partir de gestos de interpretação do analista, levando em consideração também o contexto histórico
do momento da análise, além de outras memórias e discursos, que atravessam e constituem os
processos de significação. Nesse sentido, é também importante considerar dois momentos distintos:
o de produção da imagem e o de nossa leitura. Assim, “vemos que entre o simples registro da
realidade e a memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e a função social de
instituição/reinstituição do tecido social atribuído à memória, há toda a distância que separa a
“realidade” do “fato de significação” (DAVALLON, 1999, p. 24). Em outras palavras, a “realidade”
constitui-se como o momento em que a imagem foi capturada e que poderá ser significada de
diferentes formas. Em nosso caso, aquela imagem representava, na época, um registro do cotidiano
e do modo de vida daquelas mulheres. Hoje, após a revolução islâmica no Irã e a tomada de poder
no Afeganistão pelo Talibã e a consequente imposição de um regime fundamentalista islâmico, com
diversos retrocessos para a mulher, os efeitos de sentido produzidos sobre essas imagens são outros.
Ao ver mulheres de saia, vemos a ausência da burca; ao vê-las “sozinhas” na rua, vemos a ausência
da figura masculina que as acompanha. Compreendemos o cenário atual em que vivem as mulheres
árabes atualmente não mais como intrinsecamente associado ao islamismo desde sua expansão no
século VII, mas como uma ruptura. As sociedades, que, sob uma perspectiva ocidental, seriam
vistas como culturas “menos desenvolvidas” devido às imposições radicais da sharia5, tornam-se
mais próximas do ocidente, assim como a figura do Outro não nos parece mais tão distante.
Há, ainda, outras publicações semelhantes a do The Uniplanet que resgatam essa memória
do passado dos países islâmicos, como a divulgada pela organização Anistia Internacional do Reino
Unido6. Destaco um excerto que contrasta a imagem que comumente constitui imaginário ocidental
sobre a mulher afegã e o passado:
(1) Think of women in Afghanistan now, and you'll probably recall pictures in the media of
women in full-body burqas, perhaps the famous National Geographic photograph of 'the
Afghan girl', or prominent figures murdered for visibly defending women's rights. But it
hasn't always been this way. / 'As a girl, I remember my mother wearing miniskirts and
taking us to the cinema. My aunt went to university in Kabul.' / Until the conflict of the
1970s, the 20th Century had seen relatively steady progression for women's rights in the
country.
5 Conjunto de leis islâmicas baseadas no Alcorão. 6 https://www.amnesty.org.uk/womens-rights-afghanistan-history
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Este fragmento descreve primeiramente o imaginário do ocidente sobre o Afeganistão com
suas mulheres trajando burcas ou assassinadas pela defesa de seus direitos. Uma adversativa,
porém, adiciona a informação mas nem sempre foi desse modo. Dessa forma, o enunciador contesta
explicitamente o imaginário atual no ocidente acerca da mulher afegã. É inserido no texto um
depoimento pessoal para sustentar esse posicionamento sobra a situação do país antes da ocupação
soviética.
Outra publicação, do site Diário Norte7, também reivindica antigas memórias do
Afeganistão:
(2) Fotografías de otro tiempo más feliz han sido recogidas por una pagina de Facebook para
dar testimonio de aquella época de tolerancia frente al oscurantismo, ignorancia y miseria
que reinan hoy en Afganistan. Mohammad Qayoumi, creador de la pagina de facebook,
creció en Kabul en los años 60 y 70 y ofrece sus fotografías para concienciar a la población
mundial sobre lo ocurrido en Afganistán
Neste fragmento, o enunciador utiliza os seguintes substantivos e adjetivos para contrapor as
duas realidades afegãs: tempo mais feliz e época de tolerância, referindo-se ao Afeganistão pré-
talibã; e obscurantismo, ignorância e miséria para descrever as condições atuais do país. Ele
também determina como objetivo da divulgação deste arquivo de fotos a conscientização da
população mundial sobre o ocorrido no Afeganistão. O emprego do verbo conscientizar produz
efeitos de sentido de que esta informação é desconhecida pela população mundial, porém é
necessária para a compreensão da historia afegã e para a luta pela equidade de gênero no país.
A partir destas análises, considero que há um apagamento desse passado em que as mulheres
árabes-muçulmanas desfrutavam de uma sociedade mais igualitária. Pêcheux (1999, p.50) descreve
dois modos distintos pelos quais o processo de apagamento pode se realizar: a) “o acontecimento
que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever” e b) “o acontecimento que é absorvido na
memória, como se não tivesse ocorrido”. Entendo que o apagamento do passado árabe encaixa-se
neste último modo. Aquele cenário próspero para as mulheres, que conquistaram o direito ao voto
em 1919, 13 anos antes do Brasil, que frequentavam universidades e faziam parte da força de
trabalho, foi absorvido pela história de invasões, guerras, intervenções estrangeiras e apoio
internacional a grupos fundamentalistas que chegaram ao poder e instauraram um governo
opressivo, com inúmeras restrições às mulheres. Aquele passado, semelhante ao das sociedades
ocidentais, foi encoberto pelas sombras de um regime como o do Talibã no Afeganistão ou do
aiatolá Khomeini no Irã, a ponto de ser praticamente desconhecido no ocidente atualmente.
7 http://www.diarionorte.com/article/115557/un-repaso-de-lo-que-era-afganistan-y-su-triste-actualidad
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Outras publicações disponíveis na internet visam não a recuperação de memórias apagadas
ao longo da história, mas, acredito, a inserção de novas. Grupos identificados como feministas, ou
não, reivindicam a desconstrução da imagem da mulher islâmica como oprimida por sua religião e o
reconhecimento das lutas de mulheres árabes-muçulmanas por seus direitos. Selecionei alguns
fragmentos destas publicações para uma breve análise.
O blog ativista pelos direitos das mulheres Girls Globe reproduziu uma publicação
realizada pelo grupo Free Women Writers para resgatar a memória de cinco mulheres afegãs que
desempenharam um importante papel na luta por direitos, intitulado Five Afghan Women Who
Made History8. Apresento aqui o texto introdutório da postagem:
(3) The history of women’s struggle for equality and liberation in Afghanistan is often
misunderstood and misrepresented. Many still believe that the movement for gender
equality in the country began in 2001, with the help of international forces. While Afghan
women have reached unprecedented heights in many fields due to increased opportunities
since 2001, we have a long history of fighting for our rights. We were never weak and
voiceless. We have always found ways to speak up, even under the oppressive Taliban
regime.
A enunciadora questiona nesta passagem a imagem que se construiu sobre as lutas das
mulheres afegãs por direitos, a qual ela caracterizou como mal entendida e mal representada,
contestando, dessa forma, a crença que predomina no ocidente de que a intervenção norte-
americana em 2001 seja a principal responsável pela conquista de direitos das mulheres no
Afeganistão. O emprego dos advérbios nunca e sempre em Nós nunca fomos fracas e sem voz e Nós
sempre encontramos maneiras de falar, mesmo sobre o regime opressivo do Talibã pressupõe que
há discursos que veiculam estes características às mulheres. Em certas formações discursivas
ocidentais, a imagem que se constrói é justamente de mulheres, fracas, sem voz, que não lutam por
seus direitos e são salvas pelo ocidente. Ocorre postagem semelhante em outra publicação do
mesmo blog.9:
(4) Even under the disastrous regime of Taliban, many women in Kabul and beyond took
immense risks and protested. Many started secret schools for girls or secret literary circles.
Risking beatings and worse, many brave women continued the fight for equality by
educating young girls. There are many stories of women who confronted the Taliban and
there is a need to collect all these stories. There are even narratives of confrontation with
the “vice and virtue” police, where women would carry copies of the Quran with them and
ask the Taliban to show where the verse is that women are not allowed to leave the house or
wear burqas. One particularly famous story in Kabul tells of a woman named Sajida who
8 https://girlsglobe.org/2016/12/08/five-afghan-women-who-made-history/ 9 http://www.freewomenwriters.org/afghan-women-history/
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took off all her clothes in protest of the Taliban’s strict rules on women’s clothes. The
Taliban sidelined us, but they could not silence Afghan women- not for long, anyways.
Além de também contestar a concepção de que as mulheres afegãs não lutam por seus
direitos, citando exemplos de resistência dessas mulheres, vemos, neste excerto, outra questão
importante: a associação das restrições impostas às mulheres a um grupo político específico e não à
religião islâmica. A enunciadora cita narrativas em que as mulheres que carregam cópias do
Alcorão com elas e perguntam ao Talibã para que mostre onde está escrito que as mulheres não
podem sair de casa ou que devem usar burcas. As mulheres, portanto, questionavam o regime a
partir do próprio islamismo. A luta por direitos não é contra uma religião, mas contra um governo,
como podemos ver a partir de um efeito de repetição em que Talibã é evocado em quase todos os
períodos deste parágrafo e a ele são atribuídos os problemas enfrentados pelas mulheres e não ao
islamismo: I) sob o regime desastroso do Talibã II) mulheres que confrontaram o Talibã III)
pediram ao Talibã IV) protesto contra as restrições do Talibã sobre as roupas das mulheres V) o
Talibã nos deixou de lado, mas eles (Talibã) não podem silenciar as mulheres afegãs. Assim, a
enunciadora apresenta uma nova visão ao imaginário ocidental, este que compreende a opressão de
gênero como resultante da religião.
Considerações finais
O resgaste de uma memória das condições das mulheres árabes-muçulmanas até a década de
80 e o acesso ao material produzido por elas na luta por direitos desestabilizam o imaginário
ocidental a seu respeito. A imagem até então construída da mulher oprimida pela religião e sem
condições de questionamentos e capacidade de lutar por seus direitos dá lugar a novos discursos no
domínio das representações. As fotografias de mulheres caminhando livremente nas ruas, usando
saias e frequentando a universidade produzem novos efeitos de interpretação sobre a historia dos
países árabes, sobre as condições ofertadas às mulheres e sobre a quem recai a responsabilidade
acerca das restrições impostas ao gênero feminino. Entender que estes países já apresentaram
cenários semelhantes aos de países ocidentais gera efeitos de empatia e aproximação do ocidente
com essas culturas. Vemos que o modo de vida das mulheres árabes a que temos conhecimento hoje
não se trata de uma condição enraizada através dos séculos nestes países, mas decorrente de uma
ruptura histórica após intervenções estrangeiras e a chegada de determinados grupos ao poder.
Assim, compreendemos que os regimes atuais de países como Irã e Afeganistão não são
consequências imutáveis de preceitos corânicos, como se constitui em nosso imaginário, mas são
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resultantes de uma determinada interpretação patriarcal e radical do Alcorão. Desloca-se, dessa
forma, o foco no tratamento dado a essa questão. O entendimento sobre a libertação da mulher não
diz mais respeito a trazer um suposto esclarecimento a um determinado povo em relação a sua
religião, mas retoma condições e direitos que já fizeram parte daquele país.
Nos fragmentos relativos à luta feminista no Afeganistão, a enunciadora contesta a imagem
de que a intervenção norte-americana tenha sido a responsável pelos direitos conquistados no país.
A época da intervenção, um dos argumentos norte-americanos era, inclusive, a necessidade de
libertação das mulheres afegãs. A opressão sofrida em países muçulmanos é, nesse sentido, muitas
vezes instrumentalizada para justificar intervenções que atendam a interesses dos países ocidentais,
como foi o caso da invasão no Afeganistão em 2001.
Nesse sentido, podemos relacionar essa questão com a abordagem de Fernández (2007, p.
86) sobre os imaginários sociais atuarem como dispositivos de poder. A manutenção de um
imaginário opressor e pouco desenvolvido das sociedades islâmicas consistiria, portanto, uma forma
de firmar uma soberania dos países tido como desenvolvidos, como os da Europa ocidental e os
EUA, sobre os países muçulmanos, principalmente no contexto mundial atual que vê o islã como
um inimigo a ser combatido.
Para finalizar, as publicações das mulheres que lutam pela igualdade de gênero em seus
países de origem desestabilizam e promovem novas interpretações e reflexões sobre a complexidade
das relações de poder, tanto local, como também globalmente. Elas tendem a amenizar tendências
imperialistas dos países ocidentais que, a partir de seu posicionamento ideológico, consideram o
oriente como menos desenvolvido, necessitando, portanto, de orientação para atingir os níveis de
esclarecimento das sociedades “desenvolvidas”. Acima de tudo, as publicações inserem novas
memórias e alteram imaginários, promovendo o conhecimento e o reconhecimento da resistência
das mulheres árabes-muçulmanas.
Referências
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et al. Campinas: Pontes, 1999
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Campinas: Pontes, 1999
FERNÁNDEZ, Ana Maria. Las Lógicas Colectivas. Buenos Aires: Biblos, 2007
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HAJJAMI, Aïcha El. A condição das mulheres no islã: a questão da igualdade. In Cadernos Pagu
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HOODFAR, Homa. The veil in their minds and on our heads: the persistence of colonial images of
Muslim women. In Resources for Feminist Research. v.22. Toronto, 1992. Disponível em:
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Acesso em: 1 dez 201
ORLANDI, Eni. Maio de 68. In Papel da Memória. Achard, Pierre et al. Campinas: Pontes, 1999
PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In Papel da Memória. Achard, Pierre et al. Campinas:
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_____________. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp,
2014
Sabia que as mulheres muçulmanas não usavam burcas ou niqab? Disponível em:
http://www.theuniplanet.com/2016/02/sabia-que-as-mulheres-arabes-nao-usavam.html. Acesso em
1 dez 2016
SAQEB, Muhaira. Never silente: a brief history of Women´s rights movement in Afghanistan.
Disponível em: http://www.freewomenwriters.org/afghan-women-history/ Acesso em: 3 dez 2016
Un repaso de lo que era Afganistan y su triste actualidad Disponível em:
http://www.diarionorte.com/article/115557/un-repaso-de-lo-que-era-afganistan-y-su-triste-
actualidad. Acesso em: 3 dez 2016
Women in Afghanistan: the back story. Disponível em: https://www.amnesty.org.uk/womens-
rights-afghanistan-history. Acesso em: 3 dez 2016
Silencing and production of new memories about the Muslim Woman
Abstract: This paper aims to discuss the construction process that establish the Western image of the
Muslim woman. Based on the concept of Discursive Memory by Michel Pêcheux (1999), we try to
approach two main questions: the silencing and the production of new memories. For our study, we
selected some publications on the internet concerning the way of life of Arab women in countries
like Egypt, Iran and Afghanistan, between the 50s and 70s, in which it is possible to notice women
wearing skirts and bikinis, for example. We also selected some posts by groups that fight for gender
equality, such as "Free Women Writers", from Afghanistan, which challenge the Western image of
the Muslin woman. Regarding the first topic, we point out a silencing considering the way of life of
Muslim women until the rise to power of groups like Taliban, which contributes to the image of
setback and submission apparently inherent to the Islamic religion. In our next analysis, we notice a
movement contesting the image commonly disseminated in the West of the Muslin woman as
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
submissive and without conditions to fight for gender equality. In this way, publications, such as the
ones we analyzed, work towards inscribing, in the domain of representations, new memories and
new discourses about the Arab Muslin woman.
Keywords: islam, woman, memory, silencing
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