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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
Renata M. Brunetti
A escutado mundo da v idana constituio de uma
sociedade emancipatria
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SO PAULO
2007
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
Renata M. Brunetti
A escutado mundo da v idana constituio de uma
sociedade emancipatria
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, como exigncia parcial para a
obteno do ttulo de Doutor em PsicologiaSocial sob a orientao do Prof. Doutor
Antonio da Costa Ciampa.
SO PAULO
2007
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Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
O meu maior agradecimento cabe aos meus queridos filhos, Thiago e
Thomaz hoje, meus melhores amigos. Agradeo a eles, a companhia
carinhosa e amiga nestes anos, o estmulo e a pacincia nos dias mais duros,
que no foram poucos.
Agradeo aos meus pais, o apoio carinhoso que me deram. Aos meus
irmos e familiares, a fora de sempre.
Aos queridos Rony, Clia e Chico, o estmulo na busca de novosdesafios e o apoio consolidao de minhas conquistas.
Agradeo ao meu orientador Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa, a
confiana que depositou em meu percurso acadmico.
Gostaria tambm de agradecer minha banca examinadora no exame
de qualificao, Prof. Dr. Mario Aquino Alves, Prof. Dr. Peter Spink e Prof. Dr.
Odair Sass, as preciosas indicaes e questionamentos.
Ao meu grande amigo Carlos Carvalho, que h anos, vem me ajudando
a elaborar as experinciasde vida.
Agradeo dedicadssima Amnris Maroni, a sua especial habilidade
em compor o intelectual e o potico, que deram o contorno deste trabalho;
querida amiga Malu Zoega de Souza, por sua dedicao, ao ler, reler meus
escritos em tantas madrugadas.
Para finalizar, gostaria de agradecer a Deus pela oportunidade que tive
de entrar em contato, durante o desenrolar deste trabalho, com a alma de
pessoas maravilhosas como Vera Cordeiro, Daniel Becker, Jos Pereira de
Oliveira Junior e Jailson de Souza e Silva, meus entrevistados.
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RESUMO
A escutado mund o da v idana constituio de uma sociedade emancipatria
O objetivo da pesquisa que deu origem a este texto foi tentar localizar em
nossa sociedade, por meio da anlise de entrevistas com alguns fellows da Ashoka
figuras sociais , espaos nos quais aes que promovam emancipao sejam
possveis.
Foram questionadas algumas formas para nomear essa figura social, uma vez
que ela no se enquadra espontaneamente como um empreendedor, nem como o
conhecido militante. Poetas e poliglotas do social foram os nomes utilizados nestetrabalho para valorizar suas qualidades de escuta do sociale de mediao.
A anlise das entrevistas apontou que eles valorizam sobremaneira os
saberes locais, so multifocais possuem mltiplos interesses, so incapturveis.
Diferentemente do antigo paradigma, em vez de definir formas de produzir o mundo,
vo at l o mundo, o mundo da vida de Habermas o escutam, o traduzem e
fazem sua mediao com o mundo sistmico.
A inspirao terica principal do filsofo J. Habermas. Refletimos algumasdas suas recentes preocupaes tericas. No evitamos, porm, recorrer a outros
autores e outras proposies. Interessou-nos sobremaneira dar sentido e significado
aos nossos entrevistados e, ento, nesse trabalho, a teoria est a servio do mundo
emprico. A compreenso da experincia que fizemos com os nossos entrevistados
e aquela que os entrevistados fazem com a comunidade foi o elemento guia que,
por assim dizer, selecionou a teoria.
Por fim, o trabalho sugere que essas figuras sociais, com suas atividades
parecem ensaiar mudanas na cultura poltica com fortalecimento da sociedade civil e
uma mudana no paradigma do conhecimento. Uma cultura poltica que implica,
antes de tudo, a conscientizao de nossa responsabilidade individual e social.
Palavras chave: empreendedor social sociedade civil terceiro setor
responsabilidade social mundo da vida
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ABSTRACT
Thel is tening to the l i fe-world in the conception of an emancipatingsociety.
The objective of the research that originated this text was, by means of the
analysis of the interviews with a few Ashoka fellows social figure, try to identify
spaces in our society, in which actions that promote emancipation are possible. Trying
to locate models, recipes, pre-defined and replicable solutions; however, the reading
and listening during the works carried us in another direction.
Some forms of defining a name for the social figure were questioned, since
they dont spontaneously fit as entrepreneurs, nor as the well known militant. Social
poetsandpolyglotswere names used in this work to enhance their qualities in social
listeningand mediation.
The interview analyses showed they strongly value local knowledge, are
multifocal have multiple interests, are incapturable. Differently from the old
paradigm, instead of defining forms of producing the world, they go out there the
world, Habermas life-world listening and translating it, and mediating it with the
systemic world.
The main theoretical inspiration belongs to the philosopher J. Habermas. We
reflected some of his recent theoretical concerns, not avoiding however, referring to
other authors and propositions. High interests were placed in providing sense and
meaning to our interviewees. Thus in this work, theory is at the service of an empirical
world. The comprehension of the experience performed with our interviewees as
well as that of the interviewees with their communities was the key element, that as
such, selected the theory.
Lastly, the work suggests that these social figures, with their actions, seem to
rehearse changes in the political culture with the strengthening of civil society, as well
as a change in knowledge paradigm. The rehearsal a political culture that may results,
first and foremost, in facing our conscious individual and social responsibilities.
Key word: social entrepreneur civil society third sector social
responsibility life-world
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SUMRIO
APRESENTAO O processo de transformao de minha identidade ................09
INTRODUO O caminho percorrido .................................................................... 17
CAPTULO 1 A emancipao localizando brechas ............................................. 29
CAPTULO 2 A redescoberta do mundo da vidacomo fonte de sentido ............. 41
CAPTULO 3 procura de um nome..................................................................... 56
CAPTULO 4 O momento originrio um novo comeo ....................................... 78
CAPTULO 5 Travessias da/na experincia social ................................................104
CONCLUSO Mudana na cultura poltica: ensaiando caminhos .......................138
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 151
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Devemos ser a mudana que queremos ver no mundo
Gandhi
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APRESENTAO: O processo de transformao de minha identidade
Esta a segunda vez, nos ltimos cinco anos, que me vejo diante da
necessidade de fazer uma apresentao formal, de fazer um escrito que relata
fatos memorveis. Pela segunda vez, preciso organizar minha histria e
selecionar fatos importantes memorveis de minha vida. Como j fizera
isso na apresentao do mestrado, parecia-me lgico simplesmente darcontinuidade ao que havia comeado. Localizei e abri o antigo arquivo em meu
computador, certa de que bastaria acrescentar as ltimas novidades.
Ao iniciar a leitura, dei-me conta de que muitas coisas importantes
haviam mudado. O tom que usei no era o mesmo que gostaria de usar desta
vez; o formato cronolgico tambm no me agradava mais. Percebi, alm
disso, que alguns fatos relatados com grande destaque no tinham mais a
mesma medida no momento presente. Por um lado, fiquei desapontada, pois
isso significava um novo esforo; teria de trabalhar duro para elaborar este
novo memorial. Por outro lado, fiquei muito contente e orgulhosa por perceber
o movimento da vida em mim: transformaes tinham ocorrido que no mais
me reconhecia na escrita.
Que bom que mudei pois, at uns dez anos atrs, acreditava ser
possvel construir racionalmente uma vida estvel, protegida, dentro de planos
traados. Sobre-vivia s quebras, s mudanas de rumo, aos acertos e aos
desacertos. De alguma maneira, no os sentia. Tocava minha vida, famlia,
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filhos, trabalho. Via-me como uma pessoa conformada pelos altos e baixos:
no me desorganizavam e nem me abalavam no dia-a-dia. E o mais grave de
tudo sentia-me privilegiada por isso.
Hoje percebo, com auxlio das proposies de Walter Benjamin, em
torno da noo de vivncia e deexperincia1,que a estabilidade de minha
vidase dava custa de racionalizaes, mais precisamente, da resistncia da
minha conscincia ao novo. Essa resistncia levava-me a evitar experincias
autnticas, ou seja, protegia-me dos choques. Com isso, estava apenas
sofrendo vivncias.Segundo o autor, na Modernidade, a conscincia produzida
pela extensiva recorrncia dos choques tem servido de proteo contra os
estmulos, impedindo assim a experincia e, com ela a memria involuntria.
Dito de outra maneira, para Benjamin, traumas e choques inerentes
vida moderna so to recorrentes que os vivenciamos e no mais os
experienciamos. Ora, quando a conscincia falha que temos acesso
experincia. por isso que, quando s vivenciamos quando no
experienciamos , nossa conscincia cronolgica. Cronos, o tempo da
conscincia moderna, o deus das vivncias: a memria voluntria.
Os memoriais, as apresentaes inclusive a minha no mestrado
primam pela seleo cronolgica dos fatos memorveis. Venho aprendendo,
muito aos poucos, a me abrir para os fatos inscritos na memria involuntria.
Assim, fascinada, mas tambm insegura com essas novas portas de
percepo (choques, falha da conscincia, memria involuntria), narro os
fatos mais recentes ligados minha carreira profissional e, para minha
surpresa, ainda uma vez, vejo-me narrando os mesmos fatos, porm sob umnovo olhar.
Formei-me em Desenho Industrial no Mackenzie em 1981 e trabalhei,
at 1995, com arquitetura de interiores, uma atividade que visava compor o
Belo para o lar de pessoas, sendo esse belo definido pelas tendncias
presentes em revistas da moda. Sentia-me implantandotendncias modernas
na vida de meus clientes. Quantas vezes, em nome de garantir o belo, de no
1BENJAMIM, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire - Charles Baudelaire um lrico no auge do capitalismo;traduo de Jos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. So Paulo: Brasiliense, 1989. (Obrasescolhidas; v. 3) - p. 129
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ferir a esttica do ambiente, vi-me obrigada a atropelar as histrias e apegos
dessas pessoas... Sinto, hoje, que atropelava sem perceber uma de suas
almas, a que olha de dentro para fora, de acordo com a feliz expresso de
Machado de Assis em O Espelho. Como Jacobina personagem do conto ,
eu s contemplava, no meu fazer, a alma exterior das pessoas, as suas
personas, as suas mscaras.
Resolvi, ento, mudar de rumo. Comecei a procurar uma nova atividade
profissional que fizesse mais sentido para mim. Voltei a estudar e
paralelamente iniciei um trabalho voluntrio em uma organizao do Terceiro
Setor.
A idia de realizar uma atividade profissional voltada a causas sociais
levou-me a direcionar meus estudos para a rea. Participei, na poca, de
diversos cursos e seminrios, iniciando, assim, a construo de uma nova
carreira. Oportunidades foram aparecendo e meu envolvimento foi
aumentando. Passei a fazer parte do grupo de professores de um curso de
especializao em captao de recursos para organizaes do Terceiro Setor,
da Fundao Getlio Vargas - FGV/SP, em parceria com a Indiana University
The Fund Raising School.
Para minha surpresa, nessa nova trajetria, percebi que comeava a
questionar minhas certezas, a mudar trajetrias, errando e acertando algumas
vezes. Entretanto, ainda imaginava que esses sobressaltos fossem parte dos
ltimos ajustes na conquista daquele projeto definitivo de vida.
Capacitei-me para essa nova fase, dessa vez, mais acadmica. Fiz
mestrado na PUS/SP em Psicologia Social, no Ncleo de Identidade orientadapelo Prof. A. C. Ciampa. Estudei no s o processo de constituio da
identidade do captador de recursos para organizaes do Terceiro Setor no
Brasil minha atual atividade profissional , mas tambm o possvel significado
de sua ao na formao de uma sociedade emancipatria.
Foi um trabalho de interpretao de questionrios respondidos por 140
captadores de recursos; de entrevistas abertas (histrias de vida) e de dados
coletados de pessoas que tinham proximidade entre si e amplo conhecimentode captao. A partir da anlise feita, aprofundei uma discusso em torno da
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constituio da identidade desses profissionais por meio de seus processos de
metamorfose.
Nas entrevistas, os captadores indivduos que se deslocaram, na
grande maioria dos casos, de suas antigas reas de atuao profissional
mostraram-se pessoas em constante transformao. E, como tinha acontecido
comigo, foi possvel tambm com eles perceber o processo de constituio de
suas identidades, as crises vividas, os questionamentos feitos e os novos
posicionamentos adotados. Apoiei-me na noo de identidade definida pelo
processo de busca da emancipao, a identidade ps-convencional do
filsofo alemo Jrgen Habermas2.
Nessa poca, dei-me conta, ainda uma vez, do olhar limitado que
mantinha em relao minha vida, da desconexo com a realidade que
minhas buscas por estabilidade e por definies me colocavam. E, s
recentemente pude perceber que o mestrado que fiz achando que era
apenas para atender as necessidades da nova fase, ou seja, oferecer cursos
de captao de recursos para a FGV e outras instituies de ensino de fato
serviu-me como um espao muito rico de reflexo sobre a minha prpria
histria, minha prpria metamorfose. A pesquisa sobre a constituio da
identidade dos captadores de recursos, os cursos que ofereci sobre o assunto,
o exerccio mesmo da escrita, tudo isso me levou a uma transformao muito
grande, at pelo fato de perceber que no sou a nica a enfrentar grandes
transformaes na vida.
Terminado o mestrado, tive a oportunidade de fazer um curso MBA
sobre o Terceiro Setor e pesquisei alternativas que dessem conta das
carncias sociais. Escolhi verificar se o Terceiro Setor poderia desenvolver
modelosde atividades de promoo social. Ao pensar em transformaes que
fossem emancipatrias, acreditava ainda ser possvel traar modelos,
encontrar solues. A tendncia de pensar dessa forma sustentava-se na idia
2HABERMAS, J. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos; traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Rio de
Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). A identidade ps-convencional, ou seja, a individuao uma identidade formada a despeito dos papis sociais e contra a idia dos
tipos sociais convencionais , exige autonomia e conscincia. Nas palavras do autor: A necessidade de evitarconvenes petrificadas, impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivduo com decises morais prprias e com umesboo individual da vida resultante de um auto-entendimento tico. (p.217).
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de que parcerias entre as organizaes da sociedade civil e os demais setores
poderiam ampliar o impacto de suas aes.
Para aprofundar a idia de modelo fiz algumas leituras de Hannah
Arendt e Zygmunt Bauman, e continuei tambm estudando J. Habermas. Essas
leituras me permitiram compreender a dificuldade de sustentar a idia, mais do
que isso, de defender a idia de projetos, modelos, receitas, solues.
Durante o doutorado, continuei lendo diferentes autores, diferentes
linhas de pensamento, construindo olhares mltiplos sobre os temas que
escolhia. Estudei autores modernos, ps-modernos, crticos da Modernidade...
Com eles, dei-me conta, ainda uma vez, da minha luta constante em
permanecer moderna, controlando, produzindo ordem, buscando segurana. E,
claro, fui obrigada a compreender que isso mesmo que buscava era o que
estava em questo. Ou seja, que estamos vivendo um tempo cultural marcado
pela incerteza.
A leitura de autores como H. Arendt, J. Habermas e Z. Bauman, que
trabalham com a idia de um mundo aberto, foi, passo a passo, me contatando
com a dificuldade de sustentar, nos dias de hoje, a idia de um projeto(moderno) baseado em modelos. Esses autores me convidaram a lidar com
indefinies, incertezas e imprevisibilidades.
Hannah Arendt, em seu livro A Condio Humana3, trabalha com os
conceitos de labor, de trabalho e de ao, partindo da idia de que o
labor visa satisfazer necessidades vitais e o trabalho visa orientar a
produo de algo. Denuncia a autora que, na Modernidade, ocorreu uma
substituio da ao pela fabricao. Argumenta que essa substituiopretendeu libertar a humanidade da imprevisibilidade, s que, ao eliminarmos a
ao, eliminamos tambm a pluralidade e a poltica. Construmos uma
sociedade ancorada na idia de fabricao: perdemos a espontaneidade e a
imprevisibilidade na relao comum, num espao comum.
A crtica de Arendt idia de modelo aparece quando a autora mostra
que hoje no estamos mais em uma sociedade de labor, dando conta de
3ARENDT, Hannah.A condio humana. Traduo de Roberto Raposo, posfcio de Celso Lafer. 10. Ed. , Rio deJaneiro: Forense Universitria, 2003. (Licensed by The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, USA. 1958).
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nossas necessidades instintivas. Mesmo quando delas damos conta, ns o
fazemos por meio do trabalho: uma sociedade de planejamento, de modelo,
uma sociedade de fabricao. Diz Arendt:
O processo de fazer inteiramente determinado pelascategorias de meios e fins. A coisa fabricada umproduto final no duplo sentido de que o processo deproduo termina com ela (o processo desaparece noproduto, como dizia Marx), e de que apenas um meiode produzir esse fim. verdade que o labor tambmproduz para o fim de consumo, mas como esse fim, acoisa a ser consumida no tem a permanncia mundanados produtos do trabalho, o fim do processo no determinado pelo produto final e sim pela exausto dolabor power, enquanto que, por outro lado, os prprios
produtos imediatamente voltam a ser meios desubsistncia e reproduo do labor power. No processode fabricao, ao contrrio, o fim indubitvel: ocorrequando algo inteiramente novo, com suficientedurabilidade para permanecer no mundo como unidadeindependente, acrescentado ao artifcio humano.4
J Jrgen Habermas, que prope uma sociedade autnoma marcada
por identidades ps-convencionais, tendo essas identidades no
convencionais como motor da dinmica social, faz a crtica idia de modelo
quando demonstra que, ao partirmos do geral, de um modelo definido a priori
ancorado no universal pensamento metafsico de Descartes e Kant ,
perdemos a possibilidade de atingir o individual e o particular. a teoria
dominando a prtica: o logocentrismo.
Segundo o autor, a tradio da metafsica, da filosofia da conscincia e
da subjetividade equaciona tudo o que h em torno da primazia do geral sobre
o individual. Essa tradio leva-nos a pensar no que existe de comum, de
geral, e no no que existe de individual. Essa crtica idia de modelo
consiste, justamente, em pensar que, enquanto estivermos olhando sob a tica
da primazia do geral, estaremos desvalorizando o individual. Atravs do
pensamento, subsumimos o singular ao geral, conseguindo apenas ver o
individual como no idntico.
4ARENDT, H., op. cit., p. 156.
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Habermas encontra na guinada lingstica uma nova forma de unir
individualidade em unidade, pois o pensamento metafsico no nos permite
garantir essa individualidade como singularidade. O filsofo apia-se nos
conceitos do Eu e do Me de George Mead, das interaes sociais para a
formao de identidades ps-convencionais, e no papel do Direito para
normatizar as intervenes no convencionais e torn-las convencionais.
Em uma sociedade constituda por identidades ps-convencionais, de
acordo com Habermas, precisamos do Direito para normalizar as intervenes
no convencionais e torn-las convencionais. O processo, porm, no acaba
a, uma vez que essas novas convenesdevem ser questionadas por outras
identidades no convencionais e assim por diante. Identidades no
convencionais estaro sempre propondo novas normas a serem generalizadas
e tornadas convencionais.
Zygmunt Bauman faz a crtica por outro vis: critica a prpria cincia
moderna que, ao aliar-se ao poder poltico, produziu o totalitarismo moderno.
Define o momento atual como Modernidade Lquida, ou seja, voltil, fluido,
diferentemente do anterior, que pretendia ser slido e estvel. Discute como o
projeto da Cincia ordem e transparncia pretendeu (e pretende) produzir
a realidade e nos levou (e leva), paradoxalmente, ao alargamento progressivo
do caos e da desordem.
Na Modernidade, com o Iluminismo, pensava-se que a razo poderia dar
conta das incertezas do mundo; pretendia-se, entre outras coisas, acabar com
as mazelas sociais atravs da Igualdade, Fraternidade e Liberdade e, assim,
produzir um mundo transparente, seguro e certeiro.
Segundo Bauman, a promessa de criar a ordem pela Razo e pela
Cincia est nos levando a um novo olhar sobre ns mesmos. Com o
esgotamento do projeto moderno, na ps-modernidade ou na Modernidade
Lquida somos obrigados a conviver com a ambivalncia. A velocidade e as
mudanas impostas pela Modernidade dificultam qualquer tentativa de
acomodao. O risco na ps-modernidade est em permitir que se ressuscitem
ambies de endurecimento, de busca do definitivo, de projetos, de certezas,de ordem ... contra a ambivalncia.
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O imaginrio de nossa sociedade dificulta a percepo das contradies
presentes. Hoje percebo que passei muitos anos mergulhada numa coeso
ilusria que mascarava as minhas contradies e as contradies do mundo,
deixando-me protegida dos choques e, portanto, das experincias. nesse
espao de abertura, de incertezas que me encontro como pesquisadora:
trabalho com a idia de pluralidade, diversidade e solidariedade; com a idia de
uma sociedade aberta que se configura a cada momento por meio de jogos de
foras diferentes.
Como esta apresentao evidencia, estudar, para mim, no obedece
mais a uma experincia acadmica de titulao; antes, tem me permitido
elaborar as minhas experincias, incorporando os saltos no meu andar como
sugere W. Benjamim. Hoje consigo ver-me mais inserida no constante
processo de metamorfose e transformao, ou seja, no esprito do tempo no
Zeitgeist5. E, nele, as identidades so, como prope Habermas, ps-
convencionais.
5Trata-se de uma expresso criada pelo historiador suo Jacob Burckhardt para dar conta da mentalidade inscrita no
tempo.
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INTRODUO: O caminho que percorremos
Frente atual configurao da sociedade brasileira, em que a
desigualdade social vem se caracterizando como algo permanente, e dispondo
de olhares de diferentes pensadores, pretendemos com este trabalho pensarpossibilidades de aes sociais, aes da comunidade e aes de promoo
social estas sim de forma mais permanente.
Partimos do pressuposto de que hoje sofremos os efeitos colaterais
causados por um passado ancorado em um sistema social, econmico e
poltico descomprometidoe, de certo modo, irresponsvel6em relao s suas
conseqncias sociais e ambientais a longo prazo. Interessa-nos, neste
momento, pensar o que fazer a partir do que j est posto. Temos clareza de
que o primeiro passo para uma mudana passa pela conscientizao de nosso
papel e de nossa responsabilidade em diferentes mbitos da sociedade; passa
pelo nosso comprometimento7.
6 Por incrvel que hoje parea, uma chamin de fbrica soltando fumaa, na dcada de cinqenta, simbolizava
desenvolvimento, progresso, otimismo.
7Em seu artigo A questo social no contexto da globalizao: o caso latino-americano e o caribenho, Luiz EduardoW. Wanderley confirma a necessidade desse comprometimento, ao analisar uma srie de propostas mundiais parasolucionar ou ao menos minimizar os efeitos dessa questo social. Diz ele: A idia de um compromisso social ativo, a
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As idias de compromisso social ativo, esperana e utopia,
mudana da realidade social a partir da participao do individuo e do coletivo,
cidadania e solidariedade esto fortemente presentes neste trabalho.
Na seqncia, apontamos alguns passos que vm sendo trilhados em
diferentes caminhos e que, somados, podero ter seus resultados otimizados.
O primeiro caminho tem como pano de fundo as empresas o setor lucrativo,
percebemos alguns movimentos que dizem respeito a uma mudana nas
atitudes corporativas frente sua responsabilidade scio/ambiental. Neste,
percebemos, de um lado, algumas empresas j existentes, assumindo o
compromisso de arcar com os efeitos colaterais de suas intervenes nasociedade e no meio ambiente movimento conhecido como Responsabilidade
Social das Empresas ou, mais recentemente, Responsabilidade
Scio/Ambiental das Empresas. De outro lado, vemos um esforo no sentido
de criar oportunidades de agir na formao dos novos empreendedores; de
oferecer conhecimento e ferramentas para que esses jovens criem seus
negcios visando, desde o incio, tanto um retorno financeiro como um impacto
social positivo.
Em linhas gerais, o primeiro caminho possibilita minimizar e at frear
aproduoem relao a novos danos scio/ambientais. Embora este trabalho
no esteja focado nesse primeiro caminho, apresento a seguir algumas
consideraes sobre a responsabilidade e o comprometimento das
corporaes j existentes em relao ao social, e o esforo de transformar o
papel dos negciosda sociedade.
Desde o incio do sculo XX, registram-se manifestaes de
envolvimento de empresas e empresrios com aes sociais concretas. Foi na
Europa, nos anos 40, que se viu o primeiro apoio empresarial explcito e
significativo em um manifesto, subscrito por 120 industriais ingleses, que
apontava a necessidade de as corporaes atuarem com responsabilidade em
de ter esperana, baseada numa utopia, isto , a possibilidade da humanidade e dos povos latino-americanos serem
capazes de compreender, explicar e mudar a realidade social (...) que integre elementos objetivos e subjetivos,expressa na participao individual e coletiva de transformao social por meio de gestos concretos que cada um podeempreender, na luta cotidiana pela cidadania, na solidariedade com os injustiados e oprimidos.7WANDERLEY, LuizEduardo W. A questo social no contexto da globalizao: o caso latino-americano e o caribenho.
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relao aos seus funcionrios e contriburem de forma efetiva para o bem-estar
da sociedade.
No final dos anos 60, como represlia Guerra do Vietn, iniciou-se nosEUA um movimento de boicote aquisio de produtos e de aes na bolsa de
valores de empresas que, de alguma forma, estavam ligadas ao conflito blico
na sia. Essas manifestaes, aliadas s lutas pelos direitos civis norte-
americanos, trouxeram novos e determinantes fatores para essa questo: a
participao popular, a opinio pblica e a cobrana por parte da sociedade de
uma nova postura empresarial.
Nos anos 70, as empresas, com a inteno de divulgar as aes sociais
realizadas, desenvolveram balanos e relatrios dessas atividades. Tais
transformaes, no mbito dessas empresas, relacionam-se a movimentos que
envolvem a sociedade tais como a Marcha pela Paz, em abril de 1967, nos
EUA, com o slogan make love, not war; e o movimento de Maio de 1968, na
Frana, com o proibido proibir. Outro fator determinante para a entrada das
empresas no universo das aes de carter social efetivo foi a crise do Welfare
Statena metade da dcada de 70.
No Brasil, no final dos anos 80, algumas empresas comeam a atuar em
questes sociais e ambientais. Foi nesse perodo, tambm, que assistimos ao
nascimento de importantes fundaes, institutos e organizaes da sociedade
civil ligados ao meio empresarial, tendo como foco o comportamento
empresarial tico e responsvel.
Na dcada de 90, foram criados prmios, como o Prmio Eco
desenvolvido pela Cmara Americana de Comrcio, em So Paulo
(AmCham/SP), e algumas iniciativas marcantes, entre elas, a Fundao
Instituto de Desenvolvimento Econmico e Social, antigo Instituto de
Desenvolvimento Empresarial; o Pensamento Nacional das Bases
Empresariais (Pnbe); o Gife Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas; a
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Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana; a campanha da Ao da
Cidadania. Em 1998, foi criado o Instituto Ethos de Responsabilidade Social.8
Mais recentemente, presenciamos a entrada de novas disciplinas nasescolas de administrao Gesto Scio Ambiental9, e a criao de novos
modelos de negcio. A Fundao Artemsia, organizao internacional que
est no Brasil desde 2004, investe no formao de jovens empreendedores de
negcios e os apia na implementao de iniciativas que gerem recursos e
tenham um impacto social em comunidades de baixa renda. Ao investir no
aprimoramento desses novos empreendedores de negcio, socialmente
comprometidos, transforma o papel dos negcios na sociedade.
10
O segundo caminho trata as feridas sociais e ambientais j existentes,
bem como amplia oportunidades de incluso remete-nos a uma determinada
figura socialque colabora com a construo de uma sociedade emancipatria.
Assistimos tambm hoje, um movimento significativo de soma de foras,
saberes e recursos na direo de ampliar os impactos das aes sociais. Um
caminho que se vale da: a sinergia entre instituies financeiras de fomento,
instituies de apoio tecnolgico, de formao profissional, setores da
academia, organizaes da sociedade civil e outros atores do processo. A
chamada inter-fertilizao11das iniciativas da rea da economia social.
Essa figura social em alguns casos, como veremos nas entrevistas
reconhece-se como fellow da Ashoka, fundao internacional sem fins
lucrativos, fundada em 1981 pelo norte-americano Bill Drayton, que tem como
misso contribuir para criar um setor social empreendedor, eficiente eglobalmente integrado. A Ashoka identifica e investe em indivduos com idias
inovadoras, criatividade e determinao para provocar mudanas sociais
positivas e de alto impacto social. Os fellowsda Ashoka atuam em diferentes
8Material desenvolvido a partir do Captulo 2 "Responsabilidade social das empresas e balano social no Brasil".
TORRES, Ciro. Um pouco da histria do Balano Social, dissertao de mestrado disponvel em:http://www.balancosocial.org.br/media/ART_2002_RSE_Vertical.pdf - Acesso em: 19 agosto 2007.
9Disciplina oferecida pela Profa. Lige Mariel Petroni MBA - FIA10Fundao Artemsia, www.artemisiafoundation.org.11
Fonte: DOWBOR, Ladislau Redes de apoio ao empreendedorismo e tecnologias sociais 23 de Novembro de2004
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reas: meio ambiente, educao, sade, direitos humanos, desenvolvimento
econmico e participao cidad. A Ashoka selecionou mais de 1.700
empreendedores sociais em todo o mundo e est presente em 62 pases. No
Brasil, desde 1986, j selecionou e apoiou mais de 264 empreendedores
sociais.
Decidimos, assim, entrevistar algumas dessas figuras sociaisda Ashoka
e conhecer suas vidas, suas travessias, suas experincias. Buscamos
compreender essas pessoas e verificar em que medida esto colaborando com
o desenvolvimento de prticas sociais de forma mais permanente.
Passamos agora a discutir alguns pontos do mtodo (caminho)
autobiogrfico ou de narrativas de histrias de vida. Muito embora, hoje, o
chamado mtodo autobiogrfico tenha se tornado bastante disseminado e a
bibliografia em torno dele seja imensa, no faremos uma discusso sistemtica
dessa bibliografia; antes, partiremos de Michael Erben, pois sua proposta,
definitivamente, casa-se com os nossos interesses. 12 Este autor vale-se de
uma teoria da interpretao a Hermenutica ao propor que a narrativa da
histria de vida seja lida como um texto a ser interpretado. Sua proposta
marcada pela articulao entre a experincia pessoal e a experincia social
e/ou cultural.
A proposta de Erben que no haja separao entre a estrutura social e
a subjetividade uma vez que a dialtica entre o social e o individual que
interessa. No por acaso, a vida pesquisada apresenta-se como uma rede de
significados (comportamentos, convices, crenas) na qual, no raro, estinserido tambm o pesquisador que a est interpretando.
O estudo de uma vida o estudo de uma viagem no tempo, com
acontecimentos e encontros em grande parte imprevisveis. Como ficar claro
no decorrer do trabalho, para os nossos entrevistados essa abertura para o
imprevisvel, que o mtodo prope, pertinente.
12ERBEN. Michael. Biografia e autobiografia. Il significato del mtodo autobiografico. In.: Il mtodo autobiogrfico.
Semestre sulla condizione adulta e processi formativi . Milano, Edizione Angelo Guerini e Associati, 1996.
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Aqui, vamos nos apropriar da articulao entre o pessoal e o cultural de
uma maneira toda especial. Esta apropriao s agora pde ser pensada e
tecida, pois quando comeamos a fazer as entrevistas abertas, colhendo as
narrativas dos nossos sujeitos da pesquisa, tnhamos alguma idia, claro, do
que buscvamos; e, todavia, como comum na pesquisa qualitativa, nos
surpreendemos a cada passo com o que escutvamos. Nossos entrevistados
fugiam regra: escapavam daquilo que imaginvamos encontrar; no se
configuravam de maneira tradicional, se levarmos em conta os agentes do
social, quero dizer, os indivduos que interferem no social buscando
transform-lo. Foi esse espanto que nos levou a uma apropriao particular do
mtodo autobiogrfico.
Ao partir do crculo hermenutico13,Erben prope a articulao entre o
pessoal e o cultural. Entretanto, nossas narrativas apontavam insistentemente
que essa articulao aparecia claramente no momento mesmo em que eclodia;
quero dizer, as narrativas nos chamavam para o momento originrio dessa
articulao. Momento originrio que fazia emergir, no mesmo movimento, um
determinado tipo de figura social e um determinado tipo de proposta social.
Dirigamos nossa escuta para esse momento. As narrativas insistiam nesse
momento, momento de espanto para os prprios entrevistados, momento em
que depositamos nossa ateno, escuta, emoo e reflexo.
Para no trairmos a escuta que fazamos de nossos entrevistados,
tivemos de aceitar, assim, um outro desafio: conciliar as contribuies tericas
de Jrgen Habermas com um mtodo de pesquisa14 que nos permitisse ir a
campo. Essa aproximao, todavia, no foi simples, pois exigiu cuidados ediscriminao. No estamos supondo uma justaposio ingnua e a-crtica
entre esses diferentes campos tericos e, todavia, no pudemos prescindir de
um instrumento metodolgico para ir a campo15. Mantivemos, ento, ecoando,
13O chamado crculo hermenutico uma das contribuies fundamentais da Hermenutica; nele, as partes e o todo
se articulam, e no possvel conhecer a parte fora do contexto em que se situa.14MEAD, G.H. Mind, self & society. Chicago: University of Chicago Press, 1934.15
De acordo com a Linha de Pesquisa Identidade social como metamorfose humana, do Prof. Dr. Antonio da CostaCiampa ... podemos identificar, em linhas gerais, trs grandes perodos histricos: o metafsico (ou ontolgico), o
epistemolgico ( ou transcendental) e o semntico-hermenutico (ou da filosofia da linguagem). A pesquisa, que contacom a abordagem terica a partir de J. Habermas, e com o mtodo autobiogrfico com base na hermenutica est deacordo com esse terceiro perodo. Alis, como o prprio Ciampa nos permitiu compreender, a filosofia hermenuticae a analtica formam tradies menos concorrentes do que complementares.Volto a citar Ciampa longamente: ... Oterceiro perodo ( filosofia contempornea) surge da constatao bvia de que somos seres lingsticos, pois usamos a
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as proposies tericas de J. Habermas com um mtodo que valoriza
sobremaneira o mundo da vida. O mtodo autobiogrfico um mtodo antigo
que j esteve presente em outros momentos, indica-nos caminhos para
compreender as identidades ps-convencionais, tal como prope Habermas,
dos nossos sujeitos de pesquisa, bem como o sentido emancipatrio dessas
experincias sociais. Para a compreenso dessas identidades ps-
convencionais, fizemos uma escuta que valorizou as travessias, passagens,
transformaes, metamorfoses de nossos entrevistados e de suas experincias
sociais.
Trabalhamos aqui no com um conceito abstrato dos nossosentrevistados e/ ou das experincias sociais que foram e esto sendo
implementados; muito pelo contrrio, facilitamos que nossos entrevistados
saltassem de seu entorno, narrando o momento originrio de sua constituio.
Procuramos trazer tona como nossos entrevistados vem, sentem e
interpretam esse momento, tendo clareza de que eles no s fazem a escuta
do mundo da vida como so produto desse mesmo mundo da vida.
Buscamos compreender os sujeitos da pesquisa a partir de suas
motivaes, seus desejos, sua capacidade de escuta interessada do mundo
da vida. O que mais nos chamou a ateno nas narrativas colhidas foi o
imprevisvel configurando novas possibilidades. a isto que estamos
chamando de momento originrio16 e nele o sentido da experincia que, aos
poucos, se revelava para os prprios entrevistados o que ficar claro quando
entrarmos nas narrativas. interessante ressaltar que nossos entrevistados
ainda contam o nascer de suas experincias com emoo, com afeto pelas
linguagem como condio para produzir e transmitir conhecimentos. A linguagem surge como problema, de formaque passamos a ter um discurso sobre a linguagem ou um discurso sobre discursos.Neste perodo, pode-se falar emduas tradies: a analtica e a fenomenologia-hermenutica. a partir dessas duas tradies que Habermas vaidesenvolver a pragmtica da linguagem, uma terceira posio.Ainda que no seja simples distinguir essas tradies,a sugesto considerar no problema a diferena entre a questo do valor de verdade(verdadeiro-falso) e a questodo sentido( o que significa o que dito) de um enunciado. O sentido de um enunciado independente de seu valor deverdade, mas isso no ocorre no caso inverso: o valor de verdade de um enunciado no independente de seusentido. Num primeiro caso, atribuir um valor de verdade, trata-se de conhecer( descrever, explicar); no segundo,captar sentidos, trata-se de entender(compreender). Entender um enunciado uma condio necessria de todoconhecimento daquilo que ele diz. Assim, pode-se dizer que a passagem do perodo epistemolgico para o semnticocentraliza-se na antecedncia lgica da questo do significado em relao do conhecimento. A semntica ocupa olugar central que a teoria do conhecimento ocupava.
16Nome que inventamos para descrever o momento em que as figuras sociaisque estudamos escutam os apelos do
mundo da vida e se instituem como tal.
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pessoas que lhes indicaram os novos caminhos. Fomos obrigados a fazer a
escuta desse momento originrioporque, at hoje, j passados alguns anos, os
nossos entrevistados mostram-se afetados por acontecimentos que chegaram
no se sabe de onde e os repropuseram em uma nova perspectiva.
Ora, quando vamos em busca do sentido e do significado das
experincias, estamos em pleno crculo hermenutico cruzamento da
experincia pessoal e da experincia social , pois estamos apreendendo o
sentido e o significado no contexto. O mtodo em questo no busca a verdade
e, sim, o sentido e o significado das experincias.
Pretendemos captar o sentido que est presente na textura da vida dos
nossos entrevistados, levando em conta que o pesquisador tambm parte do
mesmo contexto social e cultural dos pesquisados, e a narrativa que da resulta
deve ser vista como apenas uma das possveis narrativas.
Este trabalho, despretensiosamente, oferece apenas um olhar, uma
fotografia, uma imagem, entre tantas outras possveis, dos sujeitos
pesquisados, na busca de espaos emancipatrios. O trabalho de pesquisa eeste em particular uma possibilidade, uma perspectiva, um olhar, uma
visada e, guardadas as devidas propores, poderamos metodologicamente
compar-lo com uma das pinturas de Monet: A Ponte. Sempre a mesma, a
ponte sofria, porm, diferentes visadas do pintor. E, se outros pintores
pudessem pint-la, a mesma ponte sofreria ainda novas visadas.
Isso nos coloca diante da idia de mutabilidade do olhar, do devir17,
diante da idia de que a nossa prpria narrativa, refiro-me a esta tese, uma
entre outras, uma perspectiva possvel. Isso, porm, no significa cair no
subjetivismo, pois estamos ancorados em uma des-construo, contamos com
uma perspectiva metodolgica, com rigor, porm no o rigor do pensamento
puro cartesiano de uma verdade nica, que produz o mundo. Antes, nossa
narrativa reinsere o pesquisador no contexto social e cultural, reinsere o
pesquisador no mundo da vida.
17No pretendo aqui excluir a idia de mudana do prprio sujeito observado, apenas no a estou considerando.
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Como apoio terico para este estudo nos servimos tambm do conceito
de emancipao, e apresentamos como o tema vem sendo tratado por trs
diferentes pensadores considerados modernos e ps-modernos: Jrgen
Habermas, Zygmunt Bauman e Boaventura de Souza Santos.
Esses autores, muito embora partam de filiaes tericas diferentes,
localizam a importncia de redefinir o sentido de emancipao. Para
Habermas, a redefinio de emancipao est ligada razo comunicativae
s identidades ps-convencionais. Para Bauman, esta redefinio est ligada
poltica com P maisculo, j que o privado invadiu o pblico. Para
Boaventura Santos, a emancipao h de ser concreta, ento precisorecuperar e fortalecer as racionalidades locais e o que, o autor denomina as
mil comunidades interpretativas. Esse captulo, cuja elaborao bastante
pontual central para o argumento da tese. A redefinio do sentido da
emancipao no atual momento nos permite, exatamente, pensar os
entrevistados em nova direo e apostar no ttulo que demos tese. Essa
discusso apresentada no captulo 1.
J. Habermas, mais do que os outros autores, inspirou-me, inquietou-me
e acabou por oferecer-me caminhos. Detive-me em alguns de seus escritos: O
Pensamento Ps-metafsico; A tica da discusso e a questo da verdade ,
um debate sobre a obra Verdade e Justificao, e alguns comentrios de
Claude Pich: A passagem do conceito epistmico ao conceito pragmatista de
verdade em Habermas.
Em linhas gerais, a teoria de Habermas descreve uma sociedadedividida em dois grandes mundos18: o mundo da vidae o mundo sistmico,
dois mundos com racionalidades diferentes. O mundo da vida, regido pela
razo comunicativa orientada pela lgica da solidariedade; e o mundo
sistmico regido pela razo instrumentale dividido em dois subsistemas: o
Governo, orientado pela lgica do poder, e o Mercado orientado pela lgica do
18HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos; traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988)
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lucro. A compreenso desses diferentes mundos com suas diferentes lgicas
permitiu-me analisar e pensar as questes sociais.
Um outro aspecto do pensamento de Habermas, importante para estapesquisa, a crtica identidade convencional partindo do sujeito cartesiano.
O filfoso, ao criticar a metafsica moderna, vale-se da chamada guinada
lingsticae, ento, discute o sujeito a partir da intersubjetividade. Para ele,
ao recuperar a teoria da subjetividade de George Mead, o sujeito fala e age
sempre em dilogo com outros sujeitos que se mostram. Habermas prope
uma sociedade autnoma marcada por identidades ps-convencionais.
Afirma, ainda, o que tambm me interessou sobremaneira que uma
racionalidade apoiada na relao entre indivduos, a racionalidade
comunicativa, poderia retirar a Filosofia da posio de prestar servios
Cincia e coloc-la no lugar de mediadora entre a Cincia e mundo da vida.
Prope, assim, ofilsofo poliglota, aquele capaz de fazer a escuta do mundo
da vida, de ouvir as reivindicaes da comunidade e lev-las aos outros
mundos. Essa discusso constitui o captulo 2.
No captulo 3, apresentamos a Ashoka, organizao internacional que
apia nossos entrevistados, e depois brincamos com a idia de como nome-
las.
Toda a bibliografia que consultamos insiste em nomear nossos
entrevistados de empreendedores sociais, militantes sociais, lideres sociais. O
nome muito importante, pois ele nos direciona para um campo de significao
que tambm afetivo, imaginativo, volitivo. Dar um nome criar um mundo.
Os nomes tradicionalmente atribudos aos nossos entrevistados,
definitivamente no nos satisfizeram e, ento, no presente captulo, buscamos
desconstruir as nomeaes dadas, e localizar um novo nome mais afim com a
novidade que suas prticas e suas personalidades encerram.
Para servir de apoio na interpretao das entrevistas, apresentamos
tambm o que alguns pensadores tm a dizer sobre a re-valorizao dos
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saberes locais, a valorizao do mundo da vida, e sobre a fora motivadora
do desejo.
No captulo 4, narramos o momento originrio, o nascimento dessasfiguras sociais, a partir mesmo da escuta das reivindicaes do mundo da
vida. Mostramos que nossos quatro entrevistados, mais do que receptores de
uma inspirao, mais do que portadores de uma idia genial, foram impactados
pela escuta que fizeram, e foi a partir do abalo desses impactos que emergiram
experincias sociais inovadoras. Fomos atrs do momento do espanto, daquilo
que deu origem a uma nova questo, refiro-me, experincia social que essas
figuras sociaisajudaram a gestar.
Mostramos que, embora elas j tivessem realizado muitas coisas, algo
fez com que dessem entrada nesse novo mundo que, ento, se tornou seu
mundo. Apontamos que essas figuras sociais nascem junto com o prprio
projeto social, junto com a prpria escuta que esto fazendo.
No captulo 5, descrevemos as travessias dessas figuras sociais na
realizao de seus projetos, e destacamos a pluralidade de suas mentes. Valedizer, tem mltiplos interesses e, ento, esto longe de uma vocao linear.
Recusam a profissionalizao e se mostram abertos para o inusitado.
Aprendem com o outro, com a vida, coma os impasses. Estar com o outro, criar
mundos com o outro, parece ser vocao. So grandes tradutores de mundos:
traduzem um mundo para o outro: o mundo da vida para a poltica, o mercado
e as ongs. So poliglotas sociais. So tambm grandes mediadores entre-
mundos. Convivem e se deixam tocar pelo sofrimento, pelo sombrio, pelotenebroso. Aprendem tambm com isso.
So capazes de escuta e, por isso aprendem. Essa a caracterstica
marcante da qual as outras derivam. So plurais e inseparveis: identidades
ps-convencionais, no melhor sentido habermasiano.
Finalmente, na Concluso, nos perguntamos se essas figuras sociais
incapturveis, alm de construrem brechas emancipatrias no esto tambmconstruibuindo para se pensar em uma mudana na cultura poltica
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propriamente dita. Uma cultura poltica em que est presente a fora da
sociedade civil, a iniciativa dos cidados na implementao de experincias
criativas e o florescimento de novos na verdade antigos, mas esquecidos
sentimentos sociais: a solidariedade, a compaixo, a felicidade pblica. Uma
sociedade composta por identidades ps-convencionais.
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CAPTULO 1 A emancipao : localizando brechas
Neste trabalho, verificamos que o espao em que as figuras sociais
atuam pode ser considerado uma fendano sistema excludente e produtor de
desigualdades que nos cerca. Essa fenda pode ser, tambm, um espao para
alternativas de transformao da sociedade. Nossa pesquisa, atenta ao dizer e
ao fazer dessas figuras sociais, deu particular ateno s brechas
emancipatrias a inscritas, e aos novos valores que da emergem nasociedade: solidariedade, autonomia, emancipao.
Com a inteno de conhecermos um pouco do que se pensa sobre
emancipao, apresentamos neste captulo alguns olhares sobre o tema.
Mostramos como o conceito de emancipaovem sendo tratado por diferentes
autores, considerados modernos e ps-modernos, divergentes entre si.
Apresentamos como Jrgen Habermas, filsofo alemo, redefine a questo da
emancipao; o que Zygmunt Bauman, socilogo polons, entende por
emancipao na Modernidade Lquida, e o que significa emancipao
concreta para o socilogo portugus Boaventura de Souza Santos.
Embora tenha iniciado seu trabalho com a Teoria Crtica, o projeto de
Habermas vai alm: pretende compreender o mundo contemporneo e
(re)pensar a Modernidade. A proximidade da teoria de Habermas com a Teoria
Crtica est no fato de buscar uma compreenso crtica da Modernidade, comose ela prpria prestasse contas criticamente para si mesma, sobre si mesma.
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Assim pensando, Habermas faz emergir, ainda uma vez, as condies
necessrias para a formao de indivduos e de uma sociedade autnoma,
livre e emancipada. Para Habermas, o processo de modernizao e a
racionalidade instrumental ameaam um tipo de interao social; e dessa
interao e de sua preservao depende a possibilidade de se construir, para
os indivduos, identidades livres e, ento, escolhas de projetos de vida.19
No livro Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos, publicado em
198820, Habermas defende a necessidade de se repensar o que se
compreende por Razo, e sua compreenso a partir da linguagem. Nesse
sentido, aponta uma nova racionalidade, apoiada na relao entre indivduos: aracionalidade comunicativa. Prope, assim, a Teoria da Ao Comunicativa,
que se preocupa com a liberdade individual, com a autonomia e com a
emancipao. Aponta, ento, caminhos e as condies necessrias para a
constituio de um indivduo autnomo e emancipado. Ao comunicativa,
para Habermas, a ao orientada para o entendimento e pressupe que,
embora os planos de ao sejam individuais, sua realizao depende do outro,
da cooperao e das influncias que gera no outro.
Vivemos em um mundo onde temos uma pluralidade de projetos de vida,
defensveis e legtimos, e existe um espao muito grande para que cada um
possa definir o seu. Porm, existem algumas condies necessrias para que
se possa escolher livremente o seu projeto, no qualquer coisa que vale,
algumas condies devem ser cumpridas.
Afirma o filsofo que a coordenao dos planos individuais deve sermediada por um entendimento, por um consenso sobre as normas que vo
governar a interao. Essas normas devem atender algumas pretenses de
validade: a) verdade dos contedos proposicionais; b) inteligibilidade das
emisses ou manifestaes; c) veracidade da inteno dos sujeitos
implicados; d) justeza ou retido das normas subjacentes situao de fala.
19Viso panormica da obra de Habermas.Texto elaborado por RenataBrunetti, na poca mestranda em PsicologiaSocial do Ncleo de Identidade da PUC-SP, a partir de uma conversa com o Prof. Luis Schwarcz, julho de 2002.
20HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988), p. 217.
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Existem diversos universos de normas: normas de conduta, normas
gramaticais, normas que regulam o uso correto de uma expresso. Muitas
vezes, elas no esto explcitas em lugar algum: dependem do contexto. Em
toda avaliao, crtica ou julgamento h uma norma pressuposta. Ao agirmos
comunicativamente, estamos pressupondo que algumas normas esto sendo
satisfeitas, por exemplo, a sinceridade dos participantes, a legitimidade das
normas que governam a interao, a verdade das premissas. De fato e
dependendo do tipo de interao, o peso recai numa ou noutra dessas
pretenses. Para Habermas, o que importa que essas normas existam, para
que se possa constantemente fazer crticas sobre a violao delas e de suas
causas. Ao concretizar esses pressupostos, em qualquer contexto, por menossignificativo que seja, a utopia da comunicao est sendo concretizada -
seriam fragmentos de emancipao21.
Para este autor, so os indivduos no agir comunicativo que podem
promover mudanas na sociedade, a partir do mundo da vida.So mudanas
que se formalizam no Direito, e que, ao serem questionadas pelas identidades
no convencionais, so re-propostas em uma nova norma. O filsofo prope
uma sociedade autnoma marcada por identidades ps-convencionais, sendo
essas identidades no convencionais o motor da dinmica social.
Habermas, europeu que viveu o Estado do ps-guerra, mostra-se muito
ctico em relao capacidade do Estado de garantir a emancipao das
pessoas e a liberdade individual. Prope uma sociedade autnoma que se
constri intersubjetivamente e marcada por identidades ps-convencionais.
Estas se baseiam numa racionalidade de procedimento, no se apiam em umcontedo determinado; pressupe autonomia e levam a um processo tico
abrangente, uma vez que o indivduo ter de fazer escolhas. Afirma o autor:
A necessidade de evitar convenes petrificadas,impostas pela sociedade, sobrecarrega o indivduo com
21HABERMAS, Jrgen. Para a reconstruo do Materialismo Histrico; traduo: Carlos Nelson Coutinho. So Paulo,
SP: Brasiliense, 1983 (ETAS Libri, Milo, 1979 Editora Suhrkamp, Frankfort/Meno, 1976)
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decises morais prprias e com um esboo individual davida resultante de um auto-entendimento tico.22
A idia da autoconscincia e da auto-referncia so questionadas, pois
s podemos nos constituir contando com a experincia e o reconhecimento dooutro. Segundo Habermas:
O Selbst23da auto-relao prtica no pode certificar-sede si mesmo numa reflexo direta: ele precisa partir daperspectiva de outros; e isso vale no somente do Selbstcomo ser autnomo, mas tambm como ser individuado.Neste caso, eu no dependo do assentimento deles ameus juzos e aes, mas do reconhecimento, por partedeles, de minha pretenso de originalidade e de
insubstitubilidade.
24
Para Habermas, evitar convenes petrificadas implica em
sobrecarregar o Eu, que contraria o Me, ou seja, primeiro oEu se forma a partir
do Me e depois se individualiza criticando-o e contrapondo-se a ele. Na
identidade ps-convencional temos o Eu em oposio ao Me, e na identidade
convencional temos o Eu de alguma maneira subsumido ao Me. Na identidade
convencional o Me, que esse Eu generalizado, tem a primazia, j numa
identidade ps-convencional o Eu tem a primazia. Ainda Habermas:
Deste modo, a relao entre Eu e Me continua sendo achave para se analisar tambm a identidade-eu, ps-convencional e socialmente suposta. Neste nvel, porm,inverte-se a relao de ambos.25
Quando nos vemos em uma sociedade constituda por identidades ps-
convencionais, de acordo com Habermas, precisamos estar sempre propondo
novas normas a serem generalizadas. Uma posio decidida em consenso, em
uma interao comunicativa, pode se transformar em norma por incorporar
bons argumentos. Entretanto, se for transformada em norma jurdica, passa a
ter uma fora de coero maior. Essa uma das razes do Direito ocupar um
lugar to importante na teoria de Habermas. O Direito, para o filsofo, tem a
funo de mediar os mundos: o mundo da vida, governado por aes
22HABERMAS, Jrgen. op. cit. p. 217.
23
Selbts a mesma coisa que self: algo em torno do si mesmo da conscincia, o todo da conscincia.24
HABERMAS, J. op. cit. p. 220.Contamos aqui com a boa vontade do leitor nesse momento, j que a discusso queesboamos aqui em torno das identidades ps-convencionais (Eu e Me) s ganhar consistncia no captulo seguinte.25HABERMAS, J. op. cit., p. 221.
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comunicativas, e o mundo sistmico, da burocracia estatal e da economia de
mercado governado por aes estratgicas e instrumentais e regulado pelas
normas.
O filsofo alemo interpreta a Modernidade como um processo macio
de institucionalizao da razo instrumental e estratgica; e, tambm, como o
momento em que a Filosofia perde a posio hegemnica em relao s
cincias, e passa a servir Cincia. Partindo dessa crtica, Habermas prope
alterar o lugar e o papel da Filosofia: a racionalidade comunicativa poderia
retir-la da posio de prestao de servios Cincia para dar-lhe o lugar de
mediadora entre a Cincia e o mundo da vida. Tanto quanto a discusso daquesto do desenvolvimento do sujeito, tambm aquela a respeito do
desenvolvimento da sociedade aparece como relevante e indispensvel para o
estudo da identidade como processo de metamorfose26.
Z. Bauman, socilogo polons radicado na Inglaterra desde 1971,
considerado um dos lderes da chamada Sociologia Humanstica. Em seu livro
Modernidade Lquida27, rev os cinco conceitos que compem as narrativas da
condio humana: a emancipao, a individualidade, o tempo/espao, otrabalho e a comunidade. Esses conceitos sempre estaro presentes no que o
autor entende por condio humana, embora possam se transformar, sofrer
redefinies, deslocamentos sensveis. Meu interesse incide sobre a
compreenso do conceito de emancipao na Modernidade Lquida que difere
da emancipao na Modernidade Slida.28
A nfase do autor recai sobre o conceito de espao e tempo; na
Modernidade Lquida, tempo/espao dissociaram-se da prtica da vida etambm entre si; o tempo tornou-se instantneo. O projeto do Panptico
26 Sob a perspectiva do paradigma da Filosofia da Linguagem, essas duas questes, ao serem tratadas
lingisticamente, tornam-se fundamentalmente a questo do sentido do desenvolvimento do indivduo e dasociedade, que pode ser discutida (aqui de forma genrica e talvez esquemtica) como a questo do sentido deemancipao humana, que aparece nas idias de vida boa ou de uma vida que merece ser vivida (comodiscusses filosficas sobre tica e moral) e nas idias de polticas de identidade ou identidades polticas (comodiscusses polticas sobre formao de identidades e integrao na sociedade de indivduos e coletividades). Daesta proposta de uma linha de pesquisa que pode ser indicada pelo sintagma identidade-metamorfose-emancipao. CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade como metamorfose humana - Anotaes sobrefundamentos filosficos da Linha de Pesquisa, para sistematizar a abordagem terica adotada (02.03.05).
27BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Traduo de Plnio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.28Bauman considera Modernidade Lquida a modernidade atual, e a modernidade slida a que nos precede.
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visibilidade do todo de Jeremy Bentham29, apropriado por Michel Foucault,
serve perfeitamente como metfora moderna. Afirma Bauman decifrando esta
metfora:
O domnio do tempo era o segredo do poder dosadministradores e imobilizar os subordinados noespao, negando-lhes o direito ao movimento erotinizando o ritmo a que deviam obedecer era a principalestratgia em seu exerccio do poder.30
Na Modernidade Lquida, o poder se tornou extraterritorial, no mais
limitado, nem desacelerado pela resistncia do espao. No importa quem d a
ordem, diferentemente da tcnica de poder do Panptico, que pressupunha
que os encarregados estivessem na torre de controle. Nas relaes de poder
da era ps-panptica, as pessoas que operam o poder podem ser inacessveis,
no precisam estar presentes. Essa poca torna-se, assim, o fim de uma era
de engajamento mtuo. Tal dissociao de tempo/espao, na era ps-
panptica, implica uma ruptura dos laos, pois cultivar vnculos, laos de
compromisso, impede o salto para novas oportunidades que surgem em
diferentes lugares.
A desintegrao da rede social, como diz Bauman, tanto condio
quanto resultado da nova tcnica de poder. O mundo doravante deve estar livre
de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas para que o poder tenha liberdade de
fluir. A era ps-panptica no suporta rede densa de laos sociais,
principalmente aquela que esteja enraizada territorialmente.
Outro dos cinco conceitos que compem as narrativas ortodoxas da
condio humana a emancipao. Este conceito ser tambm re-significado
na Modernidade Lquida.A Modernidade, diferentemente das demais formas histricas de
convvio humano, caracteriza-se, de um modo geral, pelo uso da razo na
busca incessante da modernizao, do aperfeioamento. A marca da
Modernidade a apresentao dos membros da sociedade como indivduos,
em uma incessante individualizao: uma produo tecnolgica de
individualizao com produtos e artigos individualizados. Individualizar-se
29Filsofo, economista e legislador ingls que viveu no sculo XIX.30
BAUMAN, Zygmunt. op. cit. p. 17.
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significava emancipar o indivduo das corporaes, da famlia, do todo. Para
Bauman, emancipao, na Modernidade, definida pela busca de autonomia
atravs da razo; tanto pelo indivduo como pela sociedade. Em suas palavras,
A modernidade pesadaera, afinal, a poca de moldar arealidade como na arquitetura ou na jardinagem; arealidade adequada aos veredictos da razo deveria serconstruda sob estrito controle de qualidade e conformergidas regras de procedimento, e mais que tudoprojetadaantes a construo.31
Os ltimos vinte anos, ou seja, a Modernidade Lquida, no menos
moderna que a fase anterior, porm tem uma forma diferente de ao. A
Modernidade Lquida traz um novo significado para individualizao.
Individualizar-se passa a significar
transformar a identidade humana de um dado em umatarefa e encarregar os atores da responsabilidade derealizar essa tarefa e das conseqncias (assim comodos efeitos colaterais) de sua realizao.32
Por exemplo, no basta mais ter nascido em determinada classe social,
necessrio viver como membro dessa classe33.
Na Modernidade Lquida, a emancipao caracterizada pela fluidez,
incansvel em se re-propor. Nela, uma das chaves do projeto de emancipao
seria, ento, o indivduo passar de indivduo dejure (uma promessa) para o
indivduo de facto. Na Modernidade Lquida a identidade no est posta, ela
se faz, se constri. Bauman afirma que nela h um crescente abismo para que
um indivduo de jurese torne um indivduo de facto. Nas palavras do autor:
Esse abismo no pode ser transposto apenas poresforos individuais.., (...) Transpor o abismo a tarefa
da Poltica com P maisculo.
34
Bauman supe que esse abismo tenha crescido em funo mesmo do
esvaziamento do espao pblico, especialmente da gora: lugar em que os
31BAUMAN, Z., op. cit. p. 58. Seu termo pesada significa slida.
32BAUMAN, Z., op. cit. p. 40.33A idia de dado e dar-se, de uma identidade que pode se transformar, uma identidade que aprendeu a semetamorfosear. CIAMPA, A.C. A estria do Severino e a histria da Severina, um ensaio de Psicologia Social. 6a.reimpr. So Paulo, SP: Brasiliense, 1998 (1a. ed.1987 - 2005).
34BAUMAN, Z., op. cit., pp. 49 e 49.
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problemas privados so traduzidos em questes pblicas e solues pblicas
so acordadas e negociadas.
A sociedade que entra no sculo XXI produz um eterno desconforto pela
insacivel sede de destruio criativa ou criatividade destrutiva, ou seja,
desmantela, destri, reduz tudo em nome de um novo e aperfeioado projeto,
em nome da produtividade e da competitividade. E, todavia, h diferenas
entre o que Bauman nomeia de Modernidade Lquida e a Modernidade
enquanto tal. Segundo ele,
A primeira o colapso gradual e o rpido declnio daantiga iluso moderna: da crena de que h um fim do
caminho em que andamos, um telos alcanvel damudana histrica, um Estado de perfeio a ser atingidoamanh, no prximo ano ou no prximo milnio, algumtipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitosem todos ou alguns de seus aspectos postulados...35
Na Modernidade propriamente dita, o indivduo queria ser racional:
penso logo sou; e ele tinha um telos, sabia aonde queria chegar. J na
Modernidade Lquida, no h um telos a ser alcanado, o indivduo est
sempre se re-propondo, uma tarefae no sabe aonde quer chegar. A idia
de uma sociedade justa, ideal por excelncia da primeira fase da Modernidade,fracassou.
Na Modernidade Slida, o grande medo era que o pblico invadisse o
privado, o medo do totalitarismo; em relao s demandas coletivas polticas
para que a emancipao fosse possvel montava-se uma agenda coletiva de
interesses. Na Modernidade Lquida, por sua vez, houve uma inverso, pois,
nos ltimos 20 anos, o espao privado passou a invadir o pblico uma outra
chave para compreender o conceito de emancipao. Para que esta seja
possvel na Modernidade Lquida, preservando as caractersticas centrais da
condio humana, necessrio que o privado crie uma agenda pblica,
coletiva e, portanto, poltica.
Outra diferena entre a Modernidade Lquida e a primeira fase da
Modernidade refere-se a um deslocamento de nfase no desenvolvimento
poltico e tico. Embora a idia do aperfeioamento pela ao legislativa no
35BAUMAN, Z., op. cit., p. 37.
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tenha sido abandonada, ela deslocou-se para a auto-afirmao do indivduo:
uma realocao do discurso tico/poltico do quadro da sociedade justa para
o dos direitos humanos...36Um discurso voltado ao direito de o indivduo ser
diferente de outro e poder escolher seus prprios modelos de vida e de
felicidade. No h mais um lder para dizer o que fazer e se responsabilizar
pelas conseqncias de seus atos:
no mundo dos indivduos h apenas outros indivduoscujo exemplo seguir na conduo das tarefas da prpriavida, assumindo toda a responsabilidade pelasconseqncias de ter investido a confiana nesse e noem qualquer outro exemplo.37
Buscar a emancipao humana na Modernidade Lquida seria, ento,ligar as margens desse abismo que se abriu entre a realidade do indivduo de
juree a perspectiva do indivduo de facto, ou seja, buscar que o indivduo se
reaproprie das ferramentas perdidas da cidadania, melhor dizendo, recupere o
cidadoque o habita. Nas palavras do autor,
Hoje a tarefa defender o evanescente domnio, ou,antes, reequipar e repovoar o espao pblico que seesvazia rapidamente devido desero de ambos oslados: a retirada do cidado interessado e a fuga dopoder real para um territrio que, por tudo que asinstituies democrticas existentes so capazes derealizar, s pode ser descrito como um espaocsmico.38
Para Bauman, e para a teoria crtica revisitada que este autor, como
discpulo dos frankfurtianos, representa , foi o sentido atribudo
emancipao que ficou obsoleto, no a tarefa da emancipao humana em si.
Esta passa pela articulao do indivduo de jure se transformando em
indivduo de facto, e pelo espao privado, que ganhou prepondernciarearticulando-se com o espao pblico. A grande dificuldade est em traduzir
os problemas privados em questes pblicas.
Boaventura de Souza Santos, nascido em 1940, doutor em Sociologia
do Direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de
36
BAUMAN, Z., op. cit., p. 38.37BAUMAN, Z., op. cit., p. 39.38BAUMAN, Z., op. cit., p. 49.
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Coimbra, no livro Pelas mos de Alice39faz uma crtica Modernidade por um
vis especfico. Parte da idia de que a Modernidade conta com dois pilares: o
pilar da regulao e o pilar da emancipao. No pilar da regulao, esto o
Mercado, o Estado e a Comunidade; no pilar da emancipao, trs tipos de
racionalidade: a racionalidade ligada arte, a racionalidade moral e prtica e a
racionalidade cognitiva.
Para este pensador, esses dois pilares esto em crise, pois no da
regulao o Mercado sobrepujou o Estado e a Comunidade, e no pilar da
emancipao, a racionalidade cognitiva sobrepujou as demais racionalidades.
Alm disso, o prprio pilar da regulao sobreps-se ao da emancipao:
H, pois, que verificar uma situao, e esta basicamente que o pilar da emancipao se transformouno duplo do pilar da regulao. As armas do pensamentocrtico do paradigma da modernidade, que erampoderosas e mesmo revolucionrias, transfomaram-secom o tempo em pistolas de sabo que, como a deWoody Allen, se derretem chuva quando com elaspretendemos forar nossa fuga da priso.40
Em relao regulao, a crise parece se dar pelo fato de o Estado ter
perdido a vontade e a capacidade poltica de regularizar as foras de produo
e as garantias sociais em resposta ao processo de transnacionalizao. A
emancipao entrou em crise particularmente pela crise da revoluo e do
socialismo como paradigma de transformao social radical. A gravidade est
no fato de que as duas crises, regulao social e emancipao, ocorrem
simultaneamente.
Boaventura de S. Santos sugere que, em funo dessa crise, houve umagravamento das injustias sociais e devastao ecolgica, uma perda da
autonomia nacional, um aumento da concentrao de capital. Afirma ele:
A acumulao das irracionalidades no perigo iminente decatstrofe ecolgica, na misria e na fome a que sujeitauma grande parte da populao mundial quando hrecursos disponveis para lhes proporcionar uma vidadecente e uma minoria da populao vive numa
39SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelas mos de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. 11. ed. , SoPaulo: Cortez, 2006.
40SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit. , p. 102.
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sociedade de desperdcio e morre de abundncia, nadestruio pela guerra de populaes e comunidades emnome de princpios tnicos e religiosos que amodernidade parecia ter descartado para sempre, nadroga e na medicalizao da vida como soluo para umcotidiano alienado, asfixiante e sem soluo todasestas e muitas outras irracionalidades se acumulam aomesmo tempo em que se aprofunda a crise das soluesque a modernidade props, entre elas o socialismo e oseu mximo de conscincia terica possvel, o marxismo.As racionalidades parecem racionalizadas pela merarepetio.41
Comenta tambm que a explicao de fenmenos unicamente pela
estrutura econmica reducionismo econmico retira dos fenmenos
polticos e culturais a vida e a dinmica prprias. Em suas palavras ,
...no permite pens-los, autonomamente, nos seusprprios termos, e segundo categorias que identifiquem asua especificidade e a especificidade da sua interaocom processos sociais mais globais.42
O autor prope uma nova teoria da democracia e da emancipao social
ao defender que justamente o excesso de regulao e dficit de emancipao
presentes na Modernidade comprometeram de diversas maneiras uma
articulao saudvel entre subjetividade e cidadania, deixando as sociedades
capitalistas contemporneas sem alternativas emancipatrias.43 Diante da
perda de confiana epistemolgica e societal, Boaventura aponta medidas
importantes e urgentes:
Por um lado, ir s razes da crise da regulao social e,por outro, inventar ou reinventar no s o pensamentoemancipatrio como tambm a vontade deemancipao.44
O autor prope o reflorescimento das racionalidades locais, das prticas
locais contra a episteme dominante, que a racionalidade legislativa global
moderna. Apresenta a idia de mil comunidades interpretativas que
colaborem com a construo de novas formas de democracia e produo
41SANTOS, B.de S. op. cit., pp. 42 e 43.42
SANTOS, B. de S. op. cit. , p. 38.43SANTOS, B., de S. op. cit., pp. 11 e 12.44SANTOS, B. de S. op. cit., p. 284.
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econmica. Um arquiplago de racionalidades locais adequadas s
necessidades locais:
possvel reinventar as mini-racionalidades da vida demodo que elas deixem de ser partes de um todo epassem a ser totalidades presentes em mltiplas partes. esta a lgica de uma possvel ps-modernidade deresistncia.45
Dessa forma, podemos dizer que emancipao, para Boaventura de S.
Santos, significa fortalecer as comunidades locais interpretativas. Como
denomina o autor, a emancipao concreta.
A partir da inteno que temos em localizar espaos, brechas em que
aes emancipatrias sejam possveis, verificamos durante este trabalho se
as figuras sociais entrevistadas valeram-se da razo comunicativa de
Habermas; da rearticulao do espao pblico baseada na articulao entre o
indivduo de jure e indivduo de facto proposta por Bauman, e do
fortalecimento das comunidades locais interpretativas de Boaventura.
45SANTOS, B. de S. op. cit., p. 102.
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CAPTULO 2 A re-descoberta do mundo da v ida como fonte de
sentido
Apresentamos, neste captulo, alguns aspectos do pensamento de
Jrgen Habermas de que nos servimos com base na hiptese de que a figurasocial aquela que trata as feridas sociais e ambientais escuta,valoriza e
atende as reivindicaes do mundo da vida e, eventualmente, prope
polticas que garantam o atendimento dessas reivindicaes. Tal procedimento
terico se d porque se vislumbra, nessa figura social, uma reviravolta de
perspectivas. No paradigma moderno, a primazia era dada teoria e, com ela,
idia de modelo e fabricao.
Por ter apreendido empiricamente essa reviravolta de perspectiva, voltei-me para a leitura do filsofo Jrgen Habermas e, em sua filosofia, a mudana
de paradigma, a valorizao do dilogo e a redescoberta do mundo da vida. A
seguir, os passos deste captulo:
1. Apresentando Habermas a mudana de paradigma;
2. A transio da reflexo monolgica para a dialgica;
3. A crtica do paradigma epistemolgico e o novo lugar da Filosofia;4. A verdade e o mundo da vida;
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5. O filsofo poliglota.
1. Apresentando Habermas a mudana de paradigma
Habermas defende a famosa mudana de paradigma, necessria para
a realizao do ideal de emancipao caracterstico da Modernidade e do
Iluminismo, mudana que implica repensar a razo, o ser humano e a
sociedade. Ao sustentar suas proposies no trip da Modernidade liberdade,
igualdade e solidariedade , e diferentemente de outros estudiosos, para
compreender e pensar a Modernidade ele vai alm da crtica e ensaia algumas
proposies positivas, j que discute as condies necessrias para aformao de indivduos e de uma sociedade autnoma, livre e emancipada.
Em seu livro Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos,o filsofo
sensvel discusso em torno da razo, da indivizibilidade do individual e da
relao entre Filosofia e Literatura. Segundo Habermas, o pensamento
metafsico vem dominando de Plato a Hegel, passando por Descartes e Kant.
A totalidade do pensamento metafsico obedece a Parmnides: o ser e o
no ser no . Nele, o verdadeiro conhecimento tem a ver com aquilo que pura e simplesmente geral, imutvel e necessrio.46
O modo de filosofar do sculo XX sofreu, porm, grandes influncias do
pensamento ps-metafsico, da guinada lingstica, da crtica da razo e da
superao do logocentrismo. O pensar cientificista imposto pela Metafsica
atribui um papel Filosofia na produo de conhecimento como Epistemologia:
conhecimento cientfico que visa explicar os seus condicionamentos,
sistematizar as suas relaes, esclarecer os seus vnculos, e avaliar os seus
resultados e aplicaes servindo de fundamento para a Cincia; esta
subordinou a Filosofia a seus interesses.
Habermas sugere que, no humanismo moderno, o elemento primeiro, o
Ser, foi deslocado para o homem. Demonstra que, at agora, nenhum
rompimento com a Metafsica clssica ocorreu: houve apenas um
deslocamento do ponto fixo da Metafsica (do ser) para o que o autor chama de
46HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico: estudos filosficos. Traduo: Flvio Beno Siebeneichcheler. Riode Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro Ltda 1990. (2. ed. Frankfurt am Main, Ed. Suhrkamp, 1988). p. 22.
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mentalismo/subjetividade (o sujeito). Na proposio habermasiana, a
mudana de paradigma se d com a guinada lingstica, pois esta substitui
a Filosofia da Conscincia e/ou a Filosofia do Sujeito ao interpretar e
compreender o mundo pela linguagem. Nas palavras de Habermas:
A passagem do paradigma da filosofia da conscinciapara o paradigma da filosofia da linguagem constitui umcorte de igual profundidade. A partir deste momento, ossinais lingsticos, que serviam apenas como instrumentoe equipamento das representaes, adquirem, comoreino intermedirio dos significados lingsticos, umadignidade prpria. As relaes entre linguagem e mundo,entre proposio e estados de coisas, substituem asrelaes sujeito-objeto. O trabalho de constituio do
mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividadetranscendental para se transformar em estruturasgramaticais.
Inicia-se, tambm, um movimento de crtica radical razo, que protesta
contra a transformao do entendimento em razo instrumental.
Para Habermas, a Filosofia da Conscincia, a teoria da subjetividade, a
teoria da representao e o Humanismo podem ser usados como sinnimos.
Como fazer, ento, uma proposta de mundo que realmente rompa com essa
tradio, ou seja, rompa com a Metafsica? Como conhecer algo efetivamente,ao invs de pensar em como usar o conhecimento?
Segundo Habermas, toda a tradio da Metafsica, inclusive a Filosofia
da Conscincia, e toda a Modernidade sempre equacionam tudo o que h em
torno da primazia do geral sobre o individual. A Metafsica sempre nos leva a
pensar no que existe de comum, de geral e no no que existe de individual.
Enquanto olharmos sob a tica da primazia do geral, sempre estaremos
desvalorizando o elemento individual. As determinaes qualitativas, ou seja,
as singularidades so sempre resultantes das essncias e formas gerais, o que
impossibilita caracterizar o indivduo como nico. Desse modo, o mximo que
pode acontecer o individual ser visto como no idntico. Pelo pensamento
metafsico, s conseguimos equacionar o singular sob a primazia do geral.
O autor critica a Filosofia da Conscincia de Descartes e Kant ao
mostrar que o conceito de individualidade, ao ser ligado a um sujeito
transcendental, um sujeito auto-referente e auto-consciente, no permitiu que
se pensasse em um indivduo na sua singularidade. Habermas pretende,
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ento, sair da Filosofia da Conscincia, ou seja, questionar a idia do geral
subsumindo o individual, da teoria subsumindo a ao. Para tanto, faz a crtica
da Metafsica e da Filosofia da Conscincia; crtica de um sujeito
transcendental que se constri na auto-referncia e na auto-conscincia. O
autor encontra na guinada lingstica uma nova forma de unir individualidade
em unidade, pois o pensamento metafsico no nos garante essa
individualidade; ele nos leva de volta ao geral. Afirma ele:
...aut oc on sc inc ia o rig inria no um fenmenoqu e h ab ita n o su jeito , ou qu e es t di sp os io, m asque gerado com un icat ivamen te.47
J que critica o naturalismo a dicotomia entre esprito e corpo , a
sada em relao Metafsica seria o paradigma da linguagem; essa a
soluo encontrada pelo autor para enfrentar a herana metafsica. Continua:
... Existe uma assimetr ia entre a fora explicativa dafilosofia da conscincia, de um lado, que toma comoponto de partida a auto-referncia de um sujeito querepresenta e manipula objetos, e uma teoria dalinguagem, de outro lado, que toma como ponto departida as condies de compreenso de expressesgramaticais.48
Para enfrentar a Metafsica, necessrio questionar a dicotomia
sujeito/objeto a Filosofia da Conscincia. pela teoria da linguagem e da
interao que Habermas enfrenta esse questionamento.
Para Habermas que recupera a teoria da subjetividade de George
Mead e assume a guinada lingstica , a individualidade uma auto-
compreenso do sujeito que fala e age em dilogo com outros sujeitos que se
mostram, de forma inconfundvel, como pessoa. O autor aponta que esse
sujeito que se auto-compreende no um sujeito cognoscente e, sim, um
sujeito imputvel,ou seja, responsvel por todos os seus atos frente ao outro.
Nas palavras do autor:
... esta autocompreenso fundamenta a identidade doEu. Nela, a autoconscincia se articula, no como a auto-relao de um sujeito cognoscente, mas como aautocertificao ticade uma pessoa imputvel.49
47HABERMAS, J., op. cit., p. 211. (grifo meu).48
HABERMAS, J., op. cit., p. 32. (grifo meu).49HABERMAS, J., op. cit., p. 202.
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Cito uma vez mais Habermas para deixar claro como Mead rompe o
crculo da reflexo auto-objetivadora por meio da passagem para o paradigma
da interao mediada simbolicamente:
Enquanto a subjetividade for pensada como um espaointerior de representaes prprias a cada um, que seabre pelo fato de o sujeito representador de objetosvoltar-se, como num espelho, sobre sua atividade derepresentao, tudo o que subjetivo s acessvel naforma de objetos da auto-observao ou da instropeco inclusive o prprio sujeito, que entra nessacontemplao como um Me objetivado.50
Ao contrrio, Mead prope um Meque s existe em contextos interativos
e a partir de um outro. Aprofundando essa questo, apresenta a idia de um Eu
epistmico da teoria do conhecimento e a idia de um Euprtico da ao
moral. O Eu da Modernidade auto-referente e auto-consciente, ou seja,
transcendental e no emprico. O Eu epistmico de Mead produto de
interaes, vivencia a inter-subjetividade, no auto-referente. O autor
apresenta tambm um Meancorado na recordao; um Meque produz a auto-
referncia epistmica e um Meancorado na auto-relao prtica.
A guinada proposta por Mead est na nova subjetividade, ou seja,
numa inter-subjetividade definida por uma conscincia que no mais mediada
na auto-referncia e nem interior. Uma nova subjetividade, ou seja, uma
auto-conscincia e auto-referncia produto das relaes de interao. Em suas
palavras:
Ao contrrio, a autoconscincia forma-se atravs darelao simbolicamente mediada que se tem com umparceiro de interao, num caminho que vai de fora paradentro. Nesta medida, a autoco nsc incia po ssu i umncl eo in ters ub jetiv o; s ua p os io ex cnt ric atestem un ha a dep endnc ia con tnu a da su bjetiv idad eface lin gu agem , que o m eio atravs d o qu alalgum se r econh ece n o ou tro de m od o noobjet ivador.51
Mead trabalha com a idia de que a auto-conscincia se constri na
relao de um Eucom outro Eu. OMe a imagem de recordao do meu Eua
respeito de si mesmo que se d pelas reaes do outro. Ou seja, no existe a
50HABERMAS, J., op.cit., p. 206.51HABERMAS, J., op. cit., p. 212. (grifo meu).
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condio humana sem o outro, sem a parte que me reflete e que eu percebo no
outro.
Para Habermas, no est suficientemente clara a distino que Mead
faz dos dois Eus, o epistmico e o prtico. Habermas preocupa-se em distinguir
o conhecer do agir, ou seja, em aprofundar a dimenso motivacional da auto-
referncia para clarificar as diferenas.
NoEuepistmico, o Me a sede de uma auto-conscincia refletida, pois
o ncleo dessa conscincia inter-subjetivo. O Me, na auto-relao prtica,
uma instncia de auto-controle, o outro generalizado, aquilo que pauta o
comportamento de todos sem que ns possamos ver, so normas que
internalizamos e que nos retiram a possibilidade de agir na espontaneidade do
Eu. EsseMese d por meio dessa relao circular
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