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Reabilitação das instabilidades crónicas do tornozelo
1 – Introdução
O entorse do tornozelo é uma lesão
com uma elevada incidência e que, em
alguns casos de tratamento inadequado
ou insuficiente, leva ao aparecimento de
um quadro de queixas residuais que se
prolonga no tempo e limitam de forma
significativa o desempenho desportivo
dos atletas(1). É neste contexto que surge
o conceito de Instabilidade Crónica do
Tornozelo (ICT) definida por dois as-
pectos: entorses recorrentes em inversão
e persistência por tempo prolongado de
sintomatologia residual, em particular a
manutenção de uma sensação subjectiva
de falência articular(2).
2 - Fisiopatologia
É hoje consensual o facto de a instabi-
lidade crónica do tornozelo poder ser
o resultado de duas causas potenciais
que parecem coexistir na maioria dos
casos: a instabilidade mecânica passiva
e a instabilidade dinâmica funcional(3). A
instabilidade mecânica manifesta-se cli-
nicamente por uma laxidez patológica
do tornozelo secundária às lesões capsu-
lo-ligamentares decorrentes do entorse.
Recentemente foram descritos outros
factores passivos associadas à instabili-
dade passiva como restrições da cinemá-
tica articular, alterações degenerativas
articulares e alterações da membrana
sinovial. Após os conceitos introduzi-
dos por Freeman(4) há algumas décadas
parecia que as alterações dinâmicas as-
sociadas com ICT estariam exclusiva-
mente associadas a uma desaferenciação
articular. Esta seria devida a destruição
estrutural dos mecanorreceptores e das
vias aferentes decorrentes do entorse
inicial. No entanto estudos com aneste-
sia dos mecanorrectores ligamentares e
capsulares não demonstraram de forma
consistente a diminuição dos resulta-
dos nos testes de medição de sentido
posicional e cinestésico e nos testes de
controlo postural(5). Por outro lado aten-
dendo ao comprimento dos neurónios
envolvidos no arco reflexo medular e
abstract
Um grande número de atletas sofrem de um quadro de Instabilidade Crónica do Tornozelo (ICT) sendo causa de limitação funcional importante. Mecanismos passivos e dinâmicos, com alterações quer de mecanismos de feed-back quer de feed-forward parecem estar implicados neste processo. O tratamento destas situações baseia-se num programa de fortalecimento muscular analítico, numa treino de equilíbrio e num treino funcional orientado.
Chronic ankle instability is very common in athletes and is one of the major causes of func-tional impairment in sports. Mechanical instability and functional instability, with deficits of both feed-back and feed-forward mechanisms are involved. Treatment is based on muscular strengthening programs, balance training and functional sport’s oriented tasks.
Instabilidade crónica tornozelo (chronic ankle insatability)
Dr. Pedro saraiva, especialista em Medicina Desportiva; especialista em Medicina Física e de Reabilitação; Dep. Médico da Associação Académica de Coimbra / OAF
Palavras-chavekeyworDs
» Rev Medicina Desp in forma, 1 (6), pp.18-20, 2010
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aos valores fisiológicos de velocidade condução neuronal, não
haveria tempo suficiente para que a resposta dos eversores, em
consequência de uma instabilidade em inversão súbita, evitas-
se a lesão(6). Parece hoje aceite que há uma actividade muscular
dos eversores fundamental, prévia ao contacto do pé com o
solo durante a marcha e o salto, indiciando um mecanismo de
controlo motor de feed-forward. Parece ser fundamental que
haja uma capacidade antecipatória prevendo situações de re-
cepção em possível instabilidade, onde assumem papel impor-
tante o sistema gama e um aumento da excitabilidade a nível
dos motoneurónio alfa eferentes(6).
3- Reprogramação neuro-muscular
Para se proceder a um programa de reprogramação neuro-mus-
cular nas situações de ICT consideram-se essenciais três aspec-
tos: reequilíbrio da força muscular, um programa de treino de
equilíbrio respeitando regras de progressividade e um treino
funcional orientado especificamente para cada modalidade(7).
3.1 - Fortalecimento muscular
Nos últimos anos o trabalho de fortalecimento muscular
incidiu primordialmente no grupo eversor, tentando com
isso restituir uma capacidade de contrariar o movimento
de inversão, quer numa fase antecipatória com uma re-
cepção ao solo com um ângulo eversor aumentado, quer
com um trabalho em excêntrico que frenasse o momento
de inversão potencialmente agressor(8). Trabalhos recen-
tes realçaram a existência de um défice de força muscu-
lar também em inversão. Os inversores do tornozelo con-
trolam o momento de eversão do calcâneo, evitando um
mecanismo potencial de inversão exagerada com stress
ligamentar acrescido do complexo ligamentar lateral. Al-
guns autores tentam explicar a inibição dos inversores por
mecanismos reflexos artrogénicos, sendo a sua existência
demonstrada em vários estudos(9). Recentemente, alguns
trabalhos encontraram também uma diminuição na força
muscular do tricípete sural, particularmente em excêntri-
co(10) e dos abdutores e extensores da coxo-femoral em
indivíduos com ICT(3). Parece assim fundamental avaliar
com particular atenção estes grupos musculares e proce-
der a um programa de fortalecimento muscular analítico
restituindo critérios de normalidade. O programa é evo-
lutivo sendo numa primeira fase efectuado em isometria,
passando para um trabalho isotónico concêntrico, e termi-
nando num trabalho excêntrico. Usualmente é privilegiado
o trabalho com resistência manual e com bandas elásticas
de resistência progressiva.
3.2 - Treino de equilíbrio
O treino de equilíbrio deve sempre respeitar critérios de segu-
rança, deve ser estimulante, ter uma abordagem multissenso-
rial, partindo de um movimento sectorial e evoluindo para um
gesto técnico específico. São efectuadas 3 a 5 sessões semanais
por um período de 4 a 6 semanas(11). O treino é normalmente
iniciado no solo recorrendo ao treino em estrela, evoluindo de-
pois para superf ícies de instabilidade crescente.
3.2.1 - Treino de equilíbrio em superfícies estáveis
- Estrela
Este trabalho é efectuado numa fase precoce no solo recorren-
do a um desenho em estrela com 8 braços de 90 cm com 45º de
intervalo entre cada um. Após um período de aquecimento em
cicloergómetro e um trabalho de flexibilização global, o atleta
coloca a linha transmaleolar no centro da estrela e tenta atingir
com o outro pé, sem tocar no solo e mantendo o equilíbrio, o
ponto mais distante em cada uma das direções da estrela, reto-
mando de seguida a posição inicial (12).
3.2.2 - Reprogramação neuro-muscular com
superfícies instáveis
Desde que Freeman introduziu as famosas tábuas instáveis,
vários autores tentaram mostrar a sua validade no tratamento
Fotos CMEP - Clínica de Medicina do Exercício do Porto
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da ICT. Os vários trabalhos posteriormente publicados com o
objectivo de validarem os seus resultados utilizaram as tábuas
descritas pelo autor tendo posteriormente introduzido varian-
tes com multi-estações e recorrendo a tábuas mais sofisticadas
como o Biodex Stability System(7) (13).
O treino de equilíbrio evolui de uma situação de apoio bipo-
dálico para unipodálico, permitindo apenas numa fase inicial a
utilização dos membros superiores para compensação do equi-
líbrio. Neste quadro de progressividade passa-se também de
um treino com os olhos abertos para uma situação posterior de
olhos fechados. Com a evolução clínica e com o maior controlo
do equilíbrio são adicionados estímulos externos para aumen-
to da dificuldade como por exemplo o arremesso de uma bola
que o atleta terá de agarrar mantendo a posição de equilíbrio.
Alguns autores advogam também a utilização de mini-trampo-
lim(14) como adjuvante neste treino de equilíbrio. Realiza-se um
trabalho de dificuldade crescente com estímulos externos que
promovem instabilidade, introduzindo-se o salto no trampo-
lim logo que clinicamente possível.
3.3 - Treino funcional direccionado
A fase final do programa de reabilitação das situações de ICT
é orientada em função da modalidade praticada pelo atleta em
questão(7). Introduz-se um trabalho de coordenação motora
com saltos, transposição de obstáculos, movimentos com mu-
danças bruscas de direção e alguns movimentos analíticos do
desporto em causa.
Alguns exemplos são os movimentos de passe e recepção no fu-
tebol com bola, de salto e passe lateral no rugby ou movimentos
de deslocação lateral com utilização de raquete no ténis.
4 - Taping e Ortetização nas ICT
Embora seja de uso corrente a utilização do taping e ortóteses,
essencialmente com estabilização lateral em gel ou em ar, na
prevenção de novos episódios de entorse em atletas com ICT,
os seus efeitos e o exacto mecanismos de acção ainda não são
totalmente conhecidos.
Se por um lado é valorizada a melhoria da função proprioceti-
va e aumento das aferências cutâneas a sua função de conten-
ção puramente mecânica parece questionável como factor de
limitação do mecanismo de inversão (15).
5 - Conclusão
A intervenção em atletas com ICT tenta essencialmente inter-
vir promovendo uma estabilização dinâmica deste segmento.
É possível que o programa de reprogramação neuro-muscular
crie adaptações a anível espinal e supra-espinal com a recons-
tituição da normalidade do controlo motor. Vários estudos
apontam para os benef ícios de uma intervenção com um pro-
grama de fortalecimento e treino de equilíbrio tendencialmen-
te funcional. No entanto, para uma maior uniformização vali-
dada dos métodos a utilizar será necessário que se continuem
a realizar mais estudos nesta área.
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