Questões crônicasNO ENSINO DE HISTÓRIA
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 1
Questões crônicas NO ENSINO DE HISTÓRIA
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 2
Sumário
Apresentação........................................................................... 3
Pra que serve esse prédio velho? ..................................................... 6
Por que eu não sei (quase) nada sobre a África? ............... 11
Quando a gente aprende a aprender? ....................................... 14
E se... ............................................................................................................. 21
E as mulheres daquela época? ...................................................... 25
Formação política ................................................................................. 28
A Idade Média, é a média do quê? ............................................. 33
O tribunal das causas anacrônicas ............................................ 39
Por que existe o Dia da Consciência Negra? ......................... 44
Todas as Histórias são chatas? ....................................................... 49
Onde está a História no mundo tecnológico? ........................ 55
Professor, eu vi num filme, é verdade? .................................... 59
O trânsito, a chuva e… A História ............................................... 67
“Meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro” Será? ........ 73
Quem tem medo de museu? ............................................................. 77
Minhas cápsulas do tempo .............................................................. 80
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Questões crônicas 3
Apresentação
O livro é um mudo que fala,
um surdo que responde,
um cego que guia,
um morto que vive.
Pe. Antonio Vieira.
“Questões crônicas no ensino de história” é um livro em
formato digital. Ebook ou e-book, uma abreviação do termo eletronic
book, apresenta este mesmo significado. A identificação técnica na
acepção do termo remete também ao contexto contemporâneo, à
cultura digital a que estamos submetidos, a um mundo ancorado na
crescente necessidade de comunicação e informação. Evidencia no
suporte escolhido, a imaterialidade do livro, páginas intocadas,
percursos narrativos que se alternam, apelo à visualidade.
Roger Chartier ao longo de suas reflexões sobre a história e a
leitura, acabou por destacar no campo da história cultural a
importância do universo de recepção, a importância do contexto
relacional para além do suporte em que se encontrava o livro. Tão
importante quanto seu formato, formas de circulação e espaços
percorridos, em última instância, o que efetivamente importa é se o
autor conseguiu chegar ao seu leitor, especialmente, em que medida
foi compreendido por ele. Em essência, com esta tão destacada
ferramenta, conseguimos dialogar com alguma propriedade.
Impressões individuais, autorais, coletivas, os textos nos representam,
nos dão consciência de nossa presença, nos humanizam. Tão longos
caminhos atravessados, certezas comuns que atravessam os séculos
na busca que, insistentemente, iniciamos pela compreensão de nossa
própria condição humana e historicidade.
Acredito que chegamos a este termo, através deste livro.
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Questões crônicas 4
Questões, crônicas, cronos... Indagações que nos fazemos na
prática diária ao planejar aulas de história, ao ouvir perguntas
exteriorizadas pelos estudantes, que ecoam em nossos próprios
questionamentos.
Como saber de quem são as perguntas apresentadas nos textos
deste livro? Dos mestres ou dos alunos? Como identificar quem ocupa
tal posição na constante provocação que é o cotidiano escolar...
Este livro é resultado em construção, é pergunta sem resposta,
é o caminhar dos seus autores em um súbito momento de atender às
demandas da disciplina de “Produção de Material Didático e o
Universo Virtual”, no percurso de formação dos autores, durante o
primeiro semestre de 2015 no Mestrado Profissional em História
(PROFHISTÓRIA), desenvolvido nos pólos da UFSC e UDESC.
O Programa nacional, voltado à formação continuada dos
professores de história em atuação profissional, oferece como parte
de sua grade curricular a disciplina, em caráter optativo, que teve
por proposta o “Estudo de suportes tecnológicos aplicados ao ensino
de História, tais como ambientes virtuais de aprendizagem, editores
de texto colaborativo, aplicativos, jogos, entre outros. Construção de
ambientes virtuais para realização de atividades de pesquisa e ensino
de História na Educação Básica.”
A narrativa produzida pelo grupo de 16 professores em curso
resultou deste ementário e objetivos gerais da disciplina. O
aprendizado de conhecer o processo de sua formulação,
desenvolvimento e, especialmente, dedicação de todos, possibilitou a
construção de um conhecimento comum, coletivo, de trocas e
parcerias e, esperamos, de futuras iniciativas desta natureza.
Projeto apoiado nas mídias digitais, teve início pela criação de
um grupo de compartilhamento no Facebook – Produção de
material didático e universo virtual -, seguido da disponibilidade dos
textos e comentários através de arquivos inseridos no dispositivo do
Google Drive. Dessa forma, colegas de diferentes Estados, com
atuação nas escolas de Santa Catarina e Paraná, puderam se
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Questões crônicas 5
encontrar continuamente para além do ambiente físico que a
disciplina proporcionou. Muitos e-mails trocados também,
formalizando ajustes de cronogramas e encontros de avaliação, além
de textos de referências sugeridos, oficinas temáticas e muito
compartilhamento de ideias.
O resultado não poderia ter sido diferente. Páginas de crônicas,
imagens cuidadosamente escolhidas na construção discursiva,
preocupação com o apoio da leitura e compreensão estendida a
professores e alunos... E, principalmente, que chegasse a todos os
interessados nestes temas, tão cotidianos, tão cheios de humor e
expectativas, tão temerosos em estar agindo de acordo com o
compromisso em ensinar e, especialmente, refletir com a história.
Histórias Crônicas... Questões crônicas no ensino de história!
Acesse: pt.slideshare.net/profhistoria2014/questoes-cronicas-
no-ensino-de-historia
Divulgue: facebook.com/questoescronicas
Boa leitura!
Prof.ª Márcia Ramos de Oliveira,
Departamento de História/UDESC.
15 de junho de 2015.
Referências:
Sermões Padre Antônio Vieira: http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/padreantoniov.pdf
CHARTIER, R. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. Ed. Unesp. 2004.
_______. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Trad. Denise Bottmann. São
Paulo, Companhia das Letras, 1990.
_______ .Práticas da Leitura. São Paulo. Ed. Estação Liberdade. 1996.
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Questões crônicas 6
Pra que serve
esse prédio velho? Prof. Anselmo
UANDO caminhamos pelo centro histórico de minha
cidade, eu e meus alunos, do 6º ano, nos deparamos
com uma infinidade de prédios antigos. Construções
essas que em um passado, não muito distante, eram
habitadas e serviam de moradia ou tinham outras funções
dentro desta cidade.
No decorrer da caminhada observamos uma antiga
escola, uma antiga mercearia, um antigo hotel, um pequeno
teatro, algumas lojas e diversos casarões.
Gabriela, uma das alunas, mais
observadora, perguntou:
- Professor, porque algumas dessas
construções estão
abandonadas? Várias estão
caindo aos pedaços! E sabemos que alguns
desses lugares, hoje em dia, são locais de
vendas de drogas.
Respondi:
- Gabriela, para muitos moradores da
cidade essas construções são apenas “prédios velhos” e acham
que deveriam ser derrubados para dar lugar ao “progresso”,
ou seja, construir estacionamentos ou arranha-céus.
Daí Léo, outro aluno, interveio:
Q
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Questões crônicas 7
- Muitas dessas pessoas não entendem que nesses
prédios antigos estão boa parte da
História da cidade, né, professor?
Por exemplo, minha mãe estudou
naquela escola e eu soube que ela
está condenada. Podendo cair a
qualquer momento.
Respondi:
- Sim Léo, muitas crianças aprenderam
nessa escola, assim como sua mãe. Viajantes e até
celebridades dormiram no antigo hotel. Artistas
apresentaram espetáculos nesse teatro.
Aposto que suas mães e as mães de suas
mães já compraram roupas para suas
famílias nessas lojas e alimentos na
mercearia. Muitas pessoas viveram e
conviveram nesse espaço.
- Mas professor, porque as pessoas
de nossa cidade, principalmente os
governantes, não se preocupam em preservar esse patrimônio
e o deixam caindo aos pedaços? Perguntou Léo.
- Muito desse patrimônio não é reconhecido como
parte da História dessas pessoas. Até porque, a maioria delas
nunca teve informações suficientes na escola, não formou
uma consciência patrimonial, ou seja, o que estamos fazendo
aqui hoje. E até porque, a preocupação com a proteção de
nosso patrimônio é algo muito recente. O que se busca
preservar no Brasil são apenas os monumentos que
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Questões crônicas 8
representavam os “grandes feitos” das autoridades políticas
de cada cidade, de cada
Estado e do país.
- Verdade professor,
olha ali a estátua do
primeiro Padre de nosso
município - apontou Léo.
- Na maioria das
vezes, os políticos
tradicionais não ligam para
o nosso patrimônio, ou
edificações que revelam mais a identidade de grupos
populares ou da população em geral. Acho que acreditam que
somente serão reeleitos se produzirem transformações
urbanas de grande visibilidade. Se fizerem muito asfalto para
as pessoas desfilarem com seus carros. Mas se construírem
escolas, oportunizando mais conhecimento e trocas culturais
e, com isso, preservando o patrimônio, não imaginam que
poderão ganhar votos, pelo contrário.
Naquele momento de nossa caminhada chegamos à
igreja matriz do município. Estrategicamente construída em
um local elevado para que possa ser vista de todos os pontos
da cidade. Olhamos para cima, observamos o esplendor da
construção. Fiz algumas provocações.
- Vocês sabiam que a construção dessa
“monumental” igreja foi paga pelos cidadãos católicos de
nosso município? Que eles doaram quase todo o material
para sua construção? Que muitos ajudaram a construí-la
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Questões crônicas 9
trabalhando nos finais de semana junto aos trabalhadores
contratados para execução da obra?
- Mas professor, minha
mãe disse que quem construiu a
igreja foi o primeiro Padre -
disse Gabriela.
- Será que ele conseguiria
construir esse grande monumento
sozinho? Indaguei.
- Claro que não professor.
Ele precisou de vários pedreiros,
carpinteiros, serventes - observou
Léo. Respondi que:
- Esse patrimônio nos faz lembrar que é obra de um
esforço coletivo, portanto, pertence a todos. O que nos
devolve a responsabilidade quanto à sua proteção, à medida
que nos representa e diz muito sobre cada um de nós e de
nossa comunidade. Mas esse patrimônio nos faz lembrar que
muitas coisas pertencem a todos. Portanto todos nós temos o
dever de protegê-lo.
Um silêncio pairou sobre nós e sentamos nas
escadarias do templo católico. Ficamos ali observando o
movimento do município. As pessoas vão e vem. Sem nem
olhar umas para as outras, como acontecia antigamente.
- Entenderam então para que servem esses prédios
velhos? Perguntei, esperando uma resposta sincera e objetiva.
Um silêncio pairou sobre a turma, e Pedro, que até
então só escutava o diálogo, disse:
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Questões crônicas 10
- Eles servem para preservar a nossa memória. Para
sabermos que nossa História está sempre presente. Então, se
deixarmos que esse patrimônio seja derrubado, muito de
nossa História cairá junto com ele.
Dou um sorriso de aprovação à resposta de Pedro. O
orgulho brotou em meu coração e pensei: “essa é razão de ser
professor”, ou seja, fazer com que meus alunos entendam a
importância que a História tem em suas vidas.
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Questões crônicas 11
Por que eu não sei (quase) nada
sobre a África? Prof. Bruno
OMO assim? Peraí, eu sei algumas coisas. Se parar
para pensar com calma, acho que consigo encher uma
folha de caderno com esse tema... O quê? Exemplos?
Ora, foi lá uma das últimas copas do mundo. Eu sei que a
África não é um país, mas a África do Sul é. Tem outros
países lá, mas não sei de
cor os nomes...
Não passa na TV?
Claro que passa!
Já perdi a conta de
quantos programas do
Globo Repórter eu vi
sobre a África. Não teria
coragem de fazer um
safári, mas deve ser uma
experiência e tanto. Ah, e vez ou outra sai algo de lá no
jornal também... O Ebola, lembra? Tinha gente morrendo de
medo porque parece que é bem contagioso, aí estavam
controlando quem viajava e tal. Mas antes, passava mais
coisas de guerra. Inclusive deve ser por isso que o povo passa
fome por lá. Nunca esqueço uma vez que vi, era um avião,
grande, aí eles jogavam comida do alto mesmo, nuns sacos.
Então o pessoal que estava embaixo corria, rasgava o saco,
C
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Questões crônicas 12
ficava catando o arroz do chão, separando da terra, aquelas
crianças pretinhas e barrigudinhas de vermes. Aí minha mãe
dizia “Viu? você precisa dar valor pro que tem, pode comer
seu prato todinho!” Onde era? Na África, ora. País? Eu sei
que a África não é um país, mas foi lá...
E tem mais, se você for pensar na História, dá pra
encher mais uma folha ainda, rapidinho. Foi de lá que os
negros vieram pro Brasil. O quê? Ora, pra ser escravos, isso
todo mundo sabe. Acabou com a Lei Áurea, que a princesa
Isabel assinou. Aí, terminada a escravidão, vieram os
imigrantes alemães, italianos e outros. Eu sou descendente de
italiano. Hã? Não, nem todos os meus avós eram italianos,
tem espanhol e português, parece. E bugre também. Africano
não sei, acho que não...
Se eu pudesse escolher um
lugar pra viajar na África? Não
sei... Na época da copa eu fiquei
curioso com a África do Sul...
Não sei de outro lugar bom,
teria que pesquisar, ver se não
é perigoso... Onde? Egito? Ah é,
o Egito é na África né? Claro, queria muito conhecer as
pirâmides de perto, aquelas coisas de múmias também. Tem
gente que diz que isso foi coisa de alienígena, de tão
grandioso que é. Mas viajar mesmo eu queria é pra Europa.
Conhecer a Itália. Na França ir pra Paris. Tenho uma tia que
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Questões crônicas 13
mora lá perto, na Alemanha. Ah, e pra Disney. Não morro
sem ir.
Hã? Ah, sobre a
África? Acho que não sei mais
nada. Na escola não falam
muito né? Parece que agora é
que estão falando mais…
Ah sim, tem o dia da
consciência negra, já ia me
esquecendo! Esse é legal, é um
dia diferente sempre tem algo novo, como o dia do índio,
sabe? A escola muda, o pessoal faz apresentações, alguns
alunos ajudam também. Teve uma fala sobre o Zumbi, foi
legal, ele era um herói negro que morreu lutando contra a
escravidão, parece… Se tinha mais coisas nesse dia? É que não
me lembro direito, isso faz tempo, foi no final do ano
passado. Depois ninguém mais falou nada…
Você quer ainda mais? Ah, deixa de ser chato, não
tem outro assunto não? Eu sei de vários. Sobre a África até
acho que falei muito…
E por que só pergunta? Fale alguma coisa também!
Ou você não sabe nada além disso?
E você que tá olhando aí, sabe ou não sabe???
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Questões crônicas 14
Quando a gente aprende a
aprender?
Prof. Cleyton
S AULAS mal haviam começado e um feriado
prolongado já estava chegando. As expectativas
estavam se construindo. Até porque “uma coisa sobre
ser professor, é criar utopias nas férias e se deparar com as
distopias da sala de aula”.
Professor Amarildo jurava ter ouvido essa frase de
algum colega de profissão, certa vez durante o café.
Lembrou-se que nesse mesmo intervalo, o assunto girava em
torno de temas bem comuns para tal ambiente: o desrespeito
“habitual” dos estudantes, a desatenção, a ignorância dos
alunos, as péssimas perspectivas para o futuro da educação.
Um dos professores, talvez o mais ativo na conversa,
na tentativa de construir uma piada com algum crédito
intelectual, afirmou que isso seria culpa da “Pedagogia da
Hipocrisia” – numa clara referência aos textos de Paulo
Freire.
– Estamos formando uma geração de fracassados que
só fala bobagens. Quando lê, é um monte de besteiras que
vendem bastante. E ainda são aplaudidos por qualquer
asneira que dizem – teria dito o professor, naquilo que
considerou uma perfeita análise crítica da realidade
educacional.
A
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Questões crônicas 15
O grupo se dividiu. Uns poucos riram com certa
segurança, por ter entendido a intenção; outros os seguiram;
e houve ainda aqueles que, constrangidos, apelaram para a
diplomacia:
– Ainda bem que as
férias estão chegando.
Afinal de contas, “os
de esquerda” estavam ali ao
lado e um incidente agora,
colocaria em risco o resto
do recreio.
Amarildo se
levantou naquela manhã e,
enquanto escovava os
dentes, tentou pensar
porque teria se lembrado
daquele episódio. Talvez
tenha até sonhado com ele naquela noite.
Decidiu ligar a TV para saber como estaria o tempo.
O país era outro naquela manhã. Protestos e greves
eram palavras que traziam os mesmos adjetivos. Era
estranho, na semana anterior nada disso parecia acontecer.
Agora o país era tomado por uma gigantesca insegurança,
um medo extremo e, sobretudo, um ar de que “se não está
conosco, está contra nós.” Como disse um entrevistado,
defensor de um país ordeiro e pacífico e indignado com
tamanha corrupção. Para ele, os males do país seriam
resolvidos tirando “algumas maçãs podres” da política. Lutar
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Questões crônicas 16
por educação, saúde, era um monte de besteira que diminuía
a importância daquilo que realmente mudaria o Brasil.
– Ele falou pacífico ou passivo? – Amarildo não havia
entendido. Foi o barulho da chaleira que fervia ou o
entrevistado se confundiu?
Tomou um longo gole de café e corrigiu-se: o país era
exatamente o mesmo.
Naquela segunda-feira, com cara de segunda-feira, os
alunos arrastavam-se para suas salas, as aulas iriam
começar.
– Fazia anos que eu não via tanta politização nas
ruas e na mídia! Essa baderna precisa acabar! - falou com
tom de discurso um colega na sala ao lado.
Amarildo tentou continuar a aula, enquanto aquilo
que tinha ouvido nos últimos dias tentava se organizar em
sua mente, ou pelo menos encontrar um eixo que ligasse todo
esse momento. O sinal bateu.
– O país não aguenta mais! Para acabar com a
corrupção, esse pensamento de esquerda precisa ser
exterminado! - Ecoou pelo corredor durante a troca de salas.
No sacrossanto horário do café, havia uma disputa
instalada. Quem utilizasse menos adjetivos contra o “atual
estado do país”, estaria sendo favorável a ele e, Deus nos
livre, até “esquerdista”.
Sentado próximo à janela para sentir o cheiro da
grama que estava sendo cortada – um oásis àquele ambiente
árido - finalmente ele conseguiu entender. O fim da
diplomacia confirmava as palavras proféticas de antes: morre
a utopia e nasce a Era da Distopia.
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Questões crônicas 17
Sempre foi partidário do meio termo. E talvez por
isso, aqueles olhares trocados na sala dos professores o
incomodavam tanto. Olhou para o relógio, viu que faltava um
minuto para o fim do intervalo. Na tentativa de exorcizar os
sentimentos daquele dia, pegou um giz, juntou suas coisas e
escreveu no quadro de recados: “Uma mentira, quando dita
muitas vezes, corre o risco de virar uma aula”.
Saiu sem ver os lucros
e os prejuízos daquilo que nem
de perto julgou ser um ato de
coragem.
No corredor, sentia
que ainda não estava bem. As
palavras escritas não o
ajudaram como pensava.
Tentou um último ato de
desespero. Entrou em sala,
olhou cordialmente para seus
alunos, fez a chamada e
sentou-se sobre a mesa.
Pensou que pela primeira vez em seus dez anos de
profissão, estava realmente olhando para eles, tentando se
colocar no lugar daqueles meninos e meninas. Como estariam
diante daquele turbilhão? O quanto a família os influencia?
De tudo isso que estava acontecendo, o que mais lhes
chamava atenção? Será que leram algo a respeito? Só viram
na TV? Ou em redes sociais apenas? A opinião de um
professor é diferente das demais? Como? Será que querem
falar sobre tudo isso?
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Questões crônicas 18
Finalmente se levantou, pegou o giz e foi ao quadro.
Escreveu tantas palavras quanto conseguia lembrar: “direitos,
deveres, política, direita, esquerda, Estado, corrupção,
baderna, vandalismo”. Os alunos não entenderam. Guilherme
perguntou se era para copiar. Pedro perguntou se poderia
acrescentar outras. Amarildo sorriu.
Em seguida, solicitou que cada um desse uma
definição a elas, de acordo com aquilo que estavam pensando
no momento e pediu que tentassem conectá-las através de
uma redação.
– Vale nota, professor?
– Claro que vale. Mas para mim.
A turma pareceu não entender, mas aceitou a
atividade com certa alegria, pois tinham muito a dizer.
Nas aulas seguintes, as redações foram discutidas. De
acordo com os textos, o professor trazia informações,
notícias, gráficos, que confirmassem ou, quase sempre,
questionassem os dados apresentados.
Alguns alunos se incomodaram, porque já fazia algum
tempo que não ouviam nenhuma resposta. O material
didático estava abandonado! Só eram provocados a
questionar as próprias informações. Um deles gravou um
desses momentos da aula e levou para os pais.
– Olha, senhora diretora, ter professores comunistas
é muito perigoso! Ainda mais no atual momento em que
vivemos. Eles fazem lavagem cerebral nessas crianças e aí
acontece tudo isso que a gente está vendo. Talvez seja até
bom a senhora pensar em substituí-los. Caso contrário, não
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Questões crônicas 19
sei, alguns pais podem se reunir para tomar medidas legais
contra o colégio.
A diretora conhecia as famílias de seus alunos, já que
sempre conversava com pais, mães e responsáveis, para
destacar a importância deles no trabalho da escola, sempre
houve conversas muito ricas e abertas. Ela sabia que a opinião
daquele pai era quase uma voz solitária.
Talvez fosse mera ignorância política, talvez apenas
fruto daquele momento complicado, repetido sem parar pela
mídia. Tinha medo que fossem os dois.
Sem parecer dar tanta importância para o assunto, a
diretora então respondeu:
– Senhor Willian, eu acompanho o trabalho dos
professores bem de perto. Mas vou verificar o que o senhor
está me trazendo.
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Questões crônicas 20
Ao sair do colégio, com um ar de superioridade, por
acreditar que estava contribuindo para combater a praga do
comunismo no país, Senhor Willian parou no sinal e foi
abordado por um homem, que lhe pediu alguma moeda.
De dentro do carro, seus olhos se encheram de raiva,
ele começou a chamá-lo de marginal e a dizer que essa
cidade precisava ser limpa desse tipo de gente.
Mas ao olhar para o banco do carona, com medo de
que aquele homem fosse lhe roubar a carteira, ele se lembrou
de que havia deixado o celular na sala da diretora.
De novo no colégio, ao entrar na sala, tamanha foi a
sua surpresa, quando percebeu a diretora diante de um
quadro de recados, meio distraída, com um sorriso nos lábios,
enquanto escrevia algo:
“Obrigado, professor. Nota dez.”
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Questões crônicas 21
E se... Prof. Dismael
AULA estava boa. O assunto era interessante para a
maioria dos alunos e um dos prediletos do experiente
professor de História, a Segunda
Guerra Mundial. Alguns eram fanáticos
por games, outros tinham assistido
documentários, muitos já tinham visto
filmes e, uns dois ou três, tinham até lido
livros sobre a temática. O certo é que
todos já entendiam um pouco sobre a
grande guerra.
O jeito como o mestre contava a
história era tradicional, tinha pesquisado durante anos nas
pilhas de seus livros didáticos “clássicos” os detalhes do
evento. Os fatos eram citados na ordem cronológica, do mais
velho ao mais recente, com destaque às questões políticas. A
aula, expositiva e dialogada, até o momento tinha deixado a
parte da discussão de lado, o diálogo estava apenas no
planejamento entregue no início do ano à coordenação.
Algumas imagens de cartazes, fotos e mapas eram
projetadas na tela e serviam para ilustrar e dar um tom de
veracidade ao seu discurso. O ambiente estava à meia luz. Só
o professor falava, era de manhã cedinho... Ainda assim, os
estudantes estavam prestando atenção. O contexto pré-
guerra já tinha sido explicado, as alianças estavam postas, a
A
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Questões crônicas 22
Alemanha tinha invadido a Polônia. E
a classe permanecia atenta,
concentrada.
Quase todos. No fim da sala,
um rapaz com o olhar
contemplativo de repente volta de
seu mundo de pensamentos. No
momento em que o mestre fazia uma breve
pausa para beber água, ele interrompeu sua narrativa e
mandou, de bate-pronto, uma pergunta:
- Professor, e se Hitler não tivesse nascido, existiria a
segunda guerra?
Sua paciência não era a mesma, depois de tanto
tempo na sala de aula. Inúmeras vezes ele já ouvira esta
questão e tantas outras respondeu, sem pestanejar, “o se
para a História não existe!”
Pronto, discussão encerrada. Mas desta vez a resposta
fácil não veio à tona. Se a paciência não era a mesma de um
iniciante, sua experiência o encorajou a usar a criatividade, e
depois de alguns segundos, sacou do bolso um trunfo
previamente preparado e com uma postura teatral começou
a declamar:
- Se Hitler não tivesse nascido, muitas coisas iriam
mudar: as possibilidades são imensas, fica difícil mensurar...
Se Hitler não tivesse nascido, mapas seriam modificados,
Goebbels e Mengeli esquecidos, uns acabariam arruinados,
outros seriam afortunados.
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Questões crônicas 23
A turma ficou atônita. Não era comum o professor
interromper a aula daquela maneira, ele sempre fazia de
tudo para concluir os conteúdos sugeridos da apostila. Não
abria espaço para uma discussão tão infantil. Avançando
entre as carteiras, continuou:
- Se Hitler não tivesse nascido, não existiriam campos
de concentração, outro mundo teria sido construído, a paz
reinaria desde então...
Pausa. O aluno que indagara a questão, parecia
insatisfeito. Em silêncio as perguntas em sua cabeça se
multiplicavam: será que a culpa da guerra caberia toda nas
mãos de Hitler? Teríamos um mundo
melhor? Os judeus não teriam
sofrido? Outro colega que sentava
na fila da janela pertinho dele
sussurrou:
- Agora o professor forçou
a barra...
Mas ele estava interessado
no desenrolar daquele momento
inusitado e respondeu imediatamente:
- Shiiiii!!! Não interrompe o professor! Quero saber
como vai acabar esse papo!!
Do fundo da sala, o professor que não tinha percebido
a conversa, continuou:
- Se Hitler não tivesse nascido outro ocuparia seu
lugar, a guerra teria acontecido, o sangue de qualquer forma
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Questões crônicas 24
iria jorrar. Se Hitler não tivesse nascido, Martin Bormann
comandaria o partido nazista, Albert Speer se tornaria
ministro de guerra e Rudolf Hess (quem sabe!) seria apenas
um dentista.
Silêncio. O professor, então, retornou à sua posição
habitual na frente do quadro e terminou a pequena surpresa
preparada para a turma, olhando
diretamente para o aluno que tinha feito
a pergunta:
- O “se” para a História não
existe, serve apenas como um exercício
de reflexão... Mas lembre-se: em toda
narrativa de historiador (ou
historiadora), cabe um pouco de
imaginação.
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Questões crônicas 25
E as mulheres
daquela época? Prof.ª Elaine
MAIS uma manhã gelada de julho apontava. Como
era difícil sair da cama naquele frio, da pequena
cidade do interior de Santa Catarina, onde eu
morava. Mas não tinha remédio, o jeito era encarar de uma
vez. Muito bem agasalhada, fui tomar café e saí para a escola.
Aquela semana
havia sido muito cansativa.
Provas, trabalhos escolares
e a demanda das funções
domésticas que me eram
incumbidas. Aquilo
realmente me irritava, meu
pai e meu irmão na
“ajuda”, minha mãe e eu
na lida. Por que aquele
trabalho era de exclusividade feminina, enquanto os homens
“bons” apenas ajudavam?
Chegava da escola e lá estavam os banheiros me
esperando... Depois a arrumação da casa, a louça suja do
almoço. Ah, o almoço. Eu chegava da escola e minha mãe
ainda estava no fogão, enquanto meu pai assistia ao início do
jornal do meio dia. Honestamente, aquilo me indignava. Mas
E
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Questões crônicas 26
minha mãe sempre dizia: “Minha filha, teu pai ajuda tanto,
não reclame, antigamente era bem pior”.
No caminho para a
escola pensava na
apresentação do trabalho
de História. A professora
nos incumbiu a difícil tarefa
de encontrar as mulheres
que contribuíram para a
construção da sociedade
brasileira na Primeira República. Mulheres? Onde? Quem?
Berta Lutz? Só encontrei uma. Então, onde elas estavam?
Acho que meu zero estava garantido...
Mergulhada em meus pensamentos de preocupação
com o tal trabalho de História e ainda zangada, ao lembrar
das tarefas que me esperavam quando chegasse em casa,
encontrei a Malu e a Natália, minhas colegas de classe. Elas
reclamavam da professora, diziam que o trabalho era
impossível, pois não apareciam mulheres nesse período da
História. Que se fosse pensar em toda História, apareceriam
uma Olga, uma Anita, uma Joana e olhe lá, sempre com um
Prestes, um Giuseppe ou um Deus, como companhias, dizia
Natália, sempre muito criativa e bem humorada. Acabamos
rindo um pouco da nossa preocupação.
Na sala de aula, combinei com minhas colegas que
teríamos de tentar enrolar a professora de História, pois o
trabalho estava deficiente em informações. Não havíamos
encontrado figuras históricas femininas nos livros didáticos,
como era nossa tarefa. Combinamos de falar muito durante a
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 27
apresentação dos trabalhos dos colegas, fazer questões,
sugerir repetições até chegar ao final da aula e não dar
tempo de apresentarmos o nosso trabalho.
Estava tudo combinado, não tinha como não dar
certo. Só não contávamos com a irreverência da professora
que inverteu a ordem da apresentação dos trabalhos e
colocou o nosso grupo como primeira apresentação. E agora?
Deu tudo errado! Estamos reprovadas, pensei com meus
botões.
Mas em frações de segundos, após este pensamento,
num lampejo de inspiração (destes que só os desesperados
têm!), solicitei que minhas colegas iniciassem a apresentação,
dissertando sobre as poucas figuras femininas que
encontramos. Terminada a explanação delas, solicitei a
palavra e comecei relatando o dia a dia de uma dona de
casa, com seus afazeres.
Relatei uma série de figuras masculinas, casadas, que
tinham em suas companheiras a base de sustentação para as
suas atividades. E, que por muitas vezes, essas mulheres
extrapolaram os afazeres domésticos, adentrando e apoiando
diretamente suas atribuições profissionais.
Ao narrar sobre o cotidiano das atividades domésticas
foi praticamente impossível
deixar de falar na realidade de
muitas “Marias”, que mesmo
anônimas, têm construído a
história deste país e do mundo
inteiro, todos os dias.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 28
Formação política Prof. Elton
ELA manhã, o menino saiu de casa para brincar e se
deparou com a calçada e a rua repletas de folhetos.
Aquela avalanche de papéis fora capaz de ocultar
totalmente as pedras e o cimento, em algumas partes. Mais
tarde, soube que esses papéis eram chamados de santinhos.
Alguns tinham fotos, eram grandes e coloridos. Outros eram
de papel ordinário, com letras
pretas, bem sem graça. A
diversão era recolher alguns e
levar para casa. Havia uns
santinhos mais interessantes
que outros. Aqueles com verso
em branco, ele usava para
desenhar. Tendo foto, dava
para rabiscar sobre a cara,
desenhar óculos, bigode e
outras coisas. Era o dia
seguinte às eleições. Sabia
disso, pois tinha ido votar com o pai, que o levara junto à
cabine para marcar o X.
Essa história de marcar o X era bem falada na TV
naquele ano. Na sala da 1ª série C, onde estudava, havia uma
tira de papel colada no quadro negro, bem no alto. A
professora dizia que aquilo pertencia aos alunos da manhã,
P
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 29
da 8ª série. O menino já tinha visto aquele mesmo papelzinho
na TV e sabia para que servia. Também sabia que os pais iam
fazer o X no primeiro quadradinho quando chegasse o dia
certo, mas nem todos da família iam.
Havia uns tios que não gostavam do
barbudo, mesmo ele tendo a melhor
música, e preferiam o que tinha óculos
de fundo de garrafa. Depois passaram
a gostar do que usava gel no cabelo.
Era uma briga! O avô dizia que ia
votar no velhinho de cabelo branco. O
menino sempre achou que fosse
porque o avô tinha os cabelos iguais.
De qualquer forma, no papelzinho da
sua sala, na escola, o X seria posto
no primeiro quadradinho. Para isso,
subiu numa cadeira em um
momento que a professora não
estava observando, no meio da
bagunça da turma, e marcou com
gosto um X no primeiro quadradinho. Nos dias seguintes,
observava aquilo com orgulho. O barbudo ia ganhar, pensou.
Passados alguns dias, entretanto, a expectativa do
menino não correspondeu à realidade. O que mais o chateou
foi que não teve comemoração, igual estavam falando que ia
ter. Depois que sua mãe falou que o barbudo tinha perdido, o
menino ficou em casa, meio triste, igual aos pais. Sua torcida
não foi o suficiente. O cara de gel no cabelo e que ia para TV
chamar todo mundo de “minha gente!”, levara a melhor.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 30
Aquele de bigode, que dizia “brasileiros...
e brasileiras!” não aparecia mais. Melhor
para ele, pois todo mundo o xingava
sempre. Foi de espantar que, com esse
novo, a coisa não fora muito diferente.
Depois de um tempo, todos os que
fizeram o X nele ficaram com uma raiva
danada, que só aumentava. Tinha gente
que dizia “o barbudo falou, o barbudo avisou...”, até fizeram
música. Mas parece que alguns não tinham ouvido seus avisos.
O menino também não ouviu, mas achava que seus pais sim,
então estavam do lado certo. Por que os tios e os avós de
todo mundo não tinham feito o X no primeiro quadradinho
também? Agora tinha ficado ruim para todo mundo. Então,
muita gente foi para rua pedir para o cara de gel no cabelo
cair fora e ele aceitou. Devia ter feito muita coisa errada
mesmo.
Mais ou menos
por aquela época que o
barbudo perdeu, um
pouco depois, o time de
futebol de preferência
do menino – que
também era o time
do pai, do avô e do tio
– venceu um campeonato e houve
comemoração. Ah, desta vez sua torcida deu certo! Podia
sair às ruas comemorar e assim o fez. O menino foi crescendo
e compreendendo um pouco melhor as coisas. Sabia que seu
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 31
time, que alternava vitórias e derrotas em finais de
campeonato – permitindo, ao menos de vez em quando –
uma comemoração diante de uma importante conquista, já
tinha ficado 23 anos sem vencer nada... Mesmo assim, muita
gente não tinha parado de torcer por ele, pelo contrário: a
torcida só cresceu. Mas as conquistas não dependiam só disso.
Havia outros fatores, desconhecidos para o menino, que
interferiam e a comemoração não vinha. E ainda, havia
outras torcidas, também desejando vencer para comemorar.
Nem por isso o menino deixou de se manter fiel ao seu time
de futebol, aquele que era o mesmo de seu pai.
Com o tempo, o menino viu que o time do barbudo,
aquele do primeiro quadradinho, tinha grande dificuldade de
obter vitórias – pelo menos no campeonato que mais valia.
Na escola, o menino convenceu seus colegas a batizarem o
time de futebol do campeonato da 7ª série com a sigla do
time do barbudo. Uns aceitaram por brincadeira, houve quem
lutasse contra, mas no final a sigla ficou como nome, mas
sem conquista. Se o time do homem de gel no cabelo já não
oferecia perigo, com o tempo, surgiu um outro, muito forte
– pois tinha resolvido um problema que era antigo e que
ninguém conseguia resolver por muito tempo. Como é que ele
fez isso, o menino não sabia explicar. Contudo, esse novo
adversário do homem barbudo tinha uma torcida muito
grande. O barbudo perdeu mais uma vez e nem houve a
emoção da disputa anterior contra o homem de gel no
cabelo, que todo mundo pediu pra sair depois. O novo
adversário que o barbudo enfrentou, ao contrário do homem
de gel no cabelo, queria inventar um jeito de todos pedirem
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 32
para ele ficar. E conseguiu! O
barbudo só conseguiria vencer
depois de muito tempo... E o
menino, torcedor que era, e
agora crescido, comemorou –
já um pouco consciente dos
significados daquela vitória.
Para ele, tinha um gosto de
infância, embora já soubesse que nem os santinhos eram
inocentes.
— Professor, então você é petista?
— Petista, eu? Você prestou mesmo atenção? Eu sou
corintiano, rapaz.
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Questões crônicas 33
A Idade Média, é a
média do quê? Prof.ª Juliana F.
ÃO consigo entender essa tal de Idade Média! Pra
começar, é a média do quê?
- Cara, Idade Média é muito simples! É o
feudalismo, que tem a
pirâmide social: Clero,
Nobres e Camponês; tudo
acontece no feudo, e
quem manda é o
suserano, e o vassalo só
obedece. Pronto!
- Só? Não são mil
anos? E só tem isso?
- É! Eu já estudei
esse assunto na minha
outra escola, e tirei 10 na
prova. É fácil demais.
- Não tô acreditando não. No livro tinha tanta coisa.
Olha ali ó, a professora tá ali ó, vamo fala com ela... Ô
profeeeee, a gente quer saber uma coisa de História.
-Humm, se interessando por História, é? Diga, qual é
a dúvida?
N
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 34
-Prof. Silene, eu tava falando pra Mariana como
Idade Média é fácil. Que tudo rola no feudo, tem 3 classes
sociais e tem os suseranos e os vassalos. Não é isso aí?
- Então meninos, é e não é. O que você tá me
dizendo aconteceu sim, mas não o tempo todo, e nem em
todos os lugares.
-Então o meu professor na outra escola me ensinou
errado? Desgraçado!
- Não, não, não! Não é uma questão de certo ou
errado. São pontos de vista, que compõem a História. Nesse
caso, esse ponto de vista é dos historiadores da França, que
organizaram os estudos de Idade Média lá no século XIX. Pra
eles, a maior parte do período foi isso mesmo que você falou.
Aconteceu isso também na Inglaterra, na Alemanha, em
parte da Itália, mas não dá pra dizer que aconteceu isso em
todos os lugares.
-Não te falei, cara? Mil anos é muita coisa pra só
aquilo que tu falou!!
-Tá, se não foi só isso, o que tava acontecendo nos
outros lugares, profe?
- Posso te dar muitos exemplos. Aqui no Brasil, na
América, na África, na Ásia, não teve nada disso de
feudalismo, em nenhum momento. Ou vocês imaginam os
indígenas vivendo como cavaleiros e princesas?
-Dã, lógico que não né, profe.
- Então, tá. Mas também, dentro da própria Europa,
as coisas não eram totalmente iguais. Por exemplo, na região
da Península Ibérica, onde hoje estão Portugal e Espanha. Lá
as coisas foram bem diferentes...
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 35
No século VIII essa região foi invadida e dominada por
um grande império, que veio lá da Arábia, o Império
Islâmico, que acreditava no deus Alá e seguia a religião
revelada pelo profeta Maomé. Os árabes-islâmicos vieram
pelo norte da África, atravessando dunas e desertos, e
chegaram até a ponta, onde a África se aproxima da Europa.
Lá, um ex-escravo, que se transformou em comandante
militar, Tariq ibnZiyad, liderou a invasão para a Europa, em
711. O primeiro lugar que ele aportou na Europa foi numa
península rochosa, que ficou conhecida como “Monte de
Tarik”, ou Gibraltar, como conhecemos hoje. Tão importante
foi, que a passagem entre África e Europa recebeu o nome de
Estreito de Gibraltar.
Ali os Islâmicos combateram e venceram os visigodos,
um antigo reino bárbaro, e dominaram a região por muitos
séculos. O domínio deles não tinha nada a ver com o
feudalismo cristão, até porque eles eram principalmente
comerciantes e viviam em centros urbanos. A Península
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 36
Ibérica foi dominada com o nome
Califado de Córdoba, e as maiores
cidades tinham livrarias e
banheiros públicos, lojas de tecidos
e joalheiros, e havia convivência
com vários outros povos, como
judeus, berberes, bizantinos e
também cristãos. O Império
Islâmico era tão grande que
dominava um pedaço da Europa,
uma parte da África, e um
pedaço da Ásia, até chegar na
China! Com esse vasto território, eles conduziam uma grande
rede de comércio, onde circulavam coisas dessas várias
regiões, como moedas, temperos, tecidos, alimentos, armas,
conhecimento e tecnologia. Por exemplo, são os islâmicos que
trazem a pólvora para a
Europa, junto com o papel,
ambos da China. Também a
cana-de-açúcar, que vem pro
Brasil depois, e os números,
os algarismos indo-arábicos,
também vêm de lá. Os
conhecimentos astronômicos,
as experiências químicas e as
práticas de alquimia, e
mesmo conhecimentos de
Medicina, através de uma
enciclopédia criada por um
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 37
médico persa chamado Avicena.
-Nooossa professora, que legal! Não tinha ideia de que
essas coisas tinham acontecido. Isso foi bem mais empolgante
que aquela coisa do senhor feudal. Viva o Tarik!
- Poxa professora, e eu que tinha aprendido que a
Idade Média era a Idade das Trevas, ou como o professor
repetiu várias vezes: “mil anos de escuridãooo” hohoho!!!
- Olha meninos, não é só o seu outro professor que
diz isso. É uma visão muito comum, mas precisamos pensar
de novo sobre isso. Será que foi só escuridão? Só trevas?
- Não professora! Olha só essa tal de Córdoba, quanta
coisa... Até arma de fogo eles já tinham!
- Isso mesmo. Tá vendo como a História é feita de
pontos de vista? Não foi só escuridão não. A Idade Média é
vista como um período ruim desde o século XVI. Nesse
momento, chamado de Renascimento, o pessoal queria
afirmar que eram mais racionais que no período anterior.
Eles diziam que estavam retomando a racionalidade das
grandes civilizações clássicas da Idade Antiga, Grécia e Roma.
Por conta disso, criaram a ideia de que o período de mil anos
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 38
entre o final de Roma e o tempo que eles viviam, era só um
intervalo, uma pausa entre duas grandes épocas. Foi por isso
que inventaram o nome Idade Média, como o que tá no meio.
- Ahhhhhh! Então é por isso que Idade Média é
média. Eu não tava entendendo isso, ia mesmo te perguntar.
Mas agora entendi.
- É, e essa ideia de “mil anos de escuridão”, de
“idade das trevas”, quem criou foram os pensadores de um
movimento chamado Iluminismo, no século XVIII. Eles se
aproveitaram dessa ideia da pausa no conhecimento, pra
falar que se não tinha conhecimento, era escuridão. E
adivinha quem ia trazer a luz do conhecimento, pra tirar o
povo da escuridão?
-Os tais iluminadores?
-Iluministas, iluministas. Isso mesmo. Espertinhos,
não é mesmo? Meninos, o papo foi bom, mas está na hora da
aula. Até mais, Salaam Aleikum.
-hm? Salamaleico?
-É a saudação dos povos islâmicos. Significa: “que a
paz esteja com você”. E a resposta pra essa saudação é
Alaikum As-Salaam, “e você também tenha paz”
- Ahhhh, Aleicosalam, professora!
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Questões crônicas 39
O Tribunal das Causas
Anacrônicas (ou “Como julgar o passado?”)
Prof.ª Juliana H.
ARADO, garoto! Desça da bicicleta devagar e coloque
as mãos na parede.
O rapaz se virou surpreso.
- Quem? Eu?
O som da sirene é inconfundível: ele estava sendo
preso. Os policiais, com exóticas roupas prateadas, iam se
juntando para a abordagem, enquanto o cérebro do rapaz
tentava entender o que estava acontecendo. Um dos
prateados avisou pelo microfone que o alvo finalmente havia
sido encontrado. Com os braços abertos e as palmas da mão
quase tocando a parede, o garoto hesitou.
- Mas por quê?!
Tirando coragem sabe-se lá de onde, segurou firme a
bicicleta e fugiu pedalando o mais rápido que podia. Atrás
dele, luzes e sirenes. O
garoto conseguiu ganhar
vantagem dos policiais.
Como conhecia cada
quebrada naquela cidade,
pedalou por uns 15
minutos sem se perder.
P
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 40
Mas, apesar da adrenalina, era impossível conter o espanto:
quem eram aquelas pessoas? E os automóveis estranhos? Por
que estariam atrás dele? Se o garoto não estivesse pensando
nisto tudo e tivesse olhado para cima ao invés de só olhar
para frente, talvez tivesse percebido quando o drone começou
a sobrevoar sua cabeça. O aparelho acendeu uma luz e
quando o menino se deu conta, uma rede solidificante já
havia caído sobre ele. A bicicleta travou e algumas pessoas
atravessaram a rua quando ela e o garoto capotaram no
chão. Os policiais o colocaram
desacordado dentro da viatura.
O drone pairou um tempo em
cima do automóvel e,
exatamente como nos filmes
de ficção científica, emitiu
um flash de luz que fez
todos desaparecerem.
Quando o menino
acordou, vestia um camisão branco e
algemas muito finas, de um material que nunca tinha visto
antes. Estava escoltado por dois policiais, um de cada lado,
que lhe conduziram por uma porta. Nela, uma placa
indicava: Sala de Julgamento.
Ao fundo do salão, ele reconheceu as clássicas mesas
do juiz, advogados, testemunhas e o júri. Ele já havia visto
filmes suficientes para concluir que ele era o réu. Mas acusado
do quê? E onde afinal ele estava?
- Caso nº 16 do dia. Você é André dos Santos,
nascido no ano de 1995?
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Questões crônicas 41
- Sim, Vossa Excelência!
O tribunal explodiu em gargalhadas. “Fala direito,
moleque!”; “Que sotaque bizarro!”; “De que época ridícula
você vem pra falar assim?!”. O garoto se sentiu diminuindo e
foi assim, miudinho e humilhado, que seguiu respondendo às
perguntas da juíza.
- André dos Santos, você está sendo acusado do
crime de barbárie e incivilidade, relacionados à crueldade
com os animais.
“Crueldade com os animais? Mas eu adoro os
bichinhos! Será que eles estão falando daquela vez quando eu
atirei num passarinho com espoleta? Poxa, eu nunca mais fiz
aquilo desde que tinha uns 7 anos!”. Enquanto André
pensava, entrou a primeira testemunha. Ela segurava um
projetor holográfico.
- Boa noite, tribunal. Tenho aqui imagens que podem
chocar a todos. Peço, desde já, desculpas pela brutalidade do
que iremos ver. No entanto, provas são provas.
A cada holograma que aparecia, vinha uma
exclamação da plateia. Algumas pessoas viravam o rosto.
Houve os que choraram e também aqueles que se indignaram
e saíram do tribunal.
O advogado de acusação apenas comentou, com uma
entonação profundamente atordoada: “Temos aqui provas
irrefutáveis da crueldade e especismo do acusado.”
André reconhecia as fotos que foram mostradas e não
estava entendendo nada. Eram as fotos que ele postava nos
seus perfis na internet, mostrando os alimentos que
preparava nos finais de semana.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 42
- Sr. Santos, você preparou e comeu aqueles animais?
- … sim.
- E o que você sentia ao realizar tais atos perversos?
- Não sei... Fome, só, eu acho.
- E por que fez isso?
- Bom... Não sei... Acho que porque era gostoso. E
também: todos na minha família faziam o mesmo, eu
aprendi a fazer isso desde pequeno... Ninguém nunca achou
errado.
A defesa interveio:
- Você sabia que estava cometendo um grave crime,
além de ser extremamente cruel com as outras espécies?
- Claro que não! Comer isso não é considerado crime!
Até já ouvi gente dizendo que é crueldade, mas... O que mais
a gente poderia comer? Minha família não tem dinheiro pra
comprar comida cara...
- Entendo - disse a advogada. - Bem, tribunal, creio
que chegamos à solução deste caso! De início também me
indignei. No entanto, o réu não pode ser penalizado! Este
comportamento que nos parece cruel é um comportamento
típico da época em que André viveu. Todos, ou quase todos
que o acusado conhecia, faziam e pensavam as mesmas coisas
que ele. Ele cometia tais crimes, porque aprendeu assim.
Vocês bem sabem que tudo o que pensamos e fazemos está
limitado pela época em que vivemos. Quem sabe se muito do
que fazemos hoje também não será visto como algo errado no
futuro? Por isto, mesmo que para nós, André pareça um
criminoso, um bárbaro, não podemos condená-lo!
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 43
A juíza entendeu a defesa da advogada e proferiu a
sentença de André: “Apenas mandem-no de volta para sua
época, pois aqui entre nós ele não terá lugar!”.
Assim que André saiu da Sala de Julgamento, o
próximo réu se apresentou à juíza.
- Caso nº 17 do dia. Você é Fernão de Góis, nascido
no ano de 1615?
- Sim, Vossa Excelência.
- Fernão de Góis, você está sendo acusado de fazer
parte da Inquisição, tendo torturado e executado 30 pessoas,
devido a questões religiosas.
Entrou a primeira testemunha.
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Questões crônicas 44
Por que existe o Dia da
Consciência Negra? Prof.ª Karla
RA 20 de novembro e a organização do evento
começou cedo na escola. Grupos dividiam-se entre
fixar os painéis, carregar carteiras e montar os
estandes. Eu estava lá, ajudando em tudo. Afinal, era um dia
de celebração. Era o Dia da Consciência Negra.
Nas paredes, murais
denunciavam o racismo. Havia
máscaras e esculturas
“africanas” por entre os
espaços. Na entrada havia uma
brava exaltação a Zumbi dos
Palmares. Para as maquetes
quilombolas reservamos um
lugar especial. Aos poucos um
cenário negro ia se construindo
em nossa escola. A esta altura, a manhã já havia passado.
Não fui para casa almoçar, a professora precisava de
mim. Eu me identificava com tudo aquilo e decidi ficar. Lá do
pátio ouvíamos os ensaios do Grupo Negrociação. Como eu
gostava de dançar! Como eu gostava de música! Como eu
gostava de Hip Hop!
E
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 45
Não podia me dispersar, ainda tinha muito a ser feito
até a abertura do evento. Éramos poucos. Chamei Marcos,
um colega que estava sentado na escada aguardando a aula
do período da tarde iniciar. Acho que
ele era da turma 201. Ele me disse:
- Eu não sou negro! Esta festa
não é minha!
Alguns risos do grupo em que
Marcos estava me deixaram chocada.
Como assim? É assunto de negro, não
me interessa? Quem falou em festa?
Pensei... Racista!
Não comentei nada com a
professora. Não queria chateá-la.
Afinal, ela havia se empenhado muito
para tudo acontecer direitinho. Não vi
movimentação de outros professores.
Será que seguiam o mesmo
pensamento de Marcos? Será que
entendiam que a responsabilidade do
“assunto negro” era da professora
negra? Pensei... Se for isso... Acho que
meus professores também são racistas.
As horas passaram
rapidamente. Na verdade, eu nem vi o tempo passar. Já era
noite e os capoeiristas estavam chegando. Na biblioteca o
agogô ecoava, era a primeira vez que nossa escola vivenciava
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 46
manifestações religiosas de matriz africana. Os visitantes
começavam a chegar e o cheiro dos quitutes ganhava corpo
pela escola.
Tudo pronto! A capoeira abriu o evento e na roda
todos foram convidados a participar. Em seguida, os orixás
ao movimento do batuque giravam, giravam e se
encaminhavam até o auditório, nos conduzindo à palestra de
abertura. Era de arrepiar! Eu via força em tudo aquilo.
Auditório repleto. Tema da palestra: Por que existe o
Dia da Consciência Negra? A palestrante era a professora
Ana, a mesma que pensou todo o
evento. Ana era minha professora
negra, minha professora de
História. Ela nos deu uma super
aula! Recuperou o passado de luta
do povo negro na figura de Zumbi
dos Palmares. Ela nos disse que a
data, 20 de novembro, marcava a
morte deste herói negro. Ana
tentava nos mostrar que mesmo
após a abolição da escravatura no Brasil, os negros
precisavam continuar lutando. Para resistir era preciso nos
reconhecermos como negros e negras. A professora insistia
que precisávamos questionar o lugar que ocupamos nesta
sociedade.
A atividade trouxe certos desconfortos, algumas
conversas paralelas, muitas saídas antecipadas. Realmente a
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Questões crônicas 47
questão não tocava a todos. Terminada a palestra, o debate
iniciou. A primeira pergunta veio de Marcos:
- Somos todos iguais, somos seres humanos. O
racismo não está mais na cabeça dos negros?
Eu pensei... Por que não foi embora? O que esse
garoto pretendia?
A conversa rolava de maneira calorosa. A professora
Ana apresentou alguns dados para comprovar as
desigualdades existentes entre negros e brancos em nosso
país. Ela falou de mercado de trabalho, de acesso à
universidade, de mídia... Ela insistia em mostrar para Marcos
que o racismo é uma realidade. Ele:
- Ok, professora! Essa história de escravidão e de
preconceito eu já entendi. Mas ter um dia para o negro já é
demais! Em alguns lugares tem até feriado!
A professora:
- É exagerado ter o dia de Tiradentes? Esse feriado é
questionado? Os comerciantes reclamam? A sociedade se
incomoda?
O papo durou mais que o previsto na programação e
o Grupo Negrociação ainda tinha que se apresentar. Os
meninos estavam aguardando com ansiedade desde cedo
para cantar. Como estava auxiliando a professora em tudo,
achei que era melhor interromper.
Marcos esbravejou:
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Questões crônicas 48
- Agora sou obrigado a ouvir Hip Hop também?
A professora:
- Não. Você não precisa ouvir Hip Hop. Você precisa
refletir sobre o que é ser negro e a música pode lhe ajudar
muito nisso. Veja... Há passados que são relembrados
constantemente. Há passados que são esquecidos
intencionalmente. Hoje, especialmente hoje, queremos que
você e todos aqui presentes possam partilhar de uma outra
História. O Dia da Consciência Negra é um convite para isso
também...
Marcos aceitou o convite. E você aceita, amigo(a)
leitor(a)?
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Questões crônicas 49
Todas as Histórias são chatas?
Prof.ª Karoline
SEGUNDA 07:45
ULA de leitura com a profe Mônica de
Português. Ela me fez ir à biblioteca,
porque, pra variar, eu me esqueci de
levar algo “diferente” pra ler e não podia ficar
lendo o livro de História de novo. Chegando lá, pedi
pra Mari, a bibliotecária, me indicar alguma coisa.
Não estava com muita inspiração pra escolher um livro
àquela hora da manhã, não é que eu não goste de ler,
mas é que antes das 8h eu realmente não funciono direito.
Ela me indicou um livro que tinha acabado de chegar na
escola, Azincourt, de um autor estrangeiro, disse que eu ia
gostar, tinham várias batalhas e grandes exércitos. Apesar do
livro ser E-NOR-ME resolvi levar mesmo assim, a capa era
bacana, tinham umas flechas e, se eu não gostasse não
precisava ler inteiro, afinal era pra aula de leitura, não tinha
que fazer apresentação depois, nem texto pra entregar pra
professora.
SEGUNDA 09:15
Começou a terceira aula. Sei que deveria estar
prestando atenção ao que o professor Carlos está dizendo. Eu
geralmente gosto das aulas de História – não quando ele
pede pra gente fazer resumos e responder aquelas questões
A
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Questões crônicas 50
chatas, que é só encontrar no livro e copiar – mas emprestei
aquele livro da biblioteca, e ele é realmente muito bom. A
Mari não estava mentindo quando disse que eu ia gostar.
Deixei ele embaixo da mesa e fiquei lendo até o final da aula,
o professor nem notou, depois eu vejo com alguém do que foi
que ele ficou falando.
SEGUNDA 11:45
Finalmente pude ir pra casa. Tenho uma montanha
de tarefa atrasada pra fazer que deixei acumular da semana
passada, mesmo assim, a única coisa que passa pela minha
cabeça é almoçar, me trancar no quarto e continuar a ler.
QUARTA 08:30
Avancei bastante na leitura do livro, já passei da
metade. Como não tivemos a primeira aula (um dos profes
faltou de novo) aproveitei pra ficar lendo, enquanto a galera
da sala ficava brincando e conversando. Quando o professor
de História chegou, eu estava tão concentrada em uma
batalha que estava rolando na estória que nem notei que ele
tinha parado na frente da minha mesa. A Kaká, minha
colega que senta na carteira de trás, precisou me dar um
cutucão pra que eu parasse de ler e visse o profe parado ali,
feito um dois de paus, me encarando e encarando meu livro.
Toda sem jeito eu pedi desculpas e já fui guardando aquele
livro e puxando o outro que o professor estava querendo ver
na minha mesa. Nesta aula, não ia poder me disfarçar pra
ler, fiquei na mira do professor.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 51
Conforme a aula começou,
eu fui reparando que várias das
coisas que o professor falava eu já
sabia, ou, pelo menos, parecia que
eu já sabia. Ele falava nomes de
lugares e países, de reis e duques e
de técnicas de batalha que eu
estava lendo e conhecendo desde
segunda-feira. Ele estava falando
de uma tal de Guerra dos Cem
Anos (aparentemente era esse o assunto da aula que eu não
prestei atenção) enquanto eu estava interessada em saber o
que ia acontecer com os personagens do livro que estava
lendo. Será que as duas coisas tinham conexão? Será mesmo
que aquela estória cheia de sangue, mortes, reviravoltas e
aventuras que eu estava gostando tanto de ler era a mesma
História (essa com H maiúsculo) que o professor estava
contando de um jeito tão, TÃÃÃO, chato? Quando me
preparei pra levantar a mão e perguntar isso para o
professor, o sinal tocou e ele saiu da sala. Decidi guardar as
perguntas para a próxima aula, até lá eu ia ter terminado de
ler o livro, e ele ia ter que me responder se aquilo que eu li
era verdade ou não.
QUINTA 18:43
Terminei de ler.
SEXTA 11:00
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 52
O sinal bateu e um minuto depois o professor Carlos
entrou na sala. Quando terminou de fazer a chamada e pediu
pra que nós abríssemos o livro didático na página 87, para
terminarmos a leitura sobre as guerras entre França e
Inglaterra, eu aproveitei, levantei a mão e perguntei:
– Professor, os ingleses massacraram mesmo os
franceses na Batalha de Azincourt? Eles realmente lutaram
naquela lama toda? Os arqueiros fizeram a diferença de
verdade nessa guerra?
O profe ficou me olhando com uma cara meio de
assustado, meio de surpreso, eu quase nunca fazia perguntas,
mas acho que ele se espantou mais porque eu sabia essas
coisas.
– Isso não está no livro de vocês Heloyse, onde foi que
você leu sobre isso?
– Aqui. (Eu respondi tirando meu livro de baixo da
mesa) Isso tudo aconteceu mesmo?
– Bom, eu não li esse livro ainda, mas ele realmente
fala de um evento que aconteceu nessa guerra, que nós
estamos estudando, a
“Guerra dos Cem Anos”.
O que se fala dessa
batalha é que ela foi
ganha pelos ingleses e
que os arqueiros fizeram
alguma diferença sim...
Mas eu prefiro não falar
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 53
muito sobre ela, acho que é mais interessante falar sobre a
Guerra como um todo do que só de uma batalha...
O professor continuou falando sobre a Guerra e de
como ela se desenvolveu, mas a minha cabeça estava muito
confusa... Será então que o que eu estava lendo não tinha
nada a ver? Não aguentei e fiz mais uma pergunta:
– Profe, como é que eu sei então se as coisas que eu
estou lendo aqui aconteceram ou não?
– Você vai ter que pesquisar sobre o
assunto, assim como eu vou ter que ler esse seu
livrinho pra saber como é que ele fala dessa
guerra tão importante na História da Europa.
Quando queremos saber sobre os fatos
históricos, nós sempre temos que buscar as
informações em mais de um lugar, seja um
livro didático, um site na internet, nos livros
escritos por especialistas ou documentários,
além das fontes históricas em si... Essa é a parte legal da
História, ela pode ser escrita de várias formas. A Literatura
também pode ser usada como uma fonte da História e os
autores de livros de Literatura podem se utilizar da História
para escrever as suas estórias.
Enquanto o professor ia explicando daquele jeito dele
sobre o final da guerra, eu ia revivendo as passagens do livro
na minha cabeça, acho que o cara que escreveu esse livro
conhecia muito de História.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 54
SEXTA 11:45
A aula terminou enquanto o professor Carlos dizia
quais questões nós tínhamos que responder pra próxima aula,
pra variar um pouco (só que não). Acho que as aulas seriam
bem mais divertidas e interessantes se ele contasse a História
de outra forma, como nesse livro que eu li. Mas acho que isso
não vai acontecer tão cedo...
Enquanto isso não acontecia, acho que vou continuar
indo a biblioteca e pedindo indicações pra Mari, como fiz
hoje. A aula pode ter terminado, mas eu estou indo pra casa
com um livro novo, dessa vez é um tal de O Continente, pelo
que ela me disse, esse fala de uma parte da História do
Brasil, espero que seja tão legal quanto o anterior.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 55
Onde está a História no mundo
tecnológico? Prof. Lucas
OJE estava frio e chovia, passei o dia fazendo o que
mais gosto de fazer: nada. É estranho dizer que não
fiz nada, afinal sempre estamos fazendo alguma
coisa, mesmo quando achamos que não estamos fazendo
nada, por exemplo, quando estamos dormindo, não estamos
só dormindo, estamos descansando, sonhando, ou mesmo só
dormindo, qual o problema? Isso já é fazer algo. Talvez,
então, seja essa definição de não fazer nada que tenha que
ser mudada. Mas, quantas vezes as
pessoas já falaram que estão cansadas de
não fazer nada? Acho que vou recontar
meu dia, e veremos quantos “nadas” fiz
hoje.
É domingo, estou na casa da
minha mãe, chove
e faz frio. Aquela
pedida para ficar
na cama, mas
tinha corrida e
jogo de manhã,
não que eu pratique esses esportes
hoje, mas ia passar na TV e eu tinha
acesso à Internet. Coloquei a camiseta
H
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 56
do meu time e iria comentar ativamente pelo Facebook e
Twitter, então participaria, não jogando, mas torcendo. Jogo
e corrida transmitidos de outras cidades e países, que eu
acompanharia do sofá da minha casa, sem nenhum
problema. Bênçãos à tecnologia! E às minhas condições
sociais! Ou nem tanto, já que mesmo pessoas mais pobres que
eu, hoje em dia, têm algumas dessas tecnologias disponíveis
em suas casas. Enquanto assisto aos jogos, minha mãe
prepara uma lasanha em seu forno elétrico, e ao mesmo
tempo faz um suco em seu liquidificador, bênçãos à
tecnologia! E ao almoço.
Após o almoço, fui eu para meu computador ver e-
mail, vídeos, Facebook, jogar, me distrair, como se não
tivesse feito nada o resto do dia, mas mesmo na distração
estava eu ali, fazendo algo, meu cérebro estava ativo. Na
volta para casa, ainda chovia e fazia frio, e dentro do ônibus
quase vazio, eu mexia em meu celular, jogava de novo, via as
mensagens, os “whats”, me distraía, só para variar um pouco
nesse dia.
Portanto o meu dia de não fazer “nada” foi meio
cheio de distrações, que não foram à toa, me levaram a
pensar coisas, me ensinaram coisas, sei que meu time
empatou, que estou com minha conta de celular atrasada
(mensagem só pra isso, ultimamente), que choveu, que fazia
frio, portanto, a todo o momento aprendo algo, sinto algo e,
automaticamente, entendo a importância das coisas
relacionadas às minhas percepções e sentimentos, que
movem, ao mesmo tempo, minhas escolhas. Se estiver frio
pego um agasalho, se chover pego um guarda chuva, se
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 57
preciso ver meu e-mail acesso a internet, se quero fazer uma
ligação, pego meu celular... E assim por diante.
A maioria das minhas distrações acho que estão
ligadas ao mundo da tecnologia, assim é muito fácil percebê-
las e a sua importância, pois com elas nos comunicamos,
relacionamos, temos mais empregos, a medicina se
desenvolve, ou seja, a ciência se
multiplica e ainda nos distrai, que
“maravilha é essa ciência”, está
em todo lugar nos fazendo o
“bem”. Evidente que essa minha
visão tem a ver com a presença
dela na minha vida, afinal como
vocês viram, ela está presente na
minha vida, de forma muito clara,
assim influencia sobre tudo que eu
acho dela. Mas toda ciência
produz um artefato, ou algo
palpável, que a gente possa usar
no nosso dia a dia? A resposta a
esta pergunta pode ser respondida
de maneira simples: NÃO.
Existem ciências que não percebemos logo de cara,
para quais muitas vezes somos ingratos, mas que ajudam a
produzir, não necessariamente um artefato, um objeto, mas
nos ajudam a ver as desigualdades, as diferenças, as
intenções, a nos lembrar, a esquecer, a questionar. Ciências
que mostram que nossas distrações não são só distrações, que
ajudam a produzir a nós mesmos. Ciências que são úteis a
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 58
todos os momentos, que podem responder de onde vêm as
percepções e porque as entendemos de determinadas formas
e não de outras. Mas por que não as percebemos nesse
mundo tão tecnológico? Talvez, porque estamos muito
preocupados nos distraindo, vivendo-as como se elas não
fossem nada além de uma distração…
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 59
Professor, eu vi num filme...
É verdade? Prof. Maicon
SESSÃO cinematográfica estava se aproximando.
Foram meses de espera desde o anúncio da estreia
nos cinemas locais. Angus havia lido de tudo a
respeito da trágica história: assistiu documentários, leu
diversos artigos, livros e revistas. A paixão era tão grande que
resolveu construir inclusive uma
réplica do famoso navio. A fila
estava imensa, ele percebeu que
não era o único entusiasmado
pela história. Escolhido o
assento, acomodou-se na espera
ansiosa pelo início da
“verdadeira história” do Titanic!
As cenas produzidas acerca dos destroços encontrados
há quase quatro quilômetros de profundidade enchiam seus
olhos de brilho. - Que incrível! - Angus pensava. Ali estavam
as imagens “reais” do navio. A imaginação corria solta.
- Será que é possível encontrar algum corpo ainda? Como
seria interessante conseguir algum objeto do navio! Existiriam
ainda fotos escondidas entre os escombros? Conforme as
imagens estavam se sucedendo, mais e mais perguntas
alçavam voo em sua mente. Como Jack e Fabrício se
conheceram? O que aconteceu aos dois irlandeses que,
A
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 60
perderam as passagens do navio numa rodada de pôquer e,
então, não puderam embarcar? Por que a mãe de Rose era
tão cruel com a filha? Por que ela queria que a filha se
casasse com alguém que ela não amava?
No entanto, o momento mais aguardado por ele
estava no trágico acidente que acometeu o navio e que o
levou ao fundo do Atlântico Norte. Perguntas e mais
perguntas borbulhavam sua mente: Como ele (diretor)
descobriu a forma que o iceberg tinha? Como ele sabe que
tiveram operários que ficaram presos na sessão de caldeiras?
Algumas das cenas não traziam as mesmas informações que
ele aprendera nas suas pesquisas e isso o deixou bastante
angustiado e preocupado, afinal, aquele filme era uma
mentira?
Aquele final de semana foi um dos mais inquietantes
da vida de Angus. Muito daquilo que ele sabia sobre o mais
famoso dos naufrágios da História, tinha sido “mostrado” de
forma diferente no filme. Nunca antes havia desejado tanto,
que uma segunda-feira chegasse o mais rápido possível para
que pudesse ir à escola, conversar com o professor de História
e tirar essas grandes dúvidas que borbulhavam em sua
mente.
Segunda-feira chegou.
Dizer que ele acordou às seis horas
da manhã não seria uma
verdade, uma vez que a ansiedade
venceu o sono naquela
madrugada. Ao chegar à escola, dirigiu-se à sala do dos
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 61
professores na esperança de encontrar o professor de
História. Bateu na porta e, para seu alívio, quem atendeu foi
aquele por quem procurava.
- Professor, por favor, preciso conversar contigo!
- Ok. Tens alguma dúvida sobre os conteúdos para a
prova de hoje? - indagou o professor Mulder.
- Não professor. Sei “exatamente como tudo
aconteceu” na Segunda Guerra Mundial. Minhas dúvidas são
sobre outro fato histórico. O professor já assistiu, nos
cinemas, ao filme Titanic?
- Sim, assisti ontem à noite. Por quê?
- Ok. Então é verdade aquilo que eles mostram no
filme? Pergunto isso, pois muitas coisas não batem com
aquilo que eu estudei sobre o que aconteceu com esse navio.
Nunca Angus havia aguardado tanto por uma
resposta, mas, ao mesmo tempo, também preocupava-se
com a resposta que iria receber de seu professor. Quem está
errado: o filme famoso ou os livros e outros “materiais” que
ele pesquisou a respeito do assunto?
- Bom Angus, temos que repensar um pouco sobre
sua ideia do que é a História. - respondeu o professor.
- Como assim? - indagou Angus com uma expressão
inquieta.
- Primeiramente, vamos deixar claro que não existe
“a verdade” absoluta sobre os fatos que estudamos “do”
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 62
passado, pois toda vez que olhamos “para” o passado,
podemos construir “uma nova interpretação” sobre esse
passado, a partir da forma que pensamos no “presente”.
- Bah professor, o senhor está me
deixando mais confuso ainda. Explique
melhor, por favor!
Naquele momento, o professor
Mulder percebeu que aquela sua explicação
só seria compreendida com um exemplo
prático. Então ele questionou Angus:
- Você já assistiu ao filme “Ponto de Vista”?
- Ainda não professor, por quê?
- Bem, nesse filme, um presidente americano estava
fazendo um discurso ao público, quando de repente se tornou
alvo de um atentado, que buscava matá-lo. Dado esse evento,
o filme mostra como oito personagens ligados àquela cena
observaram a tentativa de assassinato. Cada um deles
compreendia de forma diferente quem seria o autor do
crime, mas ao debater e comparar as versões que cada um
possuía a respeito daquele evento, conseguiu se perceber
quem era o criminoso.
- Mas então se encontrou o “verdadeiro” criminoso?
- Não é tão simples assim Angus - respondeu o
professor. Pense! O personagem que investiga no filme quem
teria atentado contra a vida do presidente poderia ter
apontado no final para oito criminosos diferentes, se
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 63
escolhesse apenas um dos pontos de vista sobre o fato. Tanto
para o investigador, quanto para o historiador, quando este
busca compreender um determinado aspecto ligado a um
determinado evento, ele precisa obter o máximo possível de
informações. Com essas informações em mãos, ele tentará
verificar se essas podem ser usadas ou não, verificando sua
autenticidade e comparando-as entre em si e, aí, vem o
ponto principal: fazer suas escolhas!
Nesse momento, Angus, bombardeado de ideias
diferentes daquilo que ele imaginava, observava o professor de
forma incrédula. E, então, perguntou:
- Como assim, fazer suas escolhas?
- Meu caro Angus - respondeu o professor. Muitas
das informações que o historiador possui sobre um fato são
contraditórias e, não necessariamente, ele possui outras
fontes que o ajudem a mostrar qual delas é “a correta“ ou
qual seria “a errada”. Assim, ele tem que escolher qual
caminho seguir, deixando de lado os outros caminhos de
“interpretação” possíveis.
E o professor ainda indagou:
- Você disse que sabe como
tudo aconteceu durante a Segunda
Guerra Mundial, não é? Então me
diga: o que aconteceu com o líder
alemão Adolf Hitler durante a
guerra?
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 64
- Essa é muito fácil professor, ele se matou num
bunker antes dele ser invadido por tropas soviéticas. Vi um
filme e li um livro que contam todos os detalhes sobre isso.
Com um sorriso no rosto o professor, estando
contente com o entusiasmo e ao mesmo tempo inocência de
seu estudante, fez uma nova pergunta:
- Você sabia que essa interpretação sobre o suicídio
no bunker é recente? Até meados da década de 1990, a
explicação que os historiadores davam é de que os soviéticos
haviam matado Hitler quando chegaram em Berlim.
- Não sabia disso - respondeu Angus com tom de
preocupação.
- Assim - continuou o professor - podemos perceber
que, com as fontes que os historiadores possuem, eles
constroem uma interpretação sobre os eventos que
investigam, as quais podem variar conforme novas fontes
sejam acrescidas e antigas sejam descartadas.
Compreendendo agora um pouco
melhor como funciona o trabalho do
historiador, Angus percebeu que o
diretor de um filme age quase que da
mesma forma.
- Então professor, quer dizer
que o diretor do filme Titanic se fez de
historiador para explicar a história do
naufrágio? Para montar o roteiro do
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 65
filme, ele fez escolhas de quais informações seriam as mais
corretas sobre a tragédia e, então, construiu através de
imagens a sua interpretação do fato?
- É mais ou menos isso Angus - respondeu o
professor - mas talvez não devêssemos usar a palavra
“corretas”, pois ele poderia utilizar a interpretação mais
“aceita” entre os historiadores ou a versão que ele considera
mais interessante passar no filme e, ainda temos que levar
em conta outras implicações.
- Como assim professor? - perguntou Angus.
- É fácil de entender. Um filme é produzido com um
objetivo: atrair pessoas para as salas de cinema e, assim,
trazer recursos financeiros que paguem o custo que o filme
teve para ser produzido e, o máximo a mais, que seria o
lucro. Para que isto aconteça, os roteiristas, produtores e
diretores muitas vezes acrescentam informações ou
personagens que de fato não existiram, para “melhorar” a
história e atrair o maior público possível. Por exemplo, em
Titanic, Jack e Rose não existiram. Além disso, muitas dessas
obras cinematográficas são patrocinadas por empresas que
têm seus interesses quanto àquilo que querem que seja
mostrado através das imagens.
Aquela informação atingiu a mente de Angus, como
se fosse uma tesoura picotando todo o conhecimento que ele
possuía sobre a história do navio e seu naufrágio. Estava
boquiaberto com toda aquela situação. E, o professor ainda
acrescentou:
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 66
- Muitos livros fazem a mesma coisa, principalmente
quando os “profissionais” que os escrevem estão mais
interessados em atrair o público, preocupando-se menos em
“como lidar” com as fontes que possuem. E, não podemos
esquecer que as fontes, que um historiador ou um diretor
podem possuir, foram produzidas também com uma
intenção, que podem ou não serem devidamente condizentes
com os fatos aos quais estão relacionadas.
- Bah professor, História é mais complicado do que
eu pensava. Sempre entendi que a História era uma só e
ponto.
- Ela não é simples, mas não é tão complicada assim.
Basta perceber que é a pluralidade de olhares que torna a
História ainda mais cativante.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 67
O trânsito, a chuva e…
A História (“Pra que serve?” Ou: “O que
eu tenho a ver com isso?”)
Prof. Mateus
HOVIA. E muito. O trânsito parecia
superar-se e tornar a cidade ainda mais
congestionável. As pessoas estavam
infelizes dentro do ônibus 184. Talvez porque
muitas se molharam. Ou porque chegariam
mais atrasadas do que de costume. Cada uma tinha uma
resposta ou, pelo menos, uma sugestão pro caos que ali
transbordava. Uns diziam que a culpa era do tempo, que
nunca chovia tanto assim em maio. Uma mulher disse que
era culpa do aquecimento global. Um idoso disse que era do
Chuvalsky, repórter da previsão do tempo que nunca
acertava nada. Uns estudantes disseram que a culpa era das
pessoas que jogavam lixo em qualquer lugar e que depois
entupiam as bocas de lobo. Uma mulher que levava seu filho
recém-nascido reclamava que o problema era a falta de
infraestrutura e saneamento que o governo não cumpria. Isso
sem esquecer os que afirmavam que era tudo coisa de São
Pedro que tinha acordado de mau humor.
Sentado num assento próximo da janela, João
rabiscava seu caderno. Surgiam navios, espaçonaves, zumbis e
C
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 68
carros de corrida. Enquanto olhava pela janela molhada,
pensava na avaliação que o aguardava. “Prova de História.”
Pra que estudar História, hein? Pra que aquelas datas,
aquelas palavras difíceis, coisas que não existiam mais e
pessoas que já tinham morrido há tanto tempo que nem o pó
delas restava mais? Menos as múmias, que eram exceção.
Dessas ainda restavam faixas, embrulhando um cadáver
esquisito. Pra que isso tudo hein? Nem o seu avô existia
naquelas épocas.
Mais uma parada. Enquanto o
senhor que estava ao lado de João descia
junto a outros colegas para trabalhar
numa indústria das redondezas, outras
pessoas subiam no coletivo, livrando-se
temporariamente da chuvarada. Depois
de duas senhoras entrarem, João notou
um sujeito encharcado. “Nossa, coitado.
Vai ter uma gripe daquelas”, pensou. Depois de o sujeito
arrumar o cabelo e colocar os óculos, João o reconheceu. Era
seu professor de História!
Não demorou a passar pela catraca, deixando uma
considerável soma ao cobrador pelo uso do transporte. O
professor avistou João e veio a seu encontro. Depois de um
sorriso, lhe disse “E então, João? Quanta chuva hein? Achei
que o mundo ia desabar. Posso sentar com você?”
Depois da confirmação de João, a conversa continuou
sobre o tempo chuvoso. João disse que as pessoas
comentavam sobre o problema do congestionamento e que
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 69
ele, particularmente, não gostava quando chovia porque não
tinha aula de Educação Física. O professor riu do comentário.
Passaram a dialogar sobre alguns acontecimentos da escola.
João notou que o professor se interessou pelos desenhos de
seu caderno e disse que gostava muito de desenhos. Falou de
alguns personagens de histórias em quadrinhos que João
nunca tinha ouvido falar, mas que, de cara, pareceram
interessantes. João descobriu até que ambos torciam para o
mesmo time de futebol e tinham a mesma opinião sobre o
novo zagueiro: um grande perna-de-pau!
A conversa estava tão descontraída que João deixou
escapar: “Puxa, professor, você é tão legal, como que foi dar
aula de História, hein? Eta materiazinha mais chata!”
Por um segundo que pareceu uma eternidade, João
suou frio e arrependeu-se do que disse. Afinal, o professor
podia não gostar do comentário e ainda tinha uma prova
com ele em breve. Já pensou se ele descontasse a nota? Antes
que pudesse começar as desculpas, o professor começou a
falar. Dava pra perceber que ele sentia a necessidade de falar
sobre aquilo – e “de boa”. Ele contou que nem sempre gostou
de História. Falou que a História tem uma coisa engraçada:
quando não a entendemos ela parece não ter sentido algum,
como se fosse um amontoado de fatos que se sucedem;
porém, quando passamos a compreender pra que serve a
História, ela torna-se parte da nossa forma de pensar, vira
parte integrante de nossa vida.
E foi explicando...
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 70
– Graças à História eu tenho hoje um olhar diferente
sobre as coisas, sabe? Você me falou sobre o modo que alguns
passageiros explicaram o problema do trânsito. Em certo
sentido eles estão corretos, embora provavelmente a melhor
explicação para o problema seja a questão da mobilidade
urbana: o crescimento desordenado das cidades, a exploração
do serviço de transporte público por empresas privadas e um
excessivo número de automóveis rodando, estimulado por
uma cultura que associa um volante a prestígio social.
Acontece que muitas destas pessoas estão tão mergulhadas
(melhor dizendo no dia de hoje: encharcadas) em seus
problemas que não se questionam sobre a razão de viverem
no mundo em que se encontram. Você notou os operários que
desceram? A fábrica em que trabalham está na iminência de
demitir muitos deles. Será que eles entendem o motivo disso?
Estarão resignados? Ou organizados para defenderem seus
direitos? E você, João? Você que está indo estudar, percebe o
quanto ir à escola pode fazer a diferença em sua visão de
mundo?
O professor continuou dizendo que só conseguimos
entender nosso mundo atual se estudarmos o passado. “O
mundo não ‘caiu do céu’, João. Este mundo é consequência
de escolhas que foram tomadas pelos seres humanos. Por
exemplo, eu nunca pego ônibus neste horário. Sempre pego o
próximo. Mas hoje, resolvi sair de casa mais cedo porque com
essa chuva, o trânsito fica pior ainda. Se eu tivesse escolhido
pegar o ônibus no horário de costume teria chegado tarde na
escola e não conversaria com você agora.”
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 71
- Puxa, é verdade professor. Eu pensei que era
coincidência, mas a gente só se encontrou por que você
escolheu um ônibus diferente. Mas diz aí, quando você
começou a gostar de História?
- Ora, eu comecei a me interessar pela História
quando descobri que faço parte dela.
- Faz parte dela? Como assim?
- Todas as pessoas fazem parte da História, João. A
História não é um assunto só de reis e generais. Imagina só:
olhe pras pessoas deste ônibus. Cada uma indo pra um lugar,
estudar, trabalhar. Uma desce, outra sobe. Uma com
guarda-chuva, outra com uma capa e um todo molhado
como eu. Muitas delas não sabem, mas são capazes de lutar
por um mundo mais justo, mais digno
para todos. É sobre isso que a História
trata. Os seres humanos no tempo. Não
para estudar o passado como
curiosidade; mas para entender o
passado, compreender o presente,
construir o futuro.
- Nossa professor que legal! Eu
nunca tinha pensado na História dessa
maneira.
- É. Pensar em que as coisas
poderiam ter acontecido de outra
forma nos ajuda a imaginar que
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 72
podemos ter um futuro bem diferente do nosso.
- Um futuro sem trânsito e sem uma fortuna pelo
“busão”, professor?
- É isso aí, João! Um futuro em que a chuva seja o
nosso maior problema.
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 73
“Meu Brasil brasileiro, terra de
samba e pandeiro” Será? Prof.ªMichele
UIZA estava super
empolgada, afinal de contas
era sua primeira viagem
internacional e como se não
bastasse, iria pra bem longe.
Finalmente, liberdade e
independência! Enfim chegou o dia
em que seu sonho de estudar fora
ia se realizar. Sua bagagem tinha
de tudo um pouco, mas uma coisa não podia faltar, vários
cartões de memória com o máximo de músicas que pudesse
caber ali, além da memória do próprio iPhone! Era uma
adolescente, não poderia ficar dois segundos sem o fone no
ouvido, era algo inconcebível.
De malas prontas e rumo à Finlândia!
Os dias se passavam muito rápido e Luiza tentava se
adaptar. A família que a acolheu já tinha recebido outros
intercambistas, mas era a primeira vez que recebiam uma
brasileira e todos faziam um grande esforço para que tudo
desse certo.
Ao longo de três semanas, Luiza já estava se dando
super bem e até já tinha feito algumas amizades, na maioria
L
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 74
outros brasileiros, que também estavam fazendo intercâmbio.
Tudo era novo, diferente e divertido, mas a saudade de casa
aumentava cada vez mais! Para matar a saudade, ela falava
com os amigos e a família que estavam no Brasil, a internet
era sua grande aliada! Assistia a alguns programas de TV,
que nem tinha muito interesse, mas ouvir o português lhe
fazia muito bem. Entretanto, o que mais gostava mesmo de
fazer era ouvir as músicas, que com tanto cuidado havia
selecionado. Apesar de seu gosto musical ser bastante eclético,
ela tinha incluído na sua playlist várias músicas brasileiras
que considerava as mais legais.
Num determinado dia, Luiza chegou em casa
pensativa, remoendo a conversa que tinha tido há poucos
minutos com uma finlandesa. Uma das novas amizades, mas
essa parecia promissora. Estava conversando sobre como seus
“jeitos de ser” eram diferentes, falavam sobre a língua,
comida e músicas, claro! O papo ia bem até que a nova
amiga pediu:
- Me ensina a sambar?
- Ih, não sei sambar! Fico te devendo essa...
- Como assim não sabe? Você não é brasileira?
- Sou, e daí?
- Mas o Brasil não é a “terra
do samba”?
- Pode até ser pra muita
gente, mas não pra mim. Eu gosto de
ouvir algumas músicas, mas não é o
meu estilo musical preferido e nunca
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Questões crônicas 75
me interessei em aprender a sambar. Aliás, tem muita gente
no Brasil que gosta de outros tipos de música. Essa história
de que o Brasil é o país do samba serve pra turista e para a
televisão. Quem acaba ganhando com isso são as escolas de
samba, que todo ano no carnaval devem ganhar fortunas.
Você já viu o tamanho do meu país? Acha realmente que
num país daquele tamanho, todo mundo gosta e sabe
sambar? Nossa cultura não se resume a isso!
- É, eu não tinha pensado nisso…
E a conversa seguiu com Luiza explicando para sua
amiga que nem todo mundo no Brasil sambava, pulava
carnaval ou jogava futebol.
Quando chegou em casa sentia-se incomodada e ao
mesmo tempo curiosa... “Ora, só porque sou brasileira tenho
que saber sambar?” Esse “como não?” ecoava na cabeça de
Luiza e ela não conseguia se conformar porque as pessoas que
conversavam com ela, ao saberem que ela era brasileira,
falavam sobre os mesmos assuntos: carnaval e futebol. Mais
do que isso, toda hora alguém se espantava porque ela não se
importava muito com essas coisas e isso a deixava cada vez
mais incomodada. “Ora, como era possível uma menina
brasileira não saber sambar?”Pra Luiza era muito estranho
perceber que as pessoas pensavam que no Brasil todos tinham
os mesmos gostos, como se isso fosse uma espécie de
obrigação, já que “aquilo” representava o país. Então se
perguntava: “será que não sou brasileira de verdade?”
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Questões crônicas 76
Mas, depois de muito pensar, percebeu que não era
menos brasileira porque não sabia sambar. Conhecia tanta
gente como ela e nem por isso se sentiam menos brasileiros.
Depois de passar por isso, entendeu como era ruim ser
rotulado por alguém. Mas, ainda ficou pensando sem achar
uma resposta: “Afinal de contas, quem foi que inventou esse
negócio de que o Brasil é o país do samba? Quando voltar
pergunto pra prof de História, vai que ela sabe!”
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Questões crônicas 77
Quem tem medo de museu? Prof.ª Nair
UEM tem medo de museu? Eu! Tinha! Sim, eu tinha
muito medo de museu ou de qualquer coisa que
lembrasse gente morta ou que tivesse pertencido a
quem já morreu. O que é que tem num museu? Muitas coisas
que pertenceram a quem já está morto. E se o falecido
estivesse por ali, cuidando do que era seu? Me arrepiava, só
de pensar que aquelas coisas poderiam se mexer ou sair
voando pelo lugar. Deus me livre! Bom, era assim que eu
pensava e sentia em
relação a museus.
Como eu disse,
tinha medo. Hoje não
tenho mais e quer
saber, gosto muito de
museus! Depois que
aprendi que aqueles
objetos guardam
histórias, ou melhor, eles podem nos contar histórias
incríveis, fiquei tranquila. Hoje, gosto de passear em museus,
de observar os objetos e imaginar como seriam as pessoas que
fizeram uso deles. O que faziam? Como se vestiam? Como
preparavam seus alimentos? Sobre quais assuntos falavam?
Com o que se divertiam? E mais uma imensidão de
perguntas.
Q
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Questões crônicas 78
Os objetos expostos em museus ajudam a contar
histórias de um tempo que já passou, mas também ajudam a
entender o nosso tempo presente. Os aparelhos que
utilizamos em nosso cotidiano
estão profundamente
relacionados com diversos
objetos que estão em museus.
Quer saber? Vamos pensar no
celular nosso de cada dia.
Aliás, está cada vez mais
difícil viver sem ele.
Quando hoje fazemos uso do nosso celular para quase
tudo, precisamos imaginar que não foi sempre assim. As
cartas, as máquinas de escrever, o telégrafo, o telefone
enorme e antigo da casa da bisa (e que agora está no
museu!), foram todos objetos inventados pelo homem ao
longo do tempo, para que chegasse ao que temos hoje, o
celular altamente sofisticado. No celular, podemos imaginar
que cabem inúmeros objetos que antes existiam de modo
independente. Isso para pensarmos apenas em relação às
comunicações, mas podemos refletir sobre as vestimentas,
artefatos de cozinha, obras de arte, fotografia, arquitetura,
transportes e tudo o que
diz respeito à vida
humana.
Que alívio ter me
libertado do medo que
tinha de museu! Viu como
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Questões crônicas 79
podemos aprender diversas coisas interessantes visitando um
museu? Ah, e tem mais. Você sabia que todos nós temos o
nosso próprio museu? Sim. O nosso museu afetivo. Todos nós
guardamos com carinho diversos objetos, que chamamos de
‘lembrança’ ou ‘recordação’, objetos que são muito
importantes para nós e que fazem parte da nossa história. Só
para dar um exemplo: guardo comigo os cadernos que meu
avô utilizou para se alfabetizar, inúmeras cartas que minha
mãe me escreveu antes de existir e-mail, meus diários,
fotografias, peças de roupas e muitas outras coisas que gosto
muito e que fazem parte da
minha história. Você também
pode montar o seu museu
afetivo ou visitar um museu e
conhecer diversos objetos
interessantíssimos. Que tal?
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Questões crônicas 80
Minhas cápsulas do tempo (Minhas lembranças dão História?)
Prof.ªTamelusa
RA tarde, e uma caneca de chocolate quente me
aguardava em cima do balcão da cozinha ainda por
arrumar. Só de olhar aquela fumacinha, que insistia
em subir pelo ar frio e cortante do inverno, já me sentia
aquecida. Naquela semana, minhas noites tinham sido assim:
café ou achocolatado bem quentinho, e muitas, muitas coisas
para retirar das caixas que se amontoavam pela casa.
Tínhamos acabado de nos mudar e ainda faltava muito para
aquilo ter cara de lar.
Já havíamos nos
mudado muitas vezes,
mas fazia muito tempo
que não me sentia tão
bem, tão em casa. Sabe
aquelas vezes em que a
gente sente um perfume
que conhece, mas não
tem certeza de onde
sentiu pela primeira vez,
nem consegue identificar
de onde vem? Da janela
E
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Questões crônicas 81
do meu quarto conseguia sentir aquele cheirinho gostoso que
vinha do jardim. Era cheiro de infância, me fez lembrar de
coisas que vivi na casa de minha avó.
Dividindo o tempo entre a escola e tudo que vinha
com ela – muito dever de casa, trabalhos e quilômetros de
matéria para estudar para as provas – eu ia tentando por
alguma ordem naquela imensidão de caixas, malas e sacos
plásticos espalhados no meu quarto. Minha mãe insistia para
que eu organizasse logo minhas coisas. E eu até concordava
com ela, afinal estava difícil encontrar aquela calça que eu
gostava tanto. Mas a preguiça estava tão entranhada em
mim, e eu tinha tanto sono...
O quarto era menor do que o da casa anterior. Como
eu era a mais velha de 3 irmãos, pude escolher entre ficar
sozinha em um quarto menor, ou dividir meu sagrado espaço
com um dos meus irmãos pestinhas. É claro que não é difícil
descobrir qual foi minha escolha. O caso é que, agora, tinha
que me desfazer de algumas coisas. Mas o quê?
Não imaginei que fosse tão difícil escolher o que
guardar e o que jogar fora. Sempre guardei tudo. Os bilhetes
declarando amizade incondicional, os diários e agendas que
fui acumulando desde a entrada na adolescência, o ticket
daquele show em que meu primeiro amor se revelou... Tudo,
absolutamente tudo era importante. Minhas recordações
ficavam guardadas em lugares diferentes, como se fossem
várias cápsulas do tempo que encerravam pedaços de mim.
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Questões crônicas 82
Mas algum critério eu tinha que adotar. Não era
possível manter tudo o que eu já tinha, e guardar o que
ainda estava por vir. Se eu não me decidisse logo, minha mãe
podia querer impor sua ordem de limpeza e ir juntando tudo
o que ela achasse que não prestava. E aí como eu ia garantir
minhas memórias? Ah, não! Eu precisava pensar logo nisso.
Então comecei a abrir as caixas e olhar cada objeto
amarelado e empoeirado que guardei.
A primeira era bem antiga, ainda dos meus tempos
de criança. Não tinha muita coisa, porque a época era difícil
e eu não tinha muito para guardar. Meus pais não podiam
comprar muitos brinquedos. Daquele tempo, ficaram alguns
penduricalhos que não
sei por que guardei.
Além das bugigangas,
uma boneca. Mas não
era qualquer boneca.
Era a minha primeira
boneca, com a
roupinha original
ainda, e parecia muito com um bebê de verdade. Na minha
memória, eu passara um ano inteiro pedindo aquela boneca,
mas não tenho certeza. Sentia o tempo de um jeito diferente
naquela época.
Fui abrindo e fechando caixas, tentando decidir onde
eu concentraria meus esforços desta tarefa quase impossível.
Foi então que me deparei com uma caixa cheia de fotografias.
Tinha de tudo ali. Festas familiares (daquelas que reúnem
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Questões crônicas 83
todo mundo uma vez por ano), fotos dos meus amigos, de
atividades da escola, de lugares que visitamos... Tinha foto até
de gente que eu não lembrava mais quem era. Perdi a noção
do tempo, olhando
cada uma delas...
Mesmo não
sabendo quem eram
todos, acabei
deixando tudo lá,
como estava. Tinha
tanta coisa para
relembrar naquele quarto. Quem sabe, eu não acharia uma
pista que me ajudaria a lembrar quem eram e porque
naquele momento, em que guardei os retratos, a história
daquelas pessoas se conectava com a minha.
Continuei por mais algum tempo a executar meu
plano de rever minhas recordações e decidir o que manter
em minhas tantas cápsulas. Mas não deu para terminar
naquela noite. Vencida pelo sono, meus sonhos foram
embalados pela lembrança de um amor que ficara para trás,
perdido com outras coisas importantes que por vezes se
perdem nas mudanças. Um pedaço de papel rasgado, com
algumas frases que se pretendiam poesia escrita. Foi o que
bastou para recordá-lo. Este com certeza não seria
desprezado em uma lixeira...
Mestrado Profissional em Ensino de História
Questões crônicas 84
Nota
Este e-book foi desenvolvido como trabalho para a disciplina
“Produção de material didático no Universo Virtual”, ministrada
pela professora Márcia Ramos de Oliveira para o programa de
Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória -
UDESC/UFSC). Trata-se de uma produção coletiva dos seguintes
professores-alunos:
Anselmo Teles Sabino
Bruno Ziliotto
Cleyton Machado
Dismael Sagás
Elaine Prochnow Pires
Elton Frias Zanoni
Juliana de Almeida Freitas
Juliana Hachmann
Karla Andrezza Vieira Vargas
Karoline Fin
Lucas Roberto Soares Lopes
Maicon Roberto Poli de Aguiar
Mateus Pinho Bernardes
Michele Valentim Morais
Nair Sutil
Tamelusa Ceccato do Amaral
Revisão final:
Aline Zilli Ziliotto
Florianópolis, junho de 2015.
Contacte-nos: www.facebook.com/questoescronicas
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